P/1 – Vamos começar agradecendo a presença da senhora aqui, por ter aceitado o nosso convite vindo aqui pra conceder essa entrevista e vou pedir primeiro o seu nome completo.
R – Meu nome completo é Lina Levi.
P/1 – O local e a data do seu nascimento.
R – Eu nasci na Bulgária, a cidade se chama Varna, só que de lá eu saí bem pequenininha, com um ano e meio e fui para a capital, Sófia, aí, cresci. Sou nascida em 08 de maio de 1927.
P/1 – A senhora estava contando pra gente lá fora que quando veio para o Brasil teve uma confusão porque eles colocaram o seu nome errado...
R – Sim, porque eles faziam tradução nos documentos quando íamos fazer permanência e, como eu cheguei de Israel, tem uma letra que é um pouquinho comprida e serve como “o”, e se for a metade é “i”, então, onde era Lina eles colocaram Lona e aí ficou assim, nos documentos eu sou Lona, mas todo o pessoal me conhece como Lina. É isso que aconteceu, a tradução foi errada. Não tinha mais como concertar. E ficou assim.
P/1 – Lina, conta pra gente então o que a senhora se lembra de Sófia, da sua infância lá, como que era o lugar...
R – Olha, o que eu me lembro é que tudo era muito bom até o tempo que chegou a guerra. Eu nasci em 27, a guerra começou já era 42, 43, quando chegaram os alemães, entraram na Bulgária e foram ruins para os judeus. Mas, até então, todo mundo vivia muito bem. Sempre foi bom. A gente estudava, brincava, era normal, muito bom. Se vivia na Europa, muito bem. Só que depois que chegou a guerra piorou, já não tinha jeito mais, aí, nós fomos para outros lugares. Tiraram a gente da capital, fomos para outras cidades, mas, graças a Deus, os Búlgaros, que é toda a população lá, não deixaram nem um judeu sair de lá. Quer dizer, os alemães queriam levar como fizeram em toda a Europa. Todos os judeus da Polônia, da França, de todo lugar. Na Bulgária não deixaram.
P/1 – Eu queria perguntar os tempos antes da guerra, pra gente que é daqui de São Paulo, não conhece muito, como que era sua casa da infância, a vizinhança?
R – Olha, como te falar? Era diferente do modo como se vivi aqui. Primeira coisa, toda criança estuda, é obrigatório! Estudar já começava aos sete anos, primeira série. Era obrigatório. Não tem isso aí de não estudar. E fora isso, meu pai era comerciante, então, era assim: todos os dias ele saía de casa às oito horas, à uma hora chegava. Era o almoço, depois era descanso. Às quatro horas, ele saía; às oito horas, voltava e era a janta. Sempre, todo mundo na mesa. Quer dizer, eu tinha mais um irmão. Todo mundo: eu, meu irmão, minha mãe, todos na mesa. Aí, vivíamos muito bem. Tínhamos empregada em casa normal, como aqui também tem. Costumávamos ter empregados. E era assim. Chegava domingo, era como aqui a mesma coisa. Era muito bom. Depois, chegou a guerra, piorou tudo.
P/1 – E qual era o nome dos seus pais, do seu irmão?
R – Meu pai se chamava Nissin Toledo, meu irmão Joseph e minha mãe era Rebeca. A família do meu pai era Toledo, família tradicional, conhecida de lá, da Bulgária, conhecida. É isso. O que mais você quer?
P/1 – A senhora falou que ele era comerciante, como que era a loja dele? O que ele tinha?
R – Ele trabalhava com couro que são para calçados. Tinha loja e trabalhava com isso, ele vendia couro para estes que faziam os calçados. Ele tinha loja e trabalhava fora. O tio dele tinha uma fábrica e ele ia lá e ajudava também. Toda a família trabalhava nesse ramo de couro.
P/1 – E a senhora se lembra de alguma vez ter ido a loja do seu pai? Ter ajudado ele?
R – Sim. Muitas vezes. Ajudar, pra falar a verdade, a gente estudava. Saía do colégio, uma ou outra vez ia lá, mas, raramente. Era muito horário. Sozinha não dava pra ir. A minha mãe ou a empregada tinham que levar e era mais difícil. Também, a gente estava mais ocupado. Onde nós morávamos era bem mais longe, ele tinha no Centro e a gente morava em outra região onde morava o pessoal, então, para ir até lá, era demorado e raramente eu ia lá.
P/1 – E a senhora se lembra de como era lá?
R – A loja, normal. Ele tinha mais dois empregados lá que ajudavam, que arrumavam os couros e tudo e nada de especial. Não sei... Não me lembro de nada de especial. Uma loja com bastantes couros lá, tudo feitos em grandes, conforme a cor, o tipo que era, tinha mais grosso... Aí, fazia muito... Não sei como se fala, aquilo que coloca nas mãos? Luvas também. Era de pelica. Tinham vários tipos de couro lá. Isso eu lembro. Agora, várias cores... Era mais isso.
P/1 – E do que a senhora gostava de brincar quando tinha um tempo livre?
R – Eu gostava não só de brincar, quer dizer, eu nasci lá e sai de lá já com 20 anos. Eu gostava muito de fazer todo tipo de esporte. Quando era no inverno, a gente usava para andar... Como se chama? Não sei como falar... Para esquiar também tinha, mas eu não ia muito, isso era perigoso e os meus pais não deixavam. Macuné, skates! Isso sim! No gelo. No verão, nós jogávamos bola, fazíamos acrobacias lá de todo tipo, bicicleta, andávamos lá pelas ruas da vizinhança. Era isso! Quando tinha tempo, que a gente estudava bastante lá.
P/1 – A senhora falou bastante da escola. Como que era essa escola?
R – Era escola boa. Tinha o primário que era outra escola e depois a gente foi pra segunda e depois o ginásio, que chamam de colegial aqui. São várias escolas, não é só uma. Mas eram todas perto, não eram longe. O trajeto era só a pé, que a gente andava, mas era tudo bem lá, não tínhamos problemas. Depois, muitas vezes, tínhamos aula de francês. Nós íamos lá também pegar mais aulas por fora também. Então, é isso aí. Nós tentávamos estudar e, pelo menos, o estudo era respeitado, não era igual aqui. Que sabe, professor é o professor! Ninguém podia... Agora, os tempos são diferentes aqui. Acho que agora é diferente em todo o mundo, não só... Em Israel também. Já foram aqueles tempo em que era diferente. A gente tinha muito respeito, não podia bagunçar, não podia fazer coisas que fazem hoje. Mas, isso já passou o nosso tempo! Agora, são outros tempos.
P/1 – E a senhora se lembra se tinha alguma matéria que a senhora gostava mais?
R – Geografia. Eu gostava muito de Geografia, História, Matemática... Coisas que a gente gostava muito. A língua eu também falo muito bem. Quando eu vou à Bulgária, todo mundo me entende porque eu falo fluentemente búlgaro e a gramática também. Ninguém pensa que eu falo outras línguas. Ninguém entende que eu sou de fora! Ninguém pensa que eu sou estrangeira, porque tem búlgaros que vão aí e como tem sotaque, aí, logo sabem que são estrangeiros. Pra mim, não. Eu falo fluentemente e não com sotaque.
