Programa Mostra SESC Museu da Pessoa
Depoimento de Maria Helena Gunello Delprá
Entrevistada por Paola Bruneli e Renato Cobra
São Paulo, 14 de março de 2017
Realização Museu da Pessoa
MSMP_HV04_Maria Helena Gunello Delprá
Transcrito por Karina Medici Barrella
MW Transcrições
P/1 – Maria Helena, seu nome, idade e local de nascimento, por favor.
R – Meu nome é Maria Helena Gunello Delprá.
Eu nasci em 18 de abril de 1950, na cidade de São Paulo na Maternal, que é um dos mais antigos hospitais de São Paulo que fica na Avenida Celso Garcia.
P/1 – Você é natural da região do Belém, nasceu na região do Belém, qual a sua relação com a região até hoje?
R – Eu nasci no Belém.
Essa Maternidade Leonor Mendes de Barros fica no Belém, na Avenida Celso Garcia.
P/1 – Se você fosse escrever uma resenha sobre você mesma, como você se apresentaria?
R – Como eu me apresentaria? Eu sou uma pessoa otimista, eu sou uma pessoa de fé e que acredita sempre.
P/1 – Você se lembra como foi sua infância? Descreveria pra gente rapidamente sua infância.
R – A minha infância, o meu pai faleceu com 29 anos de infarte fulminante.
Eu tinha dois anos de idade e a minha mãe ficou com três filhas pra criar.
Ela trabalhou em tecelagem e foi difícil.
Uma das coisas que me lembro é que na época o Getúlio Vargas dava às viúvas que ficavam com mais de um filho, ele dava a escola.
E eu fui pro Externato São Vicente de Paulo na Penha, que é um colégio de freiras, onde eu tive um bom ensino, mas por outro lado me senti muito discriminada porque ali só frequentava pessoas da elite e muitas vezes na hora do pagamento, o pagamento era feito na própria sala de aula.
Era uma caderneta onde os pais colocavam o dinheiro dentro e a criança levava e na sala de aula a freira colocava a assinatura com o recebido.
E no meu caso, quando chegava a minha vez eu levava a caderneta ela fazia questão de dizer em alto som, pra que todos ouvissem, ela colocava um carimbo e dizia: “O seu é gratuito, né?”, foi uma das coisas que ficou marcada.
Tive uma infância feliz, mas muito difícil também até chegar à idade adulta.
P/1 – Quantos anos você estudou nesse colégio?
R – Quatro anos.
P/1 – E continuaria lá se mudasse essa prática que parece excludente?
R – Eu acho que sim porque apesar de tudo eu gostava daquele colégio.
Teve um fato também que eu acho interessante, lá qualquer evento que tinha, tinha roupa.
Roupa da fanfarra, roupa da ginástica.
Então, a primeira comunhão era uma túnica e todos tinham que comprar aquela túnica igual que tinha uma cruz na frente.
E minha mãe chegou e disse para as freiras: “Eu não tenho condições de comprar essa túnica pra minha filha.
A minha filha foi noivinha de um casamento e ela tem uma roupa branca, então ela pode usar”.
E a freira disse pra ela que não, que eu teria que ir com aquela túnica.
Aí mamãe falou: “Você não vai deixar de fazer primeira comunhão porque você não tem a túnica”.
E mamãe me vestiu com a roupa que eu tinha ido no casamento, casquete e eu fui.
E esse colégio fica exatamente atrás da Igreja da Penha, então, a gente saía de uma porta, atravessava a rua e já estava na frente da igreja.
E aí fez-se aquela fila, todas com a túnica, e a Maria Helena ficou a última da fila.
Mas pra surpresa de todos, quando entraram todas as crianças, todos os olhares se voltaram pra mim.
Porque eu era diferente, eu estava com uma roupa diferente, ninguém entendia por que eu estava com uma roupa diferente.
Eu fui muito fotografada, inclusive minha foto ficou por uns dois anos no fotógrafo que tinha na Penha, uma foto bem grande da Maria Helena vestida com aquela roupa que as freiras não aceitavam.
Mas eu não deixei de fazer minha primeira comunhão por causa delas.
P/1 – Nesse período da sua trajetória escolar tem algum fato marcante que você lembra com gosto?
R – Tem sim.
O colégio era todo encerado.
Era aquele piso vermelho, uma cerâmica vermelha que era encerada, aquilo lá brilhava.
E eu me lembro que quando a gente ia fazer educação física lá em cima – porque era separado, imagina, os meninos não podiam ver as meninas fazerem educação física.
Então as meninas subiam, depois os meninos subiam, não era como nos dias de hoje.
E eu me lembro que uma das farras que a gente fazia era descer a escadaria sentada escorregando (risos).
Quando chegava em casa a roupa estava toda cheia de cera porque a gente descia escorregando.
P/1 – No período que você ia à escola você narrou que foi um período difícil e tudo.
Só retomando, você é a mais velha ou a mais nova?
R – Eu sou a caçula.
P/1 – De quantos irmãos?
R – São três irmãs, diferença de quatro em quatro anos.
Então eu tinha dois, a outra tinha seis e a outra tinha dez anos quando papai faleceu.
P/1 – Sobre sua mãe, a relação que você tinha com ela especialmente nessa época, como era?
R – A mamãe, na realidade ela era uma leoa, ela só pensava em trabalhar e cuidar das filhas.
Era muito difícil pra ela ter tempo pra dar carinho, dar atenção porque em alguns períodos ela trabalhava por turnos.
Então, uma semana ela entrava às cinco da manhã e saía às duas horas; no outro turno ela entrava às duas e saía às dez da noite.
E ela me levava junto.
Então pra ela estar na fábrica ali no Tatuapé cinco horas da manhã ela tinha que levantar às três, três e meia.
E ela tirava esse bebê de dois anos da cama e levava porque tinha creche lá.
E eu ficava na creche e na volta quando ela voltava era o tempo de alimentar.
Então ela não tinha muito tempo para dar atenção pra mim.
Minhas irmãs já eram maiores, então me sentia sozinha.
Interessante que naquele episódio que eu te falei do colégio, algumas vezes eu me senti muito excluída porque quando terminava a aula os pais iam buscar os filhos na escola e todo mundo naquela época usava uma maletinha de couro, não se usava mochila, nada disso, não existia naquela época.
E quando todo mundo saía os pais pegavam a malinha da mão das crianças, pegava pela mão e iam embora.
E eu saía sozinha e ia sozinha pra casa.
Então aquela falta paterna foi uma coisa que mexeu muito comigo, que emociona até hoje.
P/1 – Como era o temperamento do seu pai, no pouco tempo que vocês conviveram.
R – Eu lembro muito pouco do meu pai.
Às vezes até me cobro por isso porque eu olho a foto, parece a foto de uma pessoa estranha, eu não consigo ter identificação.
Meu pai tinha o cabelo encaracolado e as minhas tias dizem que ele ficava sentado na porta da cozinha, que eu mexia nos cachos do cabelo dele, mas eu não tenho memória afetiva do meu pai, eu não consigo ter essa memória afetiva.
Mesmo porque o papai, quando ele faleceu eu estava junto, era só eu que estava com ele.
O pai era janista roxo e o Jânio tinha ganho não sei se era eleição pra vereador, era o início da carreira do Jânio Quadros.
Ele usava aquela vassourinha, não sei se você se lembra.
Ele usava vassourinha e ele lendo jornal, quando ele soube que o Jânio tinha ganho ele provavelmente pela emoção teve esse infarto.
Eu estava sozinha com ele, fiquei quatro horas com ele ali sozinha, até que conseguiu chegar alguém, quebrar a janela e entrar em casa.
Mas eu lembro, a memória afetiva é muito pequena, não consigo.
P/1 – A respeito ainda da sua família, dois irmãos mais velhos.
R – Duas irmãs.
P/1 – E qual a diferença de idade?
R – De quatro em quatro anos.
Então eu tinha dois, a outra tinha seis e a outra tinha dez quando papai morreu.
P/1 – Quando vocês ficavam livres ali, finais de semana, qual era a atividade na infância de lazer? O que gostavam de fazer?
R – Era só brincadeira na rua, que as crianças naquela época brincavam muito na rua.
A gente brincava, brincava com amigos, mas não existia férias, passeios, essas coisas não existiam.
Como as coisas que eu vejo hoje no SESC, eu vejo famílias inteiras vão lá usufruir da piscina, de todos os benefícios que o SESC traz e às vezes eu fico olhando, imaginando, como seria bom se naquela época eu tivesse um SESC pra poder frequentar, mas não sei nem quanto tempo tem o SESC, não me lembro, acho que nem tinha os núcleos do SESC.
P/1 – Quando você se lembra desses hábitos de lazer e tal, quais você gostava mais? Lembra de alguma brincadeira em particular que te marcava?
R – Eu sempre brinquei muito só, sempre, as minhas brincadeiras sempre eram muito sozinhas, inventava coisas sozinha, não era como os meninos que iam brincar na rua de rolimã, coisas de tipo.
Subia em pé de fruta, essas coisas tinha.
P/1 – Explorava bastante a região próxima dali onde você morava? Você tinha essa liberdade de andar ali?
R – Não.
A mamãe sempre controlava muito, muito.
Mamãe sempre controlou muito a nossa infância, a nossa adolescência, não pode isso, não pode aquilo.
Rebolar não pode, dançar samba não pode, é proibido, tudo era proibido.
Cruzar as pernas, imagina! Mulher não cruza as pernas.
A sociedade podava muito e a mamãe, por sua vez, acho que ela exigia muito dela mesma, de dizer: “Eu tenho que criar bem essas meninas”.
P/1 – Fala um pouquinho o que você lembra da região ali do entorno, das ruas.
R – De onde eu morava?
P/1 – Isso, na fase da infância.
R – A mamãe até há pouco tempo morava no Cangaíba.
Eu nasci e fui criada a vida inteira naquela casa.
É perto do Mercado da Penha.
As ruas de terra.
O barulho do ônibus, era interessante o barulho do ônibus.
Porque era um silêncio tão grande que quando o ônibus saía da Rua da Penha ele tinha uma descida e uma subida pra chegar na minha casa.
