Projeto Morro dos Prazeres
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de: Sônia Cristina dos Santos de Souza
Entrevistada por: Paula Ribeiro
Rio de Janeiro ,17 de abril de 2002
Código: MP_HV016
Transcrito por Elisabete Barguth
Revisado por Andréa Almeida
P/1 – Sônia boa tarde,...Continuar leitura
Projeto Morro dos Prazeres
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de: Sônia Cristina dos Santos de Souza
Entrevistada por: Paula Ribeiro
Rio de Janeiro ,17 de abril de 2002
Código:
MP_HV016
Transcrito por Elisabete Barguth
Revisado por Andréa Almeida
P/1 – Sônia boa tarde, gostaria que você me dissesse seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Sônia Cristina dos Santos de Souza, nasci no dia 26 de novembro de 1957.
P/1 – Em relação aos seus pais, o nome deles e profissão por favor.
R – Horácio Gonçalves de Souza o meu pai é vendedor, foi vendedor a vida toda hoje em dia já tá aposentado. E a minha mãe é uma dona de casa, sempre trabalhou em casa e criou quatro filhos, eu sou a mais velha de uma família de quatro filhos.
P/1 – Você nasceu em que bairro, Sônia.
R – Eu nasci na Beneficência Portuguesa aqui no bairro do Catete e criada a minha vida inteira na Tijuca.
P/1 – Alguma memória assim de período de infância no bairro, alguma lembrança que tenha te marcado mais.
R – Meu pai trabalhou durante muito tempo em prol do América, meu pai é um americano, torcedor do América fervoroso, meus irmãos jogaram bola pelo América e tal, então a minha vida toda, minha passagem toda, minha infância, minha mocidade foi toda na Tijuca. Estudei no Instituto de Educação, estudei no Instituto Guanabara na Rua Marins e Barros e acabei me formando também numa faculdade particular na Rua Marins de Barros, mas antes eu tive algumas passagens pela UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro], enfim, mas acabei me formando mesmo na Tijuca. A Tijuca pra mim tem um significado muito grande, eu sou o que as pessoas normalmente chamam de uma tijucana.
P/1 – Você ainda mora na Tijuca?
R – Moro na Afonso Pena, onde tem o metrô da Tijuca, mas passei por outros lugares, morei em Vila Isabel durante um tempo, morei em Miguel Pereira durante um tempo também da minha vida, foi a única época que eu fiquei afastada da Escola Municipal Júlia Lopes de Almeida, foi nessa época que eu morei em Miguel Pereira, que eu fiquei cedida ao Governo do Estado e morei no bairro da Usina e agora voltei de novo pra Tijuca.
P/1 – Em relação a sua formação profissional, qual foi a faculdade que você fez e porquê dessa escolha profissional.
R – Primeiro foi assim, eu saí do Instituto de Educação no normal em 1975 e aí pra eu, gostaria de continuar estudando então o que eu fiz, eu fiz um vestibular pra UERJ e passei pra fazer Licenciatura em Ciências com especialidade em Biologia. E aí eu comecei a estudar, eu era uma beleza, era uma estudante brilhante fiquei fascinada pela Faculdade, mas quando começou aquela época de dissecar, o ano que tinha que dissecar o sapo, cortar o sapo e depois aquelas coisas do movimento da pilha, do carrinho que cai e sei lá o que, aquela coisa da física, estudar física aí eu me embolei toda e parei a faculdade. Aí depois fiz outro vestibular e passei na UFRJ na Avenida Chile pra fazer Letras. Comecei fazer português e literatura, fiquei fascinada com a leitura estudava, lia, mas quando comecei ter que ler por obrigação tranquei também sai fora, eu fiquei um tempo sem estudar. Aí encontrei uma amiga que falou sobre o
Adicional, né, o Instituto de Educação tinha aberto o curso de Adicional em Educação infantil e aí eu comecei a estudar... Aí saí da Faculdade de Letras e fui fazer Pedagogia, daí gostei.
P/1 – Porque Pedagogia Sônia?
R – Porque na época eu já trabalhava, eu já tava trabalhando no Magistério.
P/1 – Então vamos recuperar um pouquinho, como é que se deu essa sua entrada no Magistério, por favor.
R – Foi assim, na época eu saí do Instituto de Educação em 1976 e aí o que acontece eu me inscrevi pra fazer serviços temporários numa agência de empregos, pra trabalhar três meses e aí fui trabalhar no Banco Real na Agência que tem na Presidente Vargas com esquina com a Rio Branco, essa agência acho que existe até hoje. E aí comecei trabalhar lá na sobreloja fazendo pagamentos de dividendos e bonificações de ações da Vale do Rio Doce e da Belga Mineira. Era um serviço que eu gostava muito e quando o período de três meses terminou o gerente me convidou pra trabalhar como funcionária do Banco Real e aí nessa época, nesse intervalo eu tinha feito prova pra Prefeitura. Então eu tinha me formado em 1975 no Instituto de Educação, eu queria fazer a prova pra ver como é que eu estava e dei sorte porque a prova antigamente era de dois em dois anos não tinha prova todo ano, quer dizer eu tinha que tentar fazer a prova pra saber o que ia acontecer, aí passei e fiquei num dilema: o que eu vou fazer, vou ficar no Banco ou vou assumir o Magistério? Aí fui conversar com meu pai na época, chegou um belo dia e conversei com ele, eu me lembro como se fosse hoje, ele tava jantando e disse pra mim: “Olha, o que você tá precisando?”. Eu disse: “Pai tem uma confusão na minha cabeça, eu não sei se continuo no banco vou ser bancária ou se vou seguir a carreira do Magistério, você tem uma ideia, o senhor podia abrir comigo eu que sou sua filha mais velha, eu queria ouvir um pouco você”. Aí disse: “Olha, se você continuar no banco você vai ganhar isso, isso, isso de coisas boas e vai ter esses, esses, esses dissabores. Se você trabalhar dando aula, eu acredito o que vai ser bom é isso, isso, isso” e enumerou uma série de coisas “e vai ter algumas dificuldades com essas e essas questões, quando eu acabar de chupar a laranja você decide”. E pra mim foi uma cena que até hoje não esqueço, conto isso várias vezes pra várias pessoas, porque eu fiquei um tempo olhando papai chupando a laranja e cuspindo aquele caroço, cada caroço que ele cuspia era um ponto como se dissesse: “E aí, já decidiu?”. E quando ele acabou ele disse pra mim: “E aí, o que você decidiu?”. Eu falei: “Olha, eu vou pedir demissão e vou seguir a carreira do Magistério”. Aí eu fiz a minha carta de demissão pro gerente que era o Wanderlei...
P/1 – E ele achou que foi a decisão certa, seu pai?
R – Hoje em dia ele diz, ele sente que eu tô feliz com que eu faço, hoje ele fala: “Valeu a pena”. Mas financeiramente talvez eu estivesse melhor no Banco, tivesse tido outros contatos e tal, mas pessoalmente é uma coisa que eu gosto, que eu curto. E aí eu fui até a prefeitura para escolher a escola, naquele tempo você escolhia o bairro, né, e eu quando fui fazer a prova na época as pessoas que tiraram as notas maiores foram sendo lotadas lá pra cima, Campo Grande, Santa Cruz e assim por diante, eu fui uma das últimas a ser chamada, eu não tive assim uma pontuação muito grande no concurso porque tinham muitas pessoas naquele tempo. E aí eu não sei o porque, não sei se foi o destino, não sei se foi uma questão de
prioridade
ser lotada lá mesmo, eles disseram pra mim: “Olha, só tem vaga em Santa Teresa”. Eu fui lotada em Santa Teresa...quando a pessoa da prefeitura, que eu não lembro mais quem é, disse assim: “Olha, você tem que levar todos os seus documentos na Rua da Relação, pra tirar, fazer sua ficha -
isso em 1976
- e depois voltar aqui, você já fica sabendo que só tem vaga pra você em Santa Teresa”. Quando eu saí dali eu saí com outras pessoas e na época quando eu tive que apresentar os documentos na Rua da Relação na minha cabeça eu não conseguia entender o que eu ia fazer nesse prédio na Rua da Relação. Depois de um tempo é que caiu a ficha que eu tava tirando a ficha no Dops [Departamento de Ordem Política e Social], que naquele tempo era necessário, mas pra mim eu era uma menina da Tijuca não tava nem aí, não tinha envolvimento com política, mas eu fiz a minha ficha pra poder ser funcionária da Prefeitura lá no Dops no prédio na Rua da Relação.
P/1 – Mas com uma ideologia...
R – Aí fiz a minha ficha, não sei se era de praxe, não sei o que aconteceu todo mundo fez isso e vim pra Santa Teresa, né. Aí eu voltei pra Prefeitura pra saber que escola ficaria em Santa Teresa e aí é que veio o grande problema quando disseram assim: “Olha, você vai pra Santa Teresa numa escola chamada Júlia Lopes de Almeida” a minha primeira pergunta foi: “Santa Teresa, onde fica isso?”. As minhas amigas tinham sido lotadas em Campo Grande, Santa Cruz, então eu imagina que eu ia ter que sair da Tijuca pegar um trem pra poder ir pra Santa Teresa. Aí a pessoa me disse assim: “Olha, você pega o bonde”. Eu disse: “Bonde, eu não sei como eu vou fazer isso”. Aí alguém que tava perto me ensinou como fazia, aí junto comigo vieram mais quatro professores que eu me recordo, Ana Mari que não está mais trabalhando aqui, Lenize que hoje em dia trabalha na CR1 na Secretaria de Desenvolvimento Social com bolsa de alimentação e mais duas meninas que eu nem me recordo mais o nome, elas se apresentaram mas não ficaram, viemos nós quatro pegamos um bonde na estação no Largo da Carioca e aí viemos andando dentro do bonde, pra gente era tudo uma grande brincadeira “Olha, onde é que a gente vai”. a gente tava curtindo ir pra muito longe e aí quando ele chegou no Largo do Guimarães e ele entra para Paulo Natti,
a gente não sabia até que a gente se tocou que a Rua Almirante Alexandrino tinha acabado e a gente viu que tava no lugar errado. Aí a gente foi pedir informação disseram que a gente tinha que ter pego um outro bonde, saímos andando a pé até a gente pegar um outro bonde, então a gente realmente estava indo pra Campo Grande, porque foi uma viagem. Bom, aí chegamos aqui na escola na
Júlia Lopes nós quatro cada uma com seu memorando de apresentação e esta história que eu tô contando agora eu conto pra todo mundo, nós nos apresentamos aqui não me lembro o dia, não me lembro que dia da semana era e nem o número do dia, mas me lembro da cena, tinha uma diretora que ficava ali naquele gabinete e ela tava comendo um pão doce e aí a gente chegou e disse: “Boa tarde, bom dia”, não me lembro, “Nós somos as professoras novas e estamos nos apresentando”. Aí ela disse: “Espera um pouquinho aí”. Ali tinha um banco azul de madeira e ali nós quatro sentamos com os papéis na mão esperando a diretora acabar de comer o pão doce. Quando ela acabou de comer o pão doce ela disse assim: “Vocês aí podem vir pra cá”, ela não se levantou, nós quatro ficamos paradas aqui nesse corredor, nessa porta, ai ela disse assim “olha, dá o papel de vocês”, entregamos os quatro papéis, aí ela não sabia quem era Sônia, quem era Lenice, quem era Ana Mari, quem era Tati eu me lembro da Tati, aí ela disse assim: “Olha, você” -
ela falou com uma das meninas “vai pegar a minha turma de Jardim de Infância, é todo mundo pequenininho”. Aí “Você” -
isso tudo sem perguntar o nome -
“vai pegar a turma de primeira série, você vai pegar a turma de segunda série não sei o que ba, ba, ba e você como é a maior de todas vai pegar a minha turma de primeira série que tá com 8 anos sem saber ler e escrever, podem voltar amanhã”. E aí a gente não sabia o que fazer, uma começou a chorar; me bateu um arrependimento, uma tristeza eu falei assim: “Meu Deus, eu não vou ficar aqui nessa escola, ela não sabe nem meu nome”. Ela não me apresentou, eu não sabia nada, eu só tinha tido a lembrança daquele banco azul onde nós ficamos, a vinda de lá pra cá tinha sido muito emocionante, porque a gente tava vivendo uma aventura e trabalhar na escola pra mim também era uma aventura, mas houve um corte pro meu encontro profissional, porque eu fui avaliada pelo meu tamanho. Bom, aí fui pra casa e ela disse: “Todo mundo de manhã”. Naquela época, a escola tinha três turmas, então a gente entrava às sete horas e saía onze e meia, mais ou menos assim e depois entrava o outro, que depois saía às cinco e pouco quase seis horas. Bom, aí eu cheguei e me apresentei pra ela. Aí ela já tava em pé, ela disse assim: “Olha, essa aqui que é sua turma”. Então era uma turma de 30 crianças mais ou menos...