P/1 – A senhora tinha que ir pra escola com algum uniforme?
R – Sim. Era obrigatório usar uniforme. Hoje em dia eu não sei, mas, naqueles tempos, cada escola tinha o seu uniforme. Não só uniforme, mas chapéu que também tinha que usar. Era o uniforme completo. Tinha que ser o sapato apropriado, a bolsa que carregava os cadernos, também apropriado, não pode ser qualquer uma, que vai de mochila, não existia isso aí. Tudo era igual. Não tinha diferença. Todos os alunos iguaizinhos e uniforme igual.
P/1 – E nos momento de lazer com a família, o que vocês costumavam fazer? Tinha algum lugar que vocês iam passear...
R – Geralmente, a gente ia muito ao teatro, cinema. Cinema, a gente ia bastante, teatro também, várias vezes nós íamos a Opera lá que é muito boa, e muitas vezes íamos fora da cidade e, aí, tinha como os ranchos e a gente comia, e não íamos só nós, às vezes iam conhecidos do meu pai, ou amigos, e as crianças brincavam. E era assim, era isso que fazíamos. E, geralmente, quando chegava o verão, quando acabava, julho e agosto já eram férias, quer dizer, antes disso ainda, porque a gente estudava bem então, era antes. Quando chegava dia dez, 15 de junho, já podia estar fora. Então, a gente ia sempre para alguma outra cidade, no campo, porque em Sófia ficava bem quente, a gente ia pra cidades mais longes onde era mais fresco ou mais bonito. Ficávamos um mês, dois meses por lá e depois voltávamos.
P/1 – E como eram essas viagens? De trem?
R – Geralmente de trem. Às vezes, se era mais perto, íamos de carro, mas, geralmente, era de trem. Se usava muito o trem para ir.
P/1 – A senhora se lembra, quando a senhora era menininha, numa dessas viagens de trem, o que a senhora sentia de viajar?
R – Ah, eu não gostava nada do trem porque me fazia mal, sabe? Naqueles tempos, o trem tinha uma fumaça e um cheiro ruim, sempre tinha gases... Era longe. Quer dizer, Sófia-Varna como fazíamos era quase 12 horas de trem, bastante tempo. Aí, a gente um pouco dormia, um pouco ficava de pé, ficava na janela para tomar ar, mas quando chegávamos já estava tudo bem, mas, para chegar demorava um pouco. Eu gostava porque em Varna era mar, era muito bom lá! A gente ia sempre. Quase todo o ano, passava lá. Porque o meu pai, na verdade, é de lá, era nascido lá, então, a família toda dele era de lá e a gente sempre viajava para lá. É isso. Era muito bom, o Mar Negro.
P/1 – A senhora se lembra, na sua meninice, o que a senhora gostaria de ser quando crescesse?
R – Se eu pensava o que ia ser? Olha, na verdade, quando já era tempo de começar a pensar, aí, já começaram os tempos a ficarem meio barulhentos e não se entendia nada. Eu gostava muito de comércio, e eu estudei mesmo em escola de comércio. Estudei alguns anos lá mas não deu muito tempo porque já estava com bastante turbulência lá. Primeiro porque os búlgaros fizeram um pacto com os alemães. Eles, na verdade, deixaram os alemães entrarem lá. Não como nos outros países que eles entraram. Eles entraram como amigos lá, aí, começou toda a turbulência, que eles queriam que os judeus fossem para os campos de concentração e aí, todo mundo ficou com medo. Já não se pensava muito nisso, era dia a dia. Passar o dia, tudo bem, e quando chegou em 43, aí, já estava bem turbulento mesmo e tiraram a gente de lá. Ficamos um ano, até que acabou a guerra, quer dizer, até que eles se renderam já e tudo, os alemães. Ficamos na província e em outros lugares, não na capital. Tiraram tudo de nós. Não sobrou nada. Cada um foi só com uma maletinha e pronto, mais nada podia levar. Então, eram tempos turbulentos. Faltou comida, racionaram tudo! Era um tanto que podia comer, tudo com carta se podia comprar, não era fácil não. Bem mais fácil eu acho do que os outros que foram e morreram, pelo menos a gente ficou com vida.
P/1 – E como vocês faziam pra, juntos, superarem todos esses problemas? Como que foram as mudanças pra família?
R – Geralmente, quem podia, ajudava. Cada um ajudava com o que podia. Quando nós saímos de lá, uns três meses ficamos num lugar. Depois disso, como a minha mãe era de outra cidade perto lá de Varna, nos fomos pra lá e tinha a minha avó que morava lá e tinha a casa dela e tudo, então, a gente ficou na casa dela. Quem tinha parentes lá, estava bem. Agora, quem não tinha, sofria. Tinha gente que sofria muito, até ficavam sem comer, mas a gente não. Eu não. Pelo menos isso, a gente não sofreu. Mas tinha bastante sofrimento e depois disso começou o outro problema, chegaram os Russos, aí, outro problema, até que deu tinha pra sair de lá, quem podia se mandar da Bulgária se mandou, e, devagar, devagar, tinha quase 50 mil judeus na Bulgária. Quase todo mundo saiu de lá e foi para Israel. Entre 48 e 49, aí, ficaram os Russos, quatro ou cinco mil, que eram os comunistas mesmo. Eles ficaram lá, porque era o regime deles e eram favorecidos. O resto, todo mundo saiu e foi para Israel. É isso.
P/1 – E como vocês sentiram essa chegada dos Russos? Como que chegou esse momento de mudar pra Israel?
R – Bom, no começo todo mundo gostou de ver que os Russos chegaram porque aí, viram que a guerra acabou. Os alemães foram embora e todo mundo se dava bem. Mas, depois, eles começaram a mandar lá! Devagar, devagar, eles entraram e começaram a mandar. No começo, ninguém sentia nada, depois começaram a mandar e aí, já foi difícil, porque quem não trabalhava, não podia... Obrigatoriamente, tinha que trabalhar, se não trabalhasse, ia fazer trabalho forçado. Era assim. Não podia. Não interessava se o seu pai era comerciante ou não, tinha que trabalhar! E ainda bem que eu estudei e deu pra trabalhar um pouquinho e, depois disso, já fui pra Israel e, estava bom.
P/1 – A senhora falou que deu pra trabalhar um pouquinho. O que a senhora fez?
R – Tinha uma, como se chama isso? Onde fazem os livros? Como vocês fazem os livros... Grande... Eu fiquei lá como ajudante de quem fazia as contas bancárias e outras contas e eu fiquei lá. Estava muito bem no emprego, mas eram aparências para poder dizer que está trabalhando, que não estava nas costas do pai. Era importante isso aí, porque se não... Naquela idade, já tem que trabalhar em algum lugar. Se não, tem que ir trabalhar forçado para fazer ponte e coisas que faziam lá e chamavam todo mundo pra ajudar, fazer novo país e era isso. Era perto de casa e andava a pé, também e lá na Sófia, se usava muito trambeque, sabe? Bonde! Aí, até hoje tem. O pessoal anda só de bonde, mais do que de ônibus. E era perto.
