Projeto Cotidianos Invisíveis da Ditadura.
Entrevista de Fernando do Ó Veloso
Entrevistado por Lucas Torigoe (P/1) e Luis Ludmer (P/2)
São Paulo,13 de abril de 2022
Entrevista número COIND_HV0006
Revisado por: Nataniel Torres
P/1 - Seu Fernando, é uma honra, um prazer estar aqui com o senhor, de verdade. A primeira pergunta eu sempre falo que é muito difícil. Qual é o seu nome completo, local e data de nascimento?
R - Meu nome é Fernando do Ó Veloso, nasci em Tauá, Ceará, dia 23/08/1942.
P/1 - E seu Fernando, você nasceu em hospital, em casa, como é que foi?
R - Em casa, chamava a parteira, que a gente acabava chamando de mãe também.
P/1 - A sua mãe e o seu pai te contaram como é que foi o nascimento do senhor, se foi difícil, se foi fácil, como é que foi?
R - Não teve notícia de que foi difícil não. Eu sou o último filho da minha mãe. Meu pai foi casado duas vezes, eu sou o último filho, minha mãe já tinha 09 filhos. Então o caminho já estava mais aberto. Não tem para onde derrubar o Breno não, que é a notícia que eu tenho, e eu nasci na roça, na sorte, na raça.
P/1 - E qual é o nome completo da sua mãe?
R - Maria Eduarda do Ó do Nascimento. E o meu pai chama-se Rodrigo Pereira Veloso.
P/ 1 - E como é a família da sua mãe, você conheceu a família dela?
R - Conheci os irmãos, meus avós morreram antes de eu nascer, meu avô casou três vezes, minha mãe era do terceiro casamento.
P/1 - E a família dela, é todo mundo de Tauá e da região?
R - É toda de Tauá. Os parentes do meu avô era descendente de português, dos Amorim, de origem lá de Trás-os-Montes, se não me engano, meu tataravô, veio de lá de José Amorim. Casou com os Veloso e virou tudo, misturaram do Ò, Veloso, no interior todo mundo acaba virando uma família só depois.
P/1 - E esse "do Ó" veio de quem esse sobrenome?
R - Veio de minha mãe. Eu sou dos Gomes, família muito grande lá. A história que a gente tem é que minha...
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Entrevista de Fernando do Ó Veloso
Entrevistado por Lucas Torigoe (P/1) e Luis Ludmer (P/2)
São Paulo,13 de abril de 2022
Entrevista número COIND_HV0006
Revisado por: Nataniel Torres
P/1 - Seu Fernando, é uma honra, um prazer estar aqui com o senhor, de verdade. A primeira pergunta eu sempre falo que é muito difícil. Qual é o seu nome completo, local e data de nascimento?
R - Meu nome é Fernando do Ó Veloso, nasci em Tauá, Ceará, dia 23/08/1942.
P/1 - E seu Fernando, você nasceu em hospital, em casa, como é que foi?
R - Em casa, chamava a parteira, que a gente acabava chamando de mãe também.
P/1 - A sua mãe e o seu pai te contaram como é que foi o nascimento do senhor, se foi difícil, se foi fácil, como é que foi?
R - Não teve notícia de que foi difícil não. Eu sou o último filho da minha mãe. Meu pai foi casado duas vezes, eu sou o último filho, minha mãe já tinha 09 filhos. Então o caminho já estava mais aberto. Não tem para onde derrubar o Breno não, que é a notícia que eu tenho, e eu nasci na roça, na sorte, na raça.
P/1 - E qual é o nome completo da sua mãe?
R - Maria Eduarda do Ó do Nascimento. E o meu pai chama-se Rodrigo Pereira Veloso.
P/ 1 - E como é a família da sua mãe, você conheceu a família dela?
R - Conheci os irmãos, meus avós morreram antes de eu nascer, meu avô casou três vezes, minha mãe era do terceiro casamento.
P/1 - E a família dela, é todo mundo de Tauá e da região?
R - É toda de Tauá. Os parentes do meu avô era descendente de português, dos Amorim, de origem lá de Trás-os-Montes, se não me engano, meu tataravô, veio de lá de José Amorim. Casou com os Veloso e virou tudo, misturaram do Ò, Veloso, no interior todo mundo acaba virando uma família só depois.
P/1 - E esse "do Ó" veio de quem esse sobrenome?
R - Veio de minha mãe. Eu sou dos Gomes, família muito grande lá. A história que a gente tem é que minha bisavó estava grávida e fez essa promessa para Nossa Senhora do Ó. Aí ficou um dos irmão do Ó, e outros Gomes, e a família do Ó acabou crescendo tanto, quanto os Gomes, cresceram muito também, que é a mesma coisa.
P/1 - E por que fez promessa para Nossa Senhora do Ó?
R - É porque naquela época não tinha médico e tinha é um pessoal muito religioso, se não me engano essa santa também é de Portugal, veio de lá já essa crença, Nossa Senhora do Ó é a protetora das mulheres grávidas, ficou essa promessa, aí ficou os do Ó, ninguém tirou mais do Ó, ficou normal. Muitas vezes existe um nome forte, mas muitas vezes a gente recebe muita gozação, Fernando do Ó grande, essas coisas (risos), mas agora eu já acostumei, antes se eu ficasse meio assim, tinha muita gozação, o povo parou, quando o pessoal não conhece fica ignorando, a minha sorte é que agora tem a Freguesia do Ó, ficou mais conhecido Nossa Senhora do Ó aqui, e tem uns do Ó na Paraíba também filho, que são mais velhos que nós, só que a gente não tem notícia se é da mesma origem, do mesmo lugar de Portugal. Então nós somos desta tradição religiosa, eu carrego isso, apesar que hoje eu não sou muito mais religioso não.
P/1 - E você nasceu se eu tinha vários irmãos, você era o menorzinho?
R - Tinha 9 anos, eu era o mais novo, minha mãe morreu e eu tinha 01 ano de idade. Entretanto, eu não conheci minha mãe, não deixou foto, vem de meu pai que trouxe aqui. E meu pai casou pela segunda vez com a irmã de minha mãe, uma caçula, e teve mais 10 filhos também, nós somos em 20 irmãos, hoje tem 11 vivos, graças a Deus, porque a gente sente falta, cada um que morre faz uma falta.
P/1 - O senhor teve onze filhos, é isso?
R - Eu não. Irmãos, dos dois casamentos de meu pai. Somos em onze ainda.
P/1 - E como é que era a casa de vocês com tanta criança?
R - A gente morou em praticamente dois lugares. Moramos na casa que era do meu avô, depois a gente mudou para outro lugar, chamava Cajueiro. Meu pai comprou uma fazenda lá, ficava no município de Independência, era um distrito agora virou cidade, mas todos nós fomos registrados como de Tauá por causa da família, também ficava mais perto, tinha mais jeito de ir para lá, Independência ficava mais distante.
P/1 - E vocês faziam o que para viver na época, trabalhava no campo?
R - A gente era agricultor, criava os animais, um pouco de gado, cabra, ovelhas, as galinhas, sustento da roça, trabalhava na roça. Meu pai foi um agricultor toda a vida dele, com 18 anos, ia fazer 19, vim embora para São Paulo, desde então vivo na cidade.
P/1 - E conta uma coisa, o senhor começou a trabalhar muito cedo ou não?
R - Com 07 anos por aí, na roça ajudando meu pai, cuidando dos animais. E na roça era o seguinte, não tinha escola, e os pais levavam os filhos muito cedo para roça, eu estudei no Ceará. Meu pai, os parentes contratavam os professores no final das safras, 01, 02 meses de estudo, eu vim terminar o primário aqui em São Paulo.
P/1 - E vocês plantavam o quê? Tinha alguma coisa específica?
R - Feijão, milho, um pouco de algodão. Em Cachoeira, onde eu morei, ficava perto da divisa com Piauí, a gente tinha uma serra lá que chama-se Serra Gerais, que a gente plantava mandioca também. Essa região lá do Piauí já era mais feijão, a região é arenosa, a gente era muito bom para feijão e melancia, a melancia dava que se estragava, mas ninguém vendia.
P/1 - E você trabalhando muito, o senhor brincava também nessa época, vocês brincavam do quê?
R - A gente brincava mais à noite quando estava de folga. Ia para o açude tomar banho, brincava, chama-se coringa, pega-pega de um correr atrás do outro, quem é mais ligeiro dentro d'água, era isso, brincando de cavalo-de-pau. Tinha os brinquedos também, baseado nos animais, osso de animal, tudo sequinho, você limpava, fazia suas boiadas de bolsa de boi, esse negócio de vaca. E, nas noites de lua cheia, reunir a família, sempre reunia final da noite, não tinha televisão, ficava muita gente, os mais velhos conversando e a molecada brincando. Às vezes, de esconde-esconde também, se brincou muito, acho que é uma brincadeira velha que na cidade também tem isso, é tradicional, a gente chamava passar o anel, ou a pedrinha ou o anel mesmo, você passava na pessoa e aquela que você mais gostava você deixava, pedia para a pessoa adivinhar, tinha bastante roda de pessoas, e perguntava onde estaria o anel, a pessoa desconfiava ou chutava também, geralmente você deixava na pessoa que você mais gostava ou na paquera, as brincadeiras um pouco isso.
P/1 - E os mais velhos contavam histórias para vocês também?
R - Às vezes contavam as histórias do avô, dos parentes, essas histórias de medo também, de assombrações. Eu tinha muito medo de alma, ficam falando e eu detesto, eu tinha muito medo de passar a noite onde tinha uma cruz, porque o pessoal falava muito em alma, tinha muitas história, eu acho como a ignorância do ser humano é assim, a pessoa quando não tem, eles acabam jogando medo na criança, é uma forma de educar, e muitas vezes falava nas religiões, "não faça isso que Deus castiga você", depois que eu fui crescendo e vendo que Deus é amor. Como é que Deus castiga o inocente? Comecei a ficar me questionando um pouco sobre aquela tradição nossa lá. Eu fui criado com madrasta, apesar de ser irmã de minha mãe, mas muitas vezes ela tinha preferência dos filhos dela, com razão, e a gente sentia a diferença, eu ficava muito chateado por não ter conhecido minha mãe e questionava Deus. "Meu Deus, eu sou uma pessoa meio rebelde desde criança mesmo, fiz uma greve contra o meu irmão com 07, 08 anos de idade, me chamou para trabalhar, quando eu estava cansado perguntei se ele ia me pagar, ele falou que não ia, eu falei, "então, não vou trabalhar mais", fiz uma greve. Ele me deu uma surra. Fiz a minha primeira greve, fui reprimido. Mas eu brincava com meu irmão que é o mais velho, meu pai dava ordem para ele quando saia, ele era o chefão, “tem que obedecer o Chico”, e eu já tinha aquela raiva de ficar obedecendo um irmão que eu achava que era igual a nós. Uma vez, tem uma brincadeira no livro que eu falo dele, mas eu não cito quem sou eu, nem ele, eu fiz a greve, minha irmã estava ajudando e não aderiu, foi uma fura greve, eu fiz a greve sozinho, acho que não durou 10 minutos, foi isso um pouco da minha infância, tem muita coisa.
P/1 - Conta para mim então, o que te marcou muito dessa época, coisa que o senhor lembra até hoje, de algum dia, de alguma situação?
