Projeto Conte Sua História
Depoimento de Dorama Salomão Teixeira
Entrevistada por Carol Margiotte e Luiza Gallo
São Paulo, 18/10/2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH__HV703
Transcrito por Márcia Rocha de Almeida
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Dona Dora, boa tarde.
R – Boa tarde.
P/1 – É um prazer recebê-la aqui, viu?
R – Obrigada.
P/1 – Obrigada por ter vindo.
R – Obrigada.
P/1 – E para começar, qual é o nome completo da senhora?
R – Dorama Salomão Teixeira.
P/1 – E qual é o dia e o local de nascimento da senhora?
R – Pedregulho, dia 10, de 1924.
P/1 – Dona Dora, a senhora sabe por que os seus pais lhe deram esse nome - Dorama?
R – É porque os conterrâneos tinham o mesmo nome. A filha de um conterrâneo do meu pai, tinha esse nome. E eles eram compadres, muito amigos. Então meu pai colocou o nome de Dorama.
P/1 – E a senhora conheceu a Dorama?
R – Não. Conheci uma prima que também tem o nome de Dorama.
P/1 – E seus pais contaram para a senhora como foi o dia do seu nascimento?
R – Não, nunca contaram. Nunca.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Abrão Salomão e Maria Zacharias Curi Salomão.
P/1 – E a senhora conhece a história deles, como eles se conheceram?
R – O meu pai veio para o Brasil com dezoito anos. Mas ele era casado na terra dele. E aqui, ele trouxe a esposa e ela viveu só um ano aqui no Brasil. E quando ela foi ter o primeiro filho, ela faleceu. Porque naquela época era tudo mais difícil, não é? Ela faleceu.
P/1 – E de onde o seu pai é?
R – Ele era de Beirute.
P/1 – E ele contava histórias dele quando ele vivia lá ainda?
R – Ah, sim, sim. Ele gostava de contar história.
P/1 – A senhora lembra de alguma?
R – No momento não estou me lembrando.
P/1 – Mas ele contava como foi a vinda dele para cá? Por que ele veio para o Brasil?
R – Ele veio para o Brasil porque aqui a fama é que tinha dinheiro à vontade. Então ele deixou a esposa com... Não, o filho nasceu aqui. Deixou a esposa com os pais e veio trabalhar aqui em São Paulo.
P/1 – E ele contou como foi a vinda dele para cá? Como ele veio? Quem o recebeu?
R – Bom, quem o recebeu foram uns primos dele que eu não sei os nomes. Receberam em Santos. E aí ele veio para Franca, que tinha mais conhecidos lá que vieram antes dele. E ficou morando em Franca. E minha mãe veio também. Passada uma temporada, elas vieram - seis moças e uma casada - porque ia ter guerra. Os pais mandaram embora as filhas. E aí, o meu tio, que morava em Franca, avisou a mocidade árabe que iam chegar moças. Então, onde ele foi conhecer e pediu em casamento. E se casaram.
P/1 – A sua mãe veio de onde?
R – Da Arábia também.
PAUSA
P/1 – Dona Dora, a senhora estava contando para a gente como seus pais se conheceram.
R – É, vieram diversas moças e ficaram na casa de um tio, irmão da minha mãe, em Franca. Aí foi anunciado para os jovens árabes também. Ele pediu a mão de minha mãe e se casaram em Franca mesmo.
P/1 – E eles contam como foi o casamento lá em Franca?
R – Ah, sempre havia festa, porque eles gostavam de festa, os antigos, não é? Gostavam de festas. E foram diversos casamentos com as moças que estavam na casa do meu tio. Elas vieram... Não me lembro se foram vinte e três moças ou vinte e cinco. Porque lá ia ter guerra e os soldados abusam, não é? Então os pais mandaram as filhas embora.
P/1 – E a sua mãe contava como foi a vinda dela para o Brasil? O que ela deixou?
R – Ela deixou irmãos. Ela tinha dois irmãos: um era casado e morava aqui em Franca e o outro morava na terra dela. Aí, o que morava lá trouxe as moças e voltou para a terra, porque ele tinha os pais. Voltou para a terra. E a minha mãe... Aí anunciaram a chegada das moças e diversas se casaram. Entre elas, minha mãe.
P/1 – E quando seus pais se casaram, eles foram morar aonde?
R – Franca, moravam em Franca. Depois foram para Pedregulho e depois de muitos anos, foram para Rifaina - é uma cidade turística. E lá eles viveram até a ida deles.
P/1 – Conte um pouco sobre como era o seu pai, o que ele fazia de trabalho, como ele era?
R – Ele era sapateiro e seleiro. Seleiro é quem faz arreio. E o sapateio é que faz calçado.
P/1 – E como ele era de físico, personalidade?
R – Ele era muito simpático, era bem alto, uma bela altura. E muito educado, pessoa fina, educada.
P/1 – E a sua mãe?
R – Também minha mãe era muito educada. Ela ficava lendo os evangelhos da terra dela, não é? Aí ela contava as histórias para a gente. Um dia, ela estava contando a história de São Jorge. Nisso, veio um cavaleiro e ficou tentando entrar na casa. E o rabo do cavalo batia nas paredes. E a gente era criança - nós éramos duas meninas, uma da vizinha e eu, que era criança. Começamos a chorar e a gritar, foi embora, desapareceu.
P/1 – E a sua mãe?
R – A minha mãe era muito religiosa, então ela percebeu o que estava se passando. Aí ela falou: “Não, vocês podem ficar quietinhas que ele já vai embora”. E foi mesmo, foi embora. Olha, a minha mãe... Nossa Senhora da Aparecida, ela era apaixonada por Nossa Senhora. Apareceu para ela. Se você convivesse com os meus pais, você ia ficar encantada! Da cultura e tudo que eles sabiam.
P/1 – E que costume seus pais tinham em casa que lembrava a terra deles, de comida?
R – Ah, traziam toda a comida árabe. Lá só comia comida árabe, na casa do meus pais. Depois que ficamos adultos é que um queria uma coisa, o outro outra, e assim nós fomos. Porque éramos seis irmãos e cada um queria uma coisa, não é?
P/1 – Quais eram as comidas que a senhora se lembra da sua mãe fazendo?
