IDENTIFICAÇÃO Sou Geraldo Aparecido Rossi, nascido no norte do Paraná, na cidade de Astorga no dia 29 de novembro de 1957. FAMÍLIA Meu pai é Pedro Rossi e minha mãe Julia Ripol Rossi. A minha família por parte de mãe veio do Sul da Itália. O meu pai é do interior do Estado de São Paulo, mas também tem sua origem na imigração dos europeus no início do século. Eles vieram para cá como agricultores e se estabeleceram no interior do Estado de São Paulo. Depois foram para o norte do Paraná, compraram uma gleba de mata, desmataram e foram produtores de café. No início da década de 60, houve uma seqüência de geadas muito fortes. Eles perderam praticamente tudo. Nessa época meu pai já havia falecido. Meu pai morreu em agosto de 1958. As perdas com a geada foram em 1964. Minha mãe é analfabeta, cuidava da família e mandou um irmão meu, mais velho, para Americana [SP], que era um pólo industrial em crescimento. MIGRAÇÃO Americana foi durante muito tempo o maior pólo têxtil da América Latina, então sobrava emprego lá. As tecelagens tinham uma carência muito grande de mão de obra. Então a minha mãe mandou o meu irmão. Ele veio pra Americana sozinho e começou a trabalhar como ajudante em uma empresa que se chamava Fibra. Meu irmão viu que Americana tinha espaço pra que a nossa família viesse. E em março de 1964, nos mudamos pra lá. Estava acontecendo a revolução de 64, o golpe militar. Quando nós chegamos, meu irmão falou assim: "Imagina alguém do sitio que está acostumado a ver enxada, trator e viu tanques" (risos) Viemos para Americana quando eu era pequeno, tinha quase sete anos. A família se estabeleceu em uma casinha que tinha quarto e cozinha. Éramos agricultores e viramos funcionários de uma tecelagem. O incrível é que depois fomos chamando mais parentes. Nós trouxemos acho que sete ou oito famílias que tinha algum grau de parentesco e estão até hoje em...
Continuar leituraIDENTIFICAÇÃO Sou Geraldo Aparecido Rossi, nascido no norte do Paraná, na cidade de Astorga no dia 29 de novembro de 1957. FAMÍLIA Meu pai é Pedro Rossi e minha mãe Julia Ripol Rossi. A minha família por parte de mãe veio do Sul da Itália. O meu pai é do interior do Estado de São Paulo, mas também tem sua origem na imigração dos europeus no início do século. Eles vieram para cá como agricultores e se estabeleceram no interior do Estado de São Paulo. Depois foram para o norte do Paraná, compraram uma gleba de mata, desmataram e foram produtores de café. No início da década de 60, houve uma seqüência de geadas muito fortes. Eles perderam praticamente tudo. Nessa época meu pai já havia falecido. Meu pai morreu em agosto de 1958. As perdas com a geada foram em 1964. Minha mãe é analfabeta, cuidava da família e mandou um irmão meu, mais velho, para Americana [SP], que era um pólo industrial em crescimento. MIGRAÇÃO Americana foi durante muito tempo o maior pólo têxtil da América Latina, então sobrava emprego lá. As tecelagens tinham uma carência muito grande de mão de obra. Então a minha mãe mandou o meu irmão. Ele veio pra Americana sozinho e começou a trabalhar como ajudante em uma empresa que se chamava Fibra. Meu irmão viu que Americana tinha espaço pra que a nossa família viesse. E em março de 1964, nos mudamos pra lá. Estava acontecendo a revolução de 64, o golpe militar. Quando nós chegamos, meu irmão falou assim: "Imagina alguém do sitio que está acostumado a ver enxada, trator e viu tanques" (risos) Viemos para Americana quando eu era pequeno, tinha quase sete anos. A família se estabeleceu em uma casinha que tinha quarto e cozinha. Éramos agricultores e viramos funcionários de uma tecelagem. O incrível é que depois fomos chamando mais parentes. Nós trouxemos acho que sete ou oito famílias que tinha algum grau de parentesco e estão até hoje em Americana. FAMÍLIA Nós éramos cinco irmãos, eu era o mais novo. Em 1973, eu perdi um irmão em um acidente; ele era caminhoneiro. Os outros estão vivos e trabalhando. Curiosamente, o mais velho que veio pra Americana e puxou a família, sendo o primeiro a trabalhar em uma indústria, há vinte anos voltou para um sítio. Voltou a ser agricultor. Tem uma plantação de pêssego em Ribeirão Branco, no sul do Vale do Ribeira. E meu outro irmão, que era sócio no meu negócio, também deixou de vender carros e tem um sítio de café. Na família há quem acredite que em outras encarnações eles foram minhocas, porque gostam de terra. (risos) Tenho um irmão que mora em Americana, próximo da minha mãe. Ele tem uma indústria metalúrgica. A minha mãe sempre quis ter um filho padre e, em 1965, ela mandou esse meu irmão, o Luiz, para o seminário. Ele ficou lá. Em 1969, ela me mandou pra lá também. Quando eu entrei no seminário, meu irmão saiu porque a família precisava de alguém pra ajudar. Naquele tempo, as famílias eram diferentes das de hoje. Os filhos trabalhavam e chegava o dia do pagamento davam o dinheiro para a mãe. A mãe pagava as contas, fazia as despesas e o resto do dinheiro fazia parte daquilo que a família tinha de reserva. Então, em 1969, entrei no seminário. Fui seminarista durante cinco anos, mas não virei padre. No ano que eu perdi meu irmão no acidente de caminhão, os padres me disseram que eu não tinha vocação porque eu gostava muito da minha família, e tenho até hoje essa ligação. A família pra mim é o maior projeto de Deus, então a minha raiz tem muito a ver com o que eu tenho em casa. Morei em Americana até os 25 anos. Eu me casei em Americana, minha esposa é de lá. Curiosamente, quando eu era garoto, sete ou oito anos, eu trabalhava em uma indústria ajudando meus irmãos. Era uma empresa têxtil. Havia uma máquina chamada espumadeira de onde saia o fio de um cone que ia para uma trama e para o tear. Eu trabalhava na rua onde morava a minha esposa, mas a conheci muito tempo depois. Comecei a namorá-la em 1980 e trabalhei em tecelagem só até 1968. Teve todo esse espaço de tempo, mas a rua ficou marcada para mim. TRAJETÓRIA PROFISSIONAL Quando nos casamos eu trabalhava numa indústria de condutor elétrico em Americana. Logo que me casei, fiquei desempregado. Em 1983 era complicado, você saia do seu emprego e não tinha alternativa de renda. Aí fui trabalhar em Salto, numa empresa de condutor elétrico. Trabalhei em Salto por sete anos. Depois fui pra Limeira e trabalhei em uma empresa que faz rodas, peças automotivas. Então voltei para Salto. Nessa época, trabalhava em Salto e morava em Indaiatuba. Fiquei desempregado em Indaiatuba e falei: "Puxa vida, tenho 35 anos e eu preciso dar um jeito na minha vida." O meu irmão que tinha uma loja de carro aqui em Campinas me convidou pra trabalhar com ele no comércio. Lembro-me muito bem que o primeiro negócio que eu fiz, eu tinha 1.800 dólares - vou falar assim porque era como se falava em dinheiro em 1990, porque havia uma inflação muito grande, então não tínhamos muita referência de dinheiro. A minha indenização foi de 1.800 dólares. Meu irmão disse: "Pega o seu dinheiro, nós vamos no Anhembi em São Paulo e você vai comprar um carro." Eu lembro que eu paguei 1.500 dólares em um Gol e o vendi por 2.500 dólares. Quando eu era empregado, eu ganhava um pouco mais da metade, ganhava 1.500, 1.600 dólares, mais ou menos. Com a venda de um carro, eu ganhava o equivalente a meio salário. Fui gostando da brincadeira e me dei bem com a arte de vender. CLIENTES Hoje o consumidor tem muitos direitos e você tem que a toda hora estar se adequando àquilo que a sociedade coloca como condição pra você trabalhar neste ramo. Eu gosto e procuro me enquadrar no perfil. Não sou uma loja que vende muitos carros durante o mês. A minha loja é pequena, mas eu estou lá no mesmo lugar há 20 anos. Até uma época, eu usei o lema: "Fazendo negócios e amigos". Então, um cliente que compra o meu carro um dia, ele sempre volta. CIDADES / CAMPINAS / SP Campinas era a nossa referência de cidade grande. Campinas tinha de tudo: shopping, cinema, orquestra, catedral. Campinas já tinha fama por ter universidades. A Unicamp, a PUC. Uma cidade com estação de trem e tinha também uma rodoviária. Campinas tinha um comércio muito forte. Tudo o que você precisava, achava em Campinas. Quando você não encontrava em Campinas, não precisava nem ir pra São Paulo, porque também não tinha. Quando falávamos: "Vou a Campinas", até punha um pouco mais de dinheiro no bolso, porque voltava pra casa com uma coisa diferente. Lojas bonitas, estádio de