R - Quando chovia marcava muito, a chuva, que o cearense vive de esperança da chuva, e quando chovia a gente ficava muito feliz, muito alegre. Em 58, teve uma seca que eu fiquei com medo de passar fome, chamava paiol onde meu pai guardava muito feijão, milho, guardava para os animais, para comer e faltou. Em 69, quando choveu, meu pai teve que tomar emprestado para comer mais ou menos uns 15 dias, faltou comida, arroz, milho, foi um negócio que marcou muito, eu fiquei com medo, aí o feijão amadureceu e começamos a ir buscar, mas foi uma seca comprida, foi um negócio difícil. Uma coisa que marcava muito lá era a tradição da semana santa. Minha tia e madrinha de batismo, meu pai casou com a comadre, com a cunhada, ela fazia rezava também, marcava muito o negócio da sexta-feira da paixão, aquele jejum que se tinha, não podia comer nada, eu não gostava muito, isso marcava muito a gente, você acorda e quer tomar seu café, aí só depois do meio-dia, não podia comer nada, não podia falar palavrão, não podia falar, era meio dura, bem religiosa o negócio.
P/1 - Tinha uma festa, alguma festa que você gostava mais, vocês esperavam bastante algum evento?
R - No sábado de aleluia, a gente gostava que meu pai matava um porco, matava carneiro, fartura, passava um dia fome, no outro, recompensava. Isso era bom. Tinha as festas lá no Ceará, de algodão, já era distante, mas o padre fazia uma vez por ano também, era um negócio que marcava tanto a criança, como principalmente os jovens que iam lá para paquerar, essa festa tinha a missa e tinha o pessoal que vendia comida tradicional, cada um levava alguma coisa para vender, o pessoal fazia galinhada, fazia bolo, essas coisas, bebidas, e depois, quem gostava de dançar tinha um chitão. Geralmente, depois de meio dia, todo mundo ia dançar, passava o dia todo essa missa, o padre fazendo diversas missas também de casamento, o pessoal aproveitava para casar no dia, chamava casamento no queimo, e tinha o padre Odorico casava por dinheiro, ele gostava de dinheiro, e não tinha esse negócio de ficar fazendo curso de noivo, ele chegava lá e casava o pessoal no mesmo dia, ele era um padre bem prático, não tinha muita burocracia com ele. Então ele casava todo mundo que ia para lá, eu vi muito casamento desse tipo, meus irmãos, tem uns que casaram também no mesmo dia, na mesma hora assim, nem sabia que ele estava namorando, o cara estava casando já.
P/1 - E você namorou muito nessa época antes de vir para cá?
R - Eu era meio namoradorzinho, dançava muito, gostava de dançar um forró, era meio namorador, perdi uma noiva lá por causa de safadeza minha, por causa de conversar, é namorico, 18 anos, era meio bobão naquela época, os namoros de lá eram muito difícil, você mal pegava na mão da pessoa, escondido dos pais, minha família é muito assim, meus irmão quase todos, menos eu, todo mundo casou com parente praticamente, só eu e minha irmã casou aqui, a maioria tudo casou com primo ou parente próximo, tinha esse negócio, todo esse respeito, você não podia namorar na forma avançada, porque tinha medo dos velhos, tinha medo de acontecer qualquer coisa e ter que casar na marra. Mas antes dos 20, eu cheguei a namorar assim, namorico. Quando meu irmão foi casar, eu estava com umas 04 namoradas no dia, era meio namoradorzinho, mas só namorico. Só essa minha prima que a gente tinha umas ideias de boas intenções vamos dizer.
P/1 - Você falou que não tinha TV, mas tinha rádio na cidade?
R - Não tinha, eu morava no interior. Na cidade já tinha. Eu vim ver rádio, televisão, quando eu vim embora. Indo na praça, tinha um rádio tocando, lá não, a gente nunca nem lembrava de rádio. Se tivesse, a gente não tinha conhecimento. Eu vim para Crato quando eu vim embora, lá tinha um rádio, eu vi televisão. Eu vim embora em 61, naquela época rádio era difícil pegar. Quando eu vim embora, que eu comecei a ganhar um dinheirinho, eu mandei um rádio para o meu pai, deve ter sido o primeiro rádio que meu pai recebeu. Foi eu que mandei para ele.
P/2 - Você pode contar pra gente um pouco como é que você tomou a decisão de vir para São Paulo e por quê?
R - Isso é fácil, em 60, no dia que eu completei 18 anos, eu vim embora para Belo Horizonte, eu e um primo meu, eu tinha deixado inclusive essa moça que namorava, a irmã do meu primo, vim para o endereço dos parentes. Chegamos, procuramos e não achamos o diabo do endereço, chega lá não era esse endereço, era no interior, acho que a firma era da de lá, ele se apavorou e voltamos, passamos 22 dias, nós estávamos de volta, o dinheiro ficou pouco, nós não tínhamos dinheiro para voltar de ônibus, voltamos de trem até Juazeiro da Bahia, e o meu primo que emprestou uma parte, meu primo que estava com mais dinheiro emprestou para mim. Chegamos, tinha umas danças, nós chegamos lá de surpresa, mas precisa ver a gozação que teve, meus irmãos, parentes, começaram a gozar, escrachavam, porque a gente não tinha coragem de ficar no mundo, eu digo, “vou embora então, vou voltar e não volto mais tão cedo”. Nessa época ninguém quis vir embora, eu faço aniversário em agosto, fui embora em junho, 19 anos. Nesse período eu pus uma roça, vendi até a minha herança, uma parte e vim embora sozinho, eu ia embora por alguns motivos, primeiro que lá no sertão e até hoje, eu vejo boa parte dos meus sobrinhos, sem perspectiva de progresso, é difícil, progresso é cuidar da roça, é casar com 18, 19, 20 anos, e eu tinha vontade de estudar, tinha vontade de sair daquela vida que eu via os meus parentes, meus irmãos, que dali era só criar família, eu sempre gostei de estudar, queria estudar e ficar bem de vida, e tinha os problemas da seca, você tinha as terras para trabalhar, eu tinha um privilégio pelo menos minha família sempre teve terra, mas o problema da seca, um problema seríssimo, muito instável a vida da gente, no Ceará tem esse problema, uma hora vem inverno, outra hora não vem, não tinha ajuda nenhuma de governo, depois de muitos anos melhorou, hoje o pessoal lá vive melhor, também depois do governo Lula, até do Fernando Henrique Cardoso um pouco, deram uma melhoradinha para o sertão, alguns empréstimos, alguns investimentos. Até então, a gente não tinha estado, tanto que eu falei que a escola era contratada pelo próprio pai, mesmo que você quisesse estudar, não podia, não tinha como estudar, você tinha que ter recurso ou ir para cidade, Fortaleza, requer alguém que banca, eu queria trabalhar, estudar e melhorar de vida, foi um dos meus desejos vir para São Paulo. Confesso que não é fácil você sair do seu lugar, da sua cultura, sua família, e quando eu vim sozinho da última vez, em 61, foi muito difícil, porque você fica um sujeito no mundo sem muito conhecimento, você não tem o conhecimento geográfico, cultural, você não entende o que é o sul mais ou menos, não sabe, eu vim de uma forma de aventura, tanto que eu tinha uns parentes no Rio de Janeiro, comprei passagem até São Paulo, mas a ideia era ficar em Volta Redonda e quando eu cheguei em Crato, que eu comecei a conhecer outras pessoas que moravam em São Paulo, os rapazes que moravam, minha sorte foi o seguinte, quando eu estava na praça apareceu um cidadão passando que eu reconheci, ele era conhecido da minha família, eu perdido no mundo, grito, corri atrás dele e falei que estava indo para São Paulo, aí ele me deu o endereço da casa dele, foi minha sorte. Quando o ônibus chegou, parou em Volta Redonda, eu perguntou o endereço também ninguém sabia, foi minha sorte, os rapazes que moravam em Campinas, “vai para São Paulo, lá tem lugar, dá muito emprego”, eu nem sabia, eu sabia que em Piracicaba tinha umas faculdade boa, tinha no livro de geografia e falava dessa faculdade, mas em São Paulo a gente não tinha muita noção dos empregos que tinha, essa creche industrial e já era bem desenvolvido, mas a gente não tinha essa noção, lá do sertãozão, sem televisão, sem rádio, e como eu tinha esse endereço, cheguei aqui praticamente o dinheiro só deu para pagar o hotel para dormir, no outro dia, fui atrás do rapaz, eu estava no período de tirar reservista, ninguém dá emprego, eu não tinha reservista, eu tinha que esperar me alistar, e fiquei na casa deles um mês ainda, eles me deram abrigo, me acolheram por um mês.
P/1 - Ele morava onde?
R - Na Vila Gustavo. Eles me acolheram lá. A família, gente muito boa, depois eu fui trabalhar, eu consegui um trabalho na metalúrgica, chamada-se Brinquedos Bandeirantes, trabalhei uns 03 meses lá, eu queria estudar, mas eu trabalhava à noite, e o estudo para adulto naquela época era só a noite em São Paulo,. Eu digo, eu tenho que arranjar um emprego para eu poder estudar, eu saí da empresa e fui trabalhar em bar, 10, 12 horas e depois ia estudar, então eu chegava em casa, dormia 05, 06 horas quando eu comecei a estudar, mas como eu tinha vontade, voltei, fiz supletivo aqui em São Paulo, trabalhei em bar 02 anos e pouco, e esse mesmo cara que eu encontrei no Crato, que me deu abrigo e endereço, trabalhava em um banco e me chamou para trabalhar. Trabalhei 09 anos nesse banco, depois mais 02 no outro banco, a vida de imigrante não é fácil, porque você dentro do ônibus, eu passei naquela época 13 dias de minha casa até chegar em São Paulo, não tinha asfalto, a Rio-Bahia não estava asfaltada, boa parte não estava, até Crato foi de caminhão, eu peguei um ônibus para cá, muita gente vinha de pau de arara, eu já vim de classe média, que é pegar o ônibus, mas gastei 13 dias, quebrou o ônibus acho que em Feira de Santana na Bahia, ficamos lá quase 02 dias esperando para consertar, era só 01 motorista, muito difícil, porque quando chega na estrada você começa ficar com medo, porque é inerente ao ser humano o medo, de não dar certo, de estar fazendo a coisa errada, não saber onde vai dar aquela aventura, então foi um negócio muito difícil, inclusive no meu livro eu coloco um pouco dessa história da minha vinda de lá a São Paulo, como é que foi, eu coloco lá no livro que eu estou escrevendo, um nó na garganta da gente, medo de não ver mais a família, de não voltar para o seu lugar.
P/1 - Quanto tempo demora para você mandar alguma mensagem para algum familiar?
R - Eu só mandei depois que eu arranjei emprego, depois de 01 mês que eu estava empregado. A notícia correu lá no Ceará onde eu estava, que o pessoal não sabia que eu vim para São Paulo, sabia que eu vim embora para o sul, Rio de Janeiro, eu sou o primeiro do Ó a chegar aqui, sou o desbravador de São Paulo, tem muito do Ó aqui, a família é grande, acho que com 03, 04 meses chegaram 04 parentes meu, que passaram por aqui, vieram também, um deles tinha feito a viagem comigo no ano anterior, meu primo, eu já estava trabalhando, já estava morando na Mooca em uma pensão, eles dormiram por lá, mas eles estavam querendo conhecer o Paraná, é roça lá, me chamaram, "vou não, vou ficar por aqui, já estou trabalhando".
P/1 -Trabalhando como primeiro trabalho?
R - Meu primeiro trabalho era metalúrgico. Brinquedos Bandeirantes. Eles foram embora, passaram 01 mês e pouco, não aguentaram lá, voltaram pra São Paulo, aí eu que já acolhei.
P/2 - Você lembra quando chegou na cidade de São Paulo que dia era? E o que você pensou na hora que você desceu do ônibus? Você consegue contar para mim esse dia da chegada em São Paulo?