E o engraçado que quando ele vinha vindo na subida você escutava o papapa papapa pa do ônibus vindo.
Então era um barulho totalmente diferente do que você vê hoje, porque hoje a cidade é tão grande, é tanto movimento e aquele papapa do ônibus eu ainda tenho no ouvido.
P/1 – Das amizades mais antigas qual é aquela que você se recorda de início, falar qual a sua amizade mais antiga.
R – É a Ivete e o Jairo, é a Zulene, é Malu, são os amigos mais antigos.
P/1 – Conhecidos em?
R – Conhecidos eu tenho muito, mas agora amigos dá pra se contar, acho que cabe na palma da minha mão.
P/1 – E desses amigos mais antigos conta a história de como vocês se conheceram.
R – Eu tenho uma amiga antiga também, tenho a Teca, que você conhece a Teca.
Eu trabalhei com ela na Du Pont em 1980, então nem sei quantos anos, uns 30, 30 e poucos anos.
Naquela época eu era secretária na diretoria, a Teca era telefonista e o nosso contato era mais de telefone, muito pouco.
Engraçado que depois que nós saímos da Du Pont que a nossa amizade se fortaleceu porque ela veio morar perto de onde eu moro e hoje ela é uma atleta lá do SESC que faz tudo, ela nada, ela joga tênis, ela luta esgrima, ela faz tudo.
Não vou falar a idade senão ela vai ficar brava comigo (risos), mas ela é muito muito ativa.
Eu acho que o SESC colaborou muito nisso tanto com ela como comigo.
P/1 – Lembrando ainda dessas pessoas, a Teca naturalmente, Ivete, que outras pessoas foram marcantes na sua vida?
R – Além da família, você diz?
P/1 – Além da família.
R – É o que eu digo pra você, eu sou uma pessoa muito seletiva, eu tenho muitos conhecidos, mas amigos.
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eu tenho meus vizinhos de 40 e tantos anos, mas eu conheço todos meus amigos, eu não posso dizer que todos eles são meus amigos, entendeu?
P/1 – Alguma figura pública que você admire, que tenha marcado pra você como exemplo? Algum interesse em particular?
R – Não.
P/1 – Um fato histórico que tenha marcado sua infância, que você se recorde.
R – Difícil eu procurar na minha memória por um motivo que vocês talvez saibam, talvez não, o motivo de eu perder a memória 13 anos atrás, então tem coisas que estão perdidas na minha memória, tem coisas que eu faço muita força pra tentar achar na minha memória.
Às vezes ela vem.
Às vezes tem coisas que vêm assim na memória e quando vêm eu tenho que falar porque se eu não falar ela se perde de novo, ela esquece.
Então é uma memória meio confusa.
Essa minha memória, eu fiquei cinco anos com um tumor cerebral, que eu não sabia que eu tinha esse tumor, eu não tinha dor de cabeça, não tinha nada, até que um dia eu entrei pra tomar banho e meu marido entrou pra fazer a barba e eu coloquei ele pra fora.
Eu não conhecia aquele homem, pra mim era uma pessoa estranha.
Aos gritos eu coloquei ele pra fora, eu não abria a porta e ele ligou pra minha filha dizendo: “Filha, a sua mãe não está me reconhecendo” “Pai, a mãe está brincando com você” “Não, filha, vem pra cá”.
Quem me tirou, quem me trocou, em que carro eu fui, eu não me lembro de nada.
Eu sei que isso foi no dia seis de janeiro de 2004, no dia 21 eu já estava operada no Hospital do Câncer.
Os médicos falaram que tinha que tirar urgente porque fazia cinco anos que estava na minha cabeça.
Então depois disso a minha vida foi meio complicada.
Algumas coisas voltaram com o tempo, outras coisas não até hoje, são 13 anos.
Eu não sabia mais dirigir, eu não sabia mais cozinhar, eu não sabia mais mexer no computador, que eu mexi durante todos anos.
A sensação que eu tenho é que minha vida parou.
É a mesma coisa que se eu estivesse aqui hoje e daqui meia hora eu já não soubesse mais absolutamente nada.
E aí o computador, cada vez que eu olhava pro computador era uma coisa que incomodava.
Eu falava: “O que é isso, é um ET? O que é isso?”.
E eu tentava mexer e apareceu ocorrer um erro fatal, eu desligava, chorava.
E o médico pediu que aquilo fosse retirado da minha casa: “Tira, dá embora, dá pra alguém, guarda.
Porque todas as vezes que ela vê isso daí, ela vai sentir”.
Eu tive várias perdas ao mesmo tempo, foram muitas perdas de uma vez.
Então pra evitar que eu continuasse numa depressão pra que aquilo fosse retirado.
Interessante que depois de três anos eu falei pro meu filho que eu ia, eu já tinha passado por várias fases porque eu cheguei a 42 quilos, eu fiquei com o lado esquerdo paralisado.
A minha fala não era assim, eu pensava no que eu ia falar, mas a minha fala era toda enrolada.
Muitas vezes o que eu ia falar eu já tinha falado mentalmente, só que a linguagem não acompanhava o pensamento.
Depois de três anos, depois de muita fisioterapia, fono, tudo.
Meu marido nesse momento foi meu braço direito, esquerdo, tudo.
Era ele que me dava banho, ele que me alimentava, ele foi tudo pra mim nesse momento.
Depois de três anos eu disse assim: “Eu vou comprar um computador”.
Meu filho falou: “Mas pra que você vai comprar, mamãe? Você já viu que você não consegue”.
Eu disse pra ele: “Eu posso comprar? É com meu dinheiro.
Se não der certo vai ficar pra vocês, vai ficar pro meu neto, mas eu quero tentar”.
E eu comecei a tentar, passo a passo.
Eu sentei e eu falava: “Eu acho que se eu fizer isso e isso acho que me remete a tal coisa”.
Eu tentava e fazia.
Quando eu via que dava certo era uma sensação boa, uma sensação: “Puxa, eu consegui”, mas ao mesmo tempo era uma sensação de desespero porque eu não sabia se no momento seguinte eu ia lembrar novamente.
E o que eu fazia? Pegava um caderno e anotava.
Eu cheguei a ponto de colocar: “Delete”: é para apagar.
Porque eu não sabia o que era aquela teclinha.
Foi tudo muito passo a passo.
Até que chegou o momento que eu falei assim: “E-mail.
Eu vou tentar mandar”, aí eu peguei e escrevi.
Eu acho que eu estou navegando, eu não sei se é na internet, se é num barco furado, mas eu estou navegando.
Aí escrevi um monte de coisas que já nem me lembro mais e no final eu pus assim: “Observação: vocês pensavam que eu não voltasse, mas eu voltei”.
Aí fucei, fucei, vi lá ‘enviar’.
Enviar, só pode mandar.
Eu mandei.
Achei que eles iam me ligar: “Legal!” Ninguém me ligou.
Aí eu chorei, chorei muito.
Eu falei: “Que droga, eu não tenho mais capacidade”.
Aí passou um ou dois dias e eu entrei e vi assim: “Re”.
O que é esse Re? Porque na minha memória, uma pessoa de quase 67 anos, resposta era Reps, que era como eu respondia meus questionários quando eu estudava.
Na época dos meus filhos era R:, que era resposta.
O que era aquele Re? Eu não tinha mais conhecimento, a minha memória tinha apagado.
Eu cliquei ali.
Quando eu clique apareceu minha filha dizendo: “Mãe, quem é que duvidava de você? Nós nunca duvidamos de você.
A gente sabia que você ia lutar e que você tinha capacidade pra isso”.
Aí depois disso foi (emocionada).
Depois disso as coisas foram vindo, eu comecei a entrar na internet, comecei a reencontrar meus amigos, cozinhar.
Eu não sabia mais cozinhar.
Eu cheguei num momento em que eu fechava os olhos e visualizava um prato de sopa e eu via que nesse prato de sopa tinha carne, legumes, macarrão, só que eu não sabia chegar nesse prato (choro).
Aí eu liguei pra minha filha e disse assim: “Filha, não dá risada, mas me ensina passo a passo como chegar?”.
E ela dizia: “Mamãe, você pica cebola, você pica o alho, não põe tudo junto, não põe o macarrão antes senão vai virar uma papa”.
Foi assim.
Aos poucos a internet me ajudou porque eu comecei a procurar receita na internet, comecei: “Como é que faz tal coisa? Mas como que faz o quibe de microondas? Eu fazia”.
Eu ia lá, ia procurar receita e começava a fazer novamente.
Foi tudo muito lento, tudo muito difícil.
O dirigir, eu não sabia mais dirigir.
Depois de três anos eu sentei no meu carro: “Eu quero voltar a dirigir” “Mamãe, mas ainda é cedo, os médicos falaram” “Eu quero aprender”.
Só que eu não lembrava, eu não sabia.
Sentava e: “Pra que serve isso aqui? Pra que serve o câmbio, pra que serve pedal?”.
Eu não sabia.
Sabe quando a gente vai numa auto escola? E eles dizem assim: “Olha, você pisa na embreagem, você coloca a primeira marcha.
Isso aqui é farol, isso aqui é seta”.
Meu filho com a maior paciência, ele sentou do meu lado: “Mãe, você faz isso, você faz isso, faz isso”.
E fui indo, fui indo e consegui voltar dirigindo.
Então as coisas foram muito difíceis.
Do momento em que eu descobri que eu estava com o tumor, o dia que o médico olhou pra mim e disse: “Dona Maria Helena, a senhora está com um tumor e nós temos que tirar o mais rápido possível, porque se a gente não tirar isso aí vai arrebentar na sua cabeça, vai morrer de um derrame cerebral e ninguém nem vai saber que a senhora tinha um tumor”.
Nesse momento me tiraram o chão.
Nesse momento a princípio eu chorei muito, muito.
Não tem como.
Imagina hoje se tiram tudo de você.
Já tinha esquecido tudo, já não sabia dirigir, não sabia mexer no computador, não sabia cozinhar e ainda o médico chega e diz assim: “Tem que operar e não tem jeito”.