futebol. A primeira vez que eu vi o Pelé jogar foi em Campinas. Assisti a um jogo da Ponte [Preta]. Campinas tinha uma história bonita, dois times fortes na mesma cidade. Eu me lembro de ter vindo assistir Guarani e Flamengo, Santos e Ponte Preta. Parecia uma celebração. Colocávamos até roupa nova pra ir a Campinas, era muito gostoso. Campinas empolgava. Campinas impressionava. O comércio forte de Campinas se deve ao fato de que tudo girou em torno de Campinas. Ela sempre foi um pólo de atração para as cidades vizinhas. A minha mãe veio a Campinas no tempo do bonde. Ela foi boleira e costureira. Imagina uma mulher que sai do sítio e vem pra uma cidade industrial. Ela não tinha como trabalhar, então ela fazia bolo. Ela vinha a Campinas buscar enfeite de bolo. Para as costuras, vinha comprar botão, máquina de fazer capinha de botão. "Eu vou para Campinas", e eu sabia que ia comprar alguma coisa diferente que não tinha em Americana. Comprei meu primeiro relógio aqui em Campinas. No relojoeiro tinha aquele monte de relógio. Campinas era assim. Eu lembro uma vez que vim de trem pra Campinas na época de Natal. A cidade estava toda enfeitada, bonita. Eu andava na rua e parecia que tudo tinha sido feito pra mim. Eu sentia vontade de vir pra Campinas. E um dia, mais a frente, quando eu já morava em Campinas disse: "Puxa vida, como é gostoso morar em Campinas." Em 1990, eu comecei a trabalhar com meu irmão. Não era sócio, mas comecei a trabalhar com ele. Morávamos em Indaiatuba. Aí botaram um pedágio e eu falei pra mim mesmo: "Eu preciso arrumar um lugar pra morar e economizar o pedágio." Meu irmão tinha uma casa pra alugar e falei: "Você aluga a casa para mim.” Eu tinha um apartamento em Indaiatuba, um terreno, moto, carro e falei: "Um dia, eu vendo tudo e faço uma casa." E foi assim que aconteceu. Eu paguei o aluguel pra ele, um pouquinho, e um belo dia eu achei um terreno perto de onde morava. Comprei no mesmo bairro que eu moro. Fiz a minha casa e virei um campineiro de paixão. Hoje eu não me imagino fora de Campinas. Eu me mudei pra Campinas em 1992. Comecei a construir a minha casa em outubro de 1992 e em fevereiro de 1994 eu estava morando na minha casa. Com certidão de campineiro. COMÉRCIO DE CAMPINAS Você ia comprar um carro, você vinha pra Campinas. Eu lembro que Campinas tinha uma loja chamada Oto Car, hoje ela não existe mais. Vínhamos a Campinas e o vendedor não levantava da mesa. Você tinha que fazer força para comprar um carro. Hoje eu estou do outro lado. Eu faço força para vender. Na Oto Car, você chegava na mesa dele e ele falava: "Não faço desconto, o carro é esse, não arrumo nada, não faço nada". Então, quando vínhamos para Campinas sentíamos que pra estar no nível da cidade tínhamos de nos esforçar um pouco. INFÂNCIA Minha infância foi como a de qualquer criança de sítio. Coloquei um sapato no pé, pela primeira vez, aos nove anos, em Americana. No sítio eu ficava descalço com um estilingue no bolso. Usava pra buscar mistura, matar passarinho pra comer de mistura. Hoje é impensável isso. Televisão, nem pensar. A primeira vez que vi uma televisão foi no seminário, em julho de 1969. Foi quando o homem pisou na Lua. Foi a primeira vez que eu vi uma televisão. Eu lembro que quando o homem foi pra Lua, as pessoas se perguntavam: "Como é que ele achou?" “E se a Lua, estivesse no quarto minguante?” "Como é que acharam a parte clara da Lua?" FATOS MARCANTES Eu me lembro que até os nove anos, o presente de Natal era uma xícara com balas dentro. A xícara nunca mudava, só mudavam as balas. Na época de Natal, a minha mãe nos colocava na cama e quando acordávamos era a coisa mais maravilhosa do mundo ver as balas de Natal. Até hoje a minha mãe diz: "Era muito fácil fazer vocês felizes." Eu me lembrei e me emocionei porque ela falou: "Hoje, você pode dar pra seu filho um carro, mas não tem a mesma eficiência que uma xícara de bala." Eram balas Toffler e fazíamos de tudo para que não acabassem. Nós éramos cinco irmãos e ganhávamos umas sete ou oito balas cada. Como eu era o mais novo, a minha xícara era menor, claro Eu tinha vontade de por todas na boca ao mesmo tempo, mas saboreava uma a uma. Lembro que guardei durante muito tempo o papel das últimas balas. Eu guardava, mas quando eu comecei a ter ciência de que eu morava na cidade, isso se transformou. Quando eu conto, às vezes, que eu ganhava balas de Natal soa até estranho. INFÂNCIA Quando nos mudamos de Astorga para Americana, viemos em um caminhão. Eu lembro que era um caminhão Mercedes antigo. Veio a minha mãe, o motorista e meu segundo irmão mais velho na cabine. Nós viemos na carroceria junto com a nossa mobília. A minha mãe trouxe muitos ovos, muitas galinhas e muitos cachorros. Porque nós não conseguimos deixar os cachorros lá. Eu acho que a minha mãe trouxe uns sete ou oito cachorros. Quando chegamos a Americana dois cachorros tinham morrido. As galinhas, imagina, botamos as galinhas no guarda roupa Era a cabeça de uma mulher analfabeta, mas com uma consciência de sobrevivência. Durante muito tempo nós vendemos frango. Acho que ela trouxe uns trezentos ovos porque eu me lembro que era um tambor de 200 litros. Ela punha os ovos e a palha de arroz, ovos e palha de arroz. E quando nós chegamos em Americana, ela soltou as galinhas e elas chocavam os ovos. Nascia a ninhada de 15, 16 e alimentávamos. Quando o franguinho estava no tamanho... Meu irmão e eu pegávamos uma vara, amarrávamos as galinhas pelos pés e íamos vender em Americana. Eu vendia o frango e, às vezes, as pessoas falavam: "Mas eu vou fazer o que com o frango?" As pessoas compravam o frango e nós o levávamos pra casa. A minha mãe matava, limpava e então íamos entregar o frango. Se tivéssemos entrado nisso, na época, talvez tivéssemos uma avicultura, uma frangonete. (risos) Minha mãe costurava, fazia bolo e nós vendíamos essas coisas. Eu me lembro de nunca ter faltado comida na nossa mesa. A pessoa que mora em sítio nunca tem a mesa pequena. Se alguém chegava e vinha comer, sempre tinha. Ainda hoje, quando falamos "mãe, eu vou almoçar em casa", ela faz comida para um quartel. Coisa de quem tem raiz, de quem veio da roça. FORMAÇÃO Em 1969, minha mãe me colocou no seminário. Queria que eu fosse padre. Então, entre 1969 e 1973 eu fui seminarista. A minha identidade como adolescente ficou bem marcada por esse período porque eu estudava em um colégio Marista. Era uma educação bem forte, muito rígida. Estudei no Colégio Nossa Senhora de Glória, em São Paulo; o último ano foi lá. A educação deles foi marcante. Quando saí do seminário, não tinha a menor cacoete de ser um menino de cidade porque a cultura do seminário é diferente. Ela é gostosa. Hoje eu sou voluntário em uma obra que trabalha com dependentes químicos aqui em Campinas, o Instituto Padre Haroldo. Cuido da parte de espiritualidade, faço espiritualidade com os jovens e muito dos valores que eu tenho da minha vida vem dessa época. Hoje é muito triste ver um garoto de 14, 15 anos que é devorado pelas drogas. E eu me lembro muito bem que os meus 14, 15 anos a vida tinha um valor muito diferente que tem hoje. Brincávamos de estilingue no bolso, andávamos descalços e de calças curtas. Hoje não. ADOLESCÊNCIA Na adolescência, quando eu saí do seminário, eu fui trabalhar em um banco. Eu era contínuo em um banco, em Americana. Entregava aviso de bicicleta. A bicicleta era de marca Helbia, pesada. Eu era pequeninho, magrinho e atravessava a cidade entregando aviso. Mas gostava, porque eu conhecia os nomes das ruas. Eu morava em uma rua chamada Frederico Pólo. Quem é Frederico Pólo? Eu gostava de saber que ele tinha sido um médico. Curiosamente, o filho desse médico virou prefeito em Americana, foi o meu médico. Eu sempre quis saber quem era o Cândido Cruz, porque o nome Rua 30 de Julho. Eu gosto dessas coisas porque elas têm um significado. Às vezes, você pega Avenida Azenildo Maia, quem foi Azenildo Maia? Foi prefeito. Isso me chamava a atenção. Eu andava na Rua Casemiro de Abreu. Quem foi Casemiro de Abreu? Era um escritor, um poeta. As pessoas falam que isso é cultura inútil, mas num momento da sua vida aparece e faz diferença. Fui bancário. Trabalhei cinco anos em banco. Adorava conversar Fui caixa, alguém chegava na minha frente e eu sempre falava: "O que você faz?" Gostava de saber um pouco das histórias das pessoas. Essa cultura que vai sendo transferida, de algum