R - O dia eu não lembro, sei que foi em 61, mês de julho, à noite. Eu não podia procurar o rapaz, ele tinha me dado o endereço do emprego dele na Mooca, na firma dele, que eles moravam na Vila Gustavo, eu dormi lá e no dia que eu fui atrás dele, uma noite muito estranha, porque a gente sempre fala, são culturas diferentes, lá é uma cidade pacata mesmo, eu morava na cidade, no interior, lidava com a roça, com animais, eu não tinha esse traquejo de vida da cidade como é que era, então era um choque muito grande você se adaptar na nova vida, na nova cultura, nova forma, e você percebia, muita informação já no rádio, na televisão, você vai ficando tipo de um robô também, tem que acompanhar, você sente a necessidade de se adaptar à cidade, e você sofre por ver que está atrasado no conhecimento, na linguagem, em tudo, nos costumes, não é fácil, realmente é muito difícil, mas claro que o gratificante é o conhecimento, tudo que é conhecimento, é bom para o ser humano, nem que seja ruim, mas você tem que tirar a lição das coisa ruins.
P/2 - E como é que foi trabalhar como metalúrgico? Como é que foi aprender?
R - Lá eu comecei de ajudante geral, virei pintor logo, pintor de bicicleta, era uma esteira, pensa em um negócio puxado, meu camarada, era uma esteirazinha, você tinha que trabalhar em uma velocidade, pinçar aquelas peças de uma distância até chegar no outro, você tinha que ser ligeiro, era uma produção grande mesmo, muito complicado, mas você precisava, depois ir ajudando, eu tive que enfrentar aqueles ferros quentes, os primeiros trabalhos foi muito difícil. Quando era pintor, já era melhor, porque de certa forma era meio puxado, mas era um serviço leve, chegava o leite para beber dizendo que era para combater a poluição, acho que é mentira, que não serve para nada, serve para alimentar, mas é difícil, não é fácil. Fui metalúrgico, depois virei garçom também, trabalhei de balconista e estudando.
P/1 - E o bar era onde?
R - Trabalhei em diversos bares. Trabalhei em uns 03 na Mooca. Na Brigadeiro quase esquina com a Paulista, ali estavam fazendo muitos prédios, e lá tinha um restaurante e o balcão que servia a peãozada, na hora do almoço ali era um negócio louco, correndo. Você já viu os pratos feitos? Você servia o pessoal bem rápido, já colocava, corria, muito povão, a peãozada tinha que escolher rápido, era difícil, porque o restaurante tinha muito movimento, e eu aprendi fazer as coisas, uma boa caipirinha, ali foi ilegal que eu servia o pobre e o rico, na hora do almoço eram os pobres, à tarde já era rico, vinha o pessoal dos Jardins.
P/1 - Tinha muita diferença?
R - Tinha, mas não para atender, eu atendia todo mundo igual, mas o problema da peãozada é mais grosseiro, não exigia muito, e quem tem dinheiro, qualquer vacilo vai reclamar para o patrão, a peãozada é difícil reclamar.
P/1 - E essa época era 1964 que você trabalhava em bar?
R - Não, foi final de 62, por aí.
P/1 - E o senhor se lembra? Não sei se quando você chegou aqui em São Paulo, você ficava ligado no que estava acontecendo de política? Você conversava com os companheiros já nessa época ou não?
R - Não, na verdade, eu fui educado como muitos brasileiros, para não gostar de política, eu via a notícia, me interessava. Eu tinha um tio que era vereador. Eu tinha umas primas que era meio politiqueira, eu me ligava um pouco na política, mas sem entender, eu era um cara alienado. É tanto que eu acho que eu tive uma posição progressista sem querer. Quando o Jânio renunciou em 62, teve o plebiscito, e negócio de parlamentarismo ou não, eu votei a favor da turma que defende o João Goulart, primeiro voto que teve, votei no Cavalo Pinto, no cara da ARENA, então eu era um alienado. Quando veio o golpe militar, como o Castelo Branco era meu conterrâneo, eu achei que era boa pessoa, fui lá na 07 de Abril, uma casa que era Diários Associados, tem o negócio da campanha do rolo, eu fui ver como é que era aquilo lá, acabei prestigiando ali de certa forma um pouco, Castelo Branco e tal. Quanto falávamos mal do comunismo, do socialismo. E você não entende que diabo é isso, você acaba ficando, aceitando o medo, sei lá, tudo que você não tenha conhecimento você acaba sendo um ignorante. Eu fiquei trabalhando e estudando, essa vidinha de trabalho, estudava, não me ligava em política, entrei no banco aqui, trabalhei uns 04 anos no Banco Mercantil de Minas, na São Bento, abriu uma agência em Fortaleza, e eu pedi para ser transferido, quando eu me envolvi em política foi em Fortaleza, em 68, eu passei 07 anos aqui na cidade alienado. Aí quando mataram o estudante Edson Luiz no Rio de Janeiro, teve diversas passeatas, diversos protestos no Brasil afora. Um rapaz que era do banco comigo, ele tinha uma namorada que era estudante universitária, me chamou para ir nessa passeata e eu fui. Fui assim por acaso praticamente, me contaram porque estavam fazendo protesto, muita gente, eu nunca nem tinha visto tanta gente daquele jeito, eu achei bonito, achei engraçado, conheci uma namorada no protesto lá, uma mulher me atraiu para a política, ela estudava e trabalhava no colégio também. Meu primeiro ato político foi esse, logo na semana seguinte começou a abrir a campanha salarial dos bancários, e por acaso eu fui nessa assembleia da campanha salarial, tinha uma diretoria progressista, pessoal da esquerda, junto com o partidão naquela época, partidão era mais conciliador, se juntava mais com pelego.
P/1 - Aqui em São Paulo?
R - Lá em Fortaleza. Eu comecei minha vida política em Fortaleza.
P/1 - Te falaram sobre o Edson Luiz, o que você pensava desse moço?
R - Eu não conhecia, me falaram que ele foi morto por reivindicar a melhor comida do restaurante, era a luta dos estudantes, por melhores condições do restaurante, mataram ele lá, era discurso, denunciava isso, e foi aí que eu entendi que a ditadura estava contra os estudantes e contra os trabalhadores. Foi nesse processo. Aí veio a campanha salarial, eu fui na assembleia e me pediram para falar sobre o banco. Como é que estava o banco, se tinha clima para greve, nem sabia o que era greve direito. Eu falei que não tinha com os companheiros, eu falei no dia que eu não tinha condições de responder, porque eu não tinha consultado ninguém. Aí, por acaso tinha uma moça lá que eu nem sabia que era do banco. Quando eu cheguei em Fortaleza, eu fui morar com a maioria dos chefes daqui, como o banco era mineiro e todo chefe migrava para o Ceará, ao contrário para ser chefe lá, eu fui morar em uma república com esse pessoal, o contador, o chefe, eu era o peão mais baixo. No outro dia, eu cheguei lá no banco, eles decretaram a greve dos bancários. Ia chamar a greve progressiva, não era uma greve geral, seria parando, chamou os piquetão, chama aqui o Pará, comissão de mobilização. Cheguei lá no banco, a menina já tinha espalhado que eu tinha falado que o banco não tinha condições de parar. Aí o pessoal estava bravo comigo. Disse “não, vamos parar”. E por acaso era na hora do almoço, eu trabalhava só depois de meio dia, estudava de manhã, e os chefes tinham ido almoçar, o banco estava sob o nosso domínio. Foi fácil parar. As meninas, “a gente para. Quem falou que não tinha condições?” “Eu não consultei”. “Então, vamos fazer”. Eu chamei para fazer uma reunião lá no refeitório, fizemos a reunião, decretamos a greve, deixamos o rapaz para cuidar do banco e saímos, eu comandando, eu nem sabia, já comandando, começamos a parar no nosso banco, parando os outros, porque eles disseram que a greve ia ser progressiva, que cada um ia parando e chamando o convencimento nos bancos. Chegamos lá, explicava da greve, pessoal aderia. Meu primeiro embate com o deputado foi nesse dia. No segundo dia, o primeiro banco que eu fui, estava fechando, chegou um deputado chamando nós de vagabundo, falei que vagabundo era ele, fui para cima dele, ele afinou, “o senhor não vai ser mal atendido”. Mandamos também, “você foi muito mal criado”. Ele “não, por gentileza, desculpa e tal”. Eu tive que mandar ordem de pagamento para minha mãe que estava doente no Crato. Eu digo, “só porque o senhor falou isso, nós vamos atender o senhor, nós não estamos pedindo para reabrir o banco, a caixa, e considerar sua mãe que está doente, a gente respeita, agora o senhor não merece respeito não, fui para cima dele”. Em Fortaleza tinham 35 bancos naquela época, e só 05 bancos tinham decretado as condições de parar. E à noite na assembleia, já tinha acho que 25 bancos parados, nós paramos, fizemos a assembleia, a ideia era voltar no outro dia para parar o restante, quando nós voltamos, no segundo dia de greve, teve uma intervenção do governo, o ministério do trabalho, Coronel Jarbas Passarinho, que era o ministro daquela época, isso em 68. No segundo dia intervieram, o sindicato não podia mais reunir, os estudantes nos acolheram. O acadêmico, pessoal dos estudantes. Naquela época, o Genuíno falou na assembleia.
P/2 - Uma coisa que podia ficar um pouco mais clara, se o senhor puder, a greve que você explicou lá no começo que era por uma campanha salarial. Vocês ganhavam mal como bancários? O que estava acontecendo? Tinha inflação, que reivindicação salarial era essa?
R - Uma das principais indicações era 30% de salário, na ditadura sempre teve o arrocho salarial, a declaração dos aumentos eram realizados pelo governo. O sindicato não tinha mais direito de reivindicar, porque a maioria estava em intervenção, outros não podiam mobilizar, mas até 68 ainda tinha uma certa liberdade, porque nós paramos. Em Fortaleza, acho que era Ceará, Piauí, Paraíba, eu sei que tinha aqui em São Paulo, no sul, no resto do Brasil já tinha o salário profissional do bancário, eu fui de São Paulo para lá com o salário daqui, eu entrei na luta praticamente em solidariedade, não por mim, o meu salário já estava bom que era 35% a mais, o bancário do Ceará ganha salário mínimo, essa campanha foi para 30%, que o salário profissional fosse igualado para todo Brasil, essa reivindicação foi uma delas, duas principais, a mobilização. Nós conseguimos 18% naquela época, conseguimos salário profissional em plena ditadura. Nós passamos 07 dias de greve, a pressão do comércio pra gente voltar, porque o banco parou mesmo. Eu fico muito honrado de ter contribuído nessa luta, nessa reivindicação, minha luta e dos companheiros não foram em vão, teve a intervenção e nós passamos 07 dias escondido, às lideranças pediram pra gente ir pra casa, eu acabei ficando na clandestinidade, na casa dos outros, não dormindo mais lá porque eu estava dormindo, onde eu ia era tudo chefe, eu estava no ninho, nem podia, eu sumi os 07 dias lá de greve.
P/1 - Você foi dormir aonde?
R - Dormi na casa dos parentes.
P/2 - Isso aconteceu tudo no Ceará, essa greve?