R – O principal é o quibe. Carneiro, cabrito assado fazia muito. E quibe, mjadra, lentilha, arroz com macarrão fininho! Fazia. Chama... Ah, não lembro o nome agora.
P/1 – Você sabe fazer esses pratos?
R – Sei, faço tudo!
P/1 – Você aprendeu com sua mãe?
R – Aprendemos. Nós éramos duas irmãs e quatro filhos homens. E as mulheres aprenderam a cozinhar com a mãe.
P/1 – Dona Dora!
R – Fala, filha!
P/1 – A senhora falou que eram seis filhos, não é?
R – Irmãos.
P/1 – Fale para mim o nome deles, por ordem de nascimento. Se a senhora lembrar de todos.
R – A idade de todos?
P/1 – A idade não precisa, só o nome.
R – Jorge, Manis, Amim, Anice, José e Dora. Seis irmãos.
P/1 – A senhora era a caçula
R – Caçula.
P/1 – E como era ser caçula?
R – Ah, era maravilhoso! Porque não tinha quem não quisesse fazer o xodó da irmã. Era muito bom. Nossa convivência foi maravilhosa, maravilhosa.
P/1 – E como vocês se organizavam em casa, os seis irmãos?
R – A casa era muito grande. Tinha um quarto dos meninos, dos homens, e tinha o quarto das moças, das mulheres - que era eu com a minha irmã. A casa era muito grande, tinha dez cômodos a casa, dez cômodos. Era. E foi construída pelos meus pais, não é que comprou, não. Foi construída por eles. Éramos muito bem de família, muito bem.
P/1 – E por que seus pais pensaram numa casa tão grande?
R – Ah, porque eles recebiam muita visita. Naquela época, os conterrâneos iam visitar. Hoje em dia não tem mais isso, mas antigamente tinha.
P/1 – A senhora lembra de alguma visita especial que vocês receberam?
R – Nossa, recebemos demais, até o padre da seita deles, que era ortodoxo, foi... Ia em casa.
P/1 – E o que acontecia quando tinha essas visitas? Como vocês se preparavam para receber essas visitas?
R – Ah, tinha uma fartura enorme. E aí vinham os amigos visitar, vinha o padre, que vinha de Ribeirão Preto para Pedregulho, vinham muitas visitas. Então, tinha que ter tudo, não é? Para servir. Porque, geralmente, vinham e almoçavam, jantavam, dormiam. E eram muito bem recebidos.
P/1 – Dona Dora, como era a questão da língua? Porque seus pais não eram brasileiros!
R – Não. Eles aprenderam Português, a falar Português. E, conosco, eles falavam em árabe. Nós, em casa, falávamos em árabe. Tanto que nós compreendemos... Eu, pelo menos, não sei falar, mas os meus irmãos sabem. Sabiam! Eles sabiam.
P/1 – E como fazia quando não estavam em casa? Vocês falavam em árabe também fora de casa?
R – Não, era Português mesmo.
P/1 – E como a senhora aprendeu o Português?
R – Com as pessoas que frequentavam a casa. Meu pai era comerciante e tinha muita gente lá, no armazém dele.
P/1 – E a senhora se lembra desse começo? Como foi aprender o Português?
R – Não, o começo, começo, não me lembro. Porque eu era bem criança, não é? Não me lembro.
P/1 – Dona Dora, e seus avós, a senhora chegou a conhecer?
R – Não, eles ficaram lá na terra deles. Aqui só vieram as filhas e um filho que já tinha vindo e era casado. O que as trouxe da terra voltou, voltou para a terra. Porque ele era casado e cuidava dos pais.
P/1 – E seus pais mantinham contato com seus avós?
R – Não, não, só correspondência.
P/1 – E a senhora se lembra desses momentos de chegar correspondência em casa?
R – Ah, era uma alegria! O dia que chegava era uma alegria. Porque de lá eles davam notícias dos pais do meu pai e dos pais da minha mãe; vinham notícias dos dois.
P/1 – E como seus pais faziam? Tinha algum momento especial para ler a carta? Como era?
R – Ah, chegou já abre. Chegou a carta, reunia todos na sala e minha mãe lia em árabe. É. Ou ela ou meu pai, um dos dois que lia em árabe.
P/1 – Dona Dora, falando da infância da senhora, de que brincadeiras a senhora gostava?
R – A gente brincava mais de roda, de roda. Você sabe o que é roda? Então... A gente dá as mãos, as moças, os meninos, tudo - brincava reunidos mulher e homem, davam as mãos e cantavam, recitavam! Era assim. Ah, mas quantos anos, heim? Tem bem anos. Já não se vê essas coisas.
P/1 – Tem alguma música que a senhora se lembra, da roda?
R – Não, já não me lembro mais.
P/2 – Era na rua ou no quintal?
R – Na rua, tinha as luzes na rua e a gente ficava debaixo de um poste e brincava cantando, recitando, era muito boa a nossa infância.
P/1 – Como era o bairro em que a senhora morava em Pedregulho?
R – Olha, o nome do bairro eu não sei e nem o nome da rua, porque já faz muitos anos que eu saí de lá.
P/1 – Mas como era? Tinha vizinhos? Como era a rua?
R – Ah, sim, sim, tínhamos. Os vizinhos frequentavam a minha casa - a casa dos meus pais - porque eles contavam histórias para as vizinhas e elas adoravam! Adoravam! Tinha uma senhora, que era filha de italianos, e o marido era... Não é judeu... Como que fala? Esqueci agora. Só sei que não acreditava em Deus. Então ela ia lá para a minha mãe contar as histórias para ela, porque ele não deixava nem frequentar a igreja, e os pais dela eram católicos. Ele não deixava nem ela frequentar a igreja. Então ela ia em casa para a minha mãe contar.
P/1 – E como era esse costume religioso na sua casa, dona Dora?
R – Ainda estão guardados os evangelhos escritos em árabe. Ou minha mãe ou meu pai liam e nos deixavam sentados para ouvir. Na minha casa nunca foi erguida a mão para bater num filho, era só com as histórias da Bíblia que éramos educados. Com as histórias da Bíblia. Assim que meus pais... Éramos seis irmãos e todos... O que um falava o outro aceitava, era uma obediência tremenda.
P/1 – E em que momento seus pais liam essas histórias para vocês?