Depois de chorar muito eu entrei no meu quarto, fechei a porta, me ajoelhei e conversei com Deus, que eu tenho esse hábito de conversar com Deus.
É uma coisa que eu sempre tive.
E nesse dia acho que eu tive mais ainda.
Porque eu falei: “Deus, eu posso contar com a minha família? Posso.
Eu posso contar com meus filhos, eu posso contar com meu marido.
Meu marido é meu braço direito, meu braço esquerdo e eu tenho certeza que tudo o que ele puder ele vai fazer por mim.
A Medicina está muito avançada, então, eu acredito na Medicina.
Mas quem pode me salvar? É só o Senhor.
Eu sei que vem uma tempestade por aí, Pai, e se o Senhor não me pegar no colo e não me carregar eu não vou passar por essa fase”.
E a partir desse momento, por incrível que pareça, as coisas aconteceram de uma maneira que eu mesma fiquei espantada.
Porque eu tinha 15 dias pra fazer os exames e normalmente é tudo muito complicado, né? Convênio você liga e eles falam assim: “Ah, esse exame? É daqui uma semana.
Não sei o quê só pra dia tal”.
E eu tinha urgência, eu precisava fazer tudo aquilo.
E meu marido pegou e começou a ligar pro convênio.
Por incrível que pareça esse convênio que eu tinha na época, que era dos funcionários públicos dava direito ao Sírio Libanês.
E meu marido ligou e contou meu caso e falou: “Ela precisa de uma série de exames, eu preciso agendar”.
E ela: “Tal exame é em tal setor”.
Ele ligava e falava assim: “Oito horas da manhã ela faz esse exame.
Esse outro exame é em outro setor, eu vou passar o senhor pra lá”.
Passava.
Ölha, eu tenho pras nove horas.
Por incrível que pareça eu fui para o hospital num sábado e eu fiz todos os exames.
Eu saí de lá com os exames prontos de uma vez.
Agora isso daí pra mim foi a mãe de Deus porque eu não ia conseguir fazer todos os exames no mesmo local, no mesmo dia.
Então assim, eu acho que nesse momento Deus pôs a mão que era para que eu chegasse na cirurgia o mais rápido possível.
Então foi muito difícil.
A aceitação, aceitar que você vai perder o seu cabelo, a aceitação de tudo isso é muito difícil.
A recuperação também foi muito lenta porque eu não falava direito, eu não comia direito, não andava direito, não tinha equilíbrio, não conseguia olhar muito pra cima, nem muito pra baixo.
E o meu marido com a maior paciência, meu marido sempre me dando comida, me dando, sabe aprendendo a cozinhar, coisa que ele não sabia fazer.
E aos poucos as coisas foram acontecendo e voltei a mexer no computador.
Voltei a cozinhar, voltei a dirigir.
Tenho limitações? Tenho.
Tenho convulsões às vezes, que aparentemente no momento está sob controle.
Tem uma parte do meu rosto que eu não tenho paralisia facial, mas eu não tenho sensibilidade.
Eu não sinto metade do meu rosto até metade da garganta.
Eles tiveram que mexer no nervo do trigêmeo, que eles falaram que a ponta do tumor estava embaixo do nervo do trigêmeo, então ou eles cortavam o nervo do trigêmio, que é aquele nervo que quando a gente vai no dentista, que fica adormecida a boca, o nariz.
Ou eles cortavam o nervo do trigêmeo ou o tumor poderia voltar.
Então a opção deles foi cortar o nervo do trigêmeo.
Mas eu tenho uma vantagem, né? Quando eu tenho dor de garganta eu só sinto dor de garganta de um lado porque do outro lado está adormecido e eu não sinto (risos).
Mas eu acho que Deus foi generoso comigo e é por isso que eu estou aqui.
P/1 – Conta pra mim, um pouquinho, esse processo de reinvenção, de recuperação das memórias.
Você percebeu uma mudança na sua personalidade baseado no que as pessoas falavam ao se respeito e agora nesse novo momento.
R – Sim.
Eu acho que agora eu sou uma pessoa de aceitar mais as coisas.
Antigamente não aceitava muito as coisas, não.
E tem coisas que eu descobri que independem de você, as coisas acontecem e ou você aceita ou não aceita.
Porque quando eu fiquei doente eu tinha duas opções: ou eu sentava e chorava e ficava com o lado paralisado e ficava com a fala toda enrolada e falava: “Eu sou incapaz de cozinhar, eu sou incapaz de dirigir”, ou eu ia à luta.
Eu tinha duas opções, duas escolhas, a vida é feita de escolhas, e eu escolhi que eu não queria isso pra mim.
E uma das coisas que me ajudou muito foi exatamente quando eu comecei a frequentar o SESC.
Por incrível que pareça foi quando eu comecei a frequentar o SESC.
Quando eu fui lá em Santana pela primeira vez, foi o primeiro SESC que eu entrei, Santana, e comecei a ir nos shows que tinha, então era aquela.
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meu marido falava: “Vai ter show disso, daquilo, vamos lá”.
Pra algumas pessoas pode parecer pouco, mas pra mim não era pouco.
Eu me arrumava, eu saía de casa, eu tinha contato com outras pessoas, eu ouvia música que eu gosto muito de música, aquilo me fazia muito bem.
Eu tenho mania de dizer que o SESC é meio que uma extensão da minha vida, da minha casa, porque eu estou viúva há sete meses e.
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eu frequentava o SESC direto (emocionada).
Desculpa.
Então nós íamos na academia, nós almoçávamos lá quase que todos os dias.
Eu tenho muitos amigos, eu lembro de Virada Cultural que eu passei lá logo que abriu o SESC Belenzinho.
Eu lembro de um show que teve no meio de uma piscina, tinha um palco redondo.
E tinha uma moça de branco, como era o nome dela?
P/1 – Virgínia Rosa.
R – Isso, Virgínia Rosa.
E ela estava cantando Clara Nunes.
À noite, aquela mulher toda de branco cantando Clara Nunes, aquilo fez muito bem pra mim, sabe? Então são coisas assim, que eu tenho que agradecer, eu tenho que agradecer que foi uma coisa.
E o mais engraçado, depois que meu marido morreu, acho que, não sei, dez dias, 15 dias depois que meu marido morreu, não me lembro, eu fiz questão de ir no SESC.
Parece que eu queria o aconchego, não sei se vocês vão me entender, eu queria o aconchego dos amigos que eu fiz no SESC.
Funcionários que eu tenho amizade, que eu tenho respeito, sabe? O Vitor, Eduardo, os meninos da academia, é tanta gente, a Ana, sabe? É tanta gente lá que eu tenho amizade, que eu tenho um querer bem muito grande.
Por você também, Renato, você que está sempre ali me apoiando quando eu chego.
Só aquele seu sorriso: “Oi, dona Maria Helena, tudo bem?” Isso conta muito.
E é por isso que eu costumo dizer que o SESC é uma extensão da minha casa porque antes de eu ficar doente.
Não, não, foi depois que eu fiquei doente que eu comecei a frequentar o SESC, isso mesmo.
Nós começamos a fazer viagens pelo SESC.
Então eu fui pra vários lugares com meu marido.
Fui pra Caldas Novas, fui pra Natal, fui a um monte de SESCs.
Bertioga! Nossa, quantas vezes eu fui em Bertioga, aqueles shows maravilhosos.
Aquilo tudo me fez bem, eu acho que aquilo me ajudou também a sair daquela fase que eu estava, tentando voltar pra vida, porque na realidade eu estava tentando voltar pra vida.
Eu tinha apagado tudo e eu tinha que tentar refazer minha vida.
Por isso que eu acho que o SESC me ajudou nisso, me ajudou a voltar pra vida, né? E agora eu estou aqui.
P/1 – Fala um pouquinho de como você conheceu o seu marido.
R – Grande paixão da minha vida, não quero chorar (emocionada, chora).
Na realidade meu marido eu conheço desde criança.
Quando papai faleceu, como eu disse pra vocês, a mamãe trabalhava na Testila, na Celso Garcia, e o pai dele trabalhava lá também.
E eu ia pra creche, a creche era dentro da fábrica.
E mamãe conta que quando ela chegava comigo no colo, eu era um bebê, dois anos, ela chegava, imagina, quando ela entrava cinco horas da manhã, ela chegava com sacola, com uma criança e ele ia ajudar, meu sogro.
Mal sabia ele que eu ia ser nora dele, né? Aí ele levava: “Deixa eu te ajudar”, ele levava a sacola pra creche pra ajudar mamãe.
E com isso foi se formando uma amizade.
Tinha aquelas festas de Natal, de confraternização das firmas, que as crianças ganhavam presentes, tudo? O Sérgio estava lá, eu também estava lá.
E a minha mãe tinha amizade com o pai, com a mãe dele e a amizade foi se formando.
Quando eu estava com 15 e ele com 18 teve uma festa lá de carnaval e eu lembro que eu estava nessa festa, eu olhava pra ele, eu era gordinha e ele era magrinho, com duas saboneteiras aqui.
E eu olhava e falava: “Mas que menino feio.
Olha só a saboneteira dele aqui!”.
Aquilo não me interessou de jeito nenhum.
E também eu não devo ter interessado pra ele porque eu era gordinha, assim, imagina.
Tenho até foto dessa época (risos).
E aí passaram-se uns três anos, mais ou menos, um dia minha irmã teve nenê e ele veio trazer a mãe dele para visitar minha irmã.
Eu estava sentada no chão da sala fazendo a unha do pé, quando a mamãe abriu a porta e eu olhei eu falei: “Nossa! Era esse homem que eu queria!”.
Ele estava bonito, ele não era mais aquele menino com aquela saboneteira, sabe? Ele estava jogando bola, ele tinha desenvolvido, ele estava totalmente diferente.
Eu pensei: “Puxa, é um cara assim que eu quero.
Um cara de família, veio trazer a mãe aqui”.
Só que ele estava namorando (risos).
Eu fiquei ouvindo e a mãe dele comentou que ele estava namorando.
E na hora dele ir embora, aquele negócio onde você trabalha, barará.