R - Essa greve do sindicato foi em Fortaleza, que eu saiba só foi Fortaleza que parou, mas a reivindicação era para todo estado. Conseguimos o salário bancário de todo o estado. Eu sofri muitas derrotas na minha vida, mas essa, de certa forma, a gente pode dizer que deixou a marca para outras pessoas que estão usufruindo até hoje. Depois de 03 meses da intervenção do sindicato, a gente formou a chapa, me puseram nessa chapa e eu fui vetado com todo mundo, só um cara lá que a gente descobriu que era policial, porque o cara não foi vetado, porque só um cara não é vetado, a gente desconfia que o cara só podia ser pelego, traidor, sei lá, o resto todos nós fomos barrados de participar das eleições dos bancários, e foi prolongando acho que passou 03 anos. Eu vim embora depois de 70, até então não tinha intervenção do Sindicato dos Bancários, foi nesta luta que teve o meu estalo político, o povo da esquerda namorar comigo, pela minha disposição, meu afoito, eu tinha entendido da importância da luta, foi quando eu entendi aquela luta individual e que a gente fez uma luta coletiva, e conseguindo aquelas coisas concretas, temos a juventude, os bancários, a gente parava os ônibus, pichava os ônibus, estamos em greve, eu achei muito bonito os jovens tudo, pichava os ônibus mesmo, desrespeitando a propriedade privada, a gente foi muito afoito, eu acho que foi bom. No terceiro dia de greve, a policial desceu o cacete em nós para oprimir, foi parar o Banco do Nordeste, era um beco, eles chegam lá descendo o cacete em todo mundo, a gente não apoia. A gente foi entendendo o choque, a questão da ditadura do estado repressivo, você vai entendendo que você pertence à uma classe e que existe a outra classe que é contra você. Eu tinha uma visão crítica aos chefes, eu criticava os mineiros porque todos os chefes eram mineiros, eu tenho um espírito meio regionalista também, porque não davam fé para um cearense. Então o Sérgio falou que tinha uma revolta também contra isso, mas os comunistas começaram falando, mas isso é uma luta, papel da burguesia jogar um contra o outro, uma região contra outra, trabalhador contra outro, dali que eu fui entendendo da necessidade de eu me assumir com a classe, como pessoa que ajudaria a organizar a minha classe, daí vem a questão do entendimento da leitura do marxismo, da necessidade de transformação da sociedade, porque vem todo o período histórico, como é o estado?, para que serve o estado?, o governo, foi dali que eu brinco de um sonho que virou sonho, eu tinha um sonho individualista, de repente eu estava naquela luta de um sonho mais coletivo, estou nessa luta até hoje. Eu estou escrevendo um livro justamente sobre um pouco do que vocês estão falando, é A História Vista por Dentro. Eu estou contando, não para ficar personalista, meu nome, mas colocando as experiências da luta que eu participei junto com os companheiros, como é que era a luta, cada época, como é que foi. Eu falo um pouco dessa minha ligação com a classe trabalhadora, com essa perspectiva de contribuir para mudar o mundo.
P/1 - Me conta um pouco justamente sobre isso. Como é que vocês tentavam convencer a população nessa greve em Fortaleza? Você falou que pichava o ônibus, mas vocês faziam o que mais?
R - Boa pergunta. A gente fez coisas que até o diabo duvida. Como eu já estava envolvido, a gente delegava, tinha as comissões, cada um tinha uma tarefa de fazer propaganda, duas vezes que eu lembro muito bem, uma a gente assistiu um cinema famoso, São Luís, que hoje não existe mais na praça do Ferreira, a ideia era de assistir o filme, na hora que tivesse terminando, a gente saía primeiro e distribuía o boletim, o vento carregava e carregava mesmo, tinha um corredorzinho lá e a gente distribuía e os papéis saiam voando e o pessoal pegando. Isso foi uma das formas da gente ajudar a divulgar, e outro pessoal pichava, isso foi o primeiro dia, no outro, já não conseguia fazer porque a gente não estava mais concentrado, a gente estava para se reunir lá na federal de Fortaleza, e a gente saiu só em grupinhos, eu fui também com outros companheiros, tinha uma procissão, nós fomos participar, ia atravessando e jogando aquele boletim no meio do povo da procissão, era a forma escondida, “estamos em greve”, era também uma forma quando pichava o banco, “estamos em greve”, aí explicava porque estava em greve, os boletins era isso, era rodado também lá nos estudantes, porque o sindicato, a gráfica já tinha tomado.
P/1 - Como é que é uma intervenção assim? A polícia entra no sindicato, você estava lá no dia? Como é que funciona, geralmente?
R - Não, você vai dormir, eles reviram a noite, puseram o interventor com os policiais, proibiram os bancários de entrar, ninguém ia lá porque os cara podiam prender a gente, nem dava para ir. O nosso QG era lá no no DCE.
P/1 - Você já apanhou na rua nessa greve, então?
R - Eu desviei, mas a repressão foi a questão de eu não poder ser candidato, porque falam que é o peso do estado. Em Fortaleza, vocês sabem que tem diversas tendências políticas da esquerda, eu era namorado pelo chamado Stalinista, PCdoB já era chamado stalinismo que era mais baseado na revolução russa, Lenin, Stalin, o pessoal gostava de citar muito Stalin, tem os trotskistas, tem meus amigos também. Eu era disputado igual a moça bonita, os dois me disputavam, um dava livro do Estado, mas eu fui me identificando mais com o povo do PCdoB, que é mais mais pé no chão, eu achava, e a gente quando está conversando fica com medo de tudo, acho que o pessoal trotskista é mais afoito nas coisas, eu acabei optando pelo PCdoB, fiquei até 70 em Fortaleza, fazia pequenas reuniões de grupo nas casas, na clandestinidade, fazia propaganda da revolução russa, ia pichar em outubro, fizemos umas duas vezes, a gente fazia aquelas ações, naquela época tinham fotografias do governo, acho que era 70. Costa e Silva, tinha aquelas rodas, a gente comprava umas latas de tinta vermelha jogava em cima daquelas fotos, ação maluquice, que ainda era voltar a luta armada, sangue, então já que é sangue a propaganda é o sangue também, fiquei lá fazendo esses tipo de trabalho na clandestinidade.
P/1 - O senhor tinha medo de ser preso?
R - Todo mundo tem. Uma vez fui pichar lá e a ordem é o seguinte, não podemos ser presos, a primeira vez que eu peguei em arma, era aquela hora que todo mundo comprava um revólver, eu comprei o diabo um revólver e fomos pichar “Viva a Revolução Russa”. Inclusive, na rua que eu morava, fazer pichação sobre a propaganda do socialismo e da Revolução Russa, homenagem, parou um carro, eu com um revólver mandei o cara ir embora, “o senhor vai embora se não quiser levar um tiro”, nessa loucura, com medo, não sabia se era policial, dava medo. Famoso Geraldo Vandré, até mesmo eu já senti e não foi pouquinho, mas fugir, eu nunca fugi, nunca abandonei meu povo. Eu sempre aprendi que o medo é importante muitas vezes até para brecar um pouco seus afoitos, mas você não pode fugir da luta, eu aprendi desde cedo a necessidade da gente superar o medo com sabedoria, com convencimento da proposta na qual se luta. Quando você luta pela razão, pela justiça do que você defende, eu acho que a gente acaba superando o medo.
P/1 - E os companheiros, o senhor tinha medo também, como é que era isso? O senhor ajudava eles nisso?
R - O pessoal tinha medo, a gente sempre se preparava. Cheguei aqui até passei uns tempos sem contato, até chegar aqui foi difícil, eu tive que ir em Fortaleza para pegar o contato de novo, e naquele período teve todo aquele processo da guerrilha do Araguaia. O PCdoB preparava a gente para diversas ações, tinha até um livrinho explicando se você fosse abordado, uma acusação, quando é uma acusação e você faz um trabalho legal à luz do dia, você tem que assumir, tem todo medo, e a gente falava que tem que mostrar a mesma conversa se for verdade, eu mesmo tive teste, fui depor uma vez sobre isso, aí o cara me testou, eu tive que assumir. O PCdoB orientava, o que é clandestino você tem que negar, porque naquela época você não podia assumir que era comunista, você não podia assumir que fez ação contra o governo, porque você está sujeito, então isso era orientado, o perigo, a gente sabia do perigo, então nós todos tínhamos medo sim, e para isso o cuidado de não vacilar, a gente era contra o chamado liberalismo, de falar menos possível, tentar evitar não falar com estranho, então tudo isso era medo, era orientação para todo mundo, a gente preparava as pessoa para situar cada papo. Porque na época da ditadura, todo mundo era suspeito. A gente não sabe com quem estava conversando. Então para nós era muito difícil estar assim, falar igual Adelma, (com todo defeito da democracia, você pode falar), você não sabe se vai ser preso, vai ser torturado. Então na época da ditadura foi um negócio muito difícil porque era um terror. Não era uma ditadura simplesmente, era uma política de terror mesmo.
P/2 - Seu Fernando, você falou que estudou, mas se você se formou no quê, supletivo, você fez algum curso?
R - Não, eu só formei no supletivo, o 2º colegial que chamava colegial naquela época, eu prestei lá em Fortaleza, acabei tirando o 2º grau, eu prestei vestibular em Fortaleza para jornalismo e economia, e nos dois eu não passei. Sou péssimo em matemática, vi que foi um grande erro não ter sido mais amigo da matemática, foi 70 que eu não passei, aí já estava a onda de sociologia, em Fortaleza não tinha sociologia, eu pedi para vir para Brasília, disse que era famosa a UNB, pelo menos o pessoal da esquerda falava muito bem dela, e eu pedi transferência para Brasília do banco, o banco não deu. Aí eu peguei férias e vim para cá, “vou ficar por aqui mesmo”, estava também com vontade, saudade de São Paulo porque querendo ou não queira, eu brinco que eu tenho dois estados, eu sou do Ceará, mas lá eu percebi que Fortaleza, mesmo sendo uma cidade grande, as pessoas cuidam mais da vida das pessoas, era um negócio assim mais parado, parece que tem mais gente cuidando da gente. Eu percebi que em São Paulo ninguém está nem aí com a vida dos outros, você vai do trabalho para casa, conversa com o vizinho, se não quiser não conversa e ninguém cuida muito da vida da gente. Então eu estava sentindo falta um pouco. Tinha uma namorada lá que os negos começaram a cuidar da minha vida, eu já fiquei puto, dizendo que eu não tinha tradição de família, outros criticando que eu era comunista, me fazendo medo, essa noiva que eu tive, que o tio dela foi comunista e não deixou nada para família, toda aquela pressão, teve toda uma pressão também de família. “Eu vou casar e vou ter alguns problemas com o diabo dessa menina”, acabei vindo embora.
P/1 - E como é que você chegou aqui em São Paulo? Você já estava sendo procurado na década de 70?