R – À noite, à noite.
P/1 – E como era esse momento?
R – Nós sentávamos e eles sentavam nas cadeiras deles e um lendo para nós ouvirmos. E a gente compreendia. O que não compreendia... Agora não compreendo nada, porque já tem sessenta e tantos anos que eu estou fora, não compreendo mais nada.
P/1 – E tem alguma que a senhora gostava de ouvir?
R – Ah, eu adorava todas que eles contassem. Para nós era maravilhoso ouvi-los contar as histórias.
P/1 – E dentro de casa tinha alguma divisão de tarefas entre vocês? Entre os filhos?
R – Ah sim, os homens trabalhavam com o pai e as filhas mulheres, que éramos duas, com a mãe. Então, aprendíamos a fazer o que tinha que fazer dentro de casa. E assim nós vivemos.
P/1 – O que vocês tinham que fazer dentro de casa, dona Dora?
R – Cozinhar, lavar, lavar roupa, tudo que era dever da mulher nós aprendemos.
P/1 – Aonde vocês lavavam roupa?
R – Era água encanada no quintal. Tinha a varanda, a gente ficava na varanda e lavava roupa no tanque. Tinha tanque. Nós tivemos conforto. Então tínhamos tudo certo.
P/1 – Alguma vez a senhora acompanhou o seu pai no trabalho?
R – Ah, eu vivia lá perto deles, não é? Os irmãos trabalhavam com ele, faziam tudo que ele ensinava - calçado, arreio de cavalo - então a gente aprendia a fazer a linha para eles costurarem, era eu quem fazia as linhas. Era pequena mas ia mudando prego para colocar um barbante para fazer a linha.
P/1 – Como que fazia a linha?
R – Fazia com cera de abelha, com a cera de abelha. Você colocava lá o tamanho que eles pediam e você ia passando a cera e elas iam ficando coladas uma na outra.
P/1 – Mas de onde vinha a cera?
R – A cera? Tinha muita abelha por lá, então quando tirava o favo, o meu pai derretia, deixava ele derreter e fazia as bolas de cera.
P/1 – E isso servia para quê, dona Dora?
R – Para costurar sapato. Porque tem calçado que é costurado a mão! Não é só na máquina, é à mão. Então fazia para costurar o calçado, o arreio.
P/1 – A senhora lembra de algum calçado que a senhora tenha feito junto com seu pai?
R – Não, eu nunca fiz. Eu só via, mas fazer não. Ele trabalhava com os filhos, eram quatro filhos homens, mas um casou e separou da casa. Agora, os que trabalhavam com ele eram solteiros e morávamos todos juntos.
P/1 – A senhora quer tomar um golinho de água?
R – Não, obrigada!
P/1 – Olha que sua neta vai ficar brava comigo, heim?
R – Não, depois eu tomo, agora não.
P/1 – Então está bom. E o seu pai fazia sapatos para vocês?
R – Ah, sim!
P/1 – Como que era?
R – Ah, eu tenho até saudades dos calçados, dos chinelos, tudo de pelica que eles faziam, era muito bem feito. Até um dia desses passou uma sandália vermelha na televisão e eu disse: “Olha minha sandália ali!”, (risos) falei para os meus filhos: “Olha minha sandália”. É.
P/1 – Em que momento vocês ganhavam sapato novo?
R – Ah, ele via que já não estava bom e fazia um logo. E os irmãos também sabiam fazer.
P/1 – E teve algum em especial que mais a senhora gostou?
R – Foi um branquinho, uma sandália branca, esse não foi meu pai, foi meu irmão quem fez, mas eu adorava a sandália. Eles vinham fazer compras em Ribeirão Preto e de lá que eles levavam o material, não é? E aí ele levou, ele disse: “Olha, eu vi esse pedaço de cromo e falei: ‘Esse vou levar para fazer para a Dora’ - uma sandália” - e fez! Muito bonita, o saltinho assim, muito bem feito, muito. Eu adorava aquela sandália.
P/2 – Em que ocasião a senhora usava aquela sandália? Ia numa festa, no dia a dia!
R – Ah, em festas, a gente ia só em casamento. Porque meus pais, se eles fossem, a gente ia. Mas se eles não fossem, não precisava nem falar que foi convidado ou que não foi, que não ia mesmo. Só com eles, só com os pais.
P/1 – E essa sandália de que a senhora gostou, essa branca, a senhora se lembra da senhora usando-a em algum momento especial?
R – A gente ia à missa. Para ir à missa ia bem arrumada naquela época, hoje em dia vai do jeito que está e é isso mesmo. É. Para ir à missa.
P/1 – Que igreja era?
R – São Sebastião.
P/1 – E como era esse momento? Como se arrumavam para ir à missa? Quem ia?
R – Ah, meu pai era congregado do Sagrado Coração de Jesus, ele ia e nos levava.
P/1 – E vocês tinham algum ritual antes de ir para a igreja? Alguma coisa que não pudesse ser feita? Ou que tinha que ser feita?
R – Não, não. Ia em jejum e pronto, acabou. Era só assim.
P/1 – Vamos tomar uma água?
R – ...
P/1 – Dona Dora, ainda falando na infância da senhora, a senhora tinha brinquedos?
R – Ah, sim.
P/1 – Quais eram os brinquedos que a senhora tinha?
R – Eu tinha bonecas. Minha tia, que morava aqui em São Paulo, ela ia e levava as bonecas de um comércio aqui em São Paulo.
P/1 – Já era boneca feita.
R – Ah, sim.
P/1 – Que mais de brinquedo que a senhora tinha?
R – Jogávamos bola entre os meninos e as meninas, jogávamos bola.
P/1 – E quem ganhava?
R – Ah, geralmente eram os meninos! (risos) É, o homem sempre ganha, não é?
P/1 – Mas tinha nome o time de vocês?
R – Não, nome não. Chegava à noite, a gente não tinha o que fazer, um chamava: “Oh, fulano”. O fulano chamava o sicrano e aí ia reunir e brincávamos.
P/1 – Nunca deu confusão?
R – Não! As amizades eram honestas mesmo.
P/1 – E dona Dora, quando a senhora era criança, a senhora queria ser alguma coisa quando crescesse?