P/1 – Isso em 1976.
R – 1976, era uma turma de mais ou menos 30 crianças e eles tinham mais de oitos anos na primeira série, eram crianças que tinham o rótulo de turma AL, aprendizagem lenta. E aí era a primeira vez que eu tava trabalhando numa escola dando aula, quando eu me vi na sala de aula com aqueles 30 olhando pra mim, eu disse assim: “Meu Deus do Céu, o que eu vou fazer?”. Aí eu falei: “Bom, vocês tem material” e aí eles me mostraram lá uns cadernos, uns lápis, uns blocos que eles tinham. Aí a gente começou a escrever, a ler, assim eu passava alguma coisa eu via quem sabia ler e quem não sabia eu me sentia perdida na escola, perdida. Só que tinha as outras três que tinham se apresentado comigo e elas também estavam se sentindo perdidas; então foi assim uma perdição em conjunto. Mas a gente aos pouquinhos foi começando
a ver que tinha que brigar sozinha, então a primeira coisa que eu fui ver, porque que essa criançada tava há oito anos na primeira série.
P/1 – E qual o perfil dessas crianças, de onde eles eram Sônia?
R – Todos eles da comunidade do Morro dos Prazeres e crianças bem castigadas pela vida, você via que eram crianças sofridas. Olhavam pra mim como se eu fosse um ponto de referência, mas uma criançada com uma vivacidade, alegres, comportadas, pessoas legais você via que eram crianças que estavam sedentas de saber e colocaram em mim como um ponto de referência da vida delas, você sentia isso, era claro. E elas começaram a se apegar mais a mim quando eu comecei a pesquisar porque cada uma estava há oito anos aqui na escola e não sabiam ler, nem escrever. Aí eu abandonei as aulas, eu vinha pra escola, ficava com eles, mas comecei a ver a história de cada um. Aí eles começaram a me contar: “Olha, tia, eu comecei a estudar na primeira série, mas aí a professora ficou grávida, ela foi ter neném e eu fiquei sem professora, terminou o ano”. Aí ele ficou um ano sem concluir; o outro começou a estudar e a mãe se mudou da comunidade dos Prazeres, foi pra longe, foi pra outra comunidade, então ele parou de estudar. E lá pra onde ele foi não tinha vaga, aí ele retornou um ano depois sem concluir, aí baixava como se fosse três. Eu fui começando a ver que esses únicos anos de aprendizagem não eram só comprometimento físico, orgânico, alguma deficiência que a criança tinha, era simplesmente uma coisa do destino, não eram com todos os alunos mas, enfim, a maioria tinha tido paradas nessa vida escolar, né, então eu fui começando a me engajar com eles. Naquela época eu fazia faculdade na UFRJ e como eu trabalhava de manhã, mas aí eu ficava na escola, eu não tinha nada pra fazer em casa, ficava na escola. O material era do meu bolso. Naquela época tinha uma loja chamada Casa Marti, que agora acabou, eu comprava giz colorido, comprava lápis de cor, comprava caderno tudo do meu bolso, pedia pro meu pai emprestado. Com meu primeiro pagamento comprei uma calça jeans pra mim o resto tudo em material escolar. Então, todo mundo tinha o mesmo caderno, o mesmo lápis...
P/1 – Você comprava material para todos alunos.
R – Pra todo mundo, pros meus alunos. A gente criou um mundo especial na sala de aula, era uma sala especial pra gente. Eles, quando entravam ali, sabiam que iam ter que concluir comigo alguma coisa, não ia ter que dar uma parada, pelo menos que viesse da minha parte não ia ter parada, eles poderiam até parar se a mãe se mudasse, mas comigo não ia ter parada. E aí tinha uma merendeira, que já morreu, ela começou a ver que eu ficava muito tempo na escola e eu saía daqui pra ir pra faculdade. Aí ela dizia assim: “Sônia, você fica pegando duas conduções para ir embora pra casa”, porque eu não descia de bonde, eu pegava o 206, que era da CTC [Companhia de Transportes Coletivos no Estado do Rio de Janeiro],
e depois descia na Rua Riachuelo e pegava outro pra ir pra UERJ. Daí ela disse assim: “Vamos comigo por dentro do morro”. Eu disse:
“Eu hein, nunca entrei no morro”.
P/1 – Qual o nome dessa merendeira?
R – Ah, eu não me lembro, eu vou me lembrar, mas agora no momento eu não me lembro. Acho que era Irene, alguma coisa assim. Ela já morreu, acho que era Irene, ela era muito magrinha, de óculos. Ela disse assim: “Quando eu tiver saindo, eu vou com você”. Só que eu comecei a perceber que na hora que a gente saía as crianças ficavam me esperando até eu sair. Então ia a Irene, eu e aquela turma de crianças atrás. Eu era a única professora que entrava por dentro do morro. Então o caminho era o seguinte, quem é mais antigo vai se lembrar: a gente entrava no morro, aí tinha um chiqueiro de porco, tinha uma criação de porcos bem na entrada...
P/1 – Você entrava por onde, por aqui?
R – Pela entrada da Rua Gomes Lopes. Ah, eu percebi uma coisa: que todo mundo dava o endereço: “Onde você mora?” “Rua Gomes Lopes, 12, Rua Gomes Lopes, 12 “. Era o endereço de todo mundo, todo mundo morava na Rua Gomes Lopes, 12 porque ali era a entrada, porque a Associação é pra cima. Naquele tempo não tinha Associação ou se tinha eu não era ligada nisso. E pra baixo, por onde você passava...Então tinha o chiqueiro de porco, depois você passava pela mesa de sinuca onde tinham todos os homens jogando sinuca. Quando a gente passava pela mesa de sinuca, os homens paravam, botavam o taco assim no pé e diziam: “Boa tarde professora”. Os alunos passavam e diziam: “Boa tarde”. Eu não conhecia nenhum deles, mas “Boa tarde” e passava. Depois eu ia por dentro e saía no que eles chamam de Torre da Caixa D’água. Lá em cima, tinha um senhor que eu não me lembro o nome, que ele tinha o que hoje a gente chama de van. Ele tinha um carro muito grande, cor de café com leite, que ele ajudava as pessoas quando estavam doentes, precisavam de socorro. Então ele levava as pessoas lá embaixo e você saía lá embaixo na Rua Barão de Petrópolis, então eu pegava o carro dele e ele ficava me esperando. “E aí professora, vai pra faculdade?”. Eu dizia: “Vou, o senhor me dá uma carona?”. Ele me deixava lá embaixo e aí a gente descia por lá. Eu fiz isso durante muito tempo. Aí eu fui começando... quando eu entrava no morro, as crianças diziam: “Tia eu moro ali”. Aí eu vi que já passava muito tempo aqui. Eu comecei a ir embora, mas tomava café na casa de um, comia biscoito na casa do outro. Eu comecei a participar de um universo que pra mim era muito novo, era uma coisa que eu nunca tinha vivenciado. Mas eu comecei a compreender melhor porque essa criançada tinha tanta dificuldade de aprender e aí eu comecei fazer um elo de ligação entre a escola e a comunidade, ou seja, eles eram muito importantes pra mim da mesma forma que eu era muito importante pra eles. Mas eu, como professora, eu tô falando de mim, mas outras criaram também os seus elos de ligação, não necessariamente caminhando pelo morro e conhecendo, né? Bom, aí o tempo foi passando...
P/1 – E como é que eram um pouco dessas famílias que viviam no Morro dos Prazeres? As mulheres trabalhavam fora? Havia um tipo de profissão? Os homens se dedicavam a
algum tipo de profissão específica? Você lembra, qual era o perfil de uma família? De um garoto que estudava na escola em 1976, 1977? Você lembra disso um pouquinho?
R – Eu lembro, eu acho assim, as mães eram muito mais participantes, porque a maioria delas não trabalhava fora de casa, elas trabalhavam dentro de casa. Muitas lavavam roupa na própria comunidade, não sei onde elas arrumavam água, bica nada disso, mas muitas lavavam roupa dentro de casa pra fora; muitas eram passadeiras, levavam roupa pra passar em casa. Outras eram mães de família mesmo, que catavam piolho nas cabeças das crianças e que vinham brigar quando o vizinho tinha pego piolho na cabeça, brigavam feio, porque: “Olha, eu cato piolho na cabeça do meu filho e fulano não tá tirando, não tá cuidando do filho dele”, enfim. Os homens de uma forma geral, os pais há muito tempo, desde aquele tempo não eram pais presentes, mas tinha um respeito. Eu me sentia muito emocionada quando eu passava na comunidade e os homens falavam assim: “Boa tarde professora”. Era uma coisa da professora entrando na comunidade, então tinha que ter um certo respeito e eu também tava invadindo o espaço deles. Então eu passava e dava: “Boa noite. Oh, me dá um pouco pra comer com esse cheiro”, porque tinha um cheiro de comida gostosa naquela hora. Então você via que as famílias estavam em casa pra receber as crianças e aí eles iam: “Tia to indo por aqui”. Aí quando você entrava eram 20 crianças, quando você terminava na frente da caixa d’água só tinham um ou dois, tá entendendo? Elas iam ficando nas suas casas, né? Bom, enfim, naquele tempo eu nem sonhava em passar pelo casarão, o casarão já estava lá, mas não era o meu caminho.