jeito, vai te enriquecendo porque são coisas que vêm para você de forma gratuita. Até hoje quando eu vou pra Americana, eu olho pra uma pessoa que eu conheço e eu lembro o número da sua conta. Meu Deus do Céu, que memória de gaveta pra ter guardado isso “Olá, você é o 2184 traço 9.” Era uma coisa automática. Tinha computador na época, mas eu nunca vi. Nós usávamos muito a memória porque tínhamos que saber qual era o número da conta do cliente e até alguns CPFs [Cadastro de Pessoa Física], o que, graças a Deus, eu esqueci. Mas foi um negócio impressionante. Na época do seminário, o estudo era muito puxado. Eu falava francês quando tinha 16 anos por causa dos Maristas. Depois, com o desuso, acabei abandonando. Eu canto algumas músicas quando eu estou dormindo: "Opa, eu vou cantar essa agora." Mas não me lembro da tradução. Por ter sido contínuo e ter trabalhado em banco, tenho uma memória numérica muito boa; não sei por que, mas ficou, está em algum lugar, de vez em quando eu puxo. COMÉRCIO DE CAMPINAS Vínhamos no Mercadão e ficávamos olhando aquelas coisas: bacalhau, mortadela, lingüiça; vínhamos comprar tempero, coco ralado. Adorávamos bolo. A minha mãe era boleira e fazia bolo de coco, umas escadinhas. Ela vinha buscar coco aqui em Campinas. A Treze de Maio era pertinho do mercado, então íamos. Naquele tempo, não era calçadão, era uma rua normal. E também íamos a catedral. Tinha a Rua Conceição, também, que tinha a sapataria, relojoaria. Lembro que comprei o meu relógio na relojoaria Campos Sales. Cheguei na relojoaria e tinha tanto relógio, mas tanto relógio Não como hoje as relojoarias têm, mas naquele tempo você via o Seiko, aquele relógio japonês famoso, ou o Oriente e você ficava maravilhado. No fim, você nunca podia comprar o relógio. Eu comprei um relógio chamado Sekura. Nunca mais vi. Acho que só tive um relógio desses, a fábrica fez um só e fechou (risos). Mas eu lembro que era um relógio grandão. Eu tinha o maior orgulho. Estava lá marcado que ele era à prova dagua, mas o primeiro chuvisco que eu tomei, ele embaçou inteiro (risos). Eu usava o relógio no seminário. Só eu tinha relógio. Era uma figura. ADOLECÊNCIA Sempre fui apaixonado pelo cinema. Aqui em Campinas tinha o Cine Carlos Gomes e o Jequitibá. Filme bom passava em Campinas, lançamento de filmes. O filme que tinha em São Paulo e Rio de Janeiro, tinha em Campinas, então era bacana vir. As poltronas eram confortáveis. Campinas tinha quatro ou cinco cinemas de qualidade. Eu sempre gostei de filme que tivesse algum fundo histórico. Eu nunca gostei de filme de violência, embora eu gostasse de filme de bang-bang; sabia que ninguém morria. Hoje, não. O componente violência está muito embutido em qualquer filme que você pega. Vínhamos para Campinas assistir filme e era gostoso porque você assistia o filme, depois você podia sair do cinema e tomar um chopp, comer uma pizza no Giovanetti, no Éden Bar, no Rosário, que estavam abertos. Você saia do cinema em Americana e nem guarda noturno tinha na rua. Saia do cinema e já estava dormindo. Você vinha pra Campinas, saia e dizia: "Puxa vida, a cidade vive. Ela tem uma vida noturna." Eu não me lembro de ter vindo a baile, mas, talvez pelo poder econômico da minha família, tinha um clube em Americana do qual éramos sócios, o Rio Branco. Fazíamos festinhas em garagens também. Esticávamos um lençol e botávamos uma vitrola. Fazíamos isso na nossa casa em Americana. Lembro que tinha três discos: o dos Beatles, o do Raul Seixas e eu acho que tinha um disco que tinha uma música que chamava Je taime; era uma música até proibida porque tinha um apelo erótico. Então quando o baile estava bem avançado púnhamos Je t’aime. Eu não tinha namorada naquele tempo, mas era bonito de ver. Gostávamos das coisas que qualquer jovem gosta. Gostávamos de moto. Eu tenho moto até hoje, mas eu aprendi a gostar de moto quando eu era garoto. Eu tinha uma motinha. Naquele tempo, uma cinqüentinha era um negócio que enchia os olhos. Então, a minha vida dos 16 aos 20 anos, em Americana, foi uma vida simples, mas curtindo as coisas que eram próprias do meu círculo de amigos. TRANSPORTES Andávamos de ônibus e trem. Eu fui para São Paulo só pra andar de trem. Um dia, nós juntamos um monte de amigos e fomos pra São Paulo. Pegamos o trem de Americana num sábado de manhã pra ir ver o Viaduto do Chá e o Mappin Movietone. Foi a maior festa do mundo. Não sei quantas horas demorou de Americana a São Paulo, mas foi uma farra. Descemos em São Paulo na Estação da Luz e andamos tudo a pé. Eu me lembro que nós descemos na Estação da Luz, com sete, oito amigos e passamos por cima do Viaduto Santa Efigênia, andamos no centro e fomos à Praça da Sé. Fomos ao Mappin, andando no Viaduto do Chá. Entramos no Mappin de um lado e saímos do outro. Havia uma rua que só tinha loja de máquina fotográfica. Meu Deus do Céu, que loucura Meu irmão era fotógrafo de casamento e de foto binoclinho, que hoje não existe mais. Ele tinha uma máquina chamada Olympus 32. Ela pegava uma foto de 32 e duplicava. Viravam 64 binoclinhos. Ele fazia aquilo em fotos de casamento e batizados. Até teve uma época que foi curiosa. A minha mãe fazia bolo e costurava o vestido da noiva, um irmão tirava fotos e o outro, que morreu, era caminhoneiro e fazia a mudança. Então falávamos que era "barba e cabelo", porque fazia o bolo, a roupa, tirava foto e fazia a mudança. Quer dizer, o cara chegava lá e falava: "Vou casar" Falávamos: "Colocamos a mudança na sua casa." Então, nós fomos pra São Paulo e vimos aquela rua cheia de máquina fotográfica e eu falei: "Meu Deus do Céu, que loucura". Ficamos o dia inteiro em São Paulo e comemos um lanche, agora não sei que rua era, mas era um lanche tão gostoso, era um Bauru ou um Americano, não sei... Nós comemos e eu pedi uma Crush pra dividir em quatro senão não teríamos dinheiro pra voltar. Mas foi tão gostoso, era uma coisa tão simples que teve um significado tão forte. Até hoje eu lembro que nós entramos na lanchonete, pedimos um lanche e o atendente falou: "Quantos lanches?" Eu falei: "Sete." E via o cara fazendo na chapa. Ficamos olhando ele fazer na chapa. Ver São Paulo com olhos de alguém que está indo num lugar que nunca vai conhecer totalmente. Uma vez, eu fiz uma viagem maluca: nós saímos de Americana, dois amigos e eu, fomos à Foz do Iguaçu de carro e depois descemos pra Uruguaiana. Ficamos 15 dias viajando. Hoje eu não deixaria meu filho fazer isso. Eu falava pra minha mãe: "Mãe, vou viajar." É diferente de hoje, nossos filhos correm muito riscos. Embora naquele tempo se corresse também. Mas não era tanto. Pegamos um carro e fomos viajar. Meu Deus Dormir dentro do carro, passar frio, bater o carro. Hoje você liga no 0800, mas naquele tempo não tinha seguro, não tinha nada. Bateu o carro, nós arrumamos no martelo para continuar andando. Hoje isso é impensável. FAMÍLIA Eu tenho uma filha, Giovanna, de 23 anos, ela vai se casar o ano que vem. O Enzo, de 21 anos, está terminando a faculdade e a Giorgia trabalha com a minha esposa em um café aqui no centro. Eu me lembro que quando eu me casei, em 7 de janeiro de 1983, tirei férias. Fui para o Sul de carro. Eu tinha um Corcel [carro da marca Ford]. Na Lua de Mel, o pessoal dava dinheiro pra gravata e com o dinheiro da gravata deu pra pagar o combustível. Era um Corcel à álcool. Fomos viajar e no meio do caminho não existia mais álcool (risos). Foi cômico, rezávamos de medo. Primeiro, que os postos fechavam às 7 horas da noite. Depois, que no Sul praticamente nenhum posto tinha álcool. Era muito frio e o álcool era um combustível novo. Eu sofri algumas peripécias. Eu gastei todo o dinheiro que eu tinha. Eu era formado em Administração de Empresas. Paguei tudo à vista. Uma semana depois que voltei a trabalhar, perdi o emprego. Foi a coisa mais trágica. Eu lembro do dia que meu chefe falou: "O senhor levanta dessa mesa porque o senhor não faz mais parte do quadro de funcionários da empresa." A empresa era grande, tinha 700 funcionários. Tomei um choque. Deu um vazio na alma, eu me senti completamente desnorteado. Eu pensei: "Se eu fosse solteiro, eu voltava a viver com minha mãe, mas agora casado, eu tenho uma mulher que depende de mim." E, graças a Deus, que eu era casado com essa mulher. Ela me sustentou emocionalmente e ficou do meu lado. Eu me lembro muito bem que fazia pouco tempo que tínhamos casado e ela falou: "Na alegria e