R - Não, eu não estava sendo procurado porque eu sempre fui na clandestinidade, mas eu sempre fiz um pouco de trabalho legal, só nas reuniões que eu usava nome diferente. Reunião clandestina você não pode usar seu nome porque outros companheiros, mas ia para reunião com os olhos fechados, alguns lugares, você não podia saber, questão de segurança, mas eu sempre fiz trabalho legal. Eu ajudei a organizar a oposição bancária quando eu cheguei, o Partido Comunista Brasileiro junto com os conciliadores e alguns pelegos. Na época, o PCdoB era contra a luta armada e a gente a favor da luta radical. Esse pessoal era pelego para nós, a gente criou a oposição bancária, Augustão, a primeira reunião já tinha existido, mas tinha esfacelado, a gente retomou, eu, Augusto Campos, ele já morreu, mas ele foi um dos que ajudou a organizar a nova oposição bancária e o César Pontes, Nós três fizemos uma reunião lá no Clube dos Bancários, no Borba Gato, ali nós começamos a retomar, eu tinha chegado há pouco tempo de Fortaleza, a gente criou a oposição bancária e dali a gente começou a intervir nas assembleias, compramos uma briga lá, teve cadeiradas, os caras não queriam mobilizar por causa da época de ditadura, mas eles não queriam mobilizar… a campanha salarial do sindicato era assim, ajudar meio grupinho de pessoas e não chamava os bancário para campanha, eu já tinha experiência de Fortaleza, que no Ceará tem um ditado que fala, “quanto mais cabra mais cabrito”, a gente falava, “quanto mais gente, melhor para luta”, então a gente já foi para lá com essa visão de ampliar, de envolver os bancários. Depois que eu entendi, nós temos que fazer a luta, não para o povo, mas com o povo, eu sempre achei que não, ninguém vai fazer nada pelo povo, quem faz é o próprio povo, a gente pode ajudar, contribuir. Aí nós fizemos essa campanha dos bancários aqui, a campanha salarial, a gente começou a organizar a oposição e tiramos a posição da gente propor uma comissão salarial, coisa que não existia, a oposição tinha organizado para levar para assembleia, fazer uma pesquisa dos bancários de “quanto deveria ser o nosso aumento? Quanto a gente ia pedir para os banqueiro”, e outra pergunta que eu lembro era, foi a gente que propôs isso aí, “e se os bancários gostariam de ser filiados, ficar sócio”, porque era um grupinho, eles não faziam campanha de filiação, e a gente já estava naquela visão de que a luta é do povo, a luta tem que envolver o povo, os trabalhadores, juntamente os interessados. Nessa brincadeira a gente tirou uma posição de um dos companheiro fazer a proposta. E tinha também outra proposta de a gente eleger a mesa eleita pela assembleia. Aí foi convocado a assembleia. Acho que tinha umas duzentas pessoas, porque nós ajudamos a convocar o pessoal, fez boletim e convocando. Nesse dia, ficou da gente propor que a mesa da campanha fosse eleita publicamente, o estatuto dava direito, não era obrigado o presidente e o secretário geral coordenar. A gente propôs com o companheiro Augustão, na reunião nós tiramos e ficamos de propor também, que em primeiro lugar antes de qualquer proposta mudar a mesa, dando mais direitos para fazer nossas propostas. Na hora o companheiro vacilou, não quis, acho que não teve peito, não teve coragem, eu que tive que ir, fiz a proposta de mudar a mesa, puseram em votação, ganhamos, o cara já estava instalado lá o presidente, saíram, o Ericos e o Eliseu, nós colocamos o cara que não dá problema, os caras mais ligados, tinha mais abertura com nós. Nós colocamos outras duas pessoas, era mais aberto, é tanto que depois eles aderiram nossa oposição, isso tudo em 71, conseguimos, colocamos em votação.
P/2 - Explica pra gente uma coisa, você volta para São Paulo trabalhando como bancário no mesmo banco, em que ano?
R - Foi no mesmo banco. Eu votei em 70, eu fui embora em 67, passei 03 anos em Fortaleza, trabalhando e estudando lá, fui buscar o comunismo lá no Ceará, socialismo.
P/2 - Eu gostaria que o senhor contasse pra gente, porque o senhor acha que você conseguia ter essa atividade política e não ser demitido dos seus empregos?
R - Tem que esconder, companheiro. Eu não podia falar que eu estava nas assembleias dos bancários, que eu estava ajudando a organizar a oposição bancária, a gente não podia falar. Lá mesmo em Fortaleza, os caras desconfiavam da campanha, teve uma denúncia que eles não sabiam que era eu, chama um pouco a credibilidade, você não pode assumir. Nós conseguimos tirar a mesa, conseguimos a comissão salarial, conseguimos fazer uma boa campanha, e a pesquisa falou que nós colocamos se o bancário gostaria de ser sócio, acho que foi só 85% que gostaria, e deram a porcentagem lá também, teve a campanha, teve o acordo dos bancários e dos patrões, aí no dia de acabar a assembleia, a gente propôs que continuasse a comissão de mobilização, aí que deu pau, os cara da diretoria, tinha um cara que era deputado, Frederico Brandão, que era deputado pelo MDB, já tinha sido presidente, veio pra cima de um companheiro nosso mandando ele calar a boca, os cara vieram pra ofensiva, eles queriam acabar com essa farra nossa que estava ganhando as posições, tentaram partir para agressão. Eles vieram uma vez e o cara estava sentado comigo, mas meu amigo era companheirão da gente, esse deputado veio, mandou, “põe em votação, pode armar todo mundo lá em votação”. Eles não queriam colocar e começaram os discursos lá, faziam elogios a mim, que eu estava equivocado, não podia continuar que era antes estatutário, e a massa não queria saber. Na segunda vez o pessoal põe em votação, os caras vieram de novo, se ele vier de novo nós vamos dar um pau nele. Quando ele veio, eu e o cara pegou aquelas cadeiras que saíam e fomos para cima dele, fechou o pau lá, os cara deram umas cadeiradas lá no diabo do tesoureiro, o cara levou 05 pontos. Acabou a assembleia, e o cara que levou os pontos já morreu, no dia seguinte foi comprar um revólver para dar um tiro em mim. Eu acabei pegando essa briga coletiva e acabei sendo o responsável, porque quem faz a proposta geralmente é quem sofre mais as consequências. Eu fui bancário, depois de bancário começou o processo com o PCdoB. Em 74, 75 já existia uma crítica dentro do PCdoB, inclusive a ala chamava o Pedro Pomar um dos dirigentes, que é o pai do avô do Valtinho Pomar, eles defenderam a guerrilha do Araguaia, morreu 60 pessoas lá, 60 guerrilheiros o exército eliminou. Existe uma crítica dessa ala do PCdoB, através do Pedro Pomar que era o porta-voz, fazendo uma autocrítica e mostrando que foi uma posição equivocada, uma posição vanguardista, branquista, que a gente falava, de uma avaliação equivocada sobre a conjuntura do Brasil, porque 60% já estava na cidade, os trabalhadores naquela época, hoje já tem mais de 80, e vai se deslocar para fazer uma luta atrás da evolução do campo desligado do povo, simplesmente povo armado, chamado exército. O exército popular sem povo também não é popular, então existia toda essa crítica. O PCdoB tinha duas estruturas naquela época, estrutura 01, estrutura 02, teve uma fusão com a o pessoal da AP, eu era da estrutura 01 que estava mais ou menos essa linha de crítica mostrando que foi uma coisa equivocada, que muitos operários, muitas pessoas que foram para guerrilha, poderia estar contribuindo para ajudar a organizar a classe trabalhadora, foram para o campo, a gente tinha que repor, que retomar a luta dos operários. Aí eu ganho para poder voltar para os operários, fazer um trabalho operário, fiz o curso de ajustador mecânico, foi daí que eu virei metalúrgico, já com essa visão, não mais de ser metalúrgico simplesmente, mas minha visão era de ajudar a mudar, de fazer a transformação da sociedade.
P/1 - O senhor, de 74 para trás, tinha se casado, tinha tido filho já ou não?
R - Já, em 74 eu tinha só um filho.
P/1 - Já estava casado com a esposa que está até hoje ou não?
R - Não, eu separei. A companheira, eu conheci em Fortaleza, inclusive na época das greves, eu estava escondido na casa de um parente e ela apareceu, eu noivo, ela também se engraçou. Acabei o noivado, casei com ela, trouxe ela para cá, que meu filho é de 72, Diógenes vai fazer 50 anos esse ano, em homenagem ao Diógenes Arruda, depois eu tenho divergência com Diógenes Arruda, por isso você não deve ficar homenageando qualquer pessoa não viu. A minha filha nasceu em 78 por descuido, eu não queria mais filhos. Minha esposa apoiava a luta, simpática à luta, mas com o tempo a gente vai assumindo mais propostas, mais coisa política, o mundo da gente, como fala o Geraldo André, “vai clareando", e as pessoas, muitas vezes não acompanham também, e a gente vai tendo choque, vai ter nas cobranças, o ciúme, a questão do mundo diferente. Quando foi em 83 eu me separei da minha esposa, da primeira, casamento mesmo.
P/1 - E como era ser pai na ditadura, você tinha medo pelos seus filhos?
R - Eu tinha mais medo de agressão ao meu filho do que em mim, porque eu sabia me defender, eu sabia que meus filhos não sabiam porque estaria apanhando, sendo torturados, pressionados, e minha esposa, minha família, meus irmão, pagar um crime, pagar uma coisa que eles não tinham culpa, porque a ditadura não tinha respeito por isso, a gente sabia disso. Tem notícia que muitas pessoas só porque eram amigos foram torturadas, então o medo era muito grande por causa disso, a gente tinha medo, e ser pai era muito difícil, a gente tinha que ter todo cuidado, você não podia guardar nada, evitava guardar material em casa, pois se tivesse uma batida da polícia você não ter comprovante. Um dos primeiros atritos que eu tive com a minha esposa foi justamente por causa de um livro socialista, foi comprado na Avanço que era perto da República, se não me engano o nome do livro era: A História do Socialismo, e eu emprestei para um rapaz, quando eu fui
nos bancários, a gente tirou a posição de ir para os metalúrgicos, mas a gente já estava com a ideia de fazer um trabalho popular e o trabalho operário. Então eu estava fazendo nessas duas frentes de luta. Essas duas lutas, era investir, fazer uma aliança no trabalho popular e outra nos operários, como eu era bancário acabei fundando uma Sociedade Amiga lá perto de Guarapiranga, e eu emprestei o livro para um dos diretores da sociedade comigo, e por acaso estava a irmã da minha ex-esposa, e ela namorava um cara, era paquera, que estava em São Cesário, para avisar a irmã, vou avisar esse cara, foi lá na minha casa, chegou o cara foi entregar esse livro, estava o namorado dessa menina que era era sobrinho de um general, olha que azar também, por causa dessa porcaria desse livro, não é pelo livro, o livro é legal, mas por causa dessa coisa, um livro legalizado, o cara começou a falar com a minha esposa que eu era terrorista, e jogaram esse problema para a família dela. Eu comecei a receber pressão da família dela, do irmão da minha esposa que era jornalista em Fortaleza. Começou a encher o saco dizendo que eu queria ser herói para ter estátua na praça pública. Eu mandei uma malcriação para a família dela, tive que responder de uma forma grosseira também, teve toda insegurança de atritos. Difícil viver em uma ditadura, porque você tem muito medo de ser seguido, sempre quando eu chegava, descia do ônibus, ver se não estava sendo seguido. Teve caso dos companheiros que foram seguidos, presos, a gente tinha todas essas notícias, a gente evitava na época da ditadura, você ir fazer os pontos com os companheiros do partido ou qualquer outro companheiro, eram 15 minutos de tolerância, você não podia facilitar, se o companheiro atrasar, você vai ficar com medo do companheiro ter sido preso ou pego também, então a gente tinha todo o cuidado, a família era a principal para o mundo.
P/1 -Você podia falar com seus filhos sobre a organização na frente deles ou era melhor não ouvir?
R - Clandestina! Eu acho que eu nunca nem falei com eles direito, isso é hoje. Isso é uma questão mais de opção. Meu filho sabe, o mais velho sabe que eu sou da esquerda, o outro sabe também mais ou menos, mas eu sempre evitei discutir isso, eles sempre votaram comigo, mas eles nunca se envolveram muito na política, eu sempre respeitei também, porque na época da ditadura você não queria envolver muitos os filhos com medo de ter consequência, então a gente sempre ficou como uma parede um pouco, uma família discutindo esse assunto, ser uma pessoa comum, e para nós, a orientação do partido, era você mostrar uma pessoa comum no bairro com a sua família. Eu fui pressionado por um irmão para deixar a luta, mas mesmo assim, com todos os cuidados que eu tinha. Imagine se eu abrisse para ele o que era? Uma vez eu fui passear no Ceará na época boa, depois da ditadura. Eu estava lá, meu pai, Ricardo, meu irmão mais velho. Gente quando você chega lá é assim, quando você chegava fazia aquele almoço grande, vinha todos os irmão, parentes, eu sei que a casa do meu irmão estava muito cheia. Tinha um primo meu que morou aqui em São Paulo, mas era antipetista, contra a esquerda, mas primeiro contra o PT, contra o Lula, ele não gostava, eu passei um apuro, ele falou, meu pai chamava Rodrigo. “Tio Rodrigo, você sabe que o Fernando é um terrorista, Fernando é um invasor de terra”! Chico, Expedito que era meu irmão, “ ele é a favor de tomar de vocês, de invadir a terra de vocês, dessa terra que vocês têm aqui, o Fernando é um dos defensores de invadir isso aqui, de tomar a terra de vocês”. Para sair dessa, eu tinha que rebolar para poder consertar toda aquela crítica, aí meu pai estufou os olhos, meus irmãos lá, eu tive que rebolar para explicar.