P/1 – E como foi então o processo de mudança, da Bulgária pra Israel, pra onde vocês foram, como foi a viagem?
R – Era programado já, tínhamos que ir. Eram só jovens. No começo, não deixavam todo mundo ir pra Israel, só os jovens. Embarcamos no navio e fomos pra Israel, só que, na metade do caminho, os ingleses pegavam os navios e chegamos em Chipre e, aí, ficamos uns meses lá, antes de chegar em Israel. Aí, eram os ingleses que dominavam, e foi assim. Ficamos num lugar e depois fomos para Israel. Aí, cada um foi para o seu lugar, (risos), e tentando a vida.
P/1 – E a senhora foi sozinha? Como foi essa partida?
R – Não, eu fui junto com meu marido. Jovens, mas todos juntos, não só eu. Tinham muitos que eram amigos, e fomos juntos todo mundo.
P/1 – A senhora falou que foi com o seu marido. Como a senhora o conheceu?
R – Nós éramos amigos de uma turma. A gente se casou e todo mundo foi junto.
P/1 – Qual era o nome dele?
R – Alberto.
P/1 – Certo. E quando vocês chegaram em Israel então, quais foram as primeiras atividades, onde vocês se estabeleceram?
R – Ah, no começo também era bem difícil. O que achava pra trabalhar, a gente trabalhava. Ele sabia fazer sorvete, queijo, iogurte, essas coisas, e começou devargarinho numa loja e aí, foi fazendo e foi assim. Depois, mudamos daquela cidade e fomos para Tel Aviv, que era uma cidade maior... Aí, chegaram os meus pais também, o meu irmão com a minha cunhada e a gente juntou a família.
P/1 – E como foi quando estava todo mundo reunido de novo, em Tel Aviv? Onde vocês moraram?
R – A gente comprou um apartamento lá, estava tudo bem. Devagarinho, como aqui. A gente dava a entrada, depois devagar a gente pagava, e fomos lá para Tel Aviv, e estava muito bom. Aí, tivemos os filhos e tudo e estava tudo bem. No começo, não tinha trabalho, depois, devagar, devagar, começou a ter tudo. No começo, não tinha nada, mas, depois recomeçou e estava tudo bem. As crianças, quando nasceram, já não viam nada. Não sabiam o que era não ter isso, não ter aquilo. Tinham tudo já. Então, eles cresceram com tudo já normal. Só as guerras que eram de vez em quando e dava problema.
P/1 – A senhora estava sempre então ajudando o seu marido?
R – Sempre. Sempre trabalhamos juntos.
P/1 – E como foi pra senhora ser mãe?
R – Foi ótimo! Mas, aí, tinha ajuda também. Minha mãe me ajudava, tinha uma pessoa lá, me ajudando e assim foi tudo bem, graças a Deus. Deu certo tudo. Até que quando começou a guerra que foi de Yom Kippur, meu marido falou: “Aqui eu não fico mais”. Antes disso, já estava na cabeça dele de sair de lá e já tinha alguns primos dele que moravam aqui em São Paulo, tinha um amigo aqui também e sempre que visitava lá em Israel... Ele veio aqui... que ano era? Não lembro mais, um ano antes da guerra, se não me engano, e ele ficou maravilhado! Gostou tanto e falou: “Se eu um dia sair daqui, eu vou para o Brasil!”. Tudo bem, a gente pensava que era na brincadeira, tudo bem, tudo na brincadeira... Depois da guerra, já começou a falar sério e, devagar, devagar, chegou também o primo dele e, como foi muito dura aquela guerra, ele começou a falar: “Vamos a ir lá! Se você gostar, a gente fica, se não, a gente volta! Vamos fechar a loja, não tem problema, a gente deixa fechado seis meses e podemos estar lá!”. Quando chegamos aqui, os meninos já se adaptaram logo, e, aí, ficamos mesmo! Eu também gostei, então, a gente ficou. Mas, não pensamos de voltar para lá.
P/1 – E como que foi essa viagem para o Brasil? Cheia de expectativa?
R – Tudo bem, porque a gente chegou aqui, já viemos não como imigrantes, a gente veio aqui como investidor. A gente veio com dinheiro, já pronto, já era programado que x do dinheiro tinha que depositar no Banco do Brasil para ter documentação e poder trabalhar. Estava tudo o jeito que precisa. A única coisa é que eles fizeram tradução dos filhos para poderem entrar nas escolas, tudo bem. A única coisa foi com o meu nome. Aí, fizeram um pouco errado e foi isso. Mas a gente se adaptou logo e, como eu falei, aqui já tinha a família dele, e tinha o amigo dele que recebeu a gente com os braços abertos, então, não sentimos muito. Também tinha o clube que a gente ia sempre, no Tremembé, que tinha um clube e a gente se adaptou e as crianças também, já fizeram amizade logo aqui, e não dava pra perceber que estava muito fora. Depois passou uns, quanto tempo? Nós viemos em novembro, em junho, a minha mãe também, porque ela ficou viúva lá, aí, também veio para cá e foi assim!
P/1 – E qual foi a sua primeira impressão da cidade? O que ela tinha de diferente, o que chamou a atenção?
R – Aqui? Quando nós chegamos era diferente São Paulo! Não era como agora. Mas logo gostei, esse amigo tinha casa boa e a gente logo arrumou também apartamento e entramos no apartamento já com tudo arrumado. A impressão que eu tinha era ótima! Esse nosso amigo tinha sítio perto de Perus, então, era tudo verde, bonito, sempre! Na chegada, já víamos tudo verde, porque nós chegamos em Campinas, no Vira Copos. Naquele tempo, não tinha ainda Cumbica. Era só em Vira Copos que chegavam os vôos de fora. Aqui em São Paulo era só daqui. Agora, nós chegamos lá em Vira Copos, era lindo o dia, era novembro e estava calor... Muito bonito! Lá era frio, chegamos, era tudo verde, bonito, gostei, e devagar, devagar, isso foi muito bom, porque tinha muita gente que tinha amigos, família e tudo e a gente sempre estava junto com outras pessoas, então, não deu pra sentir muito que mudamos muito. Estávamos sempre com outras pessoas. Estávamos entre amigos.
P/1 – E a questão da língua? A senhora sentiu muita diferença?