R – Eu queria ser enfermeira, queria ser enfermeira. Mas aí a gente tinha comércio, tinha que trabalhar. E aí acabaram-se os desejos e fomos trabalhando.
P/1 – E a senhora chegou a estudar?
R – Só até a oitava série. Meu pai não tolerava que não soubesse ler! Ele era bravo, tinha que estudar. Ele falava: “Quem não sabe ler é um bobo!”. Ele falava desse jeito! “Se torna bobo, não sabe ler! Onde já se viu isso? Tem que aprender”. E ele chamava a atenção mesmo e a gente estudava.
P/1 – E a senhora se lembra do primeiro dia de aula como foi?
R – Ah, eu chorei muito. Que não tinha costume de sair de casa, chorei tanto! Mas os professores eram bons e eu tinha uma coleguinha que íamos juntos, íamos as duas e voltávamos as duas.
P/1 – Como era o caminho até a escola?
R – Nossa, era uma rua comprida, comprida, oh, ia quase na saída da cidade, era o Grupo Escolar.
P/1 – Tinha um nome esse Grupo Escolar?
R – Elpídio.
P/1 – E como era lá quando vocês chegavam para ter aula?
R – Ah, tinha as classes, não é? O seu professor e tinha escada. E ele descia e ficava ali, a meninada vinha e já formava a fila, e entrávamos.
P/1 – E a senhora lembra de algum professor ou professora que tenha sido marcante?
R – Ah, foi uma de Ribeirão. Ela era lá da cidade, mas morava em Ribeirão Preto - Isabel Cavalcanti.
P/1 – E por que a senhora lembra dela? Por que ela foi marcante?
R – Ah, porque ela me adorava! (risos) Não é que estou me elogiando não, ela me pediu para os meus pais. Eles falaram: “Não! Nossa filha é nossa filha, tem lugar para ela”. Ela queria me ensinar a tocar violão, não deixaram também. Aí eu perdi o ano também, porque tudo que ela queria eles não deixavam! E eu adorava essa professora.
P/1 – E como foi deixar de ir para a escola? Como foi essa decisão?
R – Aí a oitava série, eles falam diploma, não é? Então... Eu recebi o diploma e não nós não podíamos... Meus pais não quiseram que nenhum saísse de casa, estudasse em casa. Então a gente pegava jornal, lia jornal, e assim fomos. Desde criança eu leio jornal. Desde criança e continuo! Continuo! Chega de manhã, o jornal já chegou em casa. Seis horas já estão... O jornal já está na minha porta, porque sabem que eu gosto de ler. O rapaz que vende o jornal para você põe o seu nome! Então eles já vendiam e já sabiam. Meus filhos falavam: “Olha, minha mãe gosta de ler cedo, mandem mais cedo”. Seis horas o jornal já está na porta. Aí eu vou ler jornal, depois é que vou tomar meu cafezinho, comer meu pãozinho, o que tiver. Aí vou esperar o almoço.
P/1 – E dona Dora, quando a senhora parou de estudar, na oitava série, a senhora já estava quase mocinha, não é?
R – Estava com dez anos.
P/1 – E sua mãe conversava com a senhora e sua irmã sobre o que ia acontecer, sobre as transformações que vocês iam ter no corpo?
R – Não, isso é a natureza. Ela falava: “É a natureza que vai explicar tudo para vocês”.
P/1 – E como foi?
R – Ah, um dia estava na escola e aconteceu.
P/1 – E aí?
R – Passei uma vergonha tremenda, que não estava preparada, nem sabia!
P/1 – E o que a senhora sentiu nessa hora que não sabia o que ia acontecer, o que a senhora sentiu?
R – Não senti nada, quando vi já estava. Eu pensei que tinha feito xixi, mas eu olhei e não era. E aí era professor, mais vergonha eu passei.
P/1 – E o professor o que fez?
R – Não, só falou: “Convém você ir para casa”. E eu fui embora. Ele foi muito educado, muito educado.
P/1 – E quando a senhora chegou na sua casa assim, o que sua mãe falou?
R – Falou: “Ah, minha filha, você já é mocinha.”
P/1 – E aí quando acontecia isso todo mês...
R – Não, aí já ia preparada!
P/1 – E qual era o preparo que a senhora tinha que ter naquela época?
R – Naquela época não era fralda, nada disso, eram panos, você enchia a roupa de panos.
P/1 – E tinha que deixar de fazer alguma coisa específica?
R – Não, não, continuava no mesmo.
P/1 – E nessa época de mocinha, a senhora ia se divertir em algum lugar?
R – Não, só quando éramos convidados é que a gente ia, não é? Não íamos assim.
P/1 – E o que tinha para se divertir nessa época?
R – Ah, a gente brincava de casinha, brincava de roda, de contar história, passa anel!
P/1 – Também quando começou a ficar jovem se divertia assim?
R – Ah, sim, sim.
P/1 – E nessa época começou já a ter algum primeiro namorado? Alguma paquera?
R – Eu comecei a namorar muito cedo, nove anos. É, na minha cidade tinha um time de futebol que vinha de outro assim, distante, para jogar lá, porque eles jogavam muito bem! Jogavam muito bem. Então vinham os moços de fora e... Vamos namorar, não é? É.
P/1 – Mas como foi isso dona Dora? (risos)
R – Ah, acontece! Não é? Acontece.
P/1 – Mas quem eram eles?
R – Ah, eram jogadores também. Eu namorei o filho do Oswaldo Aranha, não sei se vocês já ouviram falar do Oswaldo Aranha. Uberaba foi jogar na minha cidade e o filho do Oswaldo Aranha estava em Uberaba e foi acompanhando o time. E eu namorei com ele.
P/1 – E o que era o namoro?
R – Era flerte, nada mais! Não tinha beijo, não tinha mão, não tinha nada disso. Não podia pegar na mão.
P/1 – E como que fazia? A senhora era muito novinha, com nove anos! (risos)
R – Nove anos, eu namorei muito cedo, muito cedo!
P/1 – E a senhora se lembra dessa primeira vez, com nove anos?
R – Era só flerte, não tenho outra... Naquela época, não podia nem ficar perto do moço. Na minha época, não podia. Nem ficar perto.
P/1 – E o que os seus pais falavam?