P/2 - Como você explicou?
R - “Ah, não é bem verdade isso aí, Chico, Expedito, pai. Nós somos a favor de subir as terras improdutivas, terra que não serve para nada, que estão criando só cobra, que não tem dono, que são terras do estado ou de grandes fazendeiros, que não estão servindo para produzir alimento para o povo”, e aí eu usei o cristianismo, “a terra foi feita para alimentar o ser humano. Eu não sou a favor de invadir terra de médio agricultor e tal. Primeiro não é invasão, isso que ele está falando é ocupação daquilo que é do povo. A terra não é de ninguém. A terra foi dada por Deus para alimentar o ser humano”. Fiz esse discurso, não sei se convenceu, mas pelo menos amenizou um pouco.
P/1 - Seu Fernando, então nessa época você fez um curso para voltar a trabalhar. Como foi esse curso, e o senhor foi trabalhar em que fábrica? Onde é que foi?
R - Então, eu fiz um curso, não fiz o SENAI, fiz uma escola particular em Santo Amaro, chamada Bolívar, e comecei a procurar emprego, aí eu apresentava a carteira de bancário e ninguém queria dar emprego. “Bancário? Você ser metalúrgico?”. Eu tiro outra carteira branca, falei que perdi, que eu nunca tinha trabalhado, arranjei outra história. Eu estava procurando emprego, um dia, o dono estava entrando e perguntou, “o que você está fazendo”? Eu expliquei minha situação, foi o azar dele, eu disse, “eu trabalhava com meus parentes e estou querendo mudar de ramo”, falei para ele a minha qualidade, “faz a ficha aí”, eu fiz e comecei a trabalhar. Acho que precisou como meio oficial de ferramenteiro estadual mecânico, eu fui trabalhar nos tones, “não tem vaga, mas vai sair uma”. Trabalho no banco o dia sentado, representando o banco, naquela época eu era representante do banco, na compensação, você ia lá ficar duas, três horas, muito pequenininho, você ficava lá sentado, porque esperava o Banespa, o Bradesco e Itaú contabilizar, era bom, eu lia jornal, e cheguei lá fui trabalhar em pé. Pensa em um troço ruim. “Pela revolução tem que aguentar”, mas não é bom. Quando veio, eu consegui esse emprego e fui para ferramentaria, eu fiquei 03 anos nessa empresa, sai porque nesse processo eu conheci a oposição metalúrgica, a gente já tinha um trabalho no bairro e nas outras fábrica, com a fábrica vizinha em Santo Amaro, Nações Unidas, a firma chamava-se Estron, era em frente a MWM, fechou a fábrica, mandaram, saiu, virou padre Marcelo essa fábrica que eu trabalhei, do ferro para fé, rimou até (risos). Eu fiquei, em 78 teve a eleição dos metalúrgicos que eu participei da chapa três, já fui chamado para ser secretário geral. Quando veio a greve, pararam a Scan, e a segunda fábrica que parou em São Paulo a Toshiba, quem dirigiu essa greve foi o companheiro que era encabeçador da chapa, Anísio Batista, depois virou deputado estadual, cara muito bom, até hoje eu tenho contato com ele, hoje é presidente da Casa de Solidariedade, se vocês puderem fazer uma visita lá também, eles tem muito trabalho, curso, de ajudar até hoje os trabalhadores.
P/1 - Nessa fábrica que você trabalhou 03 anos, vocês produziam o que lá?
R - Auto-peças, elas trabalham para a Ford, para todas as empresas lá.
P/1 - E logo que você chegou já deu para conversar com os companheiros, conscientizar eles ou não?
R- Muito difícil no começo, a ideia da gente, a primeira é conhecer a categoria, conhecer o pessoal, primeiro papel é esse, o primeiro contato que eu tive foi com um rapaz que trabalha na fundição e não sabia ler, eu comecei dar aula para ele, ensinar ele a ler e escrever na hora do almoço, a minha primeira ação foi essa, mas com as minhas intenções já também, é claro que a gente ajuda, a gente que é socialista quer ver o conhecimento das pessoas, para poder situar no mundo, no meu entender, o conhecimento não é só para a pessoa ter cargo bom, mas sim para ajudar a conhecer o mundo, situar, aprender, ensinar outro, ele vai descobrindo uma pessoa mais interessante, tem um rapaz lá que era da ferramentaria, interessante, começamos conversar, e vai conversando com outros, naquela época a gente não podia distribuir material publicamente ainda, nem devia também, a gente ia lá e jogava o papelzinho no banheiro por debaixo da porta, o pessoal começava a discutir, saber, começava a comentar aquele assunto, centrava, como um cidadão comum.
P/1 - Falava do quê? De salário?
R - Em 78, quando a Folha de São Paulo começou, a gente tirou xerox de greve em tal lugar, em cada país, e quando teve a greve de São Bernardo, as primeiras greves, a gente tirou xerox e distribuiu para o pessoal da fábrica. Aí o pessoal começava a falar, “e nós aqui? Nós ainda temos que nos organizar”. E aí dava o gancho.
P/1 - Era uma matéria da Folha?
R - A gente tirava xerox da matéria, depois nós fizemos o “jornal dos jornais”, que era a matéria das lutas que estava acontecendo no Brasil e no mundo, sempre a gente publicava. Mesmo jornal burguês. E tinha o boletim da oposição que a gente fazia denunciando os patrões, os pelegos, a ditadura, que era uma forma clandestina também. Mas o “jornal dos jornais” a gente colocava aberto, porque como era vendido nas bancas, era uma forma da gente dar informação para o povo.
P/1 - Vocês xerocaram uma matéria que falava quanto que o operário ganhava no resto do mundo, é isso?
R - Começou a campanha de São Bernardo que era reposição salarial, uma campanha do sindicato, e a gente começou a publicar isso, depois teve a greve também da Scania, nós estávamos em campanha eleitoral também, todos nós, naquele momento ninguém podia mandar embora, a gente foi aproveitando o momento de autoridade e liberdade, fizemos um trabalho que nos apresentava como nova alternativa sindical.
P/1 - Nos anos 70, seu Fernando, você e os companheiros, o que vocês sentiam do salário de vocês e da economia do país. Como é que chegava em vocês isso?
R - Então, os militares sempre tiveram política de arrocho salarial, eles mesmo não tinham campanha salarial, e você sabe que tem toda uma campanha do Delfim Netto, aquela campanha de crescer o bolo para depois dividir. E com esse papo que nunca vinha essa divisão. Eles usaram esse lema. Em 78, começou a carestia, começou aumentar mais do que o salário, e começou a ficar bem claro isso. Na região sul, na nossa região lá onde morava eu e o Santo Dias, tem os clubes de mãe da igreja católica, da igreja progressista, e tinha nós lá também, Sociedade Amigos do Parque, uns companheiro que estavam ajudando, a gente fazia o curso de alfabetização para adulto também, a gente promovia, tínhamos um trabalho, começamos trazer alguns estudante para nos ajudar, tinha esse clube de mãe que levava alguns estudantes que estava se formando em Medicina, naquela região não tinha água e esgoto, não tinha nada, tinha muita verminose, então a gente trouxe muito estudante para ajudar isso aí, ajudar a fazer pesquisa também, dar aula, nós começamos dar curso de alfabetização, era uma forma de fazer a política, e a igreja também começou a ampliar. A igreja tem um padre muito bom, as três comunidades começaram a fazer um trabalho, os clubes de mães em toda aquela região do M'boi Mirim, começamos fazer um trabalho bem amplo com as nossas mães, e eu assumi uma luta do transporte que só tinha uma empresa chamada Jurema, e nós fizemos um abaixo-assinado para a CMTC naquela época, e ela mandou responder que os ônibus que tinha era compatível com os moradores, nós devolvemos o problema para os moradores, a gente nem conhecia o povo da igreja ainda, a gente estava bem isolado na região, e com essa greve, a gente acabou nos unindo com a Igreja Progressista. O Santo Dias, o companheiro que foi morto na greve de 79, morava do meu lado e não sabia, e esse rapaz que entregou o livro lá do socialismo que era da diretoria de Amigos de Bairro, ele falou que tinha um rapaz lá na Bud, está até hoje, que tinha umas ideias parecidas com as minhas. Digo “oxe. Qual é a minha ideia?” “É falar essas coisas que o senhor fala aí”. Eu digo, “fala com ele”. A CMTC tinha respondido que os ônibus eram suficientes, a gente devolveu para os trabalhadores ampliar a luta, justamente nessa época que ele falou que tinha esse cabra, então vamos chamar ele pra gente bater um papo, “chama ele para conversar comigo na minha casa”, aí ele trouxe o Santo Dias, um dirigente da Pastoral Operária, bem ligado à igreja, e foi dali que nós ampliamos a luta do ônibus, o padre assumiu, nós fizemos pesquisa em toda região, quanto tempo demorava o ônibus, e ao mesmo tempo as mães se reuniram para discutir a questão de saúde, reunir as mulheres, que tem muito machismo também, para discutir o problema da mulher, discutir a questão da luta da mulher, do estupramento dos bairros. Naquele ano de 79, na nossa região, era bairro novo, não tinha escola, não tinha creche, não tinha saúde, a gente acabou indo para um lado fértil da luta. A gente tinha diversas frentes de luta. Tinha a luta do transporte, teve essa luta por creche, por questão de escola, para reivindicar. Meu filho era pequeno naquela época, eu trazia para Santo Amaro para a minha ex-mulher trabalhar, para poder ir para creche em Santo Amaro que não tinha para mulher trabalhar. Para a mulher, a vida era muito difícil, não tinha creche, não tinha nada. Nós que encaminhamos essa luta, abrimos essa luta para ter, reivindicar a creche, a escola, mais transporte. E eu fiquei responsável, mas como eu tinha começado a luta de transporte, eu era um dos coordenadores. Eu coordenei duas assembleias naquela região, e nessa brincadeira, a polícia estava infiltrada, a gente não sabia, nesse período também, o clube de mães começaram a escutar o curso de vídeo, porque naquela época quando começou, a gente mesmo percebeu, teve uma pesquisa que os produtos de Santo Amaro era mais barato, quem que morava na periferia, a gente denunciou isso aí, nós, junto com o Santo, fizemos uma carta dirigida ao povo brasileiro denunciando o custo de vida, falando do desnível do salário que a gente ganhava, e do custo de vida. A gente fez as pesquisas, esses estudantes que a gente levou ajudou muito também, as mães, aí começamos ampliar o trabalho. Dali, aquele trabalho foi para Interlagos, Grajaú, Freguesia do Ó, região leste, Lapa, Butantã, Guarulhos, esse movimento do custo de vida acabou se ampliando. Depois dessa carta, o importante foi que o Frei leu essa carta em Brasília, saiu na Voz do Brasil, saiu no exterior. Então o nosso trabalho foi um trabalho que acabou, nós tinhamos essa visão da gente fazer um trabalho bem amplo para não se isolar, porque a gente sabia que o isolamento era prisão e tortura. Então como a igreja assumiu essa luta, quanto mais a gente ampliasse melhor para nós, porque era uma forma de segurança para o povo, era um trabalho amplo, trabalho clandestino estreito só poderia trazer prisão e barrar o movimento, e nós sempre tentamos envolver o povo, as donas de casa. E daí eu falo que foi uma experiência das melhores que eu tive, modéstia à parte, eu tenho minha contribuição, é claro que outros companheiros Aurélio Peres, Santo Dias, Senerido já morreu, outros companheiros, os estudantes, aquele Silvio Caçapava que tem um programa, ele ajudou nós na época do transporte fazer essa pesquisa, tem outras pessoas, muita gente dali ajudou. Nós fizemos esse trabalho, os estudantes ajudaram, e como nós tínhamos um inimigo em comum que era a ditadura, que era falta de liberdade, a gente tentava fazer um trabalho amplo com todo mundo por liberdade democrática, por reivindicações imediatas do povo, que era uma forma de indiretamente lutar contra a ditadura. Da pesquisa sobre o custo de vida, saiu um abaixo-assinado dirigido ao governo pedindo o controle do preço, e essa assembleia foi em 78, fizemos três assembléias grandes, uma no Santa Maria, outra no colégio Arquidiocesano aqui na Vila Mariana, praça metrô Santa Cruz ali, e uma assembleia grande, que inclusive tinha cerca de umas vinte mil pessoas, a igreja encheu, era época do Maluf já, não coube todo mundo e ficou um monte de gente na praça, e era proibido reunir, a gente não podia se reunir na praça, foi dentro da igreja, a igreja nos acolheu, fizemos assembleia lá perto de vinte mil pessoas, eu era um dos coordenadores. Teve o trabalho de homens e mulheres juntos nessa luta, consegui e nessa assembleia era para prestar contas do abaixo assinado que nós colhemos, e nós conseguimos de outros estados, colhendo também assinaturas. Nós conseguimos um milhão e trezentos mil assinaturas para poder contra o arrocho salarial mostrando uma providência, esse abaixo-assinado foi levado para Scania, diz o pessoal que ela ajudou também a abrir esse debate lá, companheiros que querem da nossa turma levou para Scania, e ela ajudou inclusive na contribuição para poder fazer a greve por causa da amplidão dessa luta. Então nós fizemos essa luta.