R – No começo, eu não entendia nada, para falar a verdade. O meu marido foi com um professor particular, ficou bastante tempo e estudou lá. Eu estava olhando os livros e não entendia, mas, aí, pensei: “Bom, vamos ver se ele já sabe alguma coisa...”, porque eu não entendia no começo, mas, depois, como eu te falei, tinha essa família e todo mundo falava hebraico. Então, no começo eu não sentia, mas o que a gente fez: “Olha, aqui não dá! Se eu não entender a língua, não tem como! Como que eu vou sair na rua, como eu vou saber?” Então, a primeira coisa foi comprar rádio e televisão. Aí, de manhã cedo, já ligava o rádio, e aí, logo depois disso, chegou professora para dar lições para os filhos, aí, eu ficava junto lá com eles, olhando. Depois, passou três meses e a gente abriu a loja, porque, nesse meio tempo ele estava se ocupando, fazendo a reforma da loja. E eu ficava com os filhos sempre, vendo o que estavam estudando, isso e aquilo e, devagar, devagar, comecei a captar tudo. Ia na feira. No começo, eu não sabia e duas semanas depois nós entramos no apartamento e fui na feira e não sabia: “como eu vou falar o que eu quero?”, aí, mostrava e ele me falava que é vargem: “ah, vargem”, aí, aprendi que vargem era vargem. A batata é batata. Então, com a convivência, quando abrimos a loja, foi outra coisa, porque, aí, já tinha empregados e comecei a falar: “quer, não quer?”, e começou a chegar o pessoal. Então, “quer, não quer?”, uma palavra boa, outra torta mas deu... Como eu sabia francês também, ajuda muito! Tem muita coisa que basta escutar bem com o ouvido. E assim, fiquei aprendendo. Não falo muito bem, mas, me entendo com todo mundo. E foi assim. Não tive dificuldade nenhuma com a língua. No começou só pensei que: “vai ser difícil”.Não foi nada difícil não. Foi até fácil.
P/1 – Um minutinho. A gente vai trocar de fita.
TROCA DE FITA
P/1 – Então, voltando a gente estava conversando sobre a língua, né, então, como que vocês se comunicavam dentro de casa?
R – Eu já estou te falando. A gente falava em Hebraico, só que quando os filhos começaram a estudar aqui, eles estudavam também, na verdade, na escola Hebraica, na Renascença, mas, estudavam Português. Então, eu falava em Hebraico e eles me respondiam em Português, e assim, devagar, devagar, eu acostumei também a falar com eles em Português, porque, não adianta: eu falo em Hebraico e eles me respondem em Português. Então, a gente falava direto o Português.
P/2 – E quantos anos tinham os filhos da senhora quando a senhora veio para o Brasil?
R – O maior tinha 12 e o menor oito.
P/1 – E onde vocês foram morar aqui em São Paulo, em que bairro?
R – No Bom Retiro. Eu morei sete anos no Bom Retiro. De lá, depois, nós fomos para Higienópolis, porque os meninos já eram crescidos. O maior já estava com 19 tinha carro e não tinha garagem lá e nem perto tinha. Tinha garagem só na outra rua, aí, de noite, voltando de madrugada, era difícil. Aí, a gente pensou, pensou devagar e fomos para Higienópolis, que tinha garagem embaixo do prédio e eu morei lá em Higienópolis 20 anos. Só que aí, o meu marido começou a ter Alzheimer, essa doença, e não deu pra ficar todo o tempo lá. No começo ainda fiquei, ele começou com essa doença já era em 95, 96, aí, ficamos até 2001, aguentei, mas, depois não deu pra aguentar. Estava já muito difícil. Muito difícil. Aí, voltei para o Bom Retiro e voltei no mesmo prédio, só que um andar mais pra cima e menor. Apartamento menor, porque eu estou sozinha. Não adianta. Então, é isso... Morei no Bom Retiro sete anos.
P/1 – E como era o Bom Retiro quando a senhora chegou?
R – Era muito bom.
P/1 – O que tinha? Como eram as ruas?
R – Era tudo de judeus, lá. A maioria era bairro judeu mesmo. Aí, depois, devagar, devagar, começou a esvaziar, como eu saí também e muita gente começou a sair de lá e depois entraram os coreanos. Começaram a chegar os coreanos e, devagar, devagar, foi isso aí. No começo, você escutava na rua só o Hebraico, mais do que Português. Todo mundo se conhecia, depois começou a mudar... No começo, a gente não sentia muito, porque ficava dentro da loja. Mas, começou a esvaziar. Começaram a chegar os coreanos, devagar, devagar. Agora, são Bolivianos, do Peru, mas, a maioria é de coreanos. Mas, eles fizeram muito bem pro bairro. Ele já estava começando a ficar meio caído. Os filhos dos comerciantes, ninguém queria mais as lojas dos pais. Então, os coreanos entraram, começaram a fazer reformas. Fizeram muito bem. Tem várias ruas aí que eles fizeram, até a José Paulino hoje em dia está em alta e outras ruas também que estavam meio caídas, agora estão bem, muito bem! Eles espalharam um pouquinho o bairro. Eu acho! Foi bom. Quando eu voltei já vi que estava totalmente diferente. Na rua, você escuta só coreano lá, (risos), eles falam, também sente o cheiro quando entra ou sai do elevador... Mas, agora tem pouco judeu lá. Muito pouco. Que nem eu, os mais velhos que ficaram ou outro que tinha que voltar por qualquer razão, mas, não tem muitos. A maioria saiu de lá. Quando eu cheguei, eram todos judeus. Aquele prédio era só de judeu. Agora, pode ser que tenha quatro ou cinco famílias lá. Não sei se tem nem isso e o prédio tem 64 apartamentos. Então, todos coreanos. Mas são gente boa.
P/1 – E como que foi a abertura da loja aqui em São Paulo, o momento de reforma...
R – Foi difícil para o meu marido, para ele foi difícil. Eu não sabia porque eu estava em casa, mas, ele tinha que lidar com todo tipo de gente que fazia reforma lá e foi difícil, porque ele queria de um jeito e eles faziam de outro e a reforma demorou um pouquinho mais do que o previsto, quer dizer, ele começou a reforma em abril, se não me engano, ou maio, e a loja só foi aberta em dezembro. Demorou, mas, depois devargazinho, deu tudo certo.
P/1 – A senhora se lembra em que período foi a abertura da loja?
R – Sim, lógico que me lembro, como não? Foi em dezembro de 75 a abertura da loja. Aí, recebemos aquele quadro que tem lá na loja. Foi um amigo dele que mandou fazer de propósito para a abertura da loja. E foi muito esperado porque antes disso já anunciaram que teria a nova loja, com queijo, iogurte, burekas, e já no dia, foi aquela loucura, porque todo mundo entrou e não tinha bastante coisa. Os primeiros meses foram difíceis também, com os empregados, a gente não sabia no começo... Veio um, não serviu, veio outro... Foi um pouquinho difícil, o primeiro ano. Depois começou a melhorar até que foi bom e já se acertou tudo. Mas, no começo foi difícil!
P/1 – E como que foi o processo de ensinar as receitas, ou quem é que fazia?
R – Eu fazia e até hoje faço, minha filha! Até hoje eu faço. Olha, eu vou te contar, tem que ter bastante paciência pra ensinar, muita! Passaram muitas pessoas comigo. Tem umas que aprendem rápido, tudo bem, mas tem outras que não. De repente, quebrou perna, de repente, não sei o que, falta, é meio difícil de trabalhar, mas, agora tem gente que trabalha há muitos anos comigo e graças a Deus, está tudo bem. Não posso me queixar. Tem que saber lidar com o pessoal. Não pode gritar, não pode falar feio, tem que ser como a gente, todo mundo é igual! Se você quer respeito, tem que dar respeito! É isso o que eu acho! Então, eu respeito todo mundo, eles me respeitam e a gente fica bem! Fico bem sempre!