Naquela época eu trabalhava na prefeitura de Guarulhos, eu trabalhava com o interventor federal, doutor Jean Pierre, eu tinha sido contratada pra trabalhar com o doutor Jean Pierre, que foi interventor federal, veio de Brasília.
Inclusive tinha o Hermano Henning, repórter, nós trabalhávamos juntos, lado a lado na mesa.
E ele me perguntou onde eu trabalhava, eu falei.
Naquela época eu tinha até cartãozinho, era chique naquela época (risos).
E eu dei o cartãozinho pra ele e ele me ligou durante a semana e aí nós saímos.
Nós fomos num lugar chamado Charade, era um barzinho que fica ali onde tem o HCor, era um pouquinho antes do HCor.
E a gente foi lá, bateu papo, tudo e eu disse pra ele o seguinte: “Eu sei que você está namorando, a sua mãe me contou”.
E ele falou: “Não, porque não sei o quê lá”.
Eu falei: “Tem uma coisa, comigo é ou ela ou eu, não tem esse negócio, eu não vou ficar saindo com você se você tem uma namorada”.
E aí rolou que a gente acabou ficando junto e ele dispensou a outra menina que ficou com muita raiva de mim na época (risos).
Muita raiva.
Chegou uma festa de Natal, eu estava na casa dele, todo mundo sentado e a menina foi lá com a desculpa de comprimentar a mãe dele.
Aí ela deu a mão pra todo mundo e quando chegou na minha vez ela pulou e continuou comprimentando.
É lógico, ela devia estar com muita raiva.
Aí foi que eu descobri que ele era o grande amor da minha vida.
Porque ele não foi só meu marido, ele foi meu marido, ele foi meu companheiro, meu amigo, meu parceiro.
Eu só tenho elogios porque ele foi bom filho, ele foi bom pai, ele foi grande amigo, ele foi amigo.
Qualquer pessoa.
Ele tinha uma bondade gigante.
Acho que por isso que ele morreu do coração, por isso que o coração dele ficou tão grande que acabou morrendo do coração, porque ele tinha um coração gigante.
Então esse era meu marido.
P/1 – Esse é o segredo para um bom relacionamento, então?
R – É.
Se respeitar é segredo.
Se compreender.
Compreensão é tudo.
Tolerância.
Sabe, as pessoas têm que se tolerar, têm que saber que ele veio de uma família, eu vim de outra família.
Eu tenho uma formação, ele tem outra.
Eu tenho uma personalidade, ele tem outra.
É isso que os casais não percebem, sabe? E essa tolerância, se não tiver a tolerância, a compreensão, não se chega a lugar nenhum.
O casamento é isso, é cumplicidade acima de tudo.
P/1 – Como que era a sua relação com a família dele na época que vocês se conheceram?
R – Era boa.
Boa em termos, vai.
Sogra.
Ó, sogra, onde você estiver, desculpe, sogra (risos).
Sogra é sogra, não tem jeito.
Sogra tem ciúmes, sabe? Engraçado, acho que por isso que eu me policio agora.
Eu sou aquela sogra que se eu chegar na casa da minha filha ou do meu filho, se a sala estiver na cozinha ou a cozinha estiver na sala, eu nem pergunto por que, porque o problema é deles (risos).
Acho que porque eu sofri muito com ela, então eu tenho que dizer isso.
Eu me lembro que ia chegar meus móveis, que eu ia casar, e eu falei pra ela: “Dona Lídia, eu não posso estar lá, vou estar trabalhando.
A senhora pode ir lá? Eles vão montar os móveis.
Eu quero o guarda roupa aqui, eu quero a cama aqui”.
Tá beleza, que eles iam montar.
Quando eu cheguei à noite, como é que estava? Estava tudo trocado.
O guarda roupa estava pro outro lado, a cama estava do outro lado.
“Dona Lídia, mas não era assim” “Ah, mas eu achei que fica melhor assim”.
Beleza.
Aí fui pra casa, chorei, chorei, chorei (risos).
Caramba, não era assim que eu queria (risos).
Aí a minha irmã, que já é falecida, eles foram arrumar o quarto da noiva, que antigamente tinha isso, sabe? A gente ia arrumar o quarto da noiva.
Vocês vão dar risada.
Mas antigamente você arrumava o quarto da noiva.
E eu lembro que a mamãe tinha comprado uma colcha de pele pra mim, era uma colcha gostosa até de se deitar nela.
Era uma colcha de pele, bonita.
Então as amigas iam, as irmãs, e arrumavam o quarto.
Elas falavam: “Você vai ficar lá embaixo, nós vamos arrumar seu quarto”.
E eu escutava elas dando muita risada.
E arrastando os móveis, arrastando.
Eu escutava barulho, mas eu não sabia o que era.
Quando eu subi, elas tinham desmontado tudo, elas tinham arrastado tudo.
Elas puseram o guarda-roupa onde eu queria e a cama onde eu queria.
Aí você já imaginou a cara da minha sogra quando ela chegou e ela viu tudo virado? Ela chegou e falou assim: “Mas quem fez isso?” e a minha irmã mais velha: “Fomos nós” “Mas por que vocês fizeram isso?” “Porque a noite quis isso e nós fizemos isso”.
Então assim, ela tinha um ciúmes, ela tinha uma possessão de querer assim, tinha que ser as coisas do jeito dela, entendeu? Em compensação o meu sogro era um amor de pessoa, era um doce de pessoa, era meu parceiro, era aquele que se ele falasse assim: “Ah, tolera, ela está mal humorada, tolera”.
Mas assim, a minha relação com eles mesmo sendo assim era boa.
Eu respeitava porque eu sabia que acima de tudo ela era mãe do meu marido.
Então mesmo ela fazendo coisas que eu não concordava eram difíceis pra mim, mas ela era a mãe do meu marido, então eu não podia bater de frente com ela.
P/1 – E da origem da família do seu marido, hábitos muito diferentes da sua família?
R – Não, porque a minha família é de portugueses e italianos, a família dele também italianos, tem uma parte que é austríaca, mas acho que o forte das duas famílias era o italiano mesmo.
Era.
Era o falar muito, falar alto, macarronada, garrafão de vinho na mesa.
Eu acho que era mais ou menos igual.
PAUSA
P/1 – Maria Helena, conta essa história do Sérgio (risos).
R – O Sérgio (risos).
É bom falar do meu amor, eu gosto.
P/1 – Um traço de personalidade que marca ele pra você.
R – Ele era muito generoso.
Ele era amigo, acima de tudo ele era amigo das pessoas.
Eu via uma bondade extrema no Sérgio, sabe, em pequenos gestos.
Não era só comigo, com os filhos, era com todos.
E vou contar pra você aquela história, a história da vassoura.
Que outro dia ele estava lá varrendo a frente da casa, que nós tínhamos uma árvore e quando eu saí só tinha a vassoura.
E cadê o Sérgio? Cadê o Sérgio, cadê o carro? Eu achei que ele tinha tirado o carro pra varrer a frente da casa e que tinham levado ele com o carro.
Fiquei olhando e daqui a pouco vem o Sérgio.
E o Sérgio lá com o carro e eu: “Bem, onde você foi?” “Ah, fui levar uma senhorinha lá no Cemeg”.
Cemeg é um centro que tem, de médicos, de remédio e essa senhora ia passar por uma consulta, ou ia pegar remédio, não sei, e ela vinha andando e estava um calor muito, muito forte, aquele calor que quando pega, janeiro, fevereiro e ela perguntou pra vizinha: “Fica longe o Cemeg?”, a vizinha falou: “É uns quatro quarteirões, mas é subida, vai ser meio difícil pra senhora chegar lá” “É, filha, eu estou vindo, mas minhas pernas já estão bem inchadas”.
E aí ele falou: “Lena, você acha que eu ia deixar a mulher ir até lá? A mulher não ia chegar viva lá, não” (risos).
E aí ele pôs a mulher no carro e foi levar a mulher.
Então ele tinha essa coisa de ajudar, sabe? Se você pedisse ajuda pro Sérgio ele não diria não.
O que eu costumo dizer é que as pessoas quando morrem acham que todo mundo vira santo e não é por aí, todo mundo continua tendo defeitos, qualidade, mas o Sérgio tinha isso na personalidade dele, de ser bom.
Tanto que no enterro dele disse o que apareceu de amigo lá que eu nem sabia.
Minha filha falava: “Mãe, tinha uns caras aí”, não posso falar que são uns meninos porque são todos velhos já (risos), que falavam assim: “Eu sou amigo do seu pai de infância, eu sou amigo do seu pai de jogar bola e eu fiquei sabendo, eu vi pela internet”.
Porque assim, ele tinha isso de fazer amigos, era uma coisa que o Sérgio tinha muito, ele era muito, muito amigo.
P/1 – Conta um pouco dos seus filhos.
Como eles são, seus nomes.
R – As minhas figurinhas carimbadas?
P/1 – É.
R – A Elaine tem 42 anos, Elaine Cristina Delprá.
Serginho é o Sérgio Delprá Júnior, ele tem 41.
O que você quer que eu fale deles? Que eles são bonitos? São.
Que eles são inteligentes? São.
Toda mãe fala isso, não tem jeito.
Que mãe que fala que filho não é bonito e que filho não é inteligente? Mas são.
Agora minha filha é uma pessoa extremamente prática, eu gosto dessa praticidade dela.
Ela é aquela pessoa que se chega alguém na casa dela, ela acolhe da melhor maneira.
Então, de repente chegou alguém na casa dela e você não tem às vezes a coisa preparada, você não tem o almoço preparado, mas pra ela não tem tempo quente.
Ela vai pra cozinha e rapidinho ela resolve, ela coloca na mesa, ela é muito desembaraçada, isso é uma coisa que eu gosto muito da personalidade da Elaine.
Eles são muito ligados comigo, então são trocentas ligações, liga de manhã, de tarde, de noite, nem que seja pra dizer: “Mãe, eu te amo”, nem que seja: “Mãe, você já comeu?”, nem que seja pra dizer: “Boa noite”.
Eu acho isso muito legal porque quando meu marido faleceu eles queriam me levar.