na tristeza. Na alegria, por mais intensa que ela seja, e na tristeza por mais que doa." E a minha mãe, analfabeta, falou: "Você não é quadrado, se vira." Fazia currículo na maquininha de escrever; eu tenho a máquina até hoje, uma Olivetti. Fazia currículo na mão, folha por folha, se errasse a última letra lá no fim da página, tirava a folha, amassava e jogava fora, porque currículo tinha que ser perfeito. Ia entregar os currículos nas empresas. Mas não tinha serviço, não tinha nada. Não existia emprego. Em 1983, foi uma crise muito grande. Eu entregava o currículo, virava as costas e escutava o cara rasgar o currículo. Dava uma dor no peito: "Puxa vida, eu fiquei uma noite inteira fazendo esse currículo." Fazia três ou quatro em uma noite e ia em três ou quatro empresas. Eu lembro que entreguei o currículo na 3M e tinha um tambor atrás do cara, um lixão azul, e eu olhei dentro e vi um monte de folhas amassadas jogadas dentro do cesto. Eu entreguei o currículo para o cara, porteiro da empresa. Ele falou: "Pode deixar aqui." Dei dois passos e falei: "Não, de novo não." Voltei e falei pra ele: "Eu vou te pedir um favor, se você for jogar o meu currículo ali, você me devolve porque dá trabalho fazer isso aí." Ele olhou para mim e falou: "Toma, eu não tenho o que fazer com seu currículo." Eu era formado em Administração de Empresas, me considerava muito competente tecnicamente dentro da minha área de atuação. Mas eu era um recém-casado desempregado. Fiquei um mês procurando emprego. E um dia arrumei emprego e comecei a trabalhar em Salto. Curiosamente, eu comecei a trabalhar no início de março de 1983 e a minha esposa ficou grávida em maio. Nem vou falar nesse negócio de tabelinha, essas coisas para evitar em filho, mas não tínhamos cabeça para pensar em filho. Casei com 25 anos. Casei e fiquei desnorteado por causa do desemprego, eu pensava: “Não precisa nem tomar anticoncepcional, basta você ficar sem emprego que não tem nem vontade de olhar para sua mulher.” Mas ela me protegeu, ela cuidou de mim no sentido de não me deixar entrar em parafuso. Eu estava trabalhando e ela me ligou no serviço: "Eu tenho uma coisa muito bonita para te falar." Primeiro, que eu estava trabalhando e já me sentia um passarinho. Eu flutuava, porque eu adoro trabalhar. Ela me ligou e falou: "Como é que vai chamar o seu filho?" Acho que esse telefone derreteu na minha mão. A alegria que me deu. Eu era recém-casado. A vida estava mostrando uma face que eu não tinha imaginado quando ela me ligou. Fiquei tão feliz. Primeiro porque eu sou apaixonado pela minha esposa até hoje. Nós nunca deixamos o outro na mão. Sempre tivemos aquela preocupação de quando um não está bem o outro protege. E eu tenho o mesmo carinho. Quando acordamos de manhã, olho para ela: "Bom dia meu amorzinho." O dia que ela não está bem, ela fala: "Cuida de mim." O dia que eu não estou bem eu falo: "Cuida de mim." Então quando ela falou que ia ter um filho, eu falei: "Ter um filho, nossa" Contei para todo mundo na fábrica. Eu morava em Americana e trabalhava em Salto. Viajava todos os dias 160 Km de carro. A estrada era horrível. E foi aquela curtição. Nasceu a Giovanna. Ela passou super mal quando nasceu. Bebeu líquido da bolsa, quase morreu. Eu lembro que eu gastei tudo o que eu tinha com pediatra e obstetra. É meu filho e merece tudo o que tenho. Dois anos depois veio o Enzo, fraquinho, mirradinho, super problemático. Tinha bronquite. Nesse tempo nos mudamos pra Indaiatuba, porque eu não agüentava mais viajar. Mudei para Indaiatuba e trabalhava em Salto. Em Indaiatuba minha mulher ficou grávida da Giorgia. Nós morávamos em um apartamento que era tão pequeno que para o sol entrar, nós tínhamos que sair. As pessoas falavam: "Como é que você mora aqui?" Mas você se acostuma, se adapta. Mas era gostoso. Era um apartamento simplesinho, um bloco. Havia 124 famílias nesse conjunto. Para os meus filhos era uma coisa fantástica porque eles eram as crianças mais felizes do mundo. Não existia classe social, eles eram crianças. Os brinquedos eram de todo mundo. Eu dava bola para eles brincarem, em uma semana estava toda ralada. Eles chegavam em casa tão cansados que quase não conversávamos com eles à noite. Eles ficavam largados e dormiam no chão, no sofá, de tão cansados. Era muito bonito isso. A minha filha já marcou o casamento. Esses dias, eu estava em casa e a minha mulher falou: "A hora que você chegar em casa, não vai assustar." Eu falei: "Por quê?" "Você vai ver." Cheguei em casa e a minha filha tinha comprado a geladeira e o fogão. Eles estavam na cozinha. Deu uma dor no peito. Aí que fui perceber que ela está saindo da família, vai fazer a família dela. Deu uma vontade de chorar, falei: "Puxa vida, veio muito rápido isso.” Veio em uma intensidade que eu não imaginava. Eu também fiz isso, comprei as minhas coisas. No casamento, você ganha algumas coisas, mas eu fiz questão de comprar para ser do meu gosto. Ela é nutricionista. Chegou em casa do trabalho, eu a abracei e falei: "Gi, você não vai deixar a gente muito distante de você, não vai sumir." "Não pai." Eu mandei um e-mail pra ela, hoje. Nós mandamos e-mails para os filhos, é bonito, eu mandei um e-mail para ela dizendo que lembrei do primeiro passinho dela, quando começou a andar, a primeira vez que ela andou de bicicleta sozinha. Voltou na minha cabeça um monte de coisas. Eu curto muito meus filhos. Conforme eles se tornaram adultos, eu fui transferindo a minha bagagem de conhecimento pra que eles não fossem pessoas que tivessem só números. Eu sou um católico que trabalho com espiritualidade, com os jovens e tenho afeto e convicção de que nós não somos números. Quando Deus nos imaginou, ele nos deu um nome e a sociedade. Porque hoje nós temos senha, password, CPF.Tudo é número. Mas as pessoas têm nomes. Sempre falo pra eles: "Curtam as coisas na intensidade que se coloca dentro de vocês porque elas não se repetem. A vida você não pode passar a limpo. A história da sua vida você escreve com caneta e sem borracha. Não tem como passar a limpo. O sorriso que você não dá hoje, talvez amanhã não se encaixe. Essa bagagem de vida espiritual é muito importante. Gosto muito de sair com meus filhos pela cidade e falo: "Hoje nós vamos comer cachorro quente em tal lugar." Só pra que fiquemos mais tempo juntos pra conversar. Vamos à missa na catedral e ficamos olhando, curtindo. Gosto de ver as pessoas idosas do coral. Tudo aquilo tem uma bagagem que talvez daqui a dez anos não exista mais. INFÂNCIA Fazia minha caixinha de engraxate e saia para engraxar sapatos. Voltava com a maior alegria do mundo e falava pra minha mãe: "Mãe, engraxei três sapatos." E dava o dinheiro pra ela. Tinha graxa marrom e preta, lógico, não tinha graxa Nugget. Eu ficava ao lado de uma padaria, ao lado de um bar que tinha jogo de bocha onde os velhos iam jogar. Era uma estratégia. Eles iam jogar bocha e chegavam com os sapatos todo empoeirados, aí eu: "Vamos engraxar os sapatos?" Hoje tem flanelas, mas pra dar lustre no sapato, eu usava as meias pretas dos meus irmãos. Chegava em casa e lavava, porque se eles descobrissem, me matavam. Dava o dinheiro pra minha mãe e falava: "Agora nós vamos comprar mortadela." Que delícia comer pão com mortadela. Era a coisa mais gastronômica da época. Aquela mortadela todo engordurada. Você ia comprar a mortadela e ela encharcava o papel. Mas era uma alegria. A minha mãe fazia o guaraná porque não tinha dinheiro. Não sei o que ela colocava dentro da garrafa que fermentava. Ela fazia 10 ou 12 litros de guaraná. Usava aqueles garrafões. De noite ouvíamos as garrafas estourarem. Mas bebíamos, não tinha outra coisa. Tinha Kisuco e o guaraná da minha mãe, não havia muita alternativa PRINCESA VEÍCULOS Minha loja de carros sempre se chamou Princesa Veículos por causa da Avenida Princesa do Oeste. Às vezes, ao atender o telefonema de pessoas de outra cidade, era assim: "De onde fala?" "Princesa Veículos." O cara: "Princesa É, mas aqui é o príncipe." A loja Princesa Veículos, na Avenida Princesa do Oeste, começou em 1988. Comprávamos carro nos Feirões de São Paulo e vendíamos em Campinas. Isso foi de 1988 até 1992, 1993. Comprávamos carros de domingo no Feirão e na quarta-feira não tinha mais carro pra vender. Você tinha que vender o carro no mesmo dia que você pegasse. Tinha que trocar por dólar. Às vezes, com o dinheiro do carro que você vendeu na