R – Eles ensinavam o que é bom e o que é ruim, não é?
P/1 – E o que era bom e o que era ruim?
R – (risos) Não deixar o moço te beijar, ficar pegando em você, isso não consentir. Era muito boa a vida, muito boa.
P/1 – E quem foi o primeiro namorado que a senhora teve que já podia fazer essas coisas? Podia beijar...
R – Não, não, não... O primeiro que eu beijei foi meu marido. Nada mais. Não podia. Se ele ia em minha casa, ficava sentado lá na sala junto, não tinha liberdade. Hoje em dia há liberdade em tudo, não é? Então. Naquela época não tinha.
P/1 – E como a senhora conheceu o seu marido?
R – Ele era de outra cidade, era açougueiro. Aí ele comprou o açougue lá da cidade e mudou para lá. Aí ficamos nos conhecendo - em cinco meses nos conhecemos, namoramos, ficamos noivos e casamos! Em cinco meses. Vivemos trinta anos, nunca tivemos uma discussão, um palavrório, nada! Era aquela amizade até o dia da morte.
P/1 – Qual o nome dele?
R – José Teixeira.
P/1 – A senhora se lembra da primeira vez que viu o José?
R – Ah, sim.
P/1 – Conta para a gente!
R – (risos) De frente à minha casa tinha um Grupo Escolar e ele estava passando na calçada e olhou para o lado da minha casa, mas eu não vi direito porque tinha um pé de tamarindo e uma laranjeira cobria para você ver lá fora direitinho. Mas depois ele continuou passando por ali, foi morar numa casa na esquina, alugou a casa e morava lá. Aí eu e uma outra amiga estávamos juntas e ela falou: “Olha, o José está ali. Vamos ver quem que ele vai namorar?” Falei: “Vamos”. E nós fomos. Ele procurou a mim, então continuamos namorando e em cinco meses nos casamos.
P/2 – A senhora tinha quantos anos?
R – Tinha vinte e cinco anos, ia completar vinte e cinco.
P/2 – E ele também?
R – Não, ele tinha trinta e cinco. Ele era bem mais velho, dez anos mais velho. E vivemos até... Quando foi? Em 1988 que ele morreu. Morreu aqui mesmo, em São Paulo.
P/1 – E como foi apresentá-lo para a família?
R – Ah, ele logo arranjou amizade com meus irmãos e eu não apresentei. Aí ele falou: “Olha, eu estou namorando a irmã de vocês, heim?” E ficamos.
P/1 – E como a senhora sabia que estava namorando?
R – O olhar! De olhar. Porque, naquela época, não tinha... Aí, quando ficamos noivos é que ele passou a frequentar a casa.
P/1 – E como ele pediu para ficar noivo com a senhora?
R – Foi, fez o pedido, eu já não tinha o pai mais, só tinha minha mãe. E minha mãe estava passeando na casa do meu irmão, que morava aqui em Cruzeiro. E, então, ele falou com o irmão com o qual a gente morava junto, e ficamos namorando.
P/1 – Dona Dora, antes de continuar a história do casamento, se a senhora se sentir confortável, como seu pai faleceu?
R – Ah, ele teve reumatismo na perna, e já não andava mais, não podia andar. Aí ele morreu em casa; apesar do médico estar lá, mas morreu em casa.
P/1 – E como foi depois na família?
R – Ah, ficamos muito tristes, não é? Chorávamos todo dia, mas ele não ia voltar! Aí... Eu tinha muita amizade com os padres e eles iam muito em casa. Aí eles falaram: “Olha, a melhor coisa é rezar. Reza, não chora não”. Aí passamos a rezar e até que o tempo passou. Aí, quando fez cinco anos que ele tinha falecido, eu namorei e me casei.
P/1 – Mas com a ausência do seu pai alguém assumiu...
R – Ah, sim, o meu irmão mais velho assumiu.
P/1 – Que papel ele teve que ter dali em diante?
R – Ah, abastecia a casa de tudo, não deixava faltar nada para a família. Morávamos todos juntos, e assim convivemos.
P/1 – E a sua mãe, como ficou?
R – Ah, ela ficou muito aborrecida muito tempo, não é? Até que ela... Eu esqueci, quando ela casou, morreu! Acho que foi em 1932 ou 1933 que ela morreu. Ela ficou quase vinte anos depois que meu pai faleceu, ela viveu.
P/1 – E ela tinha que fazer alguma coisa para sinalizar que era viúva?
R – Não, não. Não deixamos ela usar luto. Os filhos não deixaram ela usar luto.
P/1 – Por quê?
R – Porque ia ser muito triste vê-la de preto e nunca usou luto. Até nós, quando ela faleceu, também não usamos luto. Quando meu marido faleceu, antes de falecer, ele falava: “Quando eu morrer ninguém vai pôr preto. Ninguém. Eu vou morrer, vou descansar e vocês vão ficar, então não usem luto”. E não usamos. Respeitamos, mas não usamos.
P/1 – E voltando ao noivado da senhora, como foi organizar o casamento?
R – Ah, meus irmãos gostavam de fazer, de organizar festa. E foi uma bela festa. Olha, tinha cinco... Parece mentira! Tinha cinco padres no meu casamento. Cada um falou uma qualquer coisa. Cinco padres! Mas por quê? Eu ajudava muito a igreja, sabe? Que lá o povo... Alguns ajudavam e outros não ajudavam, então eu ajudava muito e tinha cinco padres no meu casamento.
P/1 – E quem fez o vestido de noiva?
R – Minha irmã. Ela costurava muito bem, então ela quem fez.
P/1 – E como foi o dia do casamento?
R – Olha, nós nos casamos, não me lembro se eram dez horas e o trem passava... Meio dia o trem ia para Uberaba. Nos casamos, me troquei e fomos pegar o trem para Uberaba. E lá foi a lua de mel. Hotel Brasil.
P/1 – A senhora foi de vestido de noiva e tudo?
R – Não! Que é isso? Me troquei! Que é isso? Eu tinha roupa para isso.
P/1 – E como foi descobrir a intimidade do casal? A senhora sabia como era a convivência a dois?
R – Não, não sabia! (risos) Não sabia um nada.
P/1 – E aí, como é que foi?
R – Ah, ele era muito educado, muito educado. Foi tudo com calma, com jeito, não é?