O Serginho queria que eu fosse morar com ele, a Elaine queria que eu vendesse minha casa e comprasse um apartamento lá dentro do condomínio dela e eu disse que não, eu vou ficar na minha casa, eu vou ficar no meu canto, eu gosto do meu canto.
Aí ficaram assim: “Mas a gente vai ficar muito preocupado.
A gente já viu numa empresa aí, nós vamos colocar uma pulseirinha na senhora que é pra gente saber, se a senhora passar mal a senhora aperta”.
Eu falei: “Negativo, eu não quero pulseirinha não.
Eu sou meio desastrada, eu vou bater nisso daí e como é que vai ser? Vai correr todo mundo, vai chegar você, o Serginho, a firma que vocês contrataram.
Não quero, não.
Eu não quero isso.
E tem outra, eu não vou ficar usando tornozeleira, eu não sou bandido pra usar tornozeleira, eu não quero.
Aí a minha médica chegou: “Não, dona Maria Helena, a senhora tem que ver que.
.
.
”.
Não, não tenho que ver nada, eu tenho que ver o que eu posso fazer, eu sou lúcida e eu sei o que eu quero fazer.
Daqui a alguns anos, se eu precisar, eu vou ter a humildade de chegar e falar: “Olha, eu preciso da ajuda de vocês, mas por enquanto não”.
Porque assim, algumas pessoas não sabem, não sei, da família, mas eu fui interditada já, eu fiquei três anos interditada.
Gente, é horrível você ficar interditado.
Porque disseram o seguinte: “Dona Maria Helena tem que ser aposentada por invalidez”.
Quem olha pra mim fala assim: “Mas por que aposentar essa mulher por invalidez?”.
Exatamente por causa disso, por causa das minhas convulsões, porque às vezes eu não sei onde eu estou, de vez em quando dá uns brancos.
E eles achavam que tinham que me aposentar.
Só que eles precisavam de uma pessoa responsável por mim.
Aí o Sérgio falou: “Não seja por isso, eu sou responsável pela minha mulher, eu cuido da minha mulher”.
E aí eu fui interditada.
Mas é estranho dizer porque pra família e pros amigos dava aquela impressão: “Nossa, o cara mandou interditar a mulher pra receber o salário dela”.
E ele brincava comigo: “Agora você está ferrada, agora vou vender a casa”, eu tinha o meu carro e ele tinha o dele, “eu vou vender meu carro e o seu carro e vou ficar montado na grana” (risos), ele falava pra mim.
Mas ele falava naquele tom de brincadeira dele.
Até o dia, depois de uns três anos, que aí uma juíza disse pra mim que eu poderia voltar pra vida cível, mas ela deixou aberto que a qualquer momento que eu precisar eu posso pedir ajuda dos meus filhos, de um amigo qualquer, que possa me ajudar.
Mas não vai acontecer mais, eu não vou mais perder, vai estar tudo aí dentro.
Só que está meio bagunçado, vocês tentam pôr em ordem aí porque está meio bagunçado (risos).
P/1 – Qual dos dois parece mais com o Sérgio? Na personalidade.
R – Personalidade? Não sei te dizer, cada pergunta difícil.
Porque filho é uma mistura de pai e mãe, não é? Os dois fisicamente parecem com o Sérgio, porque eu sou miudinha e os dois têm o ombro largo, eles puxaram mais a família do Sérgio.
Mas em personalidade não sei porque os três são escorpianos.
Eu preciso falar alguma coisa pra você? Os três, o pai e os dois filhos são tudo escorpião (risos), tudo assim, é o gênio mais ou menos igual dos três, não dá pra saber qual deles parece mais.
P/1 – E sobre sua vida profissional, como foi o começo? Nesse trabalho que você acabou conhecendo o Sérgio, né? Como foi a trajetória?
R – O Sérgio, não.
A minha vida profissional começou lá atrás quando eu tinha 13 pra 14 anos.
Eu fui trabalhar numa loja e eu era tão pequenininha que a mulher tinha que pôr um caixote atrás do balcão para eu poder alcançar, porque eu não alcançava o balcão.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Eu tinha 13 pra 14.
E eu era miudinha, aí você imagina.
E eu lembro que eu fiquei com muita vergonha porque uma mulher chegou e disse pra mim que ela queria ver lingerie.
E eu fiquei olhando com aquela cara de paisagem porque eu não sabia o que era lingerie.
Eu fui perguntar pra dona (risos).
”Ah, ela quer saber se tem lingerie.
Onde que ela encontra isso?”.
E a dona falou: “São calcinhas e sutiãs”.
Aí que eu fui me tocar, eu não sabia.
Então começou lá atrás, eu venho de longa data.
E aí foi, passei por outras coisas, tudo e quando houve intervenção no município de Guarulhos eu ainda não morava lá, eu ainda era solteira.
P/1 – Intervenção, como foi isso?
R – Isso daí foi um prefeito, o prefeito anterior, em quatro meses ele roubou uma fábula.
E Brasília mandou o doutor Jean Pierre Herman de Moraes Barros.
Esse doutor Jean Pierre veio, ele era interventor federal, para terminar os quatro anos, que seriam três anos e meio, o outro tinha ficado uns quatro meses, cinco, não me lembro.
O Doutor Jean Pierre quando ele veio o que ele fez? Ele tirou do gabinete todo mundo que estava lá, lógico, ele não ia querer as pessoas que estavam no gabinete, que eram do prefeito que tinha feito a fraude e foram contratadas 33 pessoas e eu fui uma dessas pessoas.
E o Hermano Henning, que eu comentei, era o repórter, naquela época ele trabalhava com a gente, ele não era repórter, ele fazia Jornalismo naquela época, de sapato furado pra ir pra faculdade.
Ele já era casado com a Vera, ele já tinha um filho.
Depois que a gente saiu da prefeitura é que ele foi pra Globo e ele foi pra Bonn na Alemanha, onde eles tiveram outro filho.
Então nós ficamos ali.
Nós éramos 33 funcionários, só que quando houve outra eleição o que aconteceu? Esses 33 funcionários foram exonerados, nós só fomos pra ficar com o interventor na época da intervenção do município, que exatamente foi nessa época que eu conheci meu marido, que eu estava lá no gabinete, entendeu?
P/1 – Isso foi meados de?
R – Foi em 70.
Eu tenho até uma foto no gabinete que eu estou com o Zé Maria da seleção brasileira.
Lembra que 70 nós fomos campeões do mundo.
E o Zé Maria era de Guarulhos e ele foi homenageado no gabinete.
E fui eu que entreguei a medalha pra ele.
Por isso que eu me lembro, foi no ano de 70.
P/1 – Conta pra gente, dessas atividades qual foi a que você mais se identificava profissionalmente ao longo da sua trajetória profissional? O trabalho que você tinha mais prazer.
R – Mais prazer? Acho que foi na Du Pont do Brasil.
Trabalhei na Du Pont do Brasil, uma multinacional, e eu gostava muito da Du Pont.
É multinacional, não precisa nem falar outra coisa, né? Eles se preocupam muito com o funcionário, eles não se preocupam só com o que o funcionário vai trazer pra firma, mas também em dar um suporte para o funcionário.
Eu gostava muito de lá.
Quando eu saí de lá que eu fui pro Ministério da Marinha.
Meu marido já trabalhava lá num órgão que se chama Copesc, Coordenadoria para Projetos Especiais.
Ela fica dentro da Cidade Universitária, esse órgão, em frente ao Hospital Universitário.
E lá tem a maquete do submarino atômico.
Então nós fomos trabalhar, meu marido era projetista, ele trabalhava em projeto e eu fui trabalhar na área administrativa.
Mas assim, com os militares eu não gostei de trabalhar muito.
Eu gostava do pessoal.
O pessoal, nossa, amei, amei, eu tenho amigos até hoje lá.
Mas é aquela coisa, militar é aquela regra que você tem que seguir regra.
E eu sou ariana, ariana não gosta muito de seguir regra (risos).
Mas eu gostei muito de trabalhar foi na Du Pont.
P/1 – Como está organizado seu tempo hoje em casa? Como está sua rotina diária?
R – Estou com tempo a mais hoje (risos).
Eu estou com uma solidão muito grande no momento, uma saudade muito grande.
Não é tristeza, que já houve uma aceitação pela morte do meu marido.
Porque meu marido, eu sabia que ele tinha uma bomba relógio dentro do peito, só que eu não imaginava que ele fosse levantar de manhã e fosse dizer pra mim: “Lena”, me chamou.
Porque às vezes ele não me chamava, nós tínhamos o hábito de um levar o café pro outro na cama.
A gente tem a bandejinha lá com a toalhinha, assim, quem levantava primeiro levava o café pro outro na cama com ovo quente, sabe? E engraçado, são essas poucas coisas, esses detalhes.
Sabe aquela música do Roberto? Detalhes tão pequenos de nós dois, são coisas muito grandes pra esquecer.
Então esses detalhes, sabe, isso é carinho também, gente.
A turma acha que carinho é beijo, é abraço, não é, isso é carinho.
Então a gente tinha isso, quem levantava ia lá, trazia o café pro outro.
E no dia que ele morreu, tinha dias que ele não me acordava, ele levantava, ia buscar o pão, quando ele vinha, ele já vinha com o café.
“E aí, dona Maria, vamos tomar café, vamos ver Ana Maria Braga! Vamos lá, vamos levantar aí”.
A gente tomava café, batia papo, os dois aposentados.
Depois ele falava: “O que a gente vai fazer hoje? Vamos fazer isso? Vamos pro SESC? Vamos pra academia? Vamos comprar ingresso?”, porque tinha aquela de comprar ingresso, que antigamente era fila, agora se compra pela internet, naquela época era aquela fila gigante que você tinha que ficar na fila pra comprar o ingresso.
Agora fica na fila quem quer, senão compra pela internet.
E nesse dia, no dia que ele faleceu, ele bateu assim, de leve, e falou assim: “Bem, eu vou tomar banho, depois eu vou buscar pão e te trago café.
Dorme mais um pouquinho”.
E ele me cobriu, estava frio, e ele foi tomar banho.
Ele tomou banho, ele se barbeou e quando ele entrou no quarto, ele já entrou e caiu duro.