quarta ou quinta-feira, você não comprava outro igual no domingo. Era uma inflação de 60 a 80% ao mês. Então você vendia o carro, fazia o câmbio em dólar e guardava. No domingo, você ia pra São Paulo, comprava o carro e pagava em dólar. Foi nessa época que se formou a minha consciência de comércio de veículo. Havia poucas as lojas em Campinas. Hoje tem umas 600, naquele tempo eram umas 25 ou 30 lojas. Éramos muito procurados. Nós sempre quisemos fazer negócios e preservar o cliente para o próximo. FORMAS DE PAGAMENTO Naquele tempo, para você comprar um carro você financiava 50% em três meses. O crédito era completamente diferente de hoje. Hoje você compra um carro em 72 meses sem entrada. O cara que vai comprar um carro não tem dinheiro nem para o documento. Naquele tempo, você tinha uma Caravan 1977 e você comprava uma Caravan 1978. Hoje, o cara não tem nada e compra um carro zero. O financiamento era feito pelo Banco Martinelli e pelo Aymoré. Mas o Aymoré já era mais difícil. O Martinelli era um banco que atendia o segmento de comércio de carros. E era um negócio curioso. Não existia fax, era tudo pelo telefone. A maioria não financiava, tinha dinheiro ou dava um chequinho pré-datado que segurávamos. Não existia recibo como se tem hoje, fazíamos recibo de papel. O cara ia ao Detran com uma parte do documento de andar e um papel que você dava comprovando a venda do carro. Tinha a posse do carro quem tinha o documento. Como ações, quem tem ações é o dono do papel. Isso foi bem no começo. Quando a pessoa que ia financiar o carro, nós ligávamos para o banco e ficávamos perguntando para ela e passando para o banco. Havia um gerente de uma agência chamado Narciso, ele era muito bacana. Você passava a ficha para ele e ele anotava: “Arnaldo da Silva”. E você passava tudo, o CPF, essas coisas, depois ele falava: "O cara está na tua frente?" Eu falava: "Está" "Vê a mão dele. A mão dele está suja, calejada?" "Está." "Unha preta?" "É." "Que camisa ele está? Camisa suja também?" "Está." "Libera o crédito pra ele." Não existia essa onda de calote. Se você falasse para o cara que o cheque dele estava sem fundos, ele ficava vermelho na sua frente. Ele tinha vergonha. Hoje, você pega um garoto de 18 anos, ele vai comprar um carro, você passa a ficha dele e ele já tem 10 ou 12 protestos. O número dele está sujo. A identidade comercial dele está completamente comprometida. COMÉRCIO DE CAMPINAS Eu gostava daquele tempo de vender carros. Para vender um carro, você massageava o ego da pessoa. A pessoa comprava um carro e saía da loja como um passarinho. Se quebrava alguma coisa, ela nem tem ligava. Hoje se você vender um carro e depois de três semanas o cara descobrir que uma lâmpada está queimada, ele volta na loja. Mudou muito nesse período de 20 anos. A quantidade de lojas, a qualidade de quem vende. Hoje um grupo grande aqui em Campinas, vende 1.200 carros em um mês. Naquele tempo, se vendíamos sete ou oito carros no mês era uma glória; ganhávamos dinheiro. Hoje é tudo ao contrário. Não é uma característica da minha loja, mas é uma prática comum: as pessoas vendem dinheiro, vendem um carnê. Chega na loja e fala: "O que eu compro com 500 reais por mês?” Ele não pergunta quanto tempo, ele fala quanto ele pode pagar. O cara adota uma Bíblia no travesseiro que ele vai acompanhar por cinco anos da vida dele, embora, estatisticamente, não fique dois anos com o carro. Então, 60 meses é quase um aluguel que o cara paga. Ele usa dois anos, e vende um carro que não vale a dívida. Ele fica com aquela sensação que pagou dois anos e ainda deve um pouco mais do que vale o carro. Aí fica complicado. Você tem que deixar isso claro para o cliente. Antigamente, o cara tinha um carro, ia na loja e dava mais um pouquinho. Ele ia evoluindo. Quando chegava no carro zero, ele não devia mais nada. O carro dele era... Nós estamos em 2007, o carro dele era 2005, 2004. Hoje, o cara que tem um carro 2006, mas deve ele inteiro. Faz um carnezão e tem que contar com a ajuda divina pra se livrar daquilo. FUNCIONÁRIOS Na minha loja tinha um monte de gente que ia vender carro. Havia sete ou oito vendedores. Cada um vendia o seu carro, era um acampamento, era um circo, quase. Hoje eu tenho três funcionários. CLIENTES Em 1990, se vendia o carro para a família. Era bacana porque o cara vinha comprar um carro e se tinha muitas pessoas na família, ele comprava um carro grande, uma Parati [perua da Volkswagen], por exemplo. Era muito difícil o cara pensar em um carro pequeno. Só se vendia carro com duas portas. Você falava que tinha carro quatro portas e a turma pensava que era táxi. Hoje, querem de quatro portas. Em 1988, o carro mais procurado do mercado era um Monza [veículo fabricado pela GM até 1996]. Quem tinha um Monza em 1988 tinha mais do que quem tem um Audi hoje. Primeiro que tinha um ágio, você tinha um carro usado que custava mais que um zero. Eu lembro que em 1986, no Plano Funaro, o carro usado custava mais que o dobro que um carro zero, porque carro zero não tinha pra entregar. Você ia comprar um carro zero e ficava seis meses na fila. Com um carro usado, a pessoa tinha um cheque administrativo reajustável, então quanto mais ela ficava com o carro, mais ganhava dinheiro. Comprava por 20 e vendia por 35. Eu lembro que uma vez eu fui buscar carro no Paraná, fui comprar caminhonete. Teve essa fase das caminhonetes, D20, F1.000, você ia buscar um carro, ligava e falava: "Comprei uma F.1000." Vinha do Paraná, de Cascavel, de Paulatina e você falava: "Paguei 20.000 na caminhonete." Se você falasse que vendeu por 20.000, no meio do caminho, o cara que comprou seu carro vendeu por 25. O cara que tinha comprado de você no caminho já tinha vendido por 30. Era um negócio absurdo. Então, teve esse tempo das coisas que se valorizavam porque o dinheiro não valia nada. O tempo que você vendia carro para a família. Hoje você vende carro para um garoto de 18, 19 anos. Ele vai à loja pra comprar um carro e é autônomo. Ele tem autonomia pra comprar: “Ah, eu vou comprar meu carro.” Ele financia no nome dele. Naquele tempo, quase todo banco, pedia avalista. Um cara de 18, 20 anos entrava na loja, mas ia ver um carro para o pai ou com o pai. Hoje é super comum, o cara entrou na faculdade, o pai vai lá e fala: “Preciso comprar um carro pro meu filho.” Tanto que hoje uma família de quatro pessoas tem dois, três carros. O pai e a mãe usam o mesmo carro e cada um dos filhos tem o seu carro. Então teve essa metamorfose. Quando saiu o Mille [Uno Mille da fabricante Fiat]. Nossa, senhora Tinha um negócio que chamava Mille on line, que você tinha que ir lá na concessionária se cadastrar. Custava 7.000 dólares. Hoje o carro vale mais, mas houve uma época que ele valia menos que 7.000 dólares. E você tinha a maior dificuldade do mundo para ter um Mille. Quem tinha um Mille tinha mais do que quem tinha um Landau [carro da linha Ford Galaxie]. A gasolina era cara. Entrou o advento do carro 1.0, carro a álcool. Tinha uma época que o carro a álcool não valia nada. Hoje é só álcool. Você tinha um carro a álcool e transformava para gasolina porque não vendia. Hoje, eu saio com meus filhos e passa um carro na rua eu falo: "Aquele é um Monza SLE 2.0 a álcool." Conhece-se pelo barulho do motor, pelo número que está no vidro, porque tinha uma série. Hoje o vendedor de carro não teve essa escola que nós tivemos. Mas foi gostoso, foi interessante. COMBUSTÍVEL Quando eu trabalhava em Salto havia companheiros que trabalhavam em outras fábricas, então nós íamos revezando de carro. E tinha um cara que tinha um Corcel a gás. Era quase uma câmara de gás; ia mais gás pra dentro do carro do que para o motor, nos sufocava. Estava um frio danado e íamos com o vidro aberto porque era sufocante. Começou ali a história do gás. O cara que trabalhava em uma empresa tinha uma idéia, se o motor da empilhadeira funcionava no gás, o carro também funciona. Então o cara colocava esses botijões de gás de 12 quilos no porta-malas do carro. Eu lembro que o [presidente] Fernando Henrique disse: "Olha, vai ter um negócio de gasoduto, Brasil-Bolívia e tal, o carro vai ser a gás.” Puxa vida, vai ter o carro a gás. Quanto vai custar o gás? O gás era um produto muito barato, mas hoje, com essa história do Evo Morales [presidente da Bolívia] na Bolívia... O Brasil perdeu as prerrogativas. Acho que ali era uma questão de soberania. Existiam acordos. O