P/1 – Você ia por baixo.
R – Ia por baixo, nunca me chamou à atenção nada disso, o casarão pra mim era mais uma casa lá.
P/1 – Mas você via ele.
R – Via, mas nunca me chamou atenção e nunca fiz perguntas sobre ele nem nada. Aí eu aprendi, comecei aprender coisas interessantes da comunidade, por exemplo e que não faziam parte do meu universo, o que é uma tendinha, o que era uma birosca, a diferença entre tendinha e birosca.
P/1 – Qual é a diferença Sônia?
R – A tendinha - pelo menos naquela época, não sei hoje em dia - era o lugar onde se vendia de tudo, até um ovo. Eu me lembro que tinha criança que ia comigo e dizia: “Tia, espera aí que eu tenho que passar na tendinha pra comprar um ovo”. Então a pessoa que servia na tendinha, ela vendia uma dúzia de ovos, mas também poderia vender um ovo. Vendia fósforo, biscoito... A tendinha é como se fosse um mini mercado e a birosca já era uma coisa parecida com a tendinha, mas mais frequentada pelos homens. Então, assim, tipo pra tomar uma cachaça, pra tomar uma bebida. E a tendinha tinha bala, tinha chiclete então a criança podia passar por ali, podia frequentar, enfim. Eu às vezes comprava biscoito na tendinha e ia comendo o biscoito até chegar na torre, entendeu? Aí eu comecei a trazer esse vocabulário pra dentro da sala de aula e comecei a alfabetizar as minhas crianças com essas palavras: tendinha, birosca, o morro, por que Morro dos Prazeres. Aí eu fui começando a entender um pouco o que era alfabetizar, porque o ensino normal é todo com metodologias bonitinhas e prontinhas, mas no pega pra capar... Aí eu comecei a usar esse tipo de linguagem deles, comecei a frequentar a casa deles. Então a Igreja Católica na época aqui no Morro dos Prazeres era muito presente, então todo mundo fazia aula de catecismo e todo ano tinha primeira comunhão.
P/1 – Aonde? De lá?
R – Da Igreja Católica de dentro da comunidade. Isso sempre existiu e aí todo ano eu era chamada pra ser madrinha de comunhão. Quem não era católico me chamava pra ser madrinha, outras crianças, que tinham feito primeira comunhão me chamavam pra ser madrinha de crisma. Aí depois começaram a me chamar pra ser madrinha de coisas que nem tem madrinha, mas pelo fato de eu ir, tirar fotos, ficar com eles, entendeu? E tava participando, quem é que tava na sua festa? “A professora da escola”. Então esse elo, eu tô falando isso, mas não tô me colocando como a responsável desse elo escola, comunidade, não, porque o respeito da comunidade pelas escola sempre existiu. A escola sempre foi respeitada, não foi a Sônia que trouxe o respeito, não, contribuí, mas não fui eu quem trouxe o respeito. Eles tem...enfim, me confundi agora um pouco, porque se não fica falando da minha marca fica parecendo que a escola é conhecida ou é preservada ou é acarinhada por causa da minha ida lá, não é isso.
P/1 – Por exemplo outras professoras também tinham esse envolvimento que você tinha?
R – Naquela época não, porque as pessoas iam por outros caminhos, iam pra outros lugares, não era passagem delas ir pra Tijuca. Enfim, não iam. Eu fui tomada por um impulso porque eu queria compreender a criançada, eu queria entender esse universo deles e aí eu comecei a me engajar com essas famílias. Outra hora tomava café na casa de um e era muito engraçado, porque tinha assim: “Minha filha vai fazer 5 anos, não era minha aluna, minha filha vai fazer 5 anos”. Mas é irmã da minha outra aluna: “Eu vou fazer uma macarronada no sábado, a senhora vai?”. Eu vinha. “Eu vou fazer um churrasco no domingo, a senhora vai?”Aí eu vinha , entendeu? Eu comecei a entender melhor as famílias. Pra resumir, nessa época em 1976, com essa turma, mais ou menos isso acho que só dois alunos não passaram pra segunda série o resto todo passou. Nessa época, em 1976, eles já eram maiores de 10 anos, tinham 11 anos. Então você faz a conta: hoje em dia eles já têm filhos e os filhos estão comigo; eu já sou avó de um monte de crianças.
P/1 – Porque é uma coisa que eles vão ouvir vários depoimentos, é uma coisa da segunda geração na escola...
R – Mas é compreensível, porque essa primeira turma que eu peguei já tinha idade avançada. Bom, um belo dia o tempo foi passando, eu fui amadurecendo, estudando mais a metodologia, eu fui passando a conhecer a escola, eu já podia dar alguns palpites: “Olha, diretora, olha não sei o que ba, ba, ba, eu tô precisando disso, isso, aquilo”.
P/1 – Quem era diretora nessa época?
R – Dona Maria da Graça. Aí nessa época passou o tempo e eu ia pegando outras turmas. Aí eu sempre queria a primeira série, eu já podia escolher. Aí chegava no final do ano a diretora já dizia: “Qual é a turma que você quer?” pra todo mundo. Eu dizia: “Ah, eu quero ficar com uma primeira série”. Entendeu? Aí eu fui me especializando em alfabetização, fui fazendo cursos, fui me aprofundando, fui fazendo capacitações etc e fui me aprofundando, conhecendo metodologias e
pegando sempre crianças mais velhas... (troca de fita).
P/1 – Então você tava dizendo que você acabou se especializando em alfabetização, se capacitando...
R – Fazendo muitos cursos, aí os resultados eram melhores. Enfim, um belo dia eu tava entrando no morro, fazendo a mesma rotina de sempre pra ir embora pra faculdade, e uma criançada desceu correndo e disse assim: “Tia, não entra não, não entra não, porque mataram o “Portuguesinho”. Quando disseram: “ Mataram o “Portuguesinho”” pra mim e pra dona - depois eu posso corrigir se o nome dela era dona Irene mesmo, mas agora o nome que me vem na memória é Irene - nós dissemos assim: “Mataram o “Portuguesinho”, quem é o “Portuguesinho?””. Aí as crianças não nos disseram quem era o “Portuguesinho”. Nós ficamos sentadas onde hoje em dia é a cabine da polícia ali na entrada da Rua Gomes Lopes. Nós ficamos sentadas tentando esperar o ônibus que demorava naquele tempo, era demais, demorava muito tempo. Nós ficamos esperando: “bBom, não vamos entrar porque mataram o “Portuguesinho” deve ser uma pessoa do morro conhecida, o pessoal deve tá triste então não vamos entrar”, porque sempre quando a gente entrava era uma festa, então a gente calculou dessa forma. Vieram alguns homens, eles tinham um cobertor, um tecido e dentro vinha esse tal homem, “Portuguesinho”. Tinha tido um tiroteio, alguma coisa, e tinha um homem que tava perto da gente, que eu não lembro quem foi, disse: “Olha, esse era o dono do morro” e
eu comecei a conhecer um outro lado. “O morro tem dono?, como é que o morro tem dono?”. e aí eu comecei a ver assim: “É, quem mandava aqui era o “Portuguesinho”. “Mas, o “Portuguesinho”, eu não sei quem é o “Portuguesinho”. aí eu comecei a criar uma casca, comecei achar que era perigoso eu entrar no morro a partir do momento que o morro tinha dono, porque pra mim o dono do morro eram os moradores o morro na minha visão até esse momento. As crianças falavam pra mim: “Tia, agora pode entrar, agora pode entrar”. Aí eu falei: “Dona Irene, vamos embora, vamos entrar”. Eu entrei e quando eu entrei vi aquele rastro de sangue dele, porque trouxeram o corpo e tinha aquele resto de sangue. Enfim, pra mim foi um choque, parece que eu tinha perdido um pouco da minha emoção com aquela visão.
P/1 – Mas esse tipo de problema de violência que tinha no morro, as crianças não retratavam, não traziam isso pra te mostrar na escola naquela época?
R – Não traziam, podia até que existisse naquele tempo, lógico, mas vou chamar de tranquila. Não sei se a palavra seria essa, uma coisa mais fechada; se tinha tráfico ou alguma coisa ficava nesse esquema, as crianças não se envolviam muito, a gente não sabia muito dessas coisas, não tinha um alarde dessa questão. E aí pra mim foi um grande choque, só que pra mim, naquele dia, eu fui pra casa achando que eu não podia mais entrar no morro e aí eu falava assim: “Bom”. Eu não tava preocupada em chegar atrasada na faculdade, eu tava preocupada em ter perdido aquele vínculo. Eu não comentei nada com ninguém, eu disse assim... as crianças ficavam me esperando na hora da saída... ah, porque tinha um grupo que era assim: como eles viam que eu entrava e as professoras deles não entravam, eles ficavam me esperando na hora da saída e diziam assim: “Girafa”. Isso muitas crianças vão se lembrar. “Girafa” era o que eles queriam que as professoras deles também fizessem. Como era só eu que fazia, era uma forma de tá me agredindo. Você, veja bem que tipo de agressividade que era, hoje em dia você vê que era uma besteira, uma bobeira eles falavam assim: “Girafa, girafa”. Ficava aquele coro na porta da escola, até que eu olhava pra eles e falava assim: “Mas eu não sou girafa, não sou bicho, sou um ser humano. E também, seu baixinho, você pensa que você é o que?”.
