Acordo muito cedo e passo o dia com muito sono. O dia está quente, úmido e escuro, estamos esperando a chuva. Consigo, finalmente, cochilar por volta das 18h. Acordo algumas vezes com os golpes do calor e da dor de cabeça. Enfim, durmo uma hora ininterrupta. ""Estou num apartamento térreo. Há um pequeno pátio cimentado nos fundos, no meio, um banheiro e, à frente, uma porta. Preparo-me para viajar. Estou indo. Alguém se lembra, quando já estou na porta, de me emprestar uma chave, caso ocorra um imprevisto. Fico enternecida por se preocuparem, não esperava algo assim. A pessoa busca a chave em cima da geladeira e eu escuto o que estão conversando na cozinha. Falam sobre a Velha da Ribeira, professora que há muito tempo andava pela região de Cavalinho Branco. Questionam se era uma heroína ou uma assassina, mas ninguém sabe, pois faz tempo que morreu*.Volto para a porta, abraço duas pessoas, uma grande e outra pequena. Percebo a materialidade dos corpos como se fossem duas esponjas de diferentes resistências. Minha mãe gira a chave doberman, alguém come uma maçã....Já cheguei ao local, estou num museu no velho centro de Porto Alegre, lá fora a claridade do dia machuca. Sinto uma dor no peito e preciso me agarrar às grades da janela para não cair. A dor me exige chorar alto, sonoro, faz tremer o peito e a voz. É ela quem conduz. Choro porque ninguém perguntou sobre a infância da Velha da Ribeira ou sobre a infância da minha mãe. Está melhor agora, que sou um Cavalinho, mas isto não me alivia da dor.""Acordo. Chamo a Dani, o ritmo da dor me exige continuar chorando. “Ninguém pergunta das infância, ninguém repara” e, quando olho pela janela, já é noite. * Velha da Ribeira é um personagem de uma canção popular, que minha vizinha cantava para mim quando eu ia lhe visitar. Cavalinho Branco foi o sobrenome que adotei como artista
Que associações você faz entre seu sonho e o momento de pandemia?
Imagino que a...
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Acordo muito cedo e passo o dia com muito sono. O dia está quente, úmido e escuro, estamos esperando a chuva. Consigo, finalmente, cochilar por volta das 18h. Acordo algumas vezes com os golpes do calor e da dor de cabeça. Enfim, durmo uma hora ininterrupta. ""Estou num apartamento térreo. Há um pequeno pátio cimentado nos fundos, no meio, um banheiro e, à frente, uma porta. Preparo-me para viajar. Estou indo. Alguém se lembra, quando já estou na porta, de me emprestar uma chave, caso ocorra um imprevisto. Fico enternecida por se preocuparem, não esperava algo assim. A pessoa busca a chave em cima da geladeira e eu escuto o que estão conversando na cozinha. Falam sobre a Velha da Ribeira, professora que há muito tempo andava pela região de Cavalinho Branco. Questionam se era uma heroína ou uma assassina, mas ninguém sabe, pois faz tempo que morreu*.Volto para a porta, abraço duas pessoas, uma grande e outra pequena. Percebo a materialidade dos corpos como se fossem duas esponjas de diferentes resistências. Minha mãe gira a chave doberman, alguém come uma maçã....Já cheguei ao local, estou num museu no velho centro de Porto Alegre, lá fora a claridade do dia machuca. Sinto uma dor no peito e preciso me agarrar às grades da janela para não cair. A dor me exige chorar alto, sonoro, faz tremer o peito e a voz. É ela quem conduz. Choro porque ninguém perguntou sobre a infância da Velha da Ribeira ou sobre a infância da minha mãe. Está melhor agora, que sou um Cavalinho, mas isto não me alivia da dor.""Acordo. Chamo a Dani, o ritmo da dor me exige continuar chorando. “Ninguém pergunta das infância, ninguém repara” e, quando olho pela janela, já é noite. * Velha da Ribeira é um personagem de uma canção popular, que minha vizinha cantava para mim quando eu ia lhe visitar. Cavalinho Branco foi o sobrenome que adotei como artista
Que associações você faz entre seu sonho e o momento de pandemia?
Imagino que a interpretação esteja ligada com todos aqueles que morrem e não lhes sabemos a infância. Não conheço muitas histórias sobre a que me cantava a música da Velha da Ribeira, mesmo que ela seja uma figura das mais marcantes relacionada à minha casa na infância. Quando Celina morreu, passaram-se dias até que descobrissem o seu cadáver. Chorei por ela e pela minha mãe que pouco se comunica com a própria voz. Posso ter chorado por uma expectativa romântica, de vir a conhecer a infância de alguém ou, vice-versa, que alguém possa se interessar também pela minha infância. Não se trata compreender o outro, mas interessar-se pela infância. Se “ser Cavalinho” me trazia conforto, como escolhi este sobrenome enquanto artista, acredito que no sonho eu estava afirmando esse ofício. Mas, de modo algum isso aplacava ou diminuía a dor que sentia. Ao final me tornei alguém que dançava daquela dor, que era tão presente que precisava chorar e me mover de acordo com aquilo que havia em meu peito.
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