Foi uma fração de segundos, uma coisa assim que eu não sei como eu consegui colocá-lo na cama, que nessa hora acho que a gente tem uma força que eu não sei onde você arruma.
E tentei falar com ele, e fala comigo, fala comigo.
Porque eu percebi que ele estava roxeando e eu vi pela internet que quando a pessoa está tendo um AVC que você tem que fazer a pessoa falar ou fazer um movimento com os braços.
E eu dizia pra ele: “Fala o seu nome, fala o seu nome”.
E ele falou: “Sérgio.
Eu vou morrer, eu estou morrendo”.
E ele fechou os olhos.
E naquele momento, eu sei que foi naquele momento que ele se foi, né? Aí eu liguei pra minha filha, que rápido chegou em casa, muito rápido.
Fez massagem cardíaca, fez respiração boca a boca.
Os bombeiros chegaram em seguida, fizeram aquele aparelho, desfibrilador, é isso? Mas depois eles falaram que ele já estava em óbito, eles fazem isso.
E eu não sei, me perdi.
Me perdi.
Para um pouco, por favor (emocionada).
PAUSA
P/1 – Helena, eu queria saber um pouquinho de como você se organiza no seu dia a dia.
Você é uma pessoa que acorda cedo, acorda tarde, tem o costume de almoçar cedo? Conta um pouquinho disso, seus hábitos diários.
R – Eu não gosto de acordar cedo (risos), acho que ninguém gosta, né? Eu sou uma pessoa que se eu tiver que acordar, se eu tiver um compromisso, se eu tiver um médico, uma coisa, é lógico que eu sou pontual, eu não gosto, odeio que as pessoas me esperem, mas eu gosto de dormir.
Se eu puder dormir, eu vou dormir mesmo.
Porque assim, a vida inteira, quando eu trabalhava na Marinha eu levantava cinco e meia da manhã pra trabalhar porque eu tinha que ir lá na Cidade Universitária, tinha que atravessar São Paulo todinha, pegar Dutra, Marginal Tietê, Marginal Pinheiros, pensa.
E ninguém falava pra mim naquela época: “Poxa, você levanta cinco e meia da manhã”.
Só que agora, quando eu fico em casa, nove, nove e meia eu estou na cama e alguém liga: “Mas você ainda está dormindo?”.
Eu falo: “Tô, eu to dormindo.
Porque eu posso, certo?”.
Vocês podem tudo ficar com inveja, eu posso mesmo (risos).
Ué, é verdade.
Quando você está lá levantando, sei lá, tem pessoas que levantam muito antes do que eu levantava, tem gente que levanta três horas da manhã pra trabalhar e ninguém fala: “Coitado, puxa cara, você levanta três horas, pega trem, pega não sei o que lá”, ninguém fala.
Agora vai o cara ficar dormindo no sábado até onze horas, não é verdade? Eu durmo, eu gosto de dormir, não gosto de levantar cedo, levanto quando necessário.
Tenho almoçado muito fora.
Eu já almoçava, eu já tinha o hábito de ir várias vezes no SESC, almoçava no SESC várias vezes com meu marido.
E agora eu almoço perto de casa ou vou mesmo ao SESC porque não faz muito sentido eu fazer comida só pra mim.
Se eu tiver que fazer comida pros meus filhos, pros meus netos, faço com o maior prazer, claro que gosto de fazer o pimentão cheio que eles gostam, gosto de fazer as coisas que eles gostam, nhoque, mas quando estou junto com eles porque cozinhar feijão só pra mim, fazer comida só pra mim não faz muito sentido.
Estou precisando voltar pra academia, criar vergonha porque na época que o Sérgio faleceu a gente estava na academia e eu pedi pros meninos pra encerrar porque o Sérgio tinha falecido e eles falavam: “Ah, mas deixa a sua em suspenso, daqui dois ou três meses a senhora volta”, mas eu falei: “Não, eu não quero mais nada, não quero”.
Eu tinha que organizar a minha vida.
E ainda não consegui chegar e falar: “Vou voltar”.
Mas eu preciso voltar a fazer uma academia, fazer qualquer coisa porque é necessário.
Fora isso eu gosto de ler, gosto de ver televisão, coisa que tem gente que não gosta, mas eu gosto de ver televisão.
Gosto de ver novela, coisa que eu sou criticada, mas eu gosto de ver novela.
“Ó meu genro, se um dia você for ver esse documentário: eu gosto de ver novela” (risos).
Porque assim, meu genro acha que é um desperdício eu ver novela, é um desperdício.
Acontece que pra mim a novela é como se fosse um livro que eu vou lendo os capítulos, sabe? Em contrapartida, ele adora rock, eu vou na casa dele, ele puxa lá aqueles rocks, ele adora, aquele bem bem bem.
Eu não gosto de rock.
Então assim, ele gosta do rock, eu gosto da novela.
Eu respeito ele gostar do rock, mas respeita minha novelinha também.
Então assim, eu gosto, gosto de sair, gosto de viajar, gosto de ir em shows.
Já fui viajar pelo SESC, depois que meu marido faleceu.
Não foi uma experiência muito legal porque eu viajava e ficava no mesmo quarto que o meu marido, então é legal, a gente tinha os mesmos hábitos, então era legal, combinava.
Só que essa última vez que eu fui, foi até pelo SESC Consolação, que teve uma excursão pra Bertioga e eu falei: “Eu vou lá pra Bertioga porque Bertioga é outra coisa”.
Eu não falo que o SESC é a extensão da minha vida? Bertioga é também extensão porque eu já fui tantas vezes pra Bertioga que é meio extensão também.
Aí pelo menos lá eu conheço, eu sei como é que é, eu sei que tem show toda noite, eu gosto de música, então vou pra lá.
Aí eu conversei com Deus : “Ai, Deus, põe uma pessoa legal pra ficar comigo, porque eu posso ter uma pessoa muito, muito legal pra ficar comigo, fazer uma nova amizade, mas também eu posso não ter tanta sorte”.
E não tive tanta sorte (risos).
Eu fiquei no quarto com uma senhora de 80 anos.
Não tenho nada contra uma senhora de 80, muito pelo contrário, porque eu tenho amizade com uma de 92 que é uma gracinha.
Mas era uma pessoa, coitada, ela tinha problemas, ela só queria dormir.
Aliás, eu não sei nem por que ela foi pra Bertioga.
Ela não queria que abrisse a janela porque a claridade incomodava a vista dela.
Então eu fiquei trancada.
O que eu fazia? Eu levantava e sumia, só vinha à tarde, pra dar uma cochilada, tomar um banho e dar uma relaxada.
Eu chegava lá, ela estava dormindo embaixo da coberta.
Eu falava: ”Ai meu Deus”.
Então foi uma experiência meio traumática porque foi a primeira vez que eu saí sozinha.
Mas eu acho que vão ter outras oportunidades, eu acho que eu vou conseguir viajar com outras pessoas, que eu vou poder interagir.
Tudo na vida vale como experiência.
Eu acho até que naquele momento ela estava precisando de um pouco de ajuda, sabe? Eu senti ela meio depressiva, ela tomava remédio.
Eu acho até que ela tomava remédio pra dormir, porque pra dormir daquele jeito.
Acordava seis horas da manhã, eu via ela tomando remédio, daqui um pouco a mulher capotava.
Só podia ser com medicamento, pra dormir daquele jeito.
Às vezes ela estava deprimida, né? Então eu consegui conversar um pouco com ela, falar sobre a vida dela, sobre a filha dela, como é que era, pra tentar ajudar de alguma maneira.
Mas outras vezes eu levantava na ponta do pé, pegava minha sacolinha e ó, ia embora pra praia, pra piscina, que eu falei: “Não, eu preciso, eu vim pra cá pra arejar”.
Mas vão ter outras oportunidades.
P/1 – Fala um pouquinho desses hábitos de lazer, programas.
Você falou que gosta de novela, né?
R – Gosto.
P/1 – Cinema?
R – Gosto.
P/1 – Poesia?
R – Gosto.
P/1 – Cite alguns exemplos que você gosta.
R – Poesia, eu não sou muito chegada a poesia não.
Engraçado, eu não gosto muito de poesia, não.
Eu gosto muito de seriado.
P/2 – Qual você assiste que você gosta?
R – Eu gosto muito de coisa policial (risos).
Eu gosto de detetive, essas coisas, adoro.
Coisa de suspense.
P/2 – Livro?
R – Eu gosto muito de livro espírita.
PAUSA
P/1 – Helena, conta pra mim um filme predileto.
Você lembra de algum nome assim, de um filme que você tenha gostado muito?
R – Você vai falar que eu sou velha (risos).
E o vento levou.
P/1 – Um clássico.
R – Ah, gente.
É de 1900 e bolinha.
Ele quer saber a idade, ele quer saber tudo.
Outro dia eu fui ao cinema com o meu neto e era um filme de suspense.
Por incrível que pareça eu não lembro o nome do filme pra te falar.
É esse negócio, não brinca com a minha memória, minha memória é uma coisa terrível.
Tem coisa que eu lembro, tem coisa que eu não lembro.
Mas eu já sei, do que eu lembro eu lembro, do que eu não lembro também não faz diferença.
É como dizia meu psicólogo: “Dona Maria Helena”, porque quando eu não lembrava o nome da pessoa, aquilo me irritava, eu perguntava, eu ia mais assim: “Como é seu nome mesmo?”, aí a pessoa tornava a falar.
Aí na terceira vez eu ficava com vergonha, né? Chorava, falava que droga, não lembro.
E aí o meu psicólogo falou: “Dona Maria Helena, a senhora não tirou uma unha encravada, a senhora tirou um tumor do cérebro.
Então quem quiser gostar da senhora, vai gostar da senhora como a senhora é.
Quem não quiser”.
E agora eu estou nessa, eu acho que eu aceitei o que ele falou, quem quiser gostar, gosta, quem não quiser, paciência.
P/1 – Alguma situação inusitada nesse processo todo aí?
R – Do que?
P/1 – Dessas situações de memória que você passou recentemente, que você agora lembra e acha curioso.
R – Não.