Eles entravam na brincadeira e me acompanhavam. Isso é um detalhe que eu esqueci de te falar. Até que um dia parou essa coisa de me chamar de girafa, eles quase que me adotaram também. Nessa questão, eu passei a ser um pouco a professora deles. Bom, aí eu falei: “Não entro mais no morro”, mas continuaram os convites pra eu ser madrinha, pra eu ir no casamento, pra eu ir não sei aonde, pra eu ir no batizado. Eu disse: “Não vou deixar de ir”. Só que eu já comecei a entrar com um outro olhar, eu já comecei a entrar com um olhar desconfiado, eu já comecei achar assim: Será que alguém vai querer pegar meu anel, será que alguém vai pegar o meu relógio? Porque a partir do momento que veio essa coisa de “não, lá vai ter violência”, eu achava que eu podia tá sendo observada; coisa que só existia na minha cabeça, porque o carinho das mães, os homens que levantavam o taco continuaram
a dar
passagem, porque se não a gente não passava, porque era mesa os homens assim com o taco e a gente não passava. Então eles paravam o jogo pra gente passar. E a tendinha que quando eu passava: “Não vai comprar biscoito, não?” continuou a mesma coisa. Então eu continuei a entrar normalmente e essa coisa da violência pra mim passou. Eu disse assim: “Não, o meu compromisso é com as crianças a questão da violência não sou eu quem resolvo”. Eu comecei a dividir as coisas, então eu comecei a pensar assim: dentro da escola, o espaço é meu, eu tenho que seguir a minha linha enquanto diretora e quando eu estiver entrando na comunidade eu tenho que respeitar o espaço deles, sem estar invadindo e sem tá desrespeitando o morador. Então, quando eu entro no morro e desconfio de alguém, eu estou desrespeitando o morador, porque dentro da comunidade dos Prazeres tem a violência igual tem no Pavãozinho, igualzinho tem na Rocinha, igualzinho tem não sei aonde, mas também tem o trabalhador que rala pra caramba, tem a mãe cuidadosa que continua catando piolho, tem a mãe que sai às sete horas da manhã, que bota o uniforme do garoto e tá todo mundo lá igual; sempre fez, tá igualzinho. Pode ter aumentado a questão da violência, pode ter ficado mais flagrante? Pode, mas ela continua sem interferir no meu trabalho.
P/1 – Quer dizer, esse é o tipo de problema que não se traz pra escola?
R – É o tipo de problema que se traz pra escola, se discute, mas a gente não tenta resolver. A gente tem outras maneiras de resolver; Como? Mostrando pras crianças que existem caminhos:“Você pode continuar estudando depois que você sai da quarta série, você pode estudar numa escola até a oitava, depois da oitava você pode fazer o segundo grau
ou você pode ser um brilhante pedreiro, um brilhante eletricista, você pode ser um limpador de piscina, mas faça isso com honestidade porque aqui na escola a gente tá te ensinando isso, a pedir licença, a ser educado, agora não complique”, porque eles já ouvem isso quatro horas e meia por dia e o dia tem 24 horas.
P/1 – O que diferencia essa primeira série que você tinha em 1976 com essa primeira série de hoje?
R – Diferencia que hoje em dia eles estão entrando com menos idade, só isso. Naquele tempo você tinha uma repetição maior, repete, repete, repete e hoje eles têm mais tempo pra poder aprender, então hoje todo mundo entra com 4 anos, com 5 já está na escola, com 6 já tá fazendo a primeira série.
P/1 – Mas a maior parte desses estudantes, você me disse que mais de 90% aqui são da comunidade Morro dos Prazeres. Essas crianças são nascidas ali como eram em 1976?
R – São nascidas ali. Desses 90% moradores dos Prazeres a gente tem 10% alunos da Paraíba, Bahia, Ceará, que as famílias se instalam e trazem os parentes, entendeu? Eles se instalam e trazem os parentes. Então essa criançada que tá vindo de fora é que tá na defasagem, são os maiores de 9 anos e que não sabem ler.
P/1 – E ainda chegam, você acha que chegam famílias de outros estados para ocupar o Morro dos Prazeres hoje? Ainda chegam crianças para sua escola vindas de outros estados?
R – Chega o ano inteiro e que estão se instalando o ano inteiro. Não é o mesmo fenômeno da Rocinha, não é, mas acontece. Porque comparar o tamanho dos Prazeres e o tamanho da Rocinha é besteira, é bobagem comparar. Mas eles chegam sim, eles chegam, vem e normalmente são trazidos por quem vive na comunidade. Mandam a carta, mandam o dinheiro da passagem e a família vem. Alguns vêm, ficam um tempo e abandonam a comunidade. Abandonam porque sentem falta, sentem saudades, não conseguem emprego. Outros não, outros se adaptam, ficam, encontram vagas nas escolas se não encontrar na Júlia, encontram na Machado, na Santa Catarina que é aqui pertinho e ,sabe, é muito particular de cada família.
P/1 – Hoje quantos alunos tem na escola?
R – 475.
P/1 – Que atende?
R – Da Educação Infantil até a quarta série.
P/1 – O que é Educação Infantil?
R – Educação Infantil - é que no tempo da gente chamava de Jardim de Infância - são as crianças que tem 4 anos e as que tem 5. Nós temos quatro turmas de Educação Infantil: duas de crianças de 4 anos e duas mistas crianças de 4 e 5 anos.
P/1 – E esse perfil de criança, a maior parte da mãe trabalha fora, deixa a criança aqui? O que você consegue apreender disso, como é a vida familiar dessas crianças que frequentam aqui?
R – A maior parte a mãe trabalha fora, mas é assim uma grande parte a mãe fica em casa, trabalha em casa, nós não temos escola com horário integral, temos uma escola com horário parcial, então eles ficam metade do tempo comigo depois vão embora pra casa. Daí a importância desse casarão.
P/1 – Pois é, quais são as suas lembranças desse casarão?
R – Olha, o casarão pra gente tem histórias que não sou só eu que conto, porque aí o tempo vai passando outras pessoas foram chegando que estão aqui na escola, ainda estão na escola, outras moram aqui em Santa Teresa, mas já trabalharam...do casarão tem coisas muito engraçadas, a escola eu não vou me lembrar o ano, quando você falou que vinha eu tentei lembrar o ano mas não consegui. Nessa escola aqui há muitos anos atrás foi um posto de gasolina isso há muito, muitos anos atrás, depois foi um hotel, depois foi a escola e aí nunca tinha passado por uma reforma. Então foi necessário fazer uma reforma aqui, nessa época a diretora chamava-se Esmeralda Barros, também já morreu e essa diretora também batalhou pra ter uma reforma na escola pra pintar, fazer telhado, botar porta não sei o que, então o que ela disse: “Bom, não posso quebrar a escola inteira com a criançada aqui dentro”. então ela era uma pessoa muito ativa, eu aprendi muito com ela e muito da minha gestão é em cima do que ela me passou, porque eu fui funcionária dela na escola, ela disse assim: “Vamos procurar alguma coisa perto, grande para que essas crianças não precisassem sair daqui e pra dar um certo conforto”. E aí uma pessoa ofereceu o casarão pra gente trabalhar. Na época -
as pessoas que viveram nessa época vão se lembrar -
o casarão já não era mais o casarão do dono, tinha sido transformado, assim, no que a gente chamava de cortiço. Então várias famílias moravam nos quartos do casarão na parte de cima. Na época ele tinha dois andares ou três andares e lá em cima, no sótão, moravam algumas famílias. Bom, aí a escola inteira não dava lá, então uma parte da escola foi pro casarão e a outra parte foi pro pensionato Santo Adolfo. Aqui na Rua Joaquim Murtinho um colégio de freiras, escola de freiras, um pensionato de moças que até hoje existe lá e a gente dá muito valor. Bom, como eu já conhecia a comunidade fiquei dando aula no casarão e a diretora, uma pessoa extremamente enérgica e vital se dividia. Ela tinha um carrinho então ela ficava um pouco no casarão, um pouco lá e aí começaram as histórias do casarão. Como eu já conhecia o casarão, quando dava a minha hora de pegar a turma, eu saltava do ônibus ali no Dois Irmãos e subia a ladeira do casarão, nos primeiros dias a gente ajudou a fazer a mudança e viu que não dava uma sala de aula num quarto. Aliás o salão era grande e nós dividimos com armários, então eu dava aula num canto do salão, dava aula num canto dividindo tinha armários e do outro dava aula a professora Maria Alcina. Ela dividia com uma turma e eu com outra, então era divertidíssimo porque as vezes eu tava dando alfabetização e ela tava dando tabuada.
P/1 – Vocês se ouviam?
R – A gente se ouvia o dia inteiro. Mas tinham umas histórias engraçadas porque o pessoal achava que o casarão era assombrado, então diziam que a gente tinha que sair rápido de lá se não o fantasma ia pegar a gente, as crianças morriam de medo.
P/1 – As crianças tinham medo.
R – As crianças tinham medo do casarão. Bom, até que um belo dia a gente fez uma reunião dizendo: “Vamos falar mais baixo, vamos nos respeitar, estamos numa situação de emergência”. E aí a gente começou dominar todo mundo pra todo mundo ficar calmo e aí eu não sei o que foi que aconteceu naquele dia que tava realmente todo mundo muito calmo, muito tranquilo. Só que de repente nós escutamos um barulho ensurdecedor, fez “pum” e quando a gente foi ver, a Sara, a professora que trabalhava com a gente, afundou no chão, o chão abriu e ela caiu...
P/1 – No térreo ou no...
R – No térreo, ela caiu.
P/1 – Vocês estavam no segundo andar.
R – Nós estávamos no primeiro, mas o chão do primeiro cedeu e ela estava com a metade do corpo dela ficou enterrado e as crianças. Foi uma algazarra: “A tia Sara caiu, a tia Sara ficou enterrada”, foi horrível. Bom, cuidamos da Sara, ela se ralou toda pusemos um tapume no chão...
P/1 – Isso na década de 1980.
R – Ah sim, na década de 1980. Não sei se alguém vai se lembrar disso, tentei pesquisar, tentei me lembrar de outras coisas mas não deu, mas foi na grande reforma da escola em 1979, 1980 por aí e depois de muito custo, uma semana depois outra professora estava dando aula e de repente “pum”. A gente vai ver, o quadro, porque não tinha quadro de giz, então a gente levou uns quadros, porque os quadros foram retirados daqui da sala pra fazer reforma, então o que a diretora fez? A ex diretora, ela tirou o quadro, pusemos tudo dentro do caminhão e quando a gente chegou lá prendeu o quadro assim com dois pregos e dava aula ali. Daí a professora tava dando aula, não me lembro quem, e o quadro despencou, caiu no chão, caiu em cima dela foi horrível e aí as crianças começaram a rir, foi uma cena que também ficou gravada durante muito tempo. E nessa época tinha um bode preto na comunidade, a comunidade tomava conta de um bode, ah...Depois do “Portuguesinho” a gente teve uma liderança aqui na comunidade que era muito respeitado, era uma pessoa muito querida da comunidade que era o Dalmir e o Dalmir tinha criação de cavalos, de porcos e os cavalos andavam por aqui, as porcas, as leitoas andavam todas aqui e ninguém mexia porque era do Dalmir. Então ele era muito respeitado e eu nunca o conheci pessoalmente embora tenha dado aula pras filhas dele, pros filhos e tal, já morreu também. Mas ele era uma figura muito querida na comunidade. Bom, aí diziam, eu não sei se o bode era do Dalmir, mas era um bode preto horroroso e aí um dia eu cheguei na ladeira do casarão e o bode tava no cume lá em cima. Então eu tinha que subir pra dar aula e o bode olhava pra mim, todo mundo conhecia essa história aqui, o pessoal da comunidade também conhece. Então o que eu fiz? Eu, muito corajosa, metida a besta, eu falei: “Eu vou enfrentar o bode”. E aí o pessoal do armazém - hoje em dia é armazém naquele tempo era uma birosca - ficou todo mundo lá embaixo olhando pra ver se eu subia. “A Dona Sônia vai subir, o bode vai correr”.O bode tinha nome, não sei qual era o nome do bode e aí o que aconteceu? Quando eu estava na metade o bode não se mexeu, eu fui andando, pensei “Bom, eu vou enfrentar ele, vou passar por ele direto”. Quando eu cheguei na metade do caminho, na metade da ladeira, não tinha esse projeto Viva a Cidade, não tinha aquelas coisas, o bode me deu uma carreira, ele correu atrás de mim eu rolei a ribanceira, eu só não morri porque não era o meu dia, eu caí onde a gente tá subindo aqui, eu caí no
capim. Então eu caí, rolei e o bode veio direto pra me pegar, só aí quando eu caí o pessoal de baixo riu muito, achou muita graça. Enfim, passou e aí toda vez que o bode tava o pessoal falava: “Não sobe não, que ele tá lá”. Eu ficava esperando o pessoal enxotar o bode pra eu poder dar aula. Aí ficamos lá durante um tempo. Depois ficou insuportável a gente trabalhar lá porque não tinha água, as crianças queriam usar o banheiro, tinham moradores em cima...