P/1 – E depois da lua de mel onde vocês foram morar?
R – Aí ele tinha açougue, voltamos para Pedregulho novamente. Aí vieram os filhos, um filho meu veio para São Paulo, que lá o serviço era mais difícil, não é? Veio para São Paulo. Aí, na pensão em que ele veio morar, a mulher pedia dinheiro emprestado e ele estava sempre emprestando. Aí, um dia, ele falou para ela: “Olha, a senhora quer saber de uma coisa?” – ela queria pagar com o corpo e ele não aceitou – “Para isso eu escolho!”, ele falou para ela. “Quando eu quero, eu escolho. Agora, tem uma coisa: eu vou ficar com parte da pensão, porque eu te empresto para fazer tudo, então vou ficar com parte da pensão”. – é o pai dela! Aí ele ficou e um dia ele falou para ela: “Olha, dona Sobrinha…” – ela era espanhola – “Eu vou comprar sua parte porque aqui já tem dois irmãos - uma irmã e um irmão - então eles vêm morar comigo, no mesmo quarto”. E comprou a parte dela. A minha filha tinha uma moça e um moço, ela ficou cozinhando, mas ele falava: “O arroz dela não é igual ao da mamãe, eu vou chamar a mamãe porque ela é quem vai cozinhar”. Aí foram, me pegaram e eu vim. Fui ser cozinheira deles e vivi muito bem. Tinha muito cliente, hóspedes, tinha demais. Tinha doutor, tinha engenheiro, tinha diversas posições. E fiquei lá.
P/1 – Tinha um nome essa pensão?
R – Não, era só pensão.
P/1 – E a senhora se lembra quando seu filho foi buscar a senhora?
R – Ah, sim!
P/1 – Como foi essa decisão?
R – Entre eles. A minha filha era professora e lecionava aqui em São Paulo, que ela tinha as primas que lecionavam aqui e ela foi lecionar com as primas, no mesmo Grupo. Aí um dia chegou meu filho - o quarto filho, porque eu tenho cinco - o quarto filho... é, o quarto. Chegou em casa e falou: “Mãe, sabe o que o Paulo quer? Quer que a senhora vá lá conhecer a pensão”. Não falou que era para eu ficar. “Quer que a senhora vá conhecer a pensão que ele comprou”. Falei: “Ah, eu vou”. No dia seguinte pus umas roupas numa mala e chegou na hora meu marido me levou. E eu vim. Ainda no trem, ele me falou: “Mãe, a senhora não vai voltar mais! O Paulo não quer que a senhora volte não, quer que a senhora fique lá cozinhando”. Então eu falei: “Ah, eu cozinho em casa, cozinho aqui”. E vim, fiquei cozinhando aí.
P/1 – E como foi chegar em São Paulo?
R – Eu vinha sempre, não é? Eu vinha sempre. Já conhecia São Paulo.
P/2 – É muito diferente de Pedregulho?
R – Ah, sim!
P/2 – Quais são as diferenças?
R – (risos) Pedregulho é desse tamanhozinho perto de São Paulo, é um ovo! E São Paulo é grande, tem muita diferença. Você que é de lá? Não, você. Seus pais!
P/1 – Dona Dora, onde ficava essa pensão?
R – Na rua Penaforte, o número eu não me lembro, na rua Penaforte.
P/1 – Que bairro é?
R – (risos) Eu sei que você desce ali na Nove de Julho, sobe um tanto, vira à esquerda, aí são diversas pensões. Muitas. E eu tinha a minha ali.
P/1 – E como vocês se organizaram nessa vida nova?
R – Ah, foi normal.
P/1 – Aonde vocês dormiam?
R – Ah, nos quartos, não é? Minha filha dormia comigo, numa cama de casal. Aí, os dois meninos cada qual tinha sua cama, era um beliche.
P/1 – E que comidas a senhora tinha que fazer?
R – Ah, ali tinha que fazer de tudo. E eu tinha muito... Tinha dia que tinha cem homens para almoçar! Cozinhava num panelão, era fogão industrial e eu cozinhava. No começo eu tinha pavor! Para ligar e desligar faz barulho e eu tinha medo! Aí depois eu acostumei.
P/1 – E teve algum hóspede que tenha sido importante para a senhora?
R – Ah, eu dava importância a todos eles! Não tinha diferença, não tinha. Porque já estão longe das suas famílias e ainda a gente trata mal? Não. Eram como meus filhos, todos tinham liberdade e eu também tinha liberdade com eles. Eu tinha um engenheiro do Paraná, ele era uma educação, uma educação! Não tinha um sem educação lá, você acredita? Até aqueles coitadinhos que moravam lá no fundo, não é? Era mais barato o fundo. Eu tratava bem porque merece, merece! Eles estão lhe dando o dinheiro deles para você viver, vamos tratá-los bem. E foi assim.
P/1 – E quando eles iam embora?
R – Ah, choravam eles, chorava eu! Um se casou e foi morar em Belo Horizonte, esse moço chorou tanto, ele era de Monte Alto. Esse moço chorou tanto! Mas ele tinha a mim como mãe dele. Me tratava com aquele carinho. Não tinha um que falasse: “Esse falou grosseiro com ela hoje”. Não, nunca teve. Eram tantos e nunca um foi sem educação. Eram todos educados.
P/1 – Como eles te chamavam?
R – Olha, eu não lembro de todos não.
P/1 – Não, como eles chamavam a senhora! Tinha algum apelido?
R – Não, não, era dona Dora.
P/1 – E a senhora chegou a voltar alguma vez para Pedregulho?
R – Ah, eu ia sempre! Eu tinha meus filhos lá, ainda não tinham vindo todos. Tinha filha que era professora! As duas filhas eram professoras, então uma ficou e outra veio, não é? Então ela ficou lecionando lá e eu tinha meu filho, o meu caçula, ele tinha só nove anos. Ficou na escola. Aí, um dia, a professora dele falou: “Não, eu não vou lhe deixar sofrer tanto não. Eu vou dar o que ele tem que fazer e você pode levá-lo”. E assim ele veio antes de terminar o ano, veio comigo o menor. Ele tinha nove anos. Aí já veio e ficou comigo. Aí o pai levou na 13 de maio, matriculou-o lá na Escola 13 de maio e ficou lá até... Ele fez Comércio.