Brasil tem essa mania de não respeitar acordos e os contratos com nenhum país da América Latina. Mas se faz acordo com um país inglês, faça chuva, faça sol tem que honrar. Então quem tinha o kit gás no carro, que era uma preciosidade, pagou um mico, porque até agora ele ainda não tem mais a credibilidade e a vantagem que deveria ter de ser um produto economicamente viável. Hoje o carro a gás não ajuda e nem atrapalha. Ele não vale o gás. Por exemplo, um cara que pega um kit a 2.500 reais da qualidade no equipamento, mas esse não é um trunfo. Hoje o bacana é ter um carro Flex [automóveis que funcionam com álcool ou gasolina]. Ou então que ele seja um carro 1994, 1995 a álcool original. Antes não valia nada, mas agora, de repente, recuperou o seu valor. ESTOQUE DE VEÍCULOS A minha loja é pequena, na melhor das hipóteses cabem 35 carros. Temos um banco de dados e vemos quais são os carros mais procurados do mercado. Procuro ter na minha loja carros de oito até 40 mil reais. Pelo tempo que estamos no ramo e as pessoas que fomos conhecendo nessas duas décadas, nós pegamos muita confiança. As pessoas deixam os carros para vendermos. Esse é o mercado da consignação. Alguém deixa o carro e eu vou lá e vendo. Pego a troca também e pago uma porcentagem. Então, se o cara entrar na loja e falar: “O que tem de dez mil reais?” Você tem que ter alguma coisa. Fala: “Ah, eu quero um carro com direção hidráulica.” Então você procura ter os carros que teoricamente sirvam. PROPAGANDA Hoje há propaganda de televisão e panfletos. Eu não diria que é uma propaganda mentirosa, mas é uma propaganda viciada. O cara fala de juros de 0,99, compre sem entrada. Nas letrinhas miúdas, muita coisa é escondida do consumidor, que fala: "Mas eu vi na televisão." Só que ali está embutida uma série de comissões. O cara de casa de ônibus achando que vai voltar pra casa de carro velho. Não é bem assim. CRÉDITO Durante muito tempo as pessoas emprestaram nomes: “Ah, eu vou comprar uma geladeira, empresta seu nome porque não estou trabalhando.” Ai o Joaquim comprou a geladeira no nome do José. O Joaquim não paga a geladeira e o José fica com o nome sujo. Então, o cara vai comprar um carro e descobre que ele está devendo nas Casas Bahia, no Magazine Luiza, coisa pouca, mas está devendo. Sapato, tênis. Isso atrapalha o crédito de um carro. O banco fala: "Se você não pagou um tênis, como você vai pagar um carro?" Os bancos hoje têm um banco de dados muito vasto. Hoje, por exemplo, se o cliente passar na sua loja e fizer uma ficha cadastral, passar em outra loja e fazer outra ficha, já na terceira ele é travado pra evitar o golpe, evitar que a pessoa fique fazendo leilão do crédito dele. Hoje sou loja pequena e tenho que pensar nessa realidade, com loja pequena temos que ter um diferencial de atendimento, servir um cafezinho, chamar pelo nome, tem que ser muito família, ele tem que se sentir bem dentro da sua loja. Como eu sou o dono, se amanhã ou depois der algum problema é o dono da loja que vai atender. Em loja grande o vendedor fala: "Ah, procure o nosso departamento jurídico." Aqui eu não tenho, tenho a minha cara. EQUIPAMENTOS Em 1986, 1987 ou 1988 a GM, General Motors, lançou um Monza que era trio elétrico. Na verdade, tinha vidro elétrico, trava elétrica e porta-malas elétrico. E virou trio elétrico. Até hoje se usa essa linguagem. Hoje um carro popular europeu como o Clio, Renault, Peugeot 2006 tem airbag de série porque se criou uma cultura européia, vem praticamente em todos os carros. Mas hoje o que o pessoal pede muito nos carros é a direção hidráulica, Estamos na era do conforto, vende-se conforto. Hoje tem controle remoto para a persiana, para a televisão. Eu lembro que a primeira televisão da nossa família era uma GE colorida enorme; era pra assistir a Copa de 1974. Nós nunca tivemos televisão, mas a primeira era colorida. Aí em 1980, quando a coisa deu uma melhorada, meus irmãos, que tinham uma pequena serralharia, compraram uma Mitsubishi com zoom. Você sentava no sofá e quando vinha uma visita, você falava: "Minha televisão é com zoom." A imagem ficava sem claridade nenhuma, mas era com zoom, aproximava, Tinha uns vizinhos mais pobres que falavam: "O meu sofá é com zoom, vinha alguém por trás, empurrava o sofá e aproximava da televisão.” (risos) Televisão com zoom era chique. Era como ter uma televisão de Plasma ou LCD hoje. Mas hoje nós estamos na era do conforto, do vídeo elétrico, trava elétrica, do alarme. Hoje pede-se muito alarme: "Tem rastreador?" São coisas que estão sendo embutidas nos carros que estão se tornando objetos de série. O conjunto elétrico hoje é um conforto quase que obrigatório. Você pega um carro com um vidro elétrico de 1996; em 2007, ele não funciona direito, mas não tem peça de reposição. O que era um conforto em 1996, hoje é um negócio indigesto, mas está lá. Então você vai vender um carrinho meio velho e perguntam: "Tem vidro elétrico?" "Tem, mas cuidado, não fique abrindo e fechando toda a hora que pode te deixar na mão." (risos) PROMOÇÕES Em 1996, 1997, o cara comprava um carro e ganhava uma bicicleta, mas na verdade, o cara estava pagando a bicicleta. A bicicleta valia cem reais e você ganhava no carro 1.500 reais. Você dar uma bicicleta era pouca coisa. Fazíamos propaganda em um jornal: "Compre um carro e ganhe uma bicicleta". Nossa senhora, faltava bicicleta Tinha um cara que produzia as bicicletas pra gente. O carro era o que o cara queria, mas ele falava: “Puxa vida, vou ganhar uma bicicleta, mas a bicicleta pesa uma tonelada.” Tinha câmbio e tal. No fim, a bicicleta começou a dar dor de cabeça, porque ela quebrava. Nós começamos a ter problemas com a bicicleta, não no carro. Daí o cara: "Oh, a bicicleta está assim" "Mas você ganhou a bicicleta" “Mas você não pode dar uma bicicleta porcaria." Hoje eu continuo fazendo isso. Às vezes, o cara pede um desconto e eu falo: "Eu não vou te dar desconto, vou dar o documento transferindo para o seu nome." Que é uma forma do cara falar: “Eu não tenho despesa nenhuma depois de comprar o carro.” Chegamos a fazer o seguinte: "Compre um carro e ganhe um jantar". Dava um tíquete, o cara ia ao restaurante e tomava vinho. Hoje, é mais bacana você dar um alarme. Eu chegava a dar seguro, seguro era mais viável. Depois começamos a dar duas parcelas do seguro. Hoje chegamos a dar duas parcelas do financiamento pagas. “A hora que você receber o carnê, traz aqui a gente pagava as primeiras parcelas.” Para promoção tem muita gente com criatividade, mas hoje, praticamente não existe promoção. A propaganda é uma ilusão, você está pagando por aquilo que eu estou te dando. “Eu vou te dar o DVD”. E no preço do carro ou na taxa de financiamento, o valor vem embutido. O Correio Popular era um jornal bom por ser acessível. A propaganda tem de caber no nosso orçamento. Você tem o anúncio de tripinha, aquele anúncio pequenininho, que fazíamos muito. Aí a coisa começou a melhorar, o mercado começou a ficar mais voltado para esse segmento, então botava no rodapé do jornal: "Traga o anúncio e ganhe 5% de desconto". O jornal era uma ferramenta muito forte, ou fazer anúncio na televisão. Era sempre acessível. FORMAS DE PAGAMENTO Eu me lembro que uma vez, em 1997, 1998 entrou o leasing no carro usado, semi-novo. O leasing era muito barato, mas se fazia leasing em dólar, que depois virou uma arapuca, em 1999. Para nós como lojista virou um pesadelo porque o cara dizia: "É, quando eu comprei, você me sugeriu o dólar." Mas como eu vou adivinhar o que se passa na cabeça do Ministro da Fazenda? Era uma operação viável até que um dia, ele falou que o dólar ia de um pra dois, quer dizer, você devia 10 mil passou a dever 20 mil. O carro valia oito passou a valer quatro. O cara vinha na loja bater na gente. Então, essa relação com o financiado foi uma fase que nós viramos... Se você me mandasse para o Iraque, eu negociava a rendição do Talibã inteiro, porque ficamos muito craques em negociação. Você tinha que se adequar a nova realidade. Em 1997, 1998, o contrato de leasing tinha umas 24 páginas. O cara assinava e falava: "Mas o que eu estou comprando, uma fazenda?” “Não, você está comprando um carro.” Porque tinha muita assinatura. PROPAGANDA A propaganda, o anúncio, o jornal ajudaram muito. O Correio Popular era acessível e tinha uma penetração muito forte. A gente fez uma propaganda no Jornal com o logotipo da Princesa