P/1 - E conseguiram alguma melhoria?
R - Eu acho que esse trabalho que nós fizemos ajudou, porque ampliou, nós estávamos em uma casca de ovo e começamos a quebrar. Com esse trabalho que nós tivemos de fazer um trabalho aliado, trabalho operário e popular com alguns sindicalistas, acabou ajudando ampliar e foi dali que ajudou as primeiras greves também, porque começou o pessoal a ter mais coragem.
P/1 - Esse momento já é o final dos anos 70?. Então, essa reflexão que você fez agora sobre a necessidade desse diálogo de trazer toda a sociedade para o debate, ela é possível porque também a ditadura já existia uma crise no próprio governo, e também porque tinha toda a perseguição, a questão da luta armada também já havia passado. O senhor poderia contar um pouco pra gente como é que você transitou? Foi uma reflexão que foi feita internamente por vocês, ou você está contando isso hoje sobre o que aconteceu lá atrás?
R - Foi em 78. E a questão da abertura lenta gradual. Como toda a esquerda armada foi derrotada, teve que se adaptar à nova conjuntura. Eu, da minha área é o seguinte, o PCdoB, que eu era, lembro, eu lia na época, tinha um livro que chamava A Revolução é de Milhões, então, a gente foi entender, se é de milhões não pode ser só de vanguarda, foi daí que eu acho que muita gente foi repensando isso, de retomar o trabalho de março. Veio também, no meu entender, eu estou falando mais da região sul que eu conheço, não vou contar os outros estados, a Igreja progressista tem um trabalho bem aberto, era corajosa e ajudava. Então, eu acho que a Igreja progressista, junto com a esquerda e aqueles que entenderam por estudar, boa parte da esquerda chamava nós de Igrejeiros, porque nós temos a compreensão de que uma luta não vai ser feita só para o comunista, só para o socialista. A gente foi refletindo isso, foi toda a derrota da guerrilha do Araguaia, a gente foi entendendo, foi uma aula, que era necessário fazer um trabalho mais amplo de conscientização, de envolvimento das lutas concretas do povo.
P/2 - E por que você acha que o governo em si entrou nessa crise que eles precisaram fazer a abertura?
R - Porque aí começou a se isolar no Brasil e no mundo. Começou a ter abertura em outros países, e o Brasil começou também a ter pressão da igreja, ficou um âmbito, não foi só, aí que começou a apoiar a nossa luta, até o Teotônio Vilela que era um coronel lá de Alagoas, eles começaram ver que essa luta, eles pegaram também no meu entender, eu suponho que a derrota dos Estados Unidos no Vietnã, ajudou muito a nós também, porque aquele negócio de querer dominar através de intervenções, de luta, começou a resistência no mundo inteiro. E a derrota dos Estados Unidos no Vietnã, no meu entender, faz parte dessa nova tática também do próprio imperialismo, e fazer um negócio, vamos chamar esse pessoal para democracia representativa que nós sabemos, as armas também, daí eu acho que a burguesia estava mais preparada para abertura do que nós da esquerda, a minha avaliação, uma reflexão minha. Eu não estou dizendo que a esquerda tem essa repressão, estou falando da minha pessoa, como Fernando. Eu acho que a esquerda se perdeu com essa abertura que foi importante, a gente foi tendo essa liberdade avançando em mais lutas, algumas reivindicações, muitas derrotas. Eu fui candidato duas vezes de chapa na oposição, não ganhamos, só perdemos, só ganhamos rua, “quando acabarmos eles vão olhar toda oposição”, a maioria era despedida da fábrica. Mesmo assim, nós fomos derrotados em algumas coisas, mas fomos ganhando essa pequena liberdade que nós temos. Eu brinco inclusive no livro, nós tínhamos um sonho da revolução, da luta e nós tínhamos um inimigo em comum na época da ditadura, que era mais fácil unir a esquerda, unir os democratas em cima de algumas bandeiras amplas, que era bandeira por liberdade, eleição direta, e essa bandeira boa parte da burguesia assumia, ajudava, alguns empresários, uma parte da imprensa, teve toda uma luta ampla sobre a liberdade, questão da anistia, também ao mesmo tempo eles foram se isolando, eles foram vendo, eles foram perdendo o apoio da própria burguesia também, porque a gente tem que entender que a burguesia é quem manda, o resto, a maioria ele é tudo pau mandado, são governo de plantão, só estão aí com a hora que eles querem, eles multa, é tanto que a cada momento eles fazem uma campanha para derrubar o cara que está avançando demais, a burguesia é muito esperta nisso, no meu entender. Minha reflexão é a seguinte: que a gente não estava preparado, que boa parte da esquerda acabou se atolando dentro do legalismo vindo para institucionalidade, indo fazer só campanha institucional, vamos ganhar a maioria no parlamento, prefeituras, governo, a velha política social democrática, no meu entender boa parte da esquerda esqueceu o trabalho de base, desativou os trabalhos de base, e aquele trabalho que se tinha o inimigo com perspectiva da revolução começou a mostrar, com a queda do muro de Berlim, com a desmoralização do socialismo no mundo inteiro, nós fomos derrotados ideologicamente, a grande questão é que nós não fomos derrotados só no Brasil, nós fomos derrotados mundialmente, de uma forma ideológica. Mesmo que a gente acha que foi errado fazer, não se vai controlar um ser humano por causa de um muro, se controla o povo com repressão, ou por convencimento, mas mesmo assim com os erros dos socialistas no mundo inteiro, no meio de boa parte no mundo inteiro, e dali perdeu a perspectiva das revoluções, China, Rússia ou outros países, aqui mesmo, não definia mais a revolução, não apoiava mais, não dava recurso, e com a abertura da América Latina e outros países, a burguesia se achou, nós demos no mundo inteiro, à medida que você rebaixa a sua bandeira só pelas reivindicações democráticas, e pela questão mais econômica, você acabou desarmando ideologicamente o povo, e com o fracasso dos partidos revolucionários também. Muita divisão dos partidos revolucionários e toda essa briga que teve. Algumas pessoas foram justamente dando prioridade mais à questão institucional, outras negaram, e se isolaram também. Na minha visão, a visão correta é sempre, acho que o Lenin já falava isso, digo o que era ser aqui, é lógico que você não pode ficar falando em um contexto da época do Lenin ou daquilo, mas é o conceito da luta. Quem quer transformar o mundo tem que fazer algo paralelo nesse mundo que está aí, no meu entender o pessoal da esquerda se envolveu só criando esse mundo da legalidade, e nisso aí a burguesia sabe fazer, fazer a cooptação, concessão de algumas coisas, que não altera, não molesta o capital, a propriedade privada, todo mundo no meu entender desarmou os trabalhadores, eu acho que a medida que você participa de umas eleições de uma forma diluída, um projeto diluído. Eu já vi nego da esquerda e coloco só o nome e o número, igual a burguesia. E “que mensagem você está levando?” Não leva uma mensagem de mudança, de transformação nenhuma. Então você acaba colocando o projeto político de pessoas, não um projeto político. Então eu acho que as eleições tem que ser disputada sim, mas com projeto político lá, pelo menos o máximo possível ser claro, se explique para o povo que diabo que você está sendo ali, o que você quer das suas eleições no campo eleitoral, uma tribuna, o que você quer com a diabo da tribuna lá no parlamento. A luta popular de mobilização não pode desarmar o povo da luta concreta, da sua organização, todo aquele discurso que você tinha de uma democracia horizontal, direta, perdeu o sentido, conselhos populares ninguém fala mais. Então o pessoal votou, e quando tem competitividade, a própria esquerda fica disputando entre ela. A medida que você tem um monte de nego da esquerda disputando que eu sou melhor do que o outro, e não em cima de projeto político que você faz, você usa junto com a burguesia um clima, estou falando isso pessoalmente, estou falando a visão, a reflexão que eu faço, estou colocando aqui para se eu puder contribuir, mas eu estou deixando a minha posição clara hoje, que eu não sou contra participar do parlamento, mas eu acho que tem que discutir com projeto claro. É tanto que hoje dentro da onde eu estou, eu defendo a candidatura própria do partido. Se é um projeto socialista, você tem que se apresentar, dizer que o projeto político é para os trabalhadores, para a população. Qual é a sua proposta? Hoje nós temos uma crise do desemprego, da fome, mesmo o capitalismo. Quais as propostas que a gente pode ter? O próprio capitalismo deixa claro dizendo o limite dessa luta. E eu acho que a medida que você coloca clara a sua visão, concreta do dia a dia, mas você tem que mostrar a perspectiva de ter um norte, um outro dia. Se você não faz isso, no meu entender, você está jogando ilusão no povo. Fazendo o mesmo jogo da burguesia. Sem construir um debate político, cultural, um informe educativo. Então eu acho que do jeito que está, não tem contribuído para organizar o trabalho. Ainda mais a esquerda brigando entre si. Eu fui do PT, saí do PT, eu tenho muito atrito, como não se fala mais na luta de classe, agora é cidadão não sei o que lá, republicano, virou toda essa moda, a luta de classe não é mais o norte, ela é secundária, você fica na questão elementar, concreta assim, isso é um norte, se é uma visão de discutir como acumular fosse, como ajudar a melhorar a reflexão, eu acho que isso desarma os trabalhadores para poder ter um uma discussão maior. Aí o PT já vem de alguns erros no meu entender. Eu sou a favor de ter o trabalho das mulheres, dos negros, do LGBT, é fundamental essa luta, mas eu entendo, isso foi copiado muito pela política americana, tudo que é americano, aqui tudo é acaba repetindo, até a esquerda repete muito, você acaba não tendo hoje no Brasil uma luta que unifica em termos de Brasil, um projeto, o máximo que tem é “fora Bolsonaro”, e que não se junta, se junta só de vez em quando. Então eu acho que falta, hoje como não tem mais a questão de luta de classe, é secundária, tanto que o sindicato, boa parte virou pelego mesmo, pelego rosa, vermelho. O sindicalismo hoje está muito burocrático, eles não conseguem, porque também tem uma luta que brecou essa luta parlamentar, eu fui candidato a deputado duas vezes, é uma luta nojenta, se você não tem cuidado, você acaba, o povo acaba entrando na própria onda do povo. Uma vez eu fui fazer uma reunião em uma favela lá quando fui candidato, colocando todo meu conceito sobre ser candidato operário, e dizer da questão de intensificar o parlamento, é mais uma tribuna. “Não, mas você tem que lavar o seu”. O povo orientando a gente também ser corrupto. Então é uma cultura muito difícil, e vira uma cultura para todo mundo querer levar vantagem. É pedindo as coisas, camiseta, é coisa, é cimento, é o diabo, e quem tem dinheiro compra o seu voto. Não há burguesia como eu estava falando. A burguesia jogou isso aí. Vamos gastar dinheiro, dinheiro do próprio povo, vamos comprar voto e vamos comprar os vacilantes, os reformistas, e por aí vai, camarada.