P/1 – E de onde que vem a receita? Qual a parte mais difícil de fazer?
R – Olha, as receitas, na verdade, são da minha mãe. Quer dizer, eu aprendi com ela e ela acho que aprendeu uma parte grande com a mãe dela. E foi assim, devagar, devagar, e tem muitas coisas que eu modifiquei também, mas as coisas básicas são da minha mãe. Depois, devagar a gente foi inventando as coisas, mas, no começo, quando abriu a loja, tinha só três tipos de bureka. Era queijo, carne e espinafre com queijo, e depois começaram a pedir: “por que não faz de batata?”, aí, foi batata. Depois foi: “por que não tem frango?”, aí, frango. Depois foi: “por que não tem outro tipo de queijo?”, aí, gorgonzola. Aí, depois, carne com berinjela, e aí ia indo... Depois inventaram também as quizadas, que também é um tipo de massa folhada só que recheado com champignon fresco e outro berinjela com queijo, que o pessoal adora também. Depois disso, eu fazia em casa também um queijo tipo folhado, aí falaram: “por que não põem aqui para vender se é tão gostoso?”, então, foi o queijo folhado. Os doces também. No começo, era só strudel de maçã, aí, devagar introduziu a banana com uva passa: “por que não faz de banana”, “por que não faz de damasco?”, aí, depois inventamos também, Romeu e julieta, abóbora com coco, coisas mais brasileiras. Não é mais búlgaro isso aí! Então, várias coisas assim: o pessoal fala: “faz isso”, então, você faz. Torta de ricota, no começo, não fazia: “por que não tenta torta de ricota?”, vamos fazer torta de ricota! Agora, todo dia tem que ter torta de ricota! Às vezes, acaba e o pessoal, “ah, como não tem?” Acabou... E é assim que foi!
P/1 – E como surgiu a ideia do nome da loja? Ela sempre teve esse nome?
R – Desde o começo teve. Foi invenção desse amigo do meu marido junto com o meu marido. Ah, nós somos búlgaros e, pena que eu não trouxe comigo, eu tenho um cartão de visita, aí, está estampado dois bonecos do jeito que eles dançam na Bulgária, e foi ele que fez isso. E esse era mesmo o cartão que a gente tinha há anos! Muitos anos! Depois, modificaram isso, mas, no começo, era isto aí. Como a gente sempre comprava café lá, na Casa da Itália, ou alguma coisa assim, não lembro bem, bem no centro lá, aí o meu marido e esse amigo dele falavam: “ah, aqui vai ser Casa Búlgara. Nós somos búlgaros!”, então, colocaram Casa Búlgara. Foi assim. Ele junto com o amigo, ai: “ah, tá bom, você quer isso aí? Tudo bem. Vai ser Casa Búlgara!”, e ficou, porque nós somos na verdade de origem búlgara! (risos).
P/1 – E como é o espaço da loja pra quem não conhece?
R – Ah, nós temos umas mesinhas e acho que uns 12 lugares e depois tem o bar que podem sentar pessoas também, mais uns quatro ou cinco lugares. As pessoas compram muito para levar. Levam pra casa, esquenta e pronto! Isso dura uma semana na geladeira, três meses no freezer, então, comem, levam... O espaço é bastante. De vez em quando, enche tudo, tem quem não quer esperar, fica um pouco de pé, come alguma coisa e vai embora. (risos). Mas, geralmente, tem lugar sempre!
P/1 – E como são suas atividades lá? Como era no começo, o que a senhora fazia?
R – No começo, eu fazia tudo. Desde a massa, tudo passava nas minhas mãos, porque, no começo até a gente arrumar empregados ficávamos até 10, 11 horas da noite trabalhando porque era puxado mesmo. Depois, começamos a arrumar moças que estavam ajudando pelo menos pra massa, depois os recheios eu fazia, mas, depois arrumei alguém pra me ajudar porque era difícil. No começo, era pouquinho, pouca coisa, mas, quando começou a ficar com mais atividades, ficou mais difícil, aí, começou a colocar mais gente pra trabalhar. Mas, eu fico sempre em cima, não sai recheio nenhum sem ser provado. Ou eu ou a minha filha quando está lá. Tudo é supervisionado, agora. Geralmente, eu preparo a massa, aí, elas fazem, mas o preparo é meu. Elas não sabem preparar, quer dizer, não sabem não, eu não deixo que elas preparem. E não sabem mesmo.
P/1 – E tem um cantinho assim, da Casa Búlgara, que a senhora gosta mais?
R – Não especialmente. Eu gosto de todo lugar, mas, eu fico mais lá em cima no escritório fazendo as coisas, também fazendo os preparos das massas, que é perto e embaixo, no caixa, fico sentada e ajudo no caixa. Outro canto, quando às vezes tem um jogo de futebol, aí, eu sento na mesa para ver futebol! (risos). Mas é raramente. Televisão tem, mas só quando tem alguma coisa interessante, aí, tudo bem! Aí, posso sentar na mesinha e ver. Nada de especial. Mas estou lá todos os dias, até duas, duas e pouco, vendo tudo que se faz. E faço também!
P/1 – E como foram escolhidos os enfeites da loja? O que tem lá de coisa que represente...
R – De enfeite? Eu falei pra você, o quadro, que foi deste nosso amigo, outros enfeites especiais não têm. Tem um lugar lá que a gente colocou uma toalha típica búlgara, uns bonecos, uma boneca e só. Outros enfeites não têm lá. De vez em quando, quando chegam algumas flores, alguma coisa, a gente põe lá em frente perto do caixa, onde tem lugar, agora tem um arranjo lá e só. Outros enfeites não têm. Tem a televisão, tem as lâmpadas e tem muitos quadros, que toda vez que sai reportagem, como a Veja quando nós recebemos os prêmios, estão todos lá, os quadros na parede. Esses são os enfeites que tem lá. E o pessoal de vez em quando vai lendo lá. Tudo o que está escrito, matérias: é Jornal da Tarde, é o Estado, é a Veja, todos eles escrevem várias vezes, então, tem vários deles. Se você vier vai ver! A parede é cheia lá disto aí e tem mais quadros que não dá, não estão nem estão expostos! (risos), fora isso, que todo ano tem os indicados da Veja, tem três, quatro anos que nem coloco isso, porque não tem lugar onde por!
P/1 – E como a senhora se sentiu quando recebeu o primeiro?