P/1 – Ah, morava gente ainda.
R – Tinha uma família lá em cima que eu não me lembro quem.
P/1 – Ainda tinha aquela casinha do lado do casarão, que hoje ela foi demolida, você não lembra disso, na frente tinha um coqueiro, você não se lembra?
R – Não me lembro.
P/1 – Então você entrava por essa, como se fosse a paralela da Rua Conde Lopes, todo mundo entrava e subia por ali, ninguém subia o que chamam de escadinha.
R – De campinho, não ninguém subia ali, as crianças tinham medo de passar por ali, o pessoal tinha medo e as professoras mais medo ainda. Então a gente subia a ladeira, entendeu, que hoje em dia a ladeira dá pra Associação. Aí a gente trabalhava no casarão mais vinculado com a comunidade, criou-se mais um vínculo. Aí não era só a Sônia, eram outras professoras que na hora da saída ficavam esperando a mãe e a mãe vinha, chamava: “Vamos comer não sei o que, vamos tomar um café, vamos fazer isso”, o pessoal mais antigo, né.
P/1 – Vocês iam na casa das pessoas.
R – Cansamos de ir na casa de todo mundo, os funcionários da limpeza que trabalhavam aqui, o falecido senhor Guilhermino que também morava aqui na comunidade, o servente daqui, também já morreu.
P/1 – Nessa época você lembra se a escola fazia algum tipo de atividade social e cultural ali na Barão...
R – Nenhuma, não tinha nada com a
Associação, não tinha vínculo, a escola funcionava como uma ilha cercada da comunidade por todos os lados, tá, sendo que um
condomínio chamado
Equitativa que tá aqui em cima da gente não tinha vínculo nenhum com a escola. Porque os moradores da Equitativa
- isso é uma outra passagem interessante pra vocês - , os moradores da Equitativa, esse conjunto aqui residencial, a maioria eram pessoas que pagavam aluguel e aí eu não sei bem como eram os detalhes, eles nunca tinham muito convívio com a gente aqui não, porque achavam que a escola era só pras pessoas do Morro dos Prazeres e eram eles lá e a gente aqui. Aqui é uma área de serviência, acho que serviência é a palavra certa, eles passam por aqui pra poder subir pra Equitativa, pois
tinha que passar pela porta da escola, mas eu tô te falando como professora da escola, eu não sei qual era a relação dos moradores da Equitativa com os moradores da comunidade, com os professores eles nem tavam aí. Até que um belo dia saiu no jornal que os apartamentos iam a leilão - isso é uma passagem muito interessante, se você entrevistar uma pessoa mais antiga, posso arrumar uma professora que mora lá e que trabalhou aqui com a gente ela vai se lembrar desse detalhe, posso te ajudar nisso. Saiu no jornal que os apartamentos iam a leilão e aí naquela época a lei dizia que a prioridade, não sei se ainda a lei é assim, a prioridade era de quem já estava morando.
P/1 – Quem aluga, quem mora tem prioridade.
R – A maioria dos moradores já tinha tempo, então qual era a sacação? Não deixar o leiloeiro passar, porque aí o leiloeiro não faria o leilão e as pessoas podiam comprar os seus apartamentos, você entendeu? Eu estou lhe explicando como a história nos chegou, quer dizer, os detalhes legais da coisa eu não sei, mas é isso. Aí a escola começou a aparecer, por quê? Porque tinha uma professora que trabalhava aqui, que era moradora de lá e que tinha o dinheiro pra comprar o apartamento. Conversando com a gente, o que a gente fez? Vamos barrar a entrada do leiloeiro e a gente barrou durante dois dias consecutivos, a criançada ficou na porta aqui da subida, onde você passou com o carro, e o leiloeiro chegava até a metade e não passava, porque o pessoal falava: “O apartamento é deles, ninguém passa”. E aí a gente não deixou fazer o leilão, mas quem era professor, morador, aí os moradores desceram, os parentes dos moradores, os professores, os alunos, todo mundo parou. Então durante três dias o leiloeiro acabou comprando a briga “Ah, eu não vou passar? Então vocês não vão deixar? Não? Chamo a polícia!”. Não chamou nada e aí eles conseguiram comprar o apartamento, a maioria deles comprou os apartamentos.
P/1 – Então no momento a escola e a comunidade do Morro dos Prazeres...
R – Aí começou comunidade, Equitativa e escola, aí começou a se criar um vínculo maior, entendeu? Aí o morador já passava: “Oi pessoal, como é que vai, tudo bem?”. Já reduzia a marcha pra poder passar a criançada, entendeu? A criançada começou a frequentar o espaço deles lá em cima com mais assiduidade, deixando de ser vistos como moradores do morro, aquela coisa, desmistificou um pouco. Começamos todos a fazer parte de um grande balaio de gatos, começamos a fazer parte de um grande balaio.
P/1 – Eu sei que tem alguns moradores do Morro dos Prazeres que trabalharam na construção.
R – Se bem quando a gente veio pra cá o condomínio já tava pronto, teve uma briga judicial... tipo assim, foi financiado, não pagaram e aí foi a leilão tem alguma coisa que eu não sei, eu só sei que isso ficou gravado, foi muito legal. Então muita gente comprou apartamento graças ao fato do leiloeiro não ter conseguido passar. Aí os vínculos começaram a ficar maiores, a escola deixou de ser uma ilha, foi começando deixar de ser uma ilha, porque aí a gente começou a criar pentáculos, né, a gente já começou a ir um pouquinho pra Equitativa, já começou ir um pouquinho pro bombeiro, o corpo de bombeiros fez uma guarita lá. Tinha o sargento Mena
- eu não sei se ele é vivo - o sargento Mena tomava conta daqui do posto, do destacamento do corpo de bombeiros. Então lá na ponta ele fez uma guarita e aqui nessa ponta ele fez uma outra guarita. Então tinha permanentemente um soldado do corpo de bombeiros ali e um lugar com fuzil na mão sem bala, só pra assustar.
P/1 – Porque são duas entradas da escola pela escada ou pela rampa aqui.
R – Entendeu, aí as crianças começaram então, aí virou Equitativa, escola, corpo de bombeiro e comunidade, entendeu? Já conhecíamos o casarão, sabíamos que o casarão não era assombrado, mas que era uma casa muito velha caindo aos pedaços. Então a gente já começou a falar assim: “O senhor mora aonde? É por cima, é pelo casarão ou é por baixo?”. Então ele já começou a fazer parte do vocabulário da gente, entendeu?
P/1 – E na escola, vocês tinham empregados aqui que eram moradores?
R – Tínhamos.
P/1 – Quais eram as funções deles.
R – Seu Guilhermino foi da Secretaria de Obras durante muito tempo.
P/1 – Era morador do Morro dos Prazeres?
R – Morador do Morro dos Prazeres.
P/1 – Tinham senhoras de limpeza, merendeiras?
R – Que eu me lembre tinha a Leocádia também, a Leocádia era moradora daqui do morro e era servente. A Leocádia era muito interessante: era analfabeta e ela era servente da escola. Então a gente ficava sem saber como uma servente trabalhando dentro de uma escola e não sabia nem ler e escrever, mas ela não tinha vontade. As vezes a gente dava uns _______ pra aprender a ler, mas ela dizia que não tinha tempo, que já tinha passado da idade, ba, ba, ba e ela não era concursada da Prefeitura. Durante um tempo -
eu também não sei o lado legal dessas coisas -
mas era assim: Trabalhava durante um tempo prestando serviço depois eram aproveitados. Então elas ficaram sendo funcionárias da Prefeitura, mas sem prestar concurso. Então a Leocádia criou os filhos dela todos aqui na comunidade e foi servente nessa escola durante muitos anos e tinha um amor por essa escola que era uma coisa de louco, então a gente também compreende quando você é da comunidade você conhece o vizinho, você conhece o aluno que é teu vizinho que é filho da fulana, você se dispõe mais a trabalhar e fazer o ambiente ficar limpo e ficar saudável e tal. Então ela tinha um grande problema, quando ela ia limpar a estante dos professores, ela ficava com medo de tirar as coisas dos lugares, porque ela não sabia ler, então o que ela fazia: o que uma faxineira fazia em 5 minutos ela levava 2 horas, porque tirava tudo da primeira prateleira sem tirar da posição, então ela tinha que pensar como ela tinha que tirar isso tudo sem tirar da posição. Aí ela limpava, depois ela voltava com tudo, depois ela tirava a segunda e fazia a mesma coisa, entendeu? Então ela foi fazendo a vida dela assim, ela encontrou uma forma de limpar e de não gerar problema pra ninguém.
P/1 – Ela é viva ainda?
R – Ela é viva, então o que aconteceu foi passando muito tempo. Aí ela ficou sendo funcionária da Prefeitura mesmo, até que a Prefeitura abriu o crédito pra casa própria e ela ganhando pouco conseguiu um empréstimo muito pequeno, mas ela disse: “Dona Sônia vou comprar minha casa” e comprou. Quando ela comprou a casa dela,
longe, num subúrbio tipo Campo Grande bem longe, bem distante daqui e aí foi o dilema dela sair daqui e ela dizia assim: “Dona Sônia, a senhora vai me soltar?” Eu dizia: “Eu não, você vai pra Campo Grande todo dia e volta”. E aí ela ia trabalhar aqui ainda, aí quando ela assinou a escritura ela falou: “Dona Sônia, agora que eu assinei a escritura, a senhora vai me soltar?”. Eu disse: “Vou porque você conseguiu a sua casa, mas saiba que você tá sempre de portas abertas na escola”. “Qualquer dia eu volto” e aí a vida encarregou-se que mudasse pra lá. Deixou um filho aqui muito, foi ex aluno nosso, muito legal. Ah, tinha a Jandira merendeira que também morava aqui na comunidade e ainda tá viva, mora até hoje. Naquele tempo também tinha um...a Paula Saldanha tinha um programa chamado Globinho e aí com o filho dela eu fiz uma história do retalhinho de pano e o filho dela foi o retalhinho. Aí foi filmado, apareceu na televisão, foi muito engraçado. Ela tinha muito orgulho do filho, o filho dela se chama Valter, hoje tá casado...