Não sei te dizer isso.
P/1 – Não saberia dizer.
R – Não, não sei te dizer isso.
P/1 – E me conta um pouquinho a respeito desses hábitos diários.
Eu percebi que em momento nenhum a gente falou de animal de estimação.
Vocês já tiveram algum animal, tem no momento?
R – Já.
Eu já tive duas cachorras.
Ah, teve tudo, né? Na época dos filhos solteiros, peixinho, aí tem tartaruga que a empregada colocou na máquina de lavar (risos).
Teve.
Vocês dão risada? Porque assim, era uma tartaruga daquelas pequenininhas, sabe daquelas de aquário? E a minha filha de vez em quando tirava e punha ela no quintal pra andar, mas era uma catatauzinho.
E eu moro num sobrado.
A empregada pegou a roupa suja e jogou pela janela pra não ter que descer com a roupa suja.
Ela foi lá embaixo, pegou a roupa e enfiou dentro da máquina.
E a roupa tinha caído em cima da tartaruga (risos).
E a tartaruga foi pra máquina.
E aí, quando eu vi: “Cadê a tartaruga?”, tartaruga estava na máquina.
“Desliga a máquina e tira a tartaruga”.
Estava morta a tartaruga.
Eu falei: “Caramba, olha o que você fez com a tartaruga!”.
E a minha filha que chorava, que culpava (risos), minha filha era novinha nessa época, devia ter uns dez anos, não me lembro.
É, por aí, nove, dez anos.
E eu lembro que eu peguei a tartaruga, vou fazer o quê? Botei a tartaruga no lixo.
E daí um pouco, pra minha surpresa, olha a tartaruga esticando a cabeça, esticando a patinha e ela foi, ela foi, acho que ela estava meio que anestesiada.
Aí tira a tartaruga de lá, passa na água corrente porque ela estava com água e sabão (risos).
Tive duas cachorras que eram mãe e filha, que eu não queria.
Um dia estava em casa com uma amiga e meu marido chegou com uma caixa de sapato.
E a minha filha vivia falando que queria um cachorro, que queria um cachorro.
Ele chegou com uma poodle preta dentro da caixa de sapato, um filhotinho.
Quando ele passou, ele só levantou a tampa da caixa.
Aí eu falei pra ele (risos): “Some com isso daqui.
Eu não quero”.
Ele falou assim: “A casa também é minha”.
Tá bom, a casa também é dele.
E aí a cachorra ficou.
E vem aquela história: “Ah, porque eu vou dar comida, porque eu vou limpar, bababa bababa”.
Porque essa história todo mundo que tem animal e tem filho sabe disso, todo mundo sabe.
Aí a pretinha teve cria, nasceram todos pretinhos e uma nasceu champanhe, uma fêmea.
Aí como era uma fêmea: “Ah mamãe, mas a champanhe é tão linda.
Ah não, deixa ela ficar, quem tem um, tem dois”.
E lá ficou a Bunny.
E eu fiquei com dois cachorros.
Só que eles entraram naquela fase da adolescência, sabe aquela fase que vão viajar com os amigos.
Beleza, eu ficava com dois cachorros em casa e eu não podia ir pra canto nenhum porque eu tinha os cachorros e os cachorros eram deles.
E eu que, né? Aí quando morreram os cachorros eu falei: “Não, eu não quero mais.
Decididamente eu Maria Helena não quero mais animal de estimação”.
O tempo que eu vou gastar com animal de estimação eu vou gastar comigo, eu não quero.
Eu não quero mais ter que chegar e cuidar de cachorro.
Aquela coisa, vai levar, é tosa, e vai levar pro veterinário, e porque tem dermatite e não sei o quê lá.
Não quero.
É uma coisa que eu não quero mais, mas nós tivemos de tudo, tivemos todas as fases: peixinhos, de cachorro, de tartaruga.
Ah, teve até, como que chama aqueles ratinhos assim?
P/1 – Hamster?
R – Não é hamster, é um outro nome.
É bem pequenininho, ele dá cria de monte.
Botaram dentro de uma gaiola, aquilo começou a dar cria de um jeito (risos).
E tinha um cheiro forte.
Eu falava pro meu marido: “Eu não quero esses ratos aqui em casa” (risos).
O amigo dele falou: “Eu quero” “Então dê pro seu amigo”, lá foi pro amigo dele.
Aí o amigo deixou a gaiola escapar dentro do apartamento dele.
A gaiola caiu e foi ratinho pra tudo quanto foi lado.
Deve estar dando cria até hoje (risos), mas eu me vi livre dos ratinhos.
Eu não sei o nome.
Como é que era? Topo.
Ele era bem pequenininho, não sei o nome, não me lembro.
P/1 – Eu ia te fazer uma pergunta sobre uma situação, qual a situação mais engraçada que você já viveu? Mas são tantas, né?
R – São tantas as emoções, como diz o rei (risos).
Engraçada?
P/1 – É.
Tem alguma que você.
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R – Não, minha cabeça.
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P/1 – Bom, está auto-respondida, essa pergunta é até retórica nessa altura, né? Vamos falar um pouquinho de fé.
Sua crença religiosa hoje?
R – Eu sou espírita.
Eu acredito em vida pós-morte, eu acredito que o Sérgio está me esperando em algum lugar, eu acredito que a gente vá se encontrar em uma outra dimensão.
Eu acredito até que pela relação que eu tive com o Sérgio, eu acredito até que nós fomos marido e mulher em vidas passadas, ou estivemos juntos de alguma maneira, eu acredito.
Sei que muita gente não acredita nisso, mas eu acredito.
Agora fé.
Fé uma coisa que eu tenho muita.
A minha fé é inabalável, eu acredito piamente em Deus.
Eu acredito.
Não cai uma folha da árvore sem que Deus queira, isso aí é uma coisa que todo mundo diz, mas eu acredito.
Eu tenho exemplos todos os dias.
E quando eu vejo tal coisa, aconteceu tal coisa, mas podia ter acontecido assim.
Eu vejo a mão de Deus em tudo aquilo, sabe, em pequenas situações.
São coisas que as pessoas, às vezes, não prestam atenção.
Então assim, eu não acho que é por acaso que eu estou aqui.
Quem passou por um processo como eu passei e eu entreguei minha vida a Deus naquele momento em que eu pedi ajuda pra minha cirurgia.
E eu sou tão sem vergonha que eu acho que eu estou no colo dele até agora.
De vez em quando eu falo assim: “Maria Helena, você tem que descer um pouquinho porque tem um monte de gente precisando de colo”.
Mas eu sei que o colo de pai é gigante e cabe todo mundo.
É só pedir ajuda dele, você pede ajuda dele que ele não vai te abandonar, não.
P/1 – Conta pra mim o que te faz sentir bem hoje? Sua estratégia pra se sentir bem.
R – A minha estratégia pra me sentir bem?
P/1 – É, o que você: “Não, preciso fazer isso aqui porque isso aqui dá uma levantada no meu dia”.
O que eu gosto de fazer?
R – Eu preciso estar com amigos, eu preciso estar com gente, eu preciso, eu preciso.
É difícil, né, você falar que você precisa dos amigos, que você precisa estar com as pessoas.
Isso pra mim é importante.
Talvez pra outras pessoas não.
Tanto é que foi o que eu comentei, com 15 dias que eu estava viúva eu fui pro SESC porque eu me sentia acolhida.
Quando eu cheguei lá, que eu tive o abraço do Eduardo, da Ana, que eu tive o abraço de tantos lá dentro, aquilo pra mim me confortava, parecia que era um aconchego, a segunda casa.
P/1 – Uma situação que te deixou muito orgulhosa, você se recorda? A toque de caixa?
R – Um monte, teve um monte (risos), teve um monte.
P/1 – Escolhe uma pra contar pra gente.
R – Ah, tem tantas, tem tantas.
Eu sou uma pessoa de lutar por meus objetivos.
Eu luto.
Código de Defesa do Consumidor anda debaixo do meu braço, viu?
P/1 – É mesmo?
R – As pessoas que não briguem comigo (risos).
Eu acho que se todo brasileiro comprasse esse livrinho e desse uma olhadinha nele, entendesse um pouquinho dos seus direitos e fizesse valer seus direitos, muitas coisas caminhariam, né? E eu já consegui muitas coisas através disso, de exigir meus direitos e mostrar pra pessoa que eu tenho conhecimento daquilo, que não adianta dizer que não porque eu tenho conhecimento disso daí.
Isso me deixa orgulhosa.
E eu sempre vou atrás do que eu preciso.
Sempre, sempre.
Eu penso sempre assim.
Tem uma situação, eu chego em um determinado lugar e o negócio não se resolve.
Aí eu digo pra pessoa: “Bom, quem é seu chefe?” “Ah, meu chefe é Fulano”, eu vou lá conversar com Fulano.
E o Fulano não resolve.
Muito bem.
“Quem é o seu chefe?”, eu vou.
Eu tenho facilidade de falar desde pra um mendigo até para o presidente da república, eu não sou uma pessoa inibida que eu não consiga resolver.
Eu vou te contar um negócio sobre a minha doença que você vai dizer que eu sou louca, mais ou menos (risos).
Porque assim, quando eu operei, eu operei no Hospital do Câncer e naquela época eu tinha o convênio da prefeitura porque eu fui aposentada, foi meu último emprego.
E aí eles foram me tratando, tudo, só que aí eu fui aposentada por invalidez e eu perdi o convênio.
Aí você imagina uma pessoa que está com oito, nove meses de operada e você perde o convênio.
E quem é que vai pegar uma pessoa, eu precisava de tudo, precisava de fono, de fisio, de neurologista, de psiquiatra, de tudo eu precisava de tratamento.
Eu precisava fazer ressonâncias que eu fazia a cada três, quatro meses, precisava de tudo.
E convênio nenhum ia pegar uma pessoa que precisava de tudo.
Primeiro bate o desespero, o que eu vou fazer? Segundo eu falei: tá, eu vou pelo caminho das pedras.
Qual é o caminho das pedras? Como uma pessoa comum chega a algum lugar? Tem que ter um caminho.
Primeiro caminho é ir para um posto de saúde.