R – Ah, eu gostei! Agora eles fazem com mais de mil pessoas, mas, no começo, eles vinham só com uma medalha e colocaram a na Veja mesmo. Eu recebi três anos em seguida estas medalhas e depois a gente colocou lá na frente às três medalhas que recebemos da Veja, era assim. Depois, eles mudaram, aí tem a de 2009, quando eu recebi outra vez e, aí, está exposto já. Eles fazem sempre propaganda. Semana passada, se não me engano também saiu na Veja. Eu recebo toda semana, há anos já. Toda vez, sempre sai uma reportagem. Ou são eles, ou é o Estado, ou é a Folha, sempre alguém. Acham que é o melhor salgado. Eles simplesmente gostam do salgado.
P/1 – E como a senhora se sente dando todas essas entrevistas, ou quando é chamada?
R – Me chateia, às vezes. Não é sempre que tenho tempo de responder, mas eu tento ser o mais amável pra poder responder. Você não gosta se te fazem um elogio? Uma vez uma mulher me falou: “eu sei que você recebe muito elogio, mas eu quero falar mesmo que eu gostei demais!”, então, é muito bom! Eu gosto de receber. Todo elogio a mais é bom! Quer dizer que está tudo bem que, aí, não muda. A qualidade o pessoal sabe, desde o dia que abriu até hoje, não mudou nada. E não vai mudar! Muitas vezes, os fregueses perguntam: “e aí, como vai ser depois, se você não vai estar aqui?”, “Está a minha filha! Ela sabe direitinho tudo! Se não sou eu, ela vai fazer. Vai ser igualzinho!”, porque o dia que eu não estou aí, ela supervisiona lá!
P/1 – E como foi esse processo de ensinamento da sua filha? Como que foi acompanhar...?
R – Olha, ela também sempre estava na cozinha e sempre olhava o que eu faço e o que eu não faço. Ela sabe mais do que eu agora! Os jovens hoje em dia sabem mais, e para ela, não foi nada, porque sempre viu como se faz, e ela sabe fazer tudo. NO dia que precisar ela vai fazer. Hoje em dia eu ainda faço.
P/1 – A senhora falou da qualidade, de ser sempre a mesma desde que abriu a loja...
R – Sempre! Sempre! Eu tenho os mesmos fornecedores todo o tempo! Não mudo de fornecedores. Toda vez alguém liga, o dia inteiro ligam lá: “quer isso, querem aquilo”: “não quero nada!” Eu tenho os meus fornecedores e trabalho sempre com linha de primeira. Sempre trabalhamos desde o começo. Então, eu fico nisto aí: linha de primeira. Sempre são os mesmos fornecedores. Acabou! Quando aumenta o preço, é outra coisa. Agora, qualidade não pode baixar de jeito nenhum. Não deixo. Isso é regra número um na minha casa! Desde o começo foi assim e vai ficar assim! O pessoal já fala: “aqui, a gente entra de olhos fechados!”, porque sabem! Qualquer criança, neném, pode comer lá, porque todo dia é fresquinho. Não tem isso de deixar de um dia para o outro. Não existe. O que sobra, vai embora. Acabou! Alguém come, acabou! Tudo é fresquinho! Começa o dia de manhã, pode atrasar um pouquinho, até que o forno esquente, até que asse, mas sai tudo fresquinho na hora! E é por isso que o pessoal tem certeza que não vai ter problema nenhum. Nunca teve também nenhuma reclamação.
P/1 – E também com todos esses anos lá no Bom Retiro, como eram os vizinhos de loja, quem eram?
R – Gente muito boa. No começo, tinha ao nosso lado um coreano mesmo, mas gente muito boa. Até hoje, os filhos deles vem sempre, compram toda vez. Do outro lado, também tinha, mas, agora, os vizinhos viraram outra coisa. Antes, era uma coisa e agora são outras coisas que estão vendendo. Mesmo assim, a vizinhança não mudou, são outras pessoas mas a gente sempre tem boas relações com eles. Agora, perto de mim, vendem tecidos, tudo bem! Eles vêm sempre, tomam café lá. Sempre tivemos relações boas com os vizinhos, nunca tivemos problemas.
P/1 – A gente falou bastante da loja e quem é que vai lá pra comprar? Quem é o cliente?
R – Todo mundo! Tem judeus, tem muitos brasileiros que vem comer uma vez e já voltam outra vez, tem coreanos que comem também e muitos gostam. No começo, a gente pensava que os coreanos não iam gostar. Mas, então, vem gente de todo tipo, vem de fora também e levam para fora. Sábado agora, levaram para o Rio de Janeiro. Fizeram o pedido e levam assado para o Rio de Janeiro, vieram aqui, gostaram e levam para viagem. De todo lugar vem. Do Recife, de onde você quiser, Brasília, de todo lugar. Quando eles vêm a São Paulo fazer compram, eles passam lá na loja.
P/1 – A senhora vem de uma família e comerciantes. Qual é a lição ou o que o comércio ensinou pra senhora?
R – O que ensinou? Primeira coisa é que a gente tem que ser sempre muito amável. Você não pode ficar com cara feia, tem que estar sempre bem disposto. E segundo, a honestidade! Tem que ser honesto. Se você é honesto, tudo anda direito. Se você não é honesto, não anda nada. Muitas vezes, chega o pessoal e dá 50 reais e esquece o troco, eu corro atrás. “Olha, você esqueceu.”, “Ahhh...”. Não tem isto aí, tem que ser honesto! Se você é honesto, dá tudo certo. Tem que ficar bem com todo mundo, não pode... Se a pessoa chega e quer conversar, você tem que escutar, tem que dar atenção. Se não der atenção para o freguês, ele não volta. A gente dá atenção e as minhas balconistas também aprenderam isso e elas são ótimas com isso aí, sabem muito bem falar com o freguês direitinho. Eu sempre ensinei a elas e agora elas já sabem. Já trabalham lá há muito tempo também. E elas sabem se dirigir bem aos fregueses. Todo mundo sai satisfeito, sempre é bem atendido e sempre saem satisfeitos.
P/2 – E a senhora acompanhou essa transformação no bairro, dos judeus e depois vieram os coreanos. Os produtos que os coreanos vendem hoje são mais ou menos iguais aos que os judeus vendiam antes? Houve uma mudança nas lojas, como que é?