na Bandeirantes e no SBT [redes de televisão]. Era um negócio chique, bacana porque trabalhávamos aos domingos. A minha mulher ficava doida porque ela falava: "Você tem que ficar com a família." Aí no domingo, a minha família descia na loja comigo: fazíamos pipoca, assistíamos ao Esporte Espetacular [programa da Rede Globo de Televisão], à corrida, tudo na loja. Comíamos às quatro horas da tarde. O cara já estava se preparando pra fazer a janta e nós chegando pra almoçar. Aí eu falei: “Chega, isso aqui não é vida. Vou vender menos." Acho que foi em 1999. Fui fazer um fechamento do mês e vi que quem estava ganhando comigo era o jornal, não eu. Eu pagava um carro zero por mês para o Correio Popular. Aquilo que teoricamente seria meu lucro era o que eu gastava em publicidade. Aí eu vi que o jornal começou a privilegiar o grande lojista. Você ia fazer um anúncio, se o anúncio fosse pequenininho custava o que cara pagava uma página. O cara fazia um contrato. Aí começou se tornar inviável, literalmente inviável porque você vendia muito, mas não existia lucro. Então, eu falei: "Chega, vamos parar." ARTE DO COMÉRCIO Começamos a investir. Começou a ter programas de computador de vendas. Eu lembro que aqui em Campinas nós fomos uma das primeiras lojas a ter fax. As mesas de vendas de São Paulo mandavam estoques pra nós pelo fax. Chegávamos na loja de manhã e tinha noites que vinha uma bobina de fax só de lojas mandando ofertas. Então vendíamos carros só pelo fax. Depois havia empresas que passavam nas lojas de carro e pegavam os estoques. Tinha um programa chamado Correio de Veículos, em São Paulo, até hoje existe. Depois foi um banco de dados muito grande, do Brasil inteiro, que colocava a nossa disposição o estoque de praticamente todas as concessionárias. Hoje o cara chega na minha loja e fala que quer comprar um Gol [carro da Volkswagen], tem 500 Gols pra vender. Se ele falar que quer uma Ferrari, procuramos por Ferrari e vão aparecer todas a lojas que têm Ferrari pra vender. Se hoje você fidelizar o cliente e ele te procurar na hora de comprar um carro, seja na minha loja ou qualquer outra loja que tenha esse sistema, ele encontra o que quer. É uma questão de você transferir para o cliente junto com o carro que você vendeu uma bagagem de confiança. O que vai fazer a venda vai ser um diferencial, juros, um mimozinho que você fizer para o cliente, pagar um pouquinho a mais no carro dele, essas coisas. FORMAS DE PAGAMENTO Vendemos muitos carros sem notas promissórias, sem nada. Do cara falar: “Vou te dar um pouco e o resto eu te dou o mês que vem.” Você não precisava ligar pra ele, chegava no dia, você podia contar com aquele dinheiro. Fui bancário de 1974 a 1978. Trabalhava no Banco América do Sul, em Americana, era um banco pequeno, mas eu me lembro que a agência devolvia, no dia, três ou quatro cheques. E você ligava para o cliente que tinha um cheque que ia voltar e se ele falasse, "eu estou indo aí depois do almoço depositar", você não devolvia. Hoje, você chega num banco às 10 horas, 10 e meia e tem o privilégio de entrar em um banco aberto. Você pode ter Cheque Ouro, Cheque Estrela, Cheque Van Gogh, se o cheque não tiver fundo, ele volta e o sistema devolve. Então, hoje quando o cara fala que vai dar um cheque para 10, 15 dias, você treme. Por quê? Se ele não tem dinheiro no dia que ele for comprar o carro, ele não tem dinheiro dali a 10 dias. Nós pegamos essa fase do "fio de bigode" em que o cara vinha e te pagava, você não precisava ligar pra ele. Eu tive cliente "fio de bigode". A minha imagem, o meu CPF, o meu CNPJ [Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica] tem que ser firme. A minha estrutura comercial é intocada, ela é inabalável. Eu já paguei muito imposto pra banco pra ter o nome de pé. É uma pena que hoje as pessoas não tenham essa mesma preocupação. O nome ficou uma coisa muito subjetiva: "Ah, deixa voltar." Eu acho que tenho na loja uma pasta que eu nem queria que fizesse parte da minha história, mas faz. Tenho uma pasta que deve ter uns 80 mil reais de cheques sem fundos. Carros inteiros que eu perdi. Cheque que no dia que eu entreguei o carro era bom e no outro dia, o cheque já não era mais. Carro zero que eu perdi e o juiz falou: "Você não foi hábil na transação." Eu falei: "Como, não? O cara me deu um cheque e no cheque está escrito que ele comprou o carro." Mas ele falou: "Não, na nota fiscal não consta esse vínculo." Perdi o carro e a pessoa não pagou até hoje. Era um Gol 1998. Eu tenho um cheque na loja de 12 mil e 700 reais, que é o preço de um Gol. Era o preço da nota fiscal que eu comprei e paguei. Nós sempre temos que pagar na frente. O cheque voltou sem fundos e meu irmão falou: "Deixa quieto. Faz de conta que é o imposto que de alguma forma íamos pagar um dia." Ele falou: “Puxa vida, o cara dar um cheque sem fundos. Não tem o menor respeito pelo seu nome que está ali, pela assinatura.” O cheque deixou de ser um atestado de propriedade. Eu estava na loja essa semana e o Correio entregou 10 talões de cheques. Eu achei um absurdo. Eu com 10 talões de cheques com 50 folhas cada talão. 500 cheques. Mandei devolver. Eu falei: "Eu não uso um talão de cheques a cada 2 meses, um talão de 10 folhas. Como vocês me mandam 10 talões de 50 folhas?" Eu acho que é um erro do banco. Quando eu era bancário, se o cliente tinha um cheque devolvido, ele não tinha direito a pegar talão. Hoje, o banco vai mandando. Isso alimenta uma mente financeiramente frágil. O cara fala, “eu tenho talão de cheque” e vira um estelionatário da noite para o dia porque ele vai no posto, abastece 30 reais de gasolina... Virou uma ferramenta cruel porque o comerciante não tem como ficar consultando. É ruim pra gente. CIDADES / CAMPINAS / SP A Região Metropolitana de Campinas tem um milhão e meio de habitantes. É uma região extremamente industrializada. É um pólo de pesquisa com muitas universidades. Uma vez fui comprar um carro na Bahia e o cara falou: "Você é de Campinas?" Eu falei: "Sou." “Nossa, eu tenho que fazer exame de vista em Campinas, no Penido Burnier.” Eu falei: "Nossa, dois mil quilômetros de Campinas e você tem que ir lá?" "Porque lá tem o Penido Burnier" "Puxa, eu estou lá do lado e não vou atrás do Penido Burnier." Campinas é uma cidade que tem uma imagem muito forte no contexto nacional. Ela tem a Unicamp, produz cabeças iluminadas, políticos que tem penetração em todos os partidos, e tem a PUC. Hoje há muitas universidades em Campinas. Ontem, eu fui buscar meu filho na saída da universidade e eu fiquei espantado com a quantidade de universitários que saíram da faculdade, parecia um formigueiro. Eu falei: "Meu Deus do céu, daqui a pouco meu carro some e eu não acho meu filho, de tanta gente." Depois meu filho falou: "Nossa, pai, a turma que saiu às dez e quinze não é um terço do que tem lá dentro". Fiquei impressionado de ver. Campinas é uma cidade que catalisa atenção porque ela é auto-suficiente. Tem um parque logístico muito grande. O aeroporto de Viracopos, acho que em nível de Mercosul, ele é a maior referência de entrada e saída de cargas. Tem um parque de transportes, as maiores rodovias do Brasil passam por Campinas como a Dom Pedro, Bandeirantes, Anhanguera, Rodovia do Açúcar - essa que vai aqui pra Santos Dumont - todas passam por Campinas. Acho que se ela não estivesse no Estado de São Paulo, seria a capital com a maior facilidade. Não sei a participação em nível de arrecadação, recolhimento de impostos, mas Campinas equivale sozinha a alguns estados. A renda gerada em Campinas é muito grande. As grandes indústrias de Campinas são grandes no Brasil inteiro. Elas têm uma projeção nacional. Toda grande indústria multinacional se estabelece em Campinas pela qualidade da mão de obra, pelo perfil do profissional. Ela é uma referência nacional. COMÉRCIO DE CAMPINAS O preço da passagem de Americana, de Sumaré ou de Hortolândia até o centro de Campinas é o mesmo que eu pago do centro da cidade para o shopping. Na Região Metropolitana paga-se 2 reais e 25 centavos. Se pegar um ônibus do centro da cidade para o bairro, também se paga o mesmo. Os mecanismos que foram criados para se chegar até Campinas fazem dela um pólo comercial impressionante. Você pega a Treze de Maio num sábado de manhã, ela é um formigueiro. Acho que metade de Campinas passa pela Treze de Maio no Dia das Mães, Dia dos Pais e no Dia dos Namorados. É