P/1 – Vamos tomar uma água?
R – Mas eu tomei agora a pouco!
P/1 – A senhora está bem?
R – Estou! Eu não tomo muita água, é o que meus filhos implicam comigo! “Mãe, a senhora precisa tomar mais água, mãe! A senhora toma pouco!”. Mas...
P/1 – Então posso seguir?
R – Pode.
P/1 – Porque a gente pulou uma parte importante, que foi a maternidade, não é? Como foi descobrir que ia ser mãe pela primeira vez?
R – Não foi fácil não. Eu já estava de três meses, aí uma vizinha falou: “Você está é grávida!”. E fiquei, já estava e fiquei. Tive cinco filhos, em casa. E a parteira é quem fazia o parto. Não tinha... Tinha médico, mas a gente ocupava mais a parteira por ter liberdade.
P/2 – E como foi para a senhora se tornar mãe?
R – Ah, foi maravilhoso.
P/1 – Por quê?
R – Ah, é maravilhoso você ter um filho, saber que é seu! É maravilhoso!
P/1 – Como você pensou em educá-los?
R – A educação é como nós estamos conversando aqui. Era a educação que eu dava para os meus filhos. Não tinha grito, não tinha palavrão, não tinha nada.
P/1 – Dona Dora, fiquei curiosa com essa vizinha: por que ela veio dizer que a senhora estava grávida?
R – Porque ela tinha uma abertura de horta e eu falava as coisas que eu tinha vontade de comer. Aí ela plantava e me levava. Ela falou: “Você está é grávida!”. E continuei!
P/1 – E o que a senhora sentia vontade de comer?
R – Olha, o meu desejo foi fazer doce de figo e ficar ali, sentindo o cheiro. Até hoje! Naquela época, as folhas do figo tinham caído, não achou uma folha para falar: “Ela vai cozinhar e sentir o cheiro”. Não tinha. Mas a minha mãe falava assim: “Quando você tem vontade de comer as coisas, você não põe a mão em qualquer lugar não, põe assim para trás, senão sai a mancha”. Aí eu fiz isso, pus a mão para trás, mas não saiu também. Folha, não saiu nada. E passou sem comer. E até hoje eu adoro doce de figo. Adoro!
P/1 – E como foi sentir a transformação no corpo, da gravidez? Como a senhora contou para o seu esposo que estava grávida?
R – Ah, já não tinha menstruação! E tinha vontade de comer o figo, o danado do figo até hoje, você acredita? E eu faço, quando tem lá em casa, doce de figo. Eu como de vez em quando, mas tenho saudades de sentir aquele cheiro na panela, no tacho. Que eu tenho um tachão para fazer doce.
P/1 – E como vocês foram atrás do figo nessa época?
R – Nossa! Andou em diversos lugares que a gente sabia que tinha! No quintal de casa também tinha, não tinha uma folha no pé! Porque caem, não é? Para vir os figos. Não tinha uma folha.
P/1 – E como foi contar para o seu marido que a senhora estava grávida?
R – Ah, eu nem me lembro.
P/1 – E o dia do parto, como foi?
R – Eu senti mal, estava sentindo muita dor nas cadeiras, não é? Dói demais. Aí estava andando, levantei e estava andando no quintal. Aí essa mesma vizinha falou: “Olha, convém você ir deitar, você não está bem não, vai deitar”. Eu falei: “Não, deixa eu andar um pouco”. Ela chamava Almerinda, essa minha vizinha. Eu chamava ela de dona: “Não, dona Almerinda, deixa eu andar mais um pouco”. “Não, convém você ir deitar que você não está bem”. Aí quando foi... Era um sábado! Quando foi no domingo, eu estava muito mal e meu marido era comerciante, tinha deixado o açougue e era comerciante, aí ele falou: “Olha, vocês vão me desculpar, mas eu vou fechar”. Todo mundo caladinho, saiu. Aí chegou um vizinho e falou assim para ele: “Você não acha que está demorando, não?” Ele falou: “Não entendo, é a primeira vez, não entendo!”. Ele falou: “Está demorando, pode ir buscar o médico”. Quando saíram para ir buscar o médico, a menina nasceu. E voltaram, não precisei de médico, foi normal. Todos eles. Todos normal.
P/1 – E como foi decidir os nomes?
R – Ah, era ele quem dava os nomes. Eu dei nome só para um filho. Para esse que veio comigo. Eu tinha ido a um casamento e lá eu vi um menino que se chamava Paulo... Paulo César! Estava esquecendo. Paulo Cesar. Ai eu falei: é homem? É Paulo Cesar. E foi. E ele pôs nas mulheres: Wilma e Soraia. Esses são os nomes das minhas filhas. Aí eu tenho Abrão Jorge, Paulo Cesar e Fernando Augusto, são os três filhos homens.
P/1 – E como foi descobrir a maternidade? Quais os desafios desse começo?
R – Como?
P/1 – Como foi ser mãe?
R – Ah, foi maravilhoso ser mãe! Maravilhoso. Você ter um ente que saiu de você é maravilhoso!
P/1 – E depois descobrir as próximas gestações?
R – Idêntica. Idêntica!
P/1 – E tinha algum momento deles já grandinhos que vocês ficavam todos juntos em família?
R – Ah, ficamos. Isso era todo dia. Todos os dias estávamos juntos. Deixa eu te mostrar as fotos que ela trouxe, sempre juntos!
P/2 – A senhora lia histórias para eles?
R – Ah, sim, sim. Isso é muito importante. Muito importante você ler para os seus filhos! É muito importante.
P/1 – Era antes de dormir?
R – Antigamente tinha gibi, aí tinha livrinho de história, a gente contava.
P/2 – E aí sentava todo mundo junto?
R – Ah, sim, sentava na cama ou na sala, onde estivesse. E líamos. Foi muito bom.
P/1 – Dona Dora, a gente está caminhando para o fim da nossa conversa. Tem alguma história que a senhora queira contar?
R – Não, acho que não tem mais necessidade. Já falei muito.
P/1 – Mas eu tenho mais algumas perguntas para fazer para a senhora!
R – Pode fazer!
P/1 – Como foi ser avó?