P/1 – Essa senhora que era merendeira... (troca de fita)
P/1 – Bom Sônia, dando continuidade então...
R – Eu queria falar só do seu Guilhermino. O seu Guilhermino quando eu vim trabalhar aqui ele já estava aqui, ele veio da Secretaria Municipal de Obras e veio pra Secretaria da Educação. Então, como ele era morador daqui, ele ficou trabalhando como servente aqui na escola Júlia Lopes e era uma figura muito engraçada, depois vocês vão ver o retrato dele. A escola tinha uma escada bamba, aquelas que abre assim e não tem aquela coisa que segura no meio e quando a diretora da época dizia assim: “Seu Guilhermino, o senhor tem que trocar a lâmpada” ele pegava aquela escada, entrava na sala de aula. A gente tava dando aula, ele dizia assim: “Oh, eu vou trocar a lâmpada que a diretora mandou”. A gente dando aula ele botava aquela escada subia no topo conseguia trocar as lâmpadas, porque as salas de aula
- depois um dia se você quiser eu te levo pra você conhecer as salas - tem um pé direito muito alto, então ele trocava as lâmpadas e nunca deixava as lâmpadas caírem pra machucar ninguém, mas era uma temeridade. Dizia assim: “Espera aí, seu Guilhermino, agora não pode”. “Não, a diretora mandou, tem que trocar as lâmpadas”. Aí trocava as lâmpadas e descia com aquelas lâmpadas na escada sozinho, ele ficava equilibrado naquela escada.
P/1 – Você sabe a origem dele?
R – Ele? origem como assim?
P/1 – Se era nordestino, se era mineiro?
R – Não lembro, mas a gente acompanhou a vida do seu Guilhermino até o final, assim, depois que ele morreu a gente conheceu os filhos, os netos. É uma família muito bacana que mora aqui também, são gente muito boa.
P/1 – Ainda moram aqui.
R – Moram na comunidade. Ele também era muito respeitado e ele era uma pessoa que servia de elo quando uma criança tava doente, né, fulano tava doente e aí naquela época a gente não tinha muitos recursos,
essa coisa de telefone e tal. Então ele dizia assim: “Espera aí que eu vou levar lá”. Aí ele levava a criança até em casa, depois ele voltava pra cumprir o resto do trabalho. Quando tinha alguma criança que fazia alguma peraltice aí ele chegava perto do pai: “Olha, a professora hoje chamou a atenção dele, o senhor dá um cascudo porque ele hoje fez isso, fez aquilo”. Ele também era um elo importante pra escola. Então essas coisas foram estreitando, a escola deixou de ser a professora que vem dar aula e vai embora e passou a ter comunicações, entendeu, as professoras passaram a ter pontes, né, pessoas que serviam como pontes, pra gente resolver algumas questões. Você vai ter uma outra história engraçada, é a história do Manfrine. O Manfrine é gari comunitário hoje em dia e o Manfrine foi meu aluno, então o filho do Manfrine tá estudando aqui na Educação Infantil, o Lucas. E o Manfrine sempre teve um semblante, assim, fechadão, amarrado, mau humorado, sabe, mas ele era o bam bam bam da escola, da sala de aula, ele era o fortão, aquela coisa e eu não me lembro bem, mas teve uma campanha de vacinação da escola e todas as crianças tinham que ser vacinadas. Aí as mães ficaram sabendo e tal, quando chega a hora do Manfrine, cadê o Manfrine? O Manfrine fugiu da escola e como eu conhecia todo mundo aqui, aí eu não conversei, eu saí correndo daqui, deixei a minha turma com outra professora, fui lá dentro do morro pra pegar o Manfrine, trouxe o Manfrine pelo gasganete, vim com ele aqui e... outra maluquice, ai meu Deus a gente vai começar a contar história, vou ficar até amanhã de manhã. Na época do casarão teve um dia que a gente começou a dar aula e lá em cima tinha uma janela e o pedaço que eu tava dando aula tinha um janelão. Aí a gente começou a ver lá embaixo, eu tinha um aluno que eu nunca mais soube onde esse menino foi parar, ele tinha...o nome dele era algum tipo Enéas, Isaías alguma coisa assim. Isaías, ele era muito pobre, ele tinha um defeito na fala, ele era como a gente chama hoje em dia de fanho, então quando ele falava, ele falava assim esquisito (imitando o menino falar). E aí eu me apeguei muito a esse menino, ele foi meu aluno de uma das minhas primeiras turmas e eu me apeguei muito a ele. Um belo dia, eu estava dando aula e ele não foi na escola. Eu tava dando aula quando eu olhei pela janela e vi um camburão preto e branco cheio de policia,
lá embaixo na entrada do armazém. E eu vi um policial dando um tapa no ouvido dele, porque ele era muito alto, ele só tinha tamanho e ele queria dizer alguma coisa pro policial e como ele falava o policial achava que ele tava debochando, quando o policial abriu a caçapa...Paula eu não tô mentindo, tem gente que é testemunha dessas histórias que eu tô te contando e também não teria porque mentir aqui, não vou ganhar nada com isso. Quando eu vi lá da janela e eu continuei a falar, mas olhando lá da janela, quando o policial abriu a caçapa e que ia botar ele lá dentro, eu em um minuto fui lá embaixo no camburão, eu desci o casarão, eu saí correndo, desci fui lá embaixo, disse assim...olha só quando eu me lembro, eu virei pro policial e disse assim: “Quem é o senhor pra colocar uma criança dentro do camburão?”. Ele dizia assim: “Criança minha senhora? A senhora está muito enganada, isto aqui é um delinquente”. Eu disse assim: “O senhor vai ter que provar o que ele fez”. Olha aonde que eu tava com a cabeça. Mas ele era meu, entendeu? Ele era meu aluno, ele fazia parte do meu universo e naquele momento eu tava querendo explicar pro policial que ele tinha um defeito na fala. Eu só sei que veio a turma do deixa disso: “Dona Sônia, que não sei o que, a senhora não sabe que não sei que”. Devia ter alguma coisa rolando que eu não sabia e alguém chegou e disse assim: “Calma, olha o que você tá fazendo, você tá desacatando o policial”. Aí eu fui me afastando e no dia seguinte ele apareceu de novo, foi contar a história dele que foi pra lá e depois a mãe dele tirou e etc., etc., foi mais uma das histórias do casarão. Mas eu saí atrás do homem, eu cheguei pro policial e disse: “Quem é o senhor?”. Hoje em dia eu não sei se eu faria isso.
P/1 – Quer dizer, essa é uma coisa interessante, quer dizer, essas crianças passam pela escola e o rum..., o destino dessas crianças, você não sabe?
R – A gente tem crianças que a gente já perdeu, morreram; a gente tem alunos que hoje em dia tão fazendo faculdade de Letras, faculdade de Filosofia, são profissionais liberais, são pais de alunos que se tornaram brilhantes torneiros mecânicos, bombeiro hidráulico, que
ajudam a gente aqui quando tem um momento de sufoco.
P/1 – Existe isso, alunos que se capacitam profissionalmente e depois ajudam.
R – É, porque são pais de alunos nosso.
P/1 – Mas são moradores ainda do Morro dos Prazeres?
R – São moradores ainda. Como é que tira água da bomba, pra botar água lá pra cima, eu nunca vi, nunca soube e já me vi aqui perdida. Como é que tira água da bomba. Aí liga pra Associação e pede um pai pra tirar água da bomba.
P/1 – Existe esse movimento.
R – Agora não que a Associação tá sem telefone, mas quando tá no sufoco na mesma hora:“Oh, o bebedouro pegou fogo, como é que faz?”. Aí vem o pai do aluno, vem aqui, traz a tomada. “O senhor sabe que eu não tenho dinheiro pra pagar, né?”. “Ah, mas água gelada pra eles”. Vai lá e bota água gelada, esse é o vínculo.
P/1 – Isso que é bacana da gente observar, isso é o verdadeiro trabalho, interseção entre escola e comunidade.
R – Entendeu? Esse é o vínculo.
P/1 – Quer dizer, já são muitos anos, você já tá há 25 anos aqui, é isso Sônia? Hoje você ocupa que função na escola?
R – Hoje eu sou diretora da escola, mas já fui de tudo. Eu já dei aula pra todas as turmas, já fui coordenadora, fui eu que implantei a sala de leitura na escola - depois você vai ter oportunidade de conhecer. Não tinha sala de leitura na rede, a prefeitura um dia baixou um decreto, uma lei sei lá, que toda escola da prefeitura tinha que ter uma sala que era chamada de sala de multimate. Isso sem falar que eu fiz um segundo concurso, então eu trabalhava aqui em outra escola, sempre aqui e em outras escolas. Na ________, na Casa do Pequeno Jornaleiro, na Tiradentes, na Escola Portugal na Quinta da Boa Vista, então eu fui conhecendo outras escolas...
P/1 – Fora as tradicionais.
R – Mas sempre aqui, a minha matrícula mais antiga é sempre aqui. Aí um dia, na época era essa diretora Esmeralda. Aí ela disse assim: “Olha, eu tô pedindo pra fazer a sala de leitura”. Aí eu falei, eu gostava muito dela, eu achava ela uma diretora enérgica, não era ditadora, mas era uma pessoa competente, então eu disse pra ela: “Mas Esmeralda, o que precisa pra fazer uma sala de leitura aqui?”. Que não era sala de leitura, era sala de multimate. Aí ela disse assim: “Espaço eu tenho lá em cima”, porque não tinha essa procura de alunos como tem hoje, hoje você tem criança pelo ladrão, soltando criança pelo ladrão. Mas antigamente
você tinha turmas com poucos alunos, não tinha essa procura toda.
P/1 – Quantos alunos tinha numa turma sua aqui, por exemplo?
R – Ah, a gente teve turma aqui, não foi meu caso, mas nós tivemos turmas aqui de 15 crianças, 18 crianças.
P/1 – E hoje quantas são?