R – Que produtos você quer dizer? Eles também são comerciantes e eles trouxeram as coisas que eles gostam e que eles comem. Eles têm as lojas deles também. Às vezes, se eu quero alguma coisa, tem tudo aí, eu compro as coisas deles também. Agora, eles são muito da moda também, né? Eles transformaram mesmo o bairro e fizeram um bom serviço. Isso que eles fizeram, fizeram muito bem! Fizeram boas lojas, elas estavam bem decaídas. Eu estou te falando, quando eles foram chegando, cada um que pegava fazia melhor que o outro. Então, hoje em dia, você pode ver as lojas tem vitrines bonitas, arrumadas, tudo. Eles são caprichosos nisto aí. Eu acho que mudou bastante o bairro. E tem aquelas comidas que eles trouxeram, tem bastante restaurantes de coreanos e funcionam bastante lá. Tem padarias deles, tem restaurantes... A maioria é de coreanos lá no Bom Retiro. Como antigamente, no começo, eu não sei, não estava aqui, mas falavam que primeiros eram os italianos. Os italianos saíram e vieram os judeus, os judeus saíram e vieram os coreanos. Agora, acho que os coreanos vão sair e vão chegar esses que são lá do Peru, da Bolívia... Tem muito boliviano chegando lá agora. Acho que esses vão conquistar devagar, devagar. Toda vez, muda o bairro, mas, por enquanto, está coreano! Até onde eu vejo, tem lojas, a maioria, que só tem escrito em coreano, não escrevem nem em Português, o que eu acho errado. Porque eu acho que, se você vai num país, você tem que saber a língua, tem que saber as regras que são deste país, não é só falar coreano e pensar que está na Coréia. Não pode, tem que saber! Tem uns que sabem falar e está tudo bem, tem outros que não sabem nem falar e eu não sei como eles se viram com tudo, porque, como vão saber as novidades, como tudo. Mas acho que é porque eles também têm os jornais deles, vários tipos de jornais, todo dia você vê que eles colocam nas portas deles os jornais. Eles não lêem os jornais daqui. Eu acho errado. Não sei se você acha ou não, mas eu acho errado isso aí. Sempre achei. Se você está num país, tem que aprender a língua. Primeira coisa! Se não, como vai se comunicar?
P/1 – E com todo esse seu aprendizado no comércio, de ter também a ascendência do pai que era comerciante, como que a senhora se sente com a sua filha indo pra esse caminho também?
R – Ela sempre ajudou também no comércio, mesmo quando ainda era moça, sempre ajudou e sempre teve também, como se fala, um dom para o comércio, ela sim! Agora, os meninos... Um tem mais ou menos também, o outro... Ah, eles pensam diferente. Ela tem a cabeça mais como a minha. Ela sempre foi pronta para o comércio. Desde pequena. Então, para ela nada é novidade no comércio. Para ela é fácil.
P/1 – E qual é a parte mais difícil no cotidiano do comércio?
R – Olha, às vezes, o mais difícil é você ter, como se fala, gente com quem você trabalha e você se entende com eles. Que eles sejam responsáveis como você. Porque se você não tiver essa gente aí, não anda o serviço. E aqui, às vezes, é um pouquinho difícil, mas, se você acha a gente certa, tem que ficar com eles e estar com eles. Eu acho assim, por isso, que eu tenho gente há anos lá. E eu estou satisfeita e eles estão satisfeitos. Agora, mudar o todo tempo, não dá certo. Dá errado depois. Isso é uma coisa que é muito importante. E tem gente aqui que sabe trabalhar, só tem que dar oportunidades para eles, que sabem trabalhar. Uns falam que não sabem, mas, sabem trabalhar! Tem gente que gosta de trabalhar. Falam que brasileiro não gosta de trabalhar. Não é verdade! Eles gostam de trabalhar, só tem que saber dar para eles trabalharem no que eles gostam. Eu acho assim. Agora, não é difícil, não. É um serviço que anda direitinho, todo mundo sabe o que tem que fazer, de manhã até à tarde, tudo sossegado! Às vezes, dá alguma coisa... Se alguém não veio, dá errado, aí, já muda, mas é por isso que a gente está aí, para poder apoiar quando alguém falta, alguma coisa e para poder arrumar. Isso é uma função que tem que ter. A minha e a dela.
P/1 – E quando sobra um tempinho, o que a senhora gosta de fazer?
R – Olha, a tarde geralmente, eu estou em casa. Não tem muito o que fazer, dá uma olhada em alguma coisa, se tem que consertar alguma coisa, que pregar algum botão, fazer alguma coisa, são coisas que a gente tem que fazer. Aí, depois liga a televisão e vejo a novela e, devargazinho, o tempo acabou! Aí, foi! Isso que eu faço, não tem mais. Às vezes, se chega alguém, tem visita, alguma coisa... É isso!
P/1 – E quando tem visita, o que a senhora oferece?
R – Visita? Olha, geralmente, um chocolate, um café, nada de especial, porque como eu sou diabética e não como coisas doces, aí, já me impede. Se eu fico sabendo adiantada, tudo bem, a gente prepara, eu deixo alguma coisa pronta. Mas se chegam assim, de repente, a gente sempre acha alguma coisa, algum biscoitinho, alguma coisinha, sempre tem alguma coisinha para por.
P/1 – O que a senhora gosta de fazer na cozinha?
R – Cozinhar? Bom, tem os pratos búlgaros que a gente faz de vez em quando, quando eu estou com a minha secretária do lar, às vezes, ela fala: “ah, dona Lina, quando vai fazer isso, quando vai fazer aquilo?”, aí, eu me ponho a fazer alguma coisinha. Antigamente, quando estava com os filhos, fazia muita coisa, agora, não tem ninguém, só para mim e para ela... Mas, de vez em quando, ela pede e aí, eu faço e já levo pra minha filha, porque só eu sozinha e ela... Só pra duas comer, fica difícil. E de vez em quando, faço algum prato Búlgaro e ela gosta.
P/1 – E o que a senhora faz?
R – Às vezes, são vários legumes junto com carne e depois vai no forno. Isso se chama guivech. É um prato Búlgaro. Aí, depois disso faço repolho recheado que eles gostam, várias coisas assim que são pratos típicos e que brasileiro gosta também! Ela adora essas coisas! Feijão branco... Várias coisas, mas, raramente, só quando ela de repente fala: “ah, vai fazer isso?”, aí, eu faço!
P/1 – E a senhora gosta de sair pra fazer compras?
R – Olha, antigamente eu gostava muito de ir ao shopping, agora, hoje em dia, com essas pernas que andam um pouquinho devagar... Mas, gosto de ir ao shopping. É meio difícil, sabe, pra locomover, mas, de vez em quando, eu vou. Ainda mais agora que está chegando o dia das Crianças, logo os meus filhos, as crianças, com certeza vão me carregar para o shopping para comprar presentes para eles, aí, anda, anda e anda sem fim! Mas eu gosto, ainda mais quando é assim, para comprar algum presente, tudo bem! Mas, fazer compras, especialmente, andar muito, já não é comigo, mas, gosto. Gosto de cinema, gosto de teatro, quando tem alguma oportunidade, eu vou. Quando me compram algum ingresso: “você vai?”, “Vou, com prazer!”. Gosto de ir.
P/1 – A senhora falou dos seus três filhos, eu queria então que a senhora falasse os nomes deles pra gente deixar aqui registrado.
R – Ela é a Shoshana que tem um marido e dois filhos, que são os meus netos. Quer os nomes? Eu vou te dar, não tem problema! Ela se chama Shoshama, o marido dela é Yoda, o filho maior se chama Nir, que é chef de cozinha também, ele tem um restaurante e agora ele é o chef lá, e tem o Lior, que é o segundo dela, que é médico. Depois tem o meu outro filho que é o Moisés, é o do meio, ele não é casado e nem tem filhos, mora com uma moça, e o outro que é o caçula, é o Nissin, que tem a mulher dele que é a Cibele, e os filhos se chamam, Ariel e Tamara, com 15 e 11 anos. São os dois netos.