Você vai para um posto de saúde e eles vão te dar um encaminhamento.
Aí pra minha surpresa nós passando duas horas da tarde no posto de saúde e a moça falou assim: “Não posso fazer nada, vocês têm que vir aqui amanhã às sete horas da manhã”.
Meu marido explicou: “Mas ela operou recente, ela tomou muito medicamento, é difícil ela levantar de manhã.
Você não pode fazer a ficha dela agora?” “Não, não posso.
Só amanhã sete horas da manhã”.
Beleza.
No outro dia o Sérgio me tirou da cama seis e meia, tonta com aqueles remédios todos, vamos lá pro posto.
Tinha uma fila gigante.
Entrou, todo mundo sentou e aí começou, começaram a chamar.
E o que eu vi ali mexeu muito comigo porque eles não falavam com as pessoas, eles gritavam com as pessoas.
Tinha uma dita cuja lá que ela chegava e falava assim: “Número 22!”, e 22 não respondia.
Ela: 23! Daí um pouco o 22 levantava lá do canto, mas ele estava com uma muleta e até ele conseguir chegar nela, ela falava: “Mas eu já chamei o senhor!”.
O coitado não tinha chegado porque não tinha conseguido chegar porque ele estava de muletas.
E aquilo tudo foi me incomodando, o jeito que ela tratava as pessoas.
E aí depois de muito tempo chegou a minha vez.
Quando chegou a minha vez, a hora que eu sentei na frente dela, ela não olhou pra mim, ela gritava, né? “Qual o seu nome?”, aí eu disse.
Eu baixei a voz e falei meu nome: Maria Helena Gunello Delprá.
“Onde a senhora mora?”.
Eu tinha virado o comprovante pra endereço de frente pra ela que era para ela evitar de gritar, mas ela não tinha nem olhado pro comprovante, ela já gritou: “Onde a senhora mora?”.
Eu repeti: “Rua Guarulhos, 192”.
Na terceira vez que ela gritou pra perguntar alguma coisa, eu abaixei bem o tom de voz e disse pra ela: “Vamos fazer o seguinte? Você vai falar comigo no tom que eu estou falando com você”.
Aí ela olhou pra mim, foi a primeira vez que ela olhou pra mim.
Ela olhou pra mim.
Eu falei: “Sabe por quê? Eu estou observando que você está gritando com as pessoas desde a hora que eu cheguei aqui e eu estou falando em tom baixo, então eu exijo que você fale também em um tom baixo”.
Aí ela tentou se justificar: “É, você não sabe o que eu passo aqui, porque as pessoas chegam gritando, a gente atura todo nível de pessoas”.
Eu disse pra ela: “Você sabe por que as pessoas te tratam desse jeito? Porque você permite que elas tratem.
A partir do momento que uma pessoa chegar aqui e gritar com você, você diga a ela o seguinte: ‘O senhor, por favor, abaixe o tom de voz e fale no meu tom de voz, senão eu não vou lhe atender’, eu te garanto que ele vai baixar o tom de voz”.
Bom, aí a mulher ficou desconcertada, ela fez a minha ficha.
Eu peguei um laudo que eu tinha do Hospital do Câncer, entreguei o laudo pra ela e disse: “Olha, eu preciso disso, disso e disso e eu quero que você me encaminhe”.
E aí era aquela coisa, né? O neurologista era para daí a quatro meses, a ressonância era para daí a seis, era aquelas coisas de doido.
Eu falei: Ïsso aqui eu não posso parar, eu estou recém-operada, eu não posso parar” “Não posso fazer nada”.
Eu falei: “Faz o seguinte? Você pode chamar a sua chefia?”.
Não, primeiro eu falei pra ela: “Eu quero falar com a assistente social”.
Ela falou: “Não, assistente social a senhora tem que marcar uma consulta com a assistente social”.
Eu falei: “Pera aí, minha filha, assistente social até onde.
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”.
E isso o meu raciocínio, eu operada com a cabeça bagunçada, por isso que eu falo, nesses momentos eu tenho orgulho de mim porque mesmo com a cabeça bagunçada eu vou atrás do que eu quero e do que eu acredito.
“Você sabe qual é a função da assistente social? Ela não tem a mesma função de um médico, ela não tem.
O médico trabalha com uma agenda, assistente social, não.
A assistente social do prefeito, por exemplo, tá, houve uma catástrofe na cidade, ela tem que ir lá, ela tem que resolver.
Uma criança caiu de cima de uma laje, ela tem que arrumar ambulância, ela tem que arrumar hospital, ela tem que se virar.
A função dela é essa.
Então eu estou com um problema urgente, então ela tem.
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“Ah, mas ela falou que só pode atender a senhora daqui uns 15, 20 dia” “Tá bom.
Por favor, você chama a sua chefe?”.
Aí veio a chefe dela.
Era uma médica, pediatra, mocinha nova, que era chefe do posto.
Aí eu contei todo o caso pra ela e disse pra ela: “Olha, eu não concordo, por esse motivo.
Se eu estou precisando de uma coisa com urgência eu tenho que ser atendida com urgência.
Não estou querendo passar por cima de ninguém, só que é uma coisa que não dá pra esperar”.
A chefe disse pra mim: “Ah, sinto, mas eu não posso fazer nada porque ela é assistente social”.
Eu falei: “Pera aí, você é chefe dela e você não pode fazer nada? Então eu conheço uma pessoa que pode, o secretário”.
Eu saí de lá muito brava, zonza, zonza porque eu estava com efeito de remédio, cansada.
E aí eu disse pro meu marido: “Entra aqui na Rua Íris, me leva na Secretaria de Saúde”.
Meu marido falou: “Bem, vamos pra casa, você precisa descansar, tomar seus remédios, comer” “Me leva lá” (risos).
Ele sabia que quando eu quero fazer uma coisa eu vou, quando eu me proponho a fazer uma coisa eu vou fazer.
Eu sempre tenho um não na vida, sempre, isso é uma frase que eu sempre tenho.
Eu sempre tenho o não, eu vou atrás de um sim.
Quando eu cheguei lá tinha um senhor pintando, um prédio grande, uma parte é Secretaria do Estado de Saúde e a outra Secretaria de Saúde do Município.
Eu perguntei para o senhorzinho: “Onde que é a parte da Secretaria de Saúde do município?” “Ah, é aqui, senhora”.
Meu marido falou: “Eu não acredito, é lá no segundo andar, eu não acredito que você vá lá”.
Eu fui lá, sala do secretário.
Vi o número e lá fui eu.
Comecei a subir as escadas ruim que eu vi que eu não estava conseguindo.
Aí ele viu que eu ia mesmo, acho que ele falou: “Eu vou junto porque essa mulher é doida, ela vai junto”.
Ele foi junto comigo.
Ele subiu, quando chegamos lá, a secretária falou assim pra mim: “No que eu posso ajudar?”.
Eu falei: “Ó, meu bem, você não pode me ajudar em nada, sabe por quê? Eu agradeço a sua atenção, mas você não pode me ajudar em nada porque eu já falei com atendente, já falei com a chefe, já falei com todo mundo.
Então assim, eu estou cansada, estressada, precisando de atendimento.
Eu só quero que você leia esse laudo que eu tenho do hospital e veja se eu tenho condições de esperar todo tempo que querem que eu espere.
Aí ela catou o laudo, foi lá pra dentro, voltou.
Eu falei: “Tem uma coisa: se ninguém vier me atender, se o secretário não vier me atender, se o diretor não vier me atender, eu vou ficar sentada aqui.
Alguém vai ter que me atender.
Se não me atender eu vou sair daqui e vou pro gabinete do prefeito, mas alguém vai ter que me atender.
Aí veio uma senhora muito bem arrumada, inclusive chama Maria Helena também.
E ela veio.
Quando eu mostrei o laudo pra ela e expliquei, contei tudo o que tinha acontecido, ela entrou e não falou mais nada.
Quando ela veio, ela já veio com tudo anotado.
Eu já tinha neurologista marcado, já tinha ressonância marcada, eu tinha até terapia individual.
Terapia sabe que é um negócio caro.
E quando que o governo te dá uma terapia individual? Eu fiquei seis anos fazendo terapia individual pelo governo.
Mas por quê? Porque eu fui atrás dos meus negócios, eu fui atrás do que eu acredito.
Eu acredito que eu como cidadã tenho o direito a isso.
O que eu fico um pouco triste é que eu consigo resolver as coisas pra mim, eu não consigo resolver no todo.
Eu gostaria de ajudar outras pessoas.
Eu gostaria que o que fizeram pra mim fizessem pra outras pessoa que eu vi lá, entendeu? Só que, infelizmente, eu não tenho como fazer isso.
Eu resolvi a minha situação, mas eu não tinha como resolver a situação de todas as pessoas, né? Certo?
P/1 – Perfeito.
R – Então isso é uma coisa que eu me orgulho e eu me orgulho de um monte de coisa.
P/1 – Eu estou satisfeitíssimo.
R – Eu também, chega! Já falei demais, já cansei.
P/2 – O que você achou de contar a sua história?
R – É a minha história, é a minha vida.
Pra mim é normal.
Eu estou conversando com vocês como eu converso com meus amigos.
Não senti pressão de jeito nenhum.
Alguma coisa eu não lembrei, que você perguntou de algum fato, não me lembro mais, tá vendo? Já esqueci.
Algum fato engraçado?
P/1 – É, uma situação inusitada.
R – É, é.
Então tem coisas que eu pincelo, procuro lá, está meio bagunçado mas eu acho que, não sei se.
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P/1 – Por acaso tem alguma história que a gente não perguntou e você gostaria de comentar? Alguma passagem, alguma situação?
R – Não.
Eu não sei a idade de vocês, mais ou menos eu imagino, mas a pessoa quando está com uma idade como eu estou, ela tem tanta coisa, se for a gente vai ficar aqui horas e horas procurando, contando.
E eu sou de falar, eu sou de conversar.
Então, como diz o caipira, conta causos, né? Mas não.
P/2 – Obrigado.
P/1 – Obrigado.
P/3 – Adorei.
FINAL DA ENTREVISTA
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