R – Hoje a gente tem, eu respeito portaria como eu já te falei, você tem terceira e quarta série com no máximo de 38, não chega a isso, depois eu passo os números corretos pra você e tem o ciclo todo com 30 e Educação Infantil com 25 e tem uma turma de progressão, crianças com 9 anos ou mais, crianças que vêm de fora na maioria, né, muitos também são nossos com 25 alunos por aí. Mas eu tava falando...
P/1 – Da sala multimate.
R – Aí eu perguntei pra ela: “O que precisa pra abrir uma sala multimate?”. Aí ela foi pegar o regulamento e se eu não tô enganada você tinha que ter pelo menos 500 livros, não importa se tinha revista, livros de romance, tinha que ter 500. Se você tivesse 500 você abria uma sala de leitura com autorização da Prefeitura. Ah, minha filha foi comigo mesmo. Saímos por aí “catando” livro, pesquisando, nós conseguimos mais de 500, aí ela entrou com o pedido de abertura de sala de leitura. Aí todo mundo começou a ajudar, aquilo que eu te falei: “Lembra sempre dessa imagem, a escola deixou de ser a ilha pra virar o povo”, entendeu? Porque é uma figura que eu uso muito, porque aí eu já te mostrei o braço da Equitativa, o braço da comunidade, o braço do bombeiro, agora vou mais longe, lá no Ceart. Aí o Ceart começou assim: “Vocês têm sala de leitura? Vocês tem sala de multimate? Ah, nós vamos fazer uma limpa aqui”, porque o Ceart sempre foi uma escola, naquele tempo era Pueri
Domus. “Então, olha só, aqui tem uns jogos de madeira que a gente não quer mais, vocês querem?”. Manda, aí uma escola japonesa que funcionava na Quinta do Bosque, sabe onde é? Quinta do Bosque na Rua Prefeito João Felipe, conheci outra professora daqui que morava perto, falava: “Sônia, eu tô com um material da escola japonesa que tá vindo do Japão, um mais novo. Você quer ficar?”. Manda! Aí a sala foi ficando, foi vindo gente dando enciclopédia, aí a gente, um dia você vai lá ver como é que tá a sala.
P/1 – E isso é uma questão interessante, em relação a questão da leitura, as crianças lêem?
R – Lêem, a gente tem um acervo super legal.
P/1 – Eles podem levar livros pra casa.
R – Podem levar livro pra casa, o ano passado eu tinha o elemento da sala de leitura.
P/1 – O que quer dizer isso.
P/1 – É uma professora na função de elemento da sala de leitura. Então ela fica na sala de leitura fazendo empréstimo, recebendo, contando história. Mas aí tem um break. A Esmeralda quando viu: “Sônia, você conseguiu? Então eu vou fazer uma coisa com você, eu vou te requisitar na sua segunda matrícula, você volta a trabalhar aqui com as duas matrículas”. Aí eu fiz a minha requisição, eu fiquei sendo professora numa matricula e na outra sala de leitura. E eu fazia tudo ao contrario da secretaria, tudo, eu fazia assim... a secretaria falou assim: “Professor que tiver na sala de leitura, pra ficar dentro da sala emprestando livro e recebendo aluno pra pesquisa”. Aí eu falava: “Tá bom, tudo bem”. Aí eu vinha pra cá e dizia assim: “Oh, professor, você toda terça feira manda a sua turma pra mim”. Aí toda terça feira vinha na hora na sala de leitura, aí passava cineminha, retro projetor, a gente conseguiu filmes, projetar o corpo humano, aí eles foram começando. A escola começou...a escola era a última do ranking, ninguém vinha pra cá: “Eu hein. Santa Teresa! Prefiro Paquetá, lá em cima perto do morro, eu não”.
P/1 – Professor que você tá falando, do profissional.
R – Do profissional, preferia Paquetá do que vir pra Zona Norte. Aí todo ano começava com falta de professor, todo ano turmas ficavam em casa até a professora aparecer. O professor vinha, ficava esperando o ônibus um tempão, aí desistia, a escola era a última. Só que começou a ter aula de leitura, ter envolvimento, a maioria das professoras que trabalhavam aqui moravam em Santa Teresa e começaram a criar raízes, começaram a dizer: “Então eu dobro, me dá uma turma aí que eu dobro”. Então em vez de três turnos passou a ser dois.
P/1 – A maior parte das professoras daqui já são moradoras, já são professoras há muito tempo?
R – Há muito tempo. As mais antigas sou eu, depois a Rosana que fez faculdade comigo, mas veio um
ano depois e tem a Vera. Mas a maioria mora aqui, 90% mora aqui.
P/1 – Agora em relação a desenho, eles escrevem, eles desenham, eles retratam a comunidade que eles moram, de alguma forma, quer dizer, visualmente?
R – Quando tem uma atividade que a proposta é essa, eles falam, conversam. A gente já passou aquela fase em que todo mundo desenhava bandido e o helicóptero metralhando, a gente passou uma fase aqui assim, todos os desenhos retratavam muito sangue, muita violência, acidente no bonde, isso era muito claro. Hoje a coisa existe, mas, assim, não é que ela seja violada, tem outros apelos quando esses ficaram abafados. Um outro fato importante que a gente nota também, a gente comenta muito é a vinda da Assembleia de Deus, dos evangélicos, porque tem vários ramos da evangelização, eu não sei bem se isso que eu tô falando tá correto. Porque é assim, quando você faz a matricula, você pergunta: “Qual é a sua religião?”.
P/1 – Você pergunta isso?
R – Eu pergunto porque eu sou obrigada.
P/1 – Isso é uma exigência normal?
R –É uma exigência da ficha de matrícula.
P/1 – Olha que interessante eu não sabia que existia isso. Aliás eu acho que agora voltou isso do Ensino Católico.
R – Voltou a prática do Ensino Religioso. Mas eu costumo falar pras minhas meninas que há uma forma de você
trabalhar isso numa sala de aula, trabalhando questões como: solidariedade, amizade, não dá um enfoque na sua religiosidade.
P/1 – A realidade do Brasil.
R – Então a maioria faz, então eu acho que isso também fez
que eles começassem a enxergar um outro lado, quer dizer, teve outras coisas. A escola ganhou computador, a escola tem fax, a escola tem televisão, a escola tem música, então não é só o helicóptero. Naquele tempo existia só lá e aqui, agora tem lá, aqui, o mundo, o Japão tem outras coisas, os apelos são maiores. Naquele tempo a gente levava o aprendizado pra fora, hoje o universo tá dentro da escola, hoje é ao contrário. Eu quando peguei a minha primeira turma de primeira série um aluno me perguntou aonde fica o Japão? Eu disse pra ele assim: “Isso você só vai aprender na quarta série”. Hoje o meu menino de 4 anos, ele discute com você o que significa internet, ele pode não saber mexer no computador, mas ele fala: “O que é internet tia?”.
P/1 – Vocês têm acesso a internet aqui?
R – Os alunos não, a gente tem internet aqui no sistema de controle acadêmico, onde tá a vida toda da escola, tem dois computadores na secretaria. Um é o sistema de controle acadêmico, o outro é a internet. Então quando você vai levar as crianças ao planetário por exemplo, você acessa a página do planetário e aí você divulga aquelas coisas. E dois computadores lá em cima, um doado por um morador da Equitativa e o outro que a gente ganhou, quando foi considerada a melhor escola do Centro da cidade em 1999, nós fomos receber das mãos do prefeito Luiz Paulo Conde um computador...
P/1- A melhor escola.
R – A melhor escola do centro.
P/1 – Como assim, foi melhor no sentido de resultado, de projetos educacionais?
R – Não, da pesquisa segundo o jornal O Dia. A gente nunca sabe direito como isso aconteceu, dizem, eu nunca tive acesso aos pesquisadores, a gente nunca soube como isso aconteceu. Nós recebemos uma carta dizendo: “Olha, parabéns vocês ganharam um computador”. E aí depois disseram que o jornal O Dia fez uma pesquisa perguntando às pessoas do Centro da cidade, qual era a melhor escola pública e as pessoas que foram entrevistadas diziam: “Júlia Lopes, Júlia Lopes”. Mas isso foi, assim, depois desse tempo que eu te falei que não tinha professor e tal. Então as pessoas começaram a criar raízes e depois disso eu me orgulho muito, eu acho que isso é uma conquista do meu grupo, que é quando você antigamente começava o ano sem professora, hoje tem gente que liga pra mim: “Tem vaga pra eu poder trabalhar aí?”. Entendeu? Matou a pau, pronto, acabou, ganhei o dia. Então é isso, tem gente que fala assim: “Olha, eu queria trabalhar na Júlia, vou falar contigo se tiver alguma vaguinha lá, se alguém desistir, se você precisar de uma dupla”. “Ah tá, tudo bem, pode deixar”. Quer dizer,
é muito legal ver o resultado desses anos de trabalho, a gente tem dificuldade, tem defeitos, eu tenho um grupo de professores que ainda precisam caminhar muito, tanto pelo lado pedagógico da coisa como o lado sociológico, pra gente compreender melhor que comunidade é essa. Todo mundo ganha agenda, eu troco agenda com dinheiro de venda, não sou obrigada, mas todo mundo ganha agenda, no início do ano eu vou lá e dou agenda. No primeiro ano que eu fiz isso uma professora chegou e disse: “Isso é um absurdo, olha como essa agenda me volta, toda comida, parece que pegaram a agenda e morderam a agenda”.
A garota chorava desesperadamente, chorava e ela disse: “Não é um absurdo, a escola deu a agenda, não sei o que lá ba, ba, ba”. Quando chegou no final do dia eu falei pra ela: “O que foi, o que houve?, O que foi que aconteceu que a sua agenda ficou dessa maneira?” “Tia, não conta, foi o rato que roeu”. Então não foi ela que comeu, o problema não foi dela, o problema foi que na casa dela, onde ela morava naquela época, tinha rato.
P/1 – E como é que vocês acham que vocês compreendem hoje a comunidade do Morro dos Prazeres?
R – Conversando. Eu tenho professora aqui que nunca entrou na comunidade, mas ela percebe numa fala que... hoje em dia eles falam muito mais. Eu dou camiseta pra todo mundo, eu nunca vendi camiseta, eu sei que tem escola vizinha minha que cobra seis reais.
P/1 – Porque você faz isso?
R – Porque é verba pública, eu pago imposto, você paga imposto, é um direito deles, então se veio tem que distribuir. No entanto, eu faço menino assinar de que tá recebendo a camiseta e zelar por aquele uniforme. Por isso, quando eu dou entrada, eu pergunto: “Cadê a sua camiseta?”. “Ah, tá lavando tia”. “Tá lavando? Mas hoje é segunda feira, você não lavou a sua camiseta sábado e domingo”. Aí eu me sinto no direito de cobrar, entendeu? Então eu coloco pra eles, por exemplo: “Cadê a camiseta?”. Eu também tive mãe que chegou aqui e disse assim: “Dona Sônia, o meu marido tá desempregado, me arruma uma camiseta pra ele entrar de graça no ônibus?”. “Não mamãe, não dá certo não, sabe por quê? Essa camiseta é pro menino da quarta série, que ele é maior”. Mas sempre tem colega... não é falta de ética eu tá falando isso, porque eu sei que isso acontece, né, não tá gravando mais?