Toca de fita
P/1 – Conte-nos sobre a feira livre, que você costuma freqüentar como uma de suas atividades.
R – ... Era tão barato que eu estranhei também. Como pode ser tão barato fígado e tudo isso? Era de graça! Língua, mas de graça mesmo! E agora não, agora já é diferente. Eu sempre gostei da feira do Bom Retiro, aí, eu já me acostumei. Acontece que quando eu fui pra Higienópolis, você pode rir, mas, feira eu fazia aqui no Bom Retiro! Uma duas ou três vezes, eu tentei fazer lá em Higienópolis, mas não! Não deu! Porque tem as barracas que você já vai se acostumando e eu acostumei. Como o peixeiro, que é o mesmo, é onde comprava frango, era uma senhora lá, uns portugueses, depois, transferiram para um casal novo e, desde então, eles ficaram lá, sempre os mesmos. São todas pessoas que eu conheço desde que eu cheguei. Quer dizer, são quase 37 anos, vai fazer agora em novembro. Desde o começo, quer dizer, quando nós chegamos, nas duas semanas estávamos no hotel, depois disso logo entrei no apartamento, quer dizer, quase mais ou menos no fim de novembro, desde o fim de novembro de 74 que eu conheço essa feira. E desde o começo, as mesmas pessoas... Eu vou, todo mundo também já me conhece, e eu peço as coisas e sempre me deram do bom e do melhor. Se não é bom, ele me fala: “Hoje, não tem para você!” Eu não compro peixe em lugar nenhum, só lá. Barraca que é do Antônio. Podem me falar de outro que é muito melhor, não adianta, porque eu conheço e ele me conhece. Se não é para mim, ele fala, “não é fresco!”, não compro. Congelado nunca me deu, não posso me queixar. Frango a mesma coisa. Eu só passo e falo, “Silvia, eu quero isso”, e já vou embora. Os legumes, tudo é a mesma “gente”. Compro da mesma barraca, sempre! Eu gosto de ir à feira. E sempre fui, fazia a feira e era difícil carregar com o carrinho e levava para Higienópolis. Mas, sempre na mesma feira! Não deixei de frequentar a feira.
P/1 – O que tem nesse ambiente da feira que faz a senhora ir até lá?
R – É que são gente que eu conheço sempre! Sou bem atendida! Rápido! Não preciso percorrer toda a feira para perguntar preços. Só sei que onde eu compro, ele não vai me enganar. O preço é este e acabou! Eu vou cedo de manhã, porque o pessoal gosta de ir à tarde, quando já cai o preço, eu não. Eu vou cedo de manhã. Pode ser um pouquinho mais caro, mas é tudo o que sai no começo, fresquinho. Tem a pessoa também que me leva também há anos, sabe onde são e já leva lá. Por isso que eu gosto de ir a essa feira. Gosto mesmo! Toda quinta-feira tem feira e eu vou. Sempre. Toda quinta-feira de manhã, pode me ver na feira! (risos). Pode ser frio, pode ser o que quiser, eu vou!
P/1 – E como foi pra senhora, que imigrou para o Brasil, abriu a loja, os filhos, como foi a primeira viagem de volta para a Bulgária?
R – Bom, na verdade, na Bulgária, eu voltei a primeira vez quando eu ainda estava em Israel. De Israel, nós fomos para a Bulgária e isso foi no ano 60. Aí, á era tudo debaixo do Comunismo, era horrível. Não estava nada bom. Aí, voltei e não quis ir mais lá. E depois disso, quando eu vim aqui, aí, muitos anos depois disso. Nós fomos para lá, quando era? 80....
P/1 – Não é necessário precisar.
R – Depois, eu já fui várias vezes. Aí, depois já melhorou. E agora está muito bom lá. Esse ano estive lá. Fui lá visitar, mas, não fico muito tempo, uns 10, 15 dias no máximo. Está bom, chega! É só para matar a saudade e ver todo mundo de novo e pronto! Não mais que isso. Mas eu vou de vez em quando. Um ano sim e outro não. Em 2007, levei todo mundo, os filhos, todos pra conhecerem lá, eles não conheciam a Bulgária, gostaram, então, foi bom. Gostaram de lá também.
P/1 – E a senhora sente diferença da comida búlgara da Bulgária da que é feita aqui?
R – Não. Olha, eu vou te falar, na Bulgária já fazem diferente também, já são outros tipos de comidas que só os que são antigos como eu fazem as coisas em casa, agora, os restaurantes é totalmente diferente. Aqui a comida é ótima! Quem fala que não é bom? Os meus filhos adoram arroz e feijão (risos)! Desde que chegaram aqui, eles gostam disso. E qualquer lugar que vão, eles gostam de comer feijão e arroz, bife, pronto! Estão satisfeitos. Eles quase não comem as comidas que eu fazia antigamente. Agora a filha ainda gosta, o marido dela, porque são um pouquinho mais antigos. Ele se lembra da mãe dele, ela também, da mãe dela, então, tudo bem. Os filhos já são mais ou menos, raramente comem. Tem algumas coisas que eles gostam, às vezes, eles pedem e eu faço. Mas, não é muito.
P/1 – Qual é o seu maior sonho?
R – O meu maior sonho? Ver paz em Israel! Todo mundo ter paz, todos os meus filhos estarem bem, já está tudo bem. O maior sonho é isso aí. Deixar todo mundo bem. Os netos, os filhos, que estejam bem! É importante estar bem de saúde, estar bem com a vida! Acho que é a melhor coisa que pode ser, eu sonhar! Não quero outra coisa. Pela minha idade já não tem mais o que sonhar! Só isso, esperar que seja tudo bem para eles. Que seja um mundo melhor, porque, do jeito que está andado, “rhum”, todo dia mais poluição e mais aquilo... Tomara que arrumem este mundo! Que tenha paz e seja bom para todo mundo, porque, os jovens é que vão sofrer as consequências de tudo que estão fazendo. Nós já vivemos o nosso tempo, já foi, já era, mas os jovens, hoje em dia, sofrem – acho – com tudo isso: derrubando árvores, fazem isso, fazem aquilo, fazem experiências, não sei o que, manda lá no espaço e depois volta tudo de novo pra cá! É!
P/1 – A senhora gostaria de deixar registrada alguma coisa que a gente não tenha perguntado?
R – Não sei filha! Não lembro nada de especial. Acho que não. É só isso.
P/1 – O que a senhora achou de ter contado um pouquinho da sua história pra gente, da sua trajetória no comércio?
R – Bom, eu gostei! Agora, eu não sei se vocês gostaram! Para mim foi bom, gostei, já querem saber da minha vida, tudo bem! (risos) Não tenho nada do que esconder! Não fiz nada de ruim, então, estou satisfeita com a vida, graças a Deus, estou com saúde, por enquanto, então, está tudo bem! Se vocês gostaram, eu gostei também!
P/1 – Está certo. Obrigada dona Lina!
R – De nada. Agora posso sair daqui?
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