um negócio bacana, o cara que vai para o centro da cidade, invariavelmente, tem uma sacola na mão. Campinas tem o maior shopping center do Brasil, o Shopping Dom Pedro. Quando ele foi feito eu falei: "Meu Deus, quem que vai nesse shopping? Já tem o Iguatemi, o Galeria, o Multilet, quem vai?" Mas você vai no domingo ao Shopping Dom Pedro e não tem onde parar o carro. Tem gente de outras cidades que vem pra cá. Você está na sua casa e passa lá um cara vendendo rede: "Ah, da onde você veio?" " Eu vim do Ceará." O cara vem lá do Ceará vender rede. Quanto custa essa rede? Você vai no centro de Campinas, no camelô ali na Alves Machado, e você compra tudo. Quer dizer, na realidade ele se estabeleceu e não vai mais sair dali, você não tira mais aquele cara dali, virou uma realidade do centro da cidade. O cara quer comprar um produto barato vai ao centro. Ele quer comprar um negócio um pouquinho mais sofisticado vai ao shopping. Campinas tem ruas próprias de ferramentas, de peças pra indústria. Para roupa, ela se sofisticou. Cambuí já é um pólo comercial. À noite, ele é gastronômico. É bacana você falar, "eu preciso comer em um restaurante", e você já sabe aonde vai. Isso é uma marca, uma identidade, veio dos grandes centros pra cá. LIÇÕS DO COMÉRCIO Eu consigo sobreviver do meu trabalho. Campinas me deu isso. Eu deixei de ser empregado e passei a ser o meu patrão. Passei pelas crises do meu país. O ano passado, o prefeito fez uma obra na Avenida Princesa do Oeste e fechou rua. Ele comunicou na sexta que ia fechar no sábado, eu não morri porque eu tenho que cuidar dos meus filhotes. Mas eu me virei, lembrei que minha mãe me disse: "Você não é quadrado, você se vira." A minha rua só tinha movimento de um lado, só no meio. Quem passava do lado de lá não via o meu lado que estava fechado. Mas aprendi a não desistir. Tem uma música que eu gosto muito do Peter Gabriel que chama Dont give up. Não desanime. Fechou uma porta, procure outra. Fiquei naquela de “Deus vai me abrir outra porta”. E Ele abre, mas você tem que procurar. Deus faz milagre, lógico que faz, mas você tem que fazer sua parte. Não queria ficar esperando que Deus amarrasse o meu sapato. Coloquei o cadarço, agachei e fiz a parte humana do negócio. Se você se dedicar a Campinas, se você conhecer as características do mundo que você vive, do Universo que você vive, você sobrevive e consegue. Existem os grandes que cresceram. No meu ramo, as mudanças foram muito grandes, mas eu nunca tive um capital externo, sempre me virei com o meu pequeno dinheiro. E hoje eu posso dizer que eu fiz a minha casa do meu trabalho, dei estudo aos meus filhos com meu trabalho, comprei outro comércio com meu trabalho. Não penso em parar de trabalhar. No Evangelho de João está escrito: "Meu pai está trabalhando até agora e eu também." Eu acho muito bonito isso. Se Deus trabalha, porque eu não vou trabalhar? Se o filho dele trabalhou, porque eu não vou trabalhar. O trabalho me faz chegar em casa de cabeça erguida. Faz com que quando eu compre um sorvete pra levar pra casa, eu fale: "Puxa vida, é fruto do meu trabalho". Eu tenho orgulho de chegar em casa e poder comprar um equipamento novo, eu posso trocar o carro da minha esposa, dar uma condição melhor para os meus filhos. É o meu trabalho. Campinas nunca me deixou na mão com relação ao que ela pôde me dar pelo fruto do meu trabalho. Em uma cidade pequenininha você fica desnorteado: O que eu vou fazer? Em Campinas, não. Conheço pessoas na cidade que falam: "Eu pago a luz, o telefone e a água catando latinhas." É uma cidade que tem um componente de violência embutido, mas é uma cidade muito grande. A violência é proporcional. Se você pegar uma cidade pequena de 20 mil habitantes e pegar Campinas com 1 milhão e meio de habitantes tem uma proporcionalidade de nível de violência. Em uma cidade como Campinas um assassinato nem se comenta, faz parte de uma estatística. Você tem que ter consciência do meio em que vive. Tem calote? Tem. Porque tem muita gente comprando e você tem que fazer de tudo para ficar com a cabeça erguida. Eu falo para meus filhos: "Façam tudo na vida de vocês para atravessar a rua, cruzar com alguém e olhar nos olhos da pessoa; cumprimentá-la e ela te reconhecer. Ela te chamar pelo nome, porque você fugir de uma pessoa que você deu um tombo, um calote, ou porque você não tratou bem, acho que ninguém merece. Você tem que cuidar para andar de cabeça erguida, independente do que você faça, seja um catador de latinhas, seja vendedor de carros, seja quem for." Conheço pessoas que são extremamente simples e extremamente honestas. E conheço pessoas que andam de carro do ano e têm um carnezão enorme no porta-luva atrasado. Essas pessoas falam: "Eu precisava que você me ajudasse, comprei esse carro e tem quatro prestações atrasadas." Eu olho para o carro e falo: "Caramba, porque você não comprou um carro quatro anos mais velho, do tamanho do seu salário? Vamos te ajudar.”E talvez você reverta o quadro e arrume um novo cliente. MEMÓRIAS DO COMÉRCIO DE CAMPINAS Acho que foi há uns três meses que chegou uma garota e eu imaginava que ela fosse me vender alguma coisa. Eu procuro atender todo mundo bem porque eu sou um vendedor e eu tenho que atender bem. Eu consigo vender mais um produto pela atenção que eu dou, às vezes, do que pelo produto em si. Mas ela foi super simpática e falou: "Posso fazer algumas perguntas?" Era uma pesquisa e eu fiquei pensando: “Puxa vida, vai me vender alguma coisa, vai me vender um filtro dagua.” Mas ela foi simpática e eu falei: "Olha, você vai fazer o seguinte pode perguntar o que quiser para mim, mas se aparecer um cliente, eu vou parar de te atender e eu vou fazer a minha parte. Você está no meu universo e por favor, se adapte a ele." E ela falou: "Não, tudo bem". Ela perguntou há quanto tempo eu estava e falei das enchentes e ela foi fazendo perguntas e foi entrando no meu contexto. Quando ela falou do Sesc, lembrei que fiz o primário lá, foi fantástico. Eu me lembro muito bem, quando disse que eu fiz o meu primário no SESI, em Americana, que era referência, qualidade do ensino, eu falei: "Sesc é do comércio e o Sesi da industria.” Então falei: “Fizeram um negócio muito bonito pra quem é do comercio aqui." E quando ela falou que era do Sesc, eu falei: "Puxa vida, vamos contribuir." Ela foi fazendo perguntas e depois disse: "Você se importa se futuramente alguém precisar falar de novo com você?" Eu falei: "Pode vir." Sou uma pessoa que não tem muito tempo porque quem vende carro, adota um filho. O carro é um bumerangue, ele vai e volta na sua mão um monte de vezes. Até o fotografo falou: "Geraldo, faça a sua parte e a hora que você tiver um tempinho, a gente vai fazendo as fotos." Ele viu como é. Quando você me ligou, fiquei pensando: “Puxa, preciso arrumar um tempo pra essa moça, ela está insistindo comigo.” Aí quando eu vi que o negócio era sério, eu falei: "Eu preciso dar a minha contribuição porque eu sou um pequeno comerciante, mas as grandes pirâmides começaram com pequenos rabiscos, então o comércio de Campinas passa por mim. A história do comércio de Campinas passa por mim, por pessoas que fazem dessa cidade ser o que ela é. Inicialmente, eu fiquei meio preocupado com o que vocês iriam perguntar, com o que eu poderia contribuir. Depois eu fiquei curioso, a minha mulher estava lá na loja quando veio me buscar, ela ficou preocupada em me arrumar o cabelo e eu falei: "Não adianta que menos feio que isso não vai ter jeito." (risos) Quando você veio eu me toquei que a história de uma cidade é contada por pessoas que fazem parte do dia-a-dia, da raiz da cidade. Eu acredito que se entrevistar um grande empresário, ele vai falar de números, porque é do que ele entende. Ele ficou grande porque cuidou dos números. Talvez ele seja grande em números, mas talvez seja pequeno em intimidade. Talvez ele tenha pessoas na empresa dele que tenham isso que eu tenho, mas ele não vai saber como é você conversar com alguém para quem vai vender um carro, sabendo que para ele aquilo vai ser uma propriedade. Então, quando você me ligou fiquei feliz. Eu posso contar para os meus filhos e para os meus netos: “Puxa vida, falar algumas coisas da minha origem, da minha história, um ser humano dentro do contexto de um mundo que passa por mim.” Isso foi muito bacana, fiquei muito feliz.
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