P/1 – Tá gravando.
R – Eu sei que tem diretor que pega camiseta manda gravar o nome e depois revende. E aquele dinheiro que foi mandado gravar o nome foi dinheiro de verba também, entendeu. Então hoje eu mostro o meu almoxarifado pra você, eu hoje compro todo o meu material com dinheiro de verba que eu queria ter na época que eu dava aula, porque uma vez eu cheguei aqui eu disse assim: “Diretora, eu tô precisando de uma caixa de giz colorido”. “Que giz colorido? Você tá pensando que tá trabalhando pra escola particular?”. Então hoje todo mundo que começa a trabalhar aqui, seja velho ou seja novo, ganha o seu kit com seu material bonitinho pra criançada. Todo dia eu passo na sala de aula: “Estão precisando de alguma coisa?”. Ou é um lápis ou uma borracha, agora eu dou, mas tem que dar valor ao que estou dando, porque aquilo não está vindo de graça, foi o pai que pagou o imposto, é a mãe que ralou pra poder comprar aquilo, então a gente tem que dar valor. Então é uma escola de comunidade carente, mas a gente tenta suprir da melhor forma possível. Agora tem uma porção de coisas erradas que a gente ainda vai consertar daqui a um tempo, entendeu?
P/1 – Tá bom Sônia. Pra ir finalizando, como é um dia seu hoje?
R – Como é um dia meu? Eu entro aqui
7h15, dou entrada às 7h30
pro primeiro turno e aí eu costumo dizer que é o primeiro tempo do jogo, ali eu dou o primeiro tempo do jogo até meio dia. Aí às vezes, dependendo da agenda, tem uma reunião ou outra e aí não tenho carro, nunca tive, tenho medo de dirigir. Então quando eu vim pra direção, a primeira providência que eu tomei foi me cadastrar numa firma de táxi. Eu fiquei cadastrada e, quando eu tenho reunião, eu faço o seguinte: ligo e digo “Me pega às 10 horas que eu tenho uma reunião marcada às 10 e meia”. Aí o motorista vem, eu pago o taxi, eu vou lá na reunião e volto, entendeu?
“Você faz isso por quê? Os outros diretores vão embora, né”. “Porque você faz isso, você não tem confiança na sua adjunta?”. Tenho, mas eu sempre falo: “Eu preciso ter o olhar da coisa, eu preciso ter, o meu olhar é muito descartiana, eu não sou assim compartimentar, eu tenho que ter a visão do todo”. Hoje em dia eu consigo conversar com você sabendo se o caminhão da merenda tá chegando e consigo falar com você sabendo se a turma da Eunice tá descendo pra Educação Física ou não.
P/1 – Isso é importante pra um cargo de diretora?
R – É importante saber quem tá, porque fisicamente essa escola tá mal construída, essa secretaria deveria está lá na ponta. Então como você tá aqui no fundo, eu não posso ser uma diretora de ficar sentada aqui o tempo inteiro. Então essa coisa burocrática, ela é feita depois do expediente quando não tem mais ninguém. Então depois que eu vou ler os e-mails, eu vou ver os detalhes de polo que estão chegando, tudo no final do dia. Quando sai a última pessoa eu sento ali, é que eu vou preparar memorando, ofício e tal. Durante o dia eu fico assim vou às salas...
P/1 – Sua sala é aberta, os alunos podem entrar?
R – É aberta, aqui todo mundo pode entrar.
P/1 – Os alunos vêm…?
R – Primeira coisa foi sair do castelo...aí eu deveria tá falando com uma psicóloga, aquela pessoa que me atendeu ali, que eu não critico o momento dela que me avaliou pelo meu tamanho. Hoje, se eu tiver que falar com a minha chefe aqui, eu vou tá falando com todo mundo sentado aqui. Tem gente que na hora de almoçar, almoça aqui: “Sônia você tá fazendo alguma coisa?”. Eu falo: “Não”. Aí vai lá, pega o seu joguinho americano, senta aqui e come.
P/1 – Mas eu achei interessante que os alunos também entram aqui, as crianças entram, conversam, você chama atenção aqui...
R – Chamo atenção, elogio, passo esporro, tudo aqui.
P/1 – E você conhece muitos pelos nomes ou praticamente...
R – Às vezes eu erro, por exemplo: Josué é irmão do Estevão e eu fico assim: “Oi, Josué, poxa, mas você não sei o quê, não sei o que lá”. Aí ele me escuta, quando eu acabo ele fala assim: “Tudo bem, Sônia, mas olha, eu sou o Estevão”. “Ah, não faz mal, dá tudo no mesmo”. Então às vezes eu me atropelo, não dá pra entender todo mundo. E elas morrem de rir porque eu sou muito assim, eu faço muitas coisas ao mesmo tempo, então elas às vezes morrem de rir comigo. Então a merendeira fala: “Hoje a senhora tirou tudo, menos a massa de tomate”. Então aí tem que parar tudo pra ver a massa de tomate, entendeu? Eu faço tudo.
P/1 – Você sai que horas geralmente daqui?
R – Pela lei, sete horas, mas já são quase oito, não tem problema se eu tiver que ficar, fico, e depois eu chamo um táxi, ele vem, me pega e vou pra casa.
P/1 – Então tá bom, e pra finalizar se você pudesse mudar alguma coisa na sua trajetória de vida o que você mudaria?
R – Na minha trajetória de vida profissional?
P/1 – Ou particular.
R – Particular eu mudaria tudo...mas, na particular eu mudaria tudo.
P/1 – E na profissional?
R – Na profissional eu não mudaria nada. Eu acho que só lutaria mais pra não ter perdido tanto tempo, acho que a coisa poderia ter sido mais rápida, essa conquista da escola junto à comunidade ela poderia ter sido feita mais rapidamente. Eu compreendo que isso é um trabalho lento, ele vem devagar, ele vem com calma, é uma coisa que vai acontecendo aos poucos, mas hoje com a experiência que eu tenho, eu acho que já poderia ter acontecido há mais tempo. E eu tenho uma frase - hoje é o primeiro contato, eu faço isso com todo mundo que vem conhecer a gente aqui -
eu digo assim: “Quem vem trabalhar com a gente aqui, merendeira, servente, professor, coordenador pedagógico, ONGs que trabalham com a gente….O ano passado eu tive uma ONG, esse ano eu tenho outra...que trabalham com a gente não têm que vestir a camisa da Júlia Lopes, tem que engolir a camisa da Júlia Lopes”. Então eu sou uma vibradora, tenho defeitos, eu conheço um monte de diretores que eu me espelharia hoje em dia, porque têm domínio da coisa. Sou ditadora em algumas partes, sou democrática em outras, tem um monte de gente, tem uma definição de um professor de música meu que diz: “Sônia, ame-a ou deixe-a”. Não tem meio termo ou ame-a ou deixe-a, mas eu costumo dizer o seguinte: “Tem que acreditar no que tá fazendo, tem que levar fé no que tá fazendo” pra gente entrar tranquilo você tem que se dedicar no que você tá fazendo. Então merendeira, faça bem a sua comida; funcionário de limpeza, faça bem a sua limpeza; diretor faça a sua função direitinho; Lúcia, diretora adjunta, faça a sua função direitinho, e aluno, faça a sua função direitinho, o resto a vida vai se encarregar. O resto... Eu não vou ficar pensando no futuro, se vai virar isso, se vai virar aquilo. Não tem guarda municipal na porta da escola, não tem policial na porta da escola, sou conhecida...(troca de fita)
P/1 – Você sabe quem foi Júlia Lopes?
R – Sei, foi uma escritora moradora aqui em Santa Teresa durante muito tempo, adorava bichos, patos foi uma briguenta, uma lutadora, uma das batalhadoras pelo voto feminino. Não sei como a Prefeitura escolheu o nome dela, mas a gente quando fez a festa do patrono o ano passado, eu tive trabalhando comigo uma profissional excelente chamada Sandra, que foi a minha coordenadora pedagógica o ano passado e a gente fez a reconstituição da vida da Júlia Lopes. E aí as crianças fizeram teatro, tem tudo isso em fotografia aí. As crianças fizeram teatro e a gente convidou o sobrinho neto dela, ele esteve presente aqui, mora em Santa Teresa. Veio, conheceu e é um engenheiro aposentado. Aí ele disse: “Qualquer problema que tiver me chama”.
P/1 – E você sabe de quando é a escola, ela é datada, ela é fundada quando?
R – Só vendo lá em cima, assim de cabeça eu não lembro. Isso é uma das coisas que eu preciso fazer, aqui embaixo colocar a data de nascimento dela e a data de falecimento.
P/1 – Tem uma fotografia aqui na sala da Sônia muito bonita ela, muito expressiva, né, o rosto.
R – Muito, muito.
P/1 – Tá bom Sônia, então pra finalizar o que você achou de ter participado do projeto memória do casarão e da comunidade Morro dos Prazeres.
R – Eu acho que tem muita história pra contar não dá pra falar num dia só e acho que seria muito legal não só me ouvir, porque aí fica uma coisa só da minha vibração. Tem outras pessoas que são não tão antigas quanto eu, mas que tiveram uma história e que tem um envolvimento com a comunidade também muito legal, que tem uma participação na comunidade, a briga pra gente ser diretora aqui da escola, porque a gente passou uma época achando que chega de botar azeitona na empada dos outros, a gente é capaz, então a gente vai ter a Maria Lúcia que você conhece que é uma pessoa muito “brigadora” que trabalha aqui, que também é vibradora com a comunidade. A Rosana que foi a minha colega de faculdade e quando chega um belo dia a Rosana me entra aqui dizendo: “Eu escolhi essa escola pra trabalhar” e que tá aqui até hoje, que é da mesma geração que eu, a Vera que já é uma profissional aposentada, a Conceição que chegou aqui morrendo de medo porque só pegava criança de quarta série. Aí eu dei uma turma de primeira e ela chorava durante uma semana seguida: “Eu quero voltar pro Campo Grande”. Aí um dia cheguei nela e falei: “Escuta aqui, quem vive de passado é museu, chega, acabou, Campo Grande acabou agora é Santa Teresa”. Aí caiu a ficha e hoje em dia ela não quer mais largar a turma dela, entendeu, tem essas coisas. E tem a moradora que mora aqui dentro da escola, a responsabilidade de todos os bens é dela, de tudo que acontece é dela, também é uma pessoa vibradora com os grupos e tem outras histórias.
P/1 – Tá bom, então eu te agradeço e muito obrigada Sônia.Recolher