R – Ah, maravilhoso! A primeira neta! É. É a minha primeira neta. A mãe esteve em casa, porque cada qual tem sua casa, não é? Esteve em casa, e aí meu filho falou: “Mãe, está acontecendo isso e isso”. Falei: “Vai para o hospital. Já vai para o hospital que não vai demorar a nascer.” E foi. Logo veio ela. E depois mais uma vez. Tem um neto, irmão dela, e ficaram. Eu só tenho cinco netos. Minha filha tem um casal, um casal, e tem um de pai solteiro! Mas é tratado igualzinho aos outros, acho que até mais, porque o pai mora junto, pai baba pelo filho. E assim nós vivemos.
P/1 – E dona Dora, se a senhora se sentir bem para contar para a gente, como é que foi o falecimento do seu esposo?
R – Ele sofria do coração e não podia fumar. Mas lugarejo é lugarejo, todo mundo é amigo. E ele era muito estimado. Não estou falando por ser meu marido, mas ele era muito estimado! Fuma, fuma, fuma, e ele acabou fumando. Não fumou nem vinte anos, mas só fumava à noite, que em casa ele não fumava. Quando ele ia para a rua é que ele fumava com os amigos. Morreu! Não podia, não é? Ele era proibido.
P/1 – Mas como que foi?
R – Ah, não foi fácil não. Muito difícil, perder marido é muito difícil!
P/1 – Mas como a senhora ficou sabendo?
R – Ele estava hospitalizado, a gente tinha o Servidor Público. Ele era delegado, então ele tinha direito lá e estava internado. Aí chegou certa hora eu falei para uma moça que estava comigo, o telefone tocou e eu falei: “Não vou atender não. Você vai atender porque é o José que morreu!”. Ela foi e era ele que tinha morrido. Foi assim. Acabei de criar os filhos, eduquei como pude, ele era... Bom, apesar que já tinha ajudado bem! E estamos vivos. Apesar de que uma filha morreu, a mais velha. A primogênita morreu. Ela lecionava na roça, tomava sol na roça, eu falo roça mas é em Santo Amaro que ela lecionava. Tomava muito sol, deu um câncer de sol e matou.
P/1 – E como foi esse período que ela descobriu?
R – Ah, não foi fácil. Não foi fácil... Aí ela tinha o Servidor Público, ela ia sempre. Aí um dia eu falei: “Hoje eu vou com você, você não vai sozinha. Você queira ou não queira, eu vou”. Aí o médico perguntou para ela assim: “Quem é você?”. Eu olhei para ele e falei: “Como o senhor está perguntando quem é você? Se ela está aqui na sua frente todo dia? O senhor já devia conhecê-la! É sua paciente, o senhor é médico ou charlatão?” Ele ficou assim calado, aí falou: “Não, minha senhora, a senhora me desculpe, mas eu não quero falar”. “Não quer falar, não fale, pronto”. Aí ele falou para ela, depois que ele acalmou: “Você está com câncer de sol e não vai ser bom para você”. Já falou de supetão! “Não vai ser bom para você”... Mas não foi fácil não, foi difícil.
P/1 – Que cuidados que ela tinha que ter?
R – Ah, os cuidados eram só os remédios, não é? Não tinha que fazer nada, não era ferida, nada. Era só aquela parte grossa.
P/1 – O que a senhora fazia para ela nesse período?
R – O que eu podia eu fazia. Mas se vocês a conhecessem, vocês iam adorá-la! Porque ela era uma maravilha.
P/1 – E como é que foi?
R – Olha, ela morreu em casa, no meu colo. É... não é fácil... está ótimo.
P/1 – Bom, eu queria saber da senhora o que a senhora faz hoje?
R – Hoje?
P/1 – Isso.
R – Eu não faço nada! (risos) É como eu te falei, até comida põem no prato, não põem na boca porque eu sou lenta para comer, eu gosto de mastigar bem. Então eu mesma que ponho na minha boca, senão eles punham! Só não adivinham porque não tem mente de adivinhar, senão adivinhariam! Graças a Deus. Eu acho até que Deus me abençoou, com tanta boa vontade que eu nem sei explicar.
P/1 – Onde a senhora mora hoje?
R – Hoje eu moro no bairro... Ah, espera um pouco...
P/1 – Paraíso?
R – Paraíso! Obrigada!
P/1 – (risos) Imagina!
R – Bairro Paraíso. Rua Paraíso. Eu moro de frente à Maternidade Santa Joana.
P/1 – Com quem a senhora mora hoje?
R – Moro com dois filhos solteiros. Um é pai solteiro, mas o menino mora com a mãe, fim de semana ele vem para minha casa. É moço. Está com vinte e dois anos, bonito! Muito bonito!
P/1 – E como é o dia a dia da senhora?
R – Ah, maravilhoso, como nós estamos aqui!
P/1 – Para finalizar, eu tenho mais duas perguntas. A primeira é: como foi para a senhora vir aqui hoje contar sua história para a gente?
R – A minha neta, Cristiane Samira Teixeira, é que foi me pegar em casa e aí viemos de carro com o pai dela. Viemos de carro.
P/1 – E o que a senhora achou do nosso encontro?
R – Ah, maravilhoso! Gostei de todos vocês, não teve separação, todos vocês. São educados, fino trato, ótimo!
P/1 – E para finalizar, eu tenho mais uma pergunta!
R – Diga.
P/1 – Quais são os sonhos da senhora?
R – Agora?
P/1 – Agora!
R – Meu sonho é visitar o túmulo dos meus pais. Olha, num túmulo tem doze pessoas. Não sei se tem mais porque há pouco tempo morreu um sobrinho e eu não fui ao enterro, mas tem doze pessoas em um túmulo, é o túmulo da família. Lá tem doze pessoas. E aqui eu tenho meu marido e minha filha. Era que eles voltassem, mas não voltam.
P/1 – É isso?
R – É.
P/1 – Então, dona Dora, muito obrigada.
R – De nada, querida!
P/1 – Foi uma delícia ouvir a senhora hoje.
R – Ah, bondade de vocês.
P/1 – A senhora está bem?
R – Estou, estou bem.
P/1 – Muito obrigada, viu dona Dora?
R – De nada, filha, de nada.
FIM
Recolher