P/1 - Eu não queria que a gente terminasse sem o senhor contar sobre duas coisas. A primeira é especialmente para os mais jovens, que talvez não conheçam a figura do Santo Dias e da companheira dele, Ana Dias, o senhor comentou como é que o senhor conheceu. Fala um pouquinho sobre como que era esse casal e como é que foi o assassinato dele, por gentileza?
R - O Santo, eu conheci nessa luta do ônibus, depois veio essa luta das comunidade, aí eu acabei conhecendo todo o povo da igreja, daquela região, e o Santo, a gente começou essa luta juntos, e ele me levou para oposição metalúrgica, ele que me apresentou, já estava estruturada, tinha sofrido golpe na ditadura, e ele me levou para lá. Eu morava próximo do Santo, a gente ia para a reunião da oposição juntos, depois eu virei coordenador também, praticamente a gente se via no mínimo três vezes por semana. Eu ia na casa dele, ele ia na minha, geralmente a gente fazia mais na casa dele, a Ana Dias era uma pessoa bem engajada em São Paulo, Clube de Mães, no trabalho da comunidade, acho que até hoje ela é ligada na igreja, o Santo era da Pastoral Operária também, ela também, mas ele tinha abertura de discutir o marxismo, a gente abriu para ele a questão da guerrilha do Araguaia, foram bem reservadas, não quer dizer que ele apoiou, mas a gente estava em um processo de conversar com ele, ele estava em um processo bem avançado, ele era um cara bem politizado já. Eles eram um casal muito legal, se davam muito bem, nunca vi uma arenga deles, nunca vi eles se criticar, ser machista, nem dele, nem dela cobrar nada. Era um casal assim muito legal em termos, acho que eles sabiam muito bem a luta deles, compromisso com a luta. Eles eram mais ligados à teologia da libertação, Santo era coordenador de um grupo, a Ana também. Eles até me envolveram uma vez para representar a Sul em uma reunião dos bispos para defender a pastoral operária, que já estava bem manjado lá. Nós sempre tivemos muita unidade, a gente acabou tendo muita afinidade política, de amizade e caráter também. O Santo Dias é do mesmo ano que eu, é mais velho que eu. Acho que foi em abril agora que ele fez aniversário, em março, eu sou de agosto. Ele é mais velho que eu, poucos anos. A greve de 79, foi uma greve muito complicada, porque a gente fez uma greve, o clima de greve em 78 estava muito melhor do que em 79, e foi aquelas greves de fábrica, nós fizemos uma na campanha salarial, nós conseguimos colocar trinta mil pessoas na praça, o Santo estava vivo, ajudando todos nós, na Rua do Carmo para decretar, que estava começando a estourar a greve de fábrica. Vamos fazer uma greve geral. Se o pelego não tivesse, tinha sido a primeira greve geral, primeiro que a de São Bernardo, porque nós tínhamos um trabalho político da oposição. Chegamos lá, o Joaquinzão não quis colocar em votação, e ficou no primeiro andar dirigindo de lá,
e alegando que tinha estudante, que tinha gente de fora, não quis por não, mas o pessoal foi lá, fez um acordo com ele de votar no outro dia e aceitar, e ele falou que ia fazer a votação que não fosse sindicalizado. Chegou no outro dia, ele aplicou o golpe, estatutariamente, só quem votou foi quem era sindicalizado, eles levavam a vantagem que a grande massa estava com a gente, mas a gente não era do sindicato, porque o sindicato não serviu quase para nada, traiu nós, acabou aquela campanha salarial, e voltamos para a fábrica. Veio a campanha salarial de novo, nós tentamos mobilizar, a oposição já tinha criado bastante força, porque ela tinha participado das eleições em 78, estava bem reconhecida, conseguimos colocar na marra a greve geral em 79, isso foi uma sexta-feira, domingo à tarde fizemos uma reunião para organizar os piquetes, a gente chamava piquete, mas reunião de mobilização por região, fizemos o Joaquinzão aprovar sobre cerdas, alugar salas por região, a gente acabou radicalizando um pouco a luta, e logo no dia, na véspera da greve, começava segunda-feira, nós fomos presos. Nós estávamos fazendo uma assembleia na militância, os cara que não eram grevista ainda, era os piqueteiro que a gente chamava, os militante, e de repente chega a polícia com dez caminhões, com a televisão junto, e fomos presos, só em Santo Amaro foi 113 presos, eu estava no meio, o Santo ficou, estava vendo trabalho de outra fábrica com outros companheiros, ficamos preso um dia todo, e o Santo ficou ajudando na região sul, e ficou meio manjado também que ia para uma fábrica, para outra. Soltaram nós a noite, na segunda-feira, no outro dia, nós voltamos, e todo pessoal que ia, 10 pessoas foram presas nas fábrica, nós reunimos 12:00, 13:00 na terça-feira e tiramos a posição de que ninguém ia mais para fábrica sozinha, a gente ia todo mundo, ou ia agora, todo mundo ia para uma fábrica sólida, se a polícia parasse, a gente já saia parando os outros, essa posição foi tirada, e o Santo foi incumbido a ajudar a coordenar essa reunião para chamar o pessoal para uma assembleia para decidir a continuação da greve ou não. A fábrica entrava às 14:00, a Silvana foi lá, conversando com as pessoas, e a polícia chegou para reprimir, e como ele tinha falado, “olha, a gente tem que evitar deixar as pessoas irem presos, se é para ser preso é todo mundo”, tem alguns companheiro que deram ordem de prisão, o João Pereira, que a gente chamava até João de porrada. Aí foi tirar o companheiro, não deixaram ele ser preso, atiraram no Santo Dias. O Santo era um cara pacífico, atiraram nele nas costas. Confesso a você, que eu falo até no meu livro, eu vi meu irmão morrer, foi tão difícil quando morreu o Santo. O Santo Dias foi mais profundo para mim, que ele não era um irmão só não, não era só um amigo, foi um irmão de classe, irmão de ideias, de compromisso, de transformação. Muitas vezes eu choro quando falo essas coisas, porque foi um negócio muito triste, dolorido. Você fala assim, na luta de classe que matam fulano, você nunca vê na sua carne, porque é duro, muito difícil, você ver um companheiro tombado, veio na luta, aquele companheiro tombado pelo seu inimigo, e sabendo que a luta dele era uma luta justa, uma luta dele, nossa, de todo mundo, dos trabalhadores, uma luta animal de querer comer, o direito de comer, simplesmente, não cabe mais nada do que isso, direito de comer. Ninguém estava pedindo para tomar o poder. Estava querendo um salário a mais, um aumentozinho a mais. Para a juventude, se você quer dialogar com a juventude aqui, para quem é historiador, para quem pensa dar continuidade a luta, ela é importante a gente entender um pouco o processo da luta, porque essa luta não começou agora, nós somos continuidade de diversas lutas, dos índios, dos negros, das mulheres, nós somos herdeiro, e a juventude com certeza independente de Fernando ou de Santo Dias, ele é um herdeiro da luta, porque vai chegar o momento que ele vê que a única saída é a luta, e daí a responsabilidade da juventude hoje é mostrar que ela tem que ser uma luta que quanto mais unidade tiver, quanto mais organização tiver melhor, quanto mais competência tiver melhor, quanto mais seriedade, mais firmeza na luta, ela é importante. Não se faz a luta de forma individual, localizada. Quantas lutas nós já tivemos no Brasil? Se levantou de uma forma localizada, regionalista, e eu chamo atenção da juventude que é uma luta que a gente tem que estender o Brasil afora, que a maioria dos problemas, é problema do Brasil. É um problema da classe trabalhadora. É um problema dos jovens, da educação, da cultura. Portanto, a juventude tem que trabalhar e construir seu projeto político. A primeira coisa que eu quero deixar aqui como conclusão, é que um projeto político tem sido feito por diversas mãos, por diversas cabeças, e para isso é importante a solidariedade, a compreensão.
P/2 - Você podia contar pra gente um pouco, a sua vida então, todo esse período, desde a sua mudança para Santo Amaro para trabalhar como operário, até hoje você permanece lá, e toda sua vida se deu em Santo Amaro?
R - Não, eu já tive uma recaída de voltar, eu tenho um irmão que mora em Mato Grosso, e teve um fazendeiro que tinha três fazendas, na época do Fernando Henrique Cardoso. Olha como é cada armação que tem. Esse próprio fazendeiro queria vender uma fazenda, ele não conseguiu pelo preço que ele queria, acabou arranjando uns peão, e arranjou o próprio cara para dirigir a invasão, e meu irmão me chamou dizendo, não sabia da história, ele me chamou, e eu disse, “vou para os sem terra”, estava desempregado, cuidando de um barzinho do sindicato, de saco cheio de como estava o sindicato, muda de visão, muita pressão, filho pequeno também, segunda mulher, cuidando de um filho, ser comunista, ser desempregado e ser pai solteiro não é fácil. Eu vou para lá, fiquei 01 ano e pouco. Aí não deu certo a terra, voltei para cá de novo, de 70 para cá foi sempre em Santo Amaro. Em 71, que eu fui para a Rádio Santa Amália, estou lá até hoje, compadre. Não tenho mais meu trabalho hoje de metalúrgica, a gente parou porque quem não trabalha também não pode ficar dando palpite, eu sou daqueles que se você der opinião, você não deve dar proposta para os outros fazer, você tem que estar junto, na minha visão é essa, companheirismo tem que ser isso, fazer as coisas que os outros manda é fácil para quem manda. Eu tenho participado bastante do debate, passei muito tempo, fui assessor em dois mandatos do Luiz Eduardo, do Beto Custódio, trabalhei na prefeitura esse período, mas sempre fazendo política. A minha política hoje é tentar reorganizar a luta contra o desemprego, contra a fome e a carestia. A gente fala contra a miséria, mas a gente acha que miséria o pessoal não gosta, nem todo mundo se considera miserável, então a gente coloca algo assim, coloca a carestia para suavizar mais um pouco, está tentando criar esse movimento, e estamos aí muito difícil, porque na época de 83, era mais fácil que os desempregados iam para a praça, tinha as agências, hoje não, hoje o pessoal está em suas casa, difícil, muitos iludido com a política, muitos iludido com a luta, decepção demais. Hoje está muito mais difícil que naquela época, o pessoal fala que tem a juventude, uma parte jovem que compreende mais. Na periferia, você chama o pessoal para a luta, está muito difícil a reunião, muito mais, o estímulo está menos que antigamente.
P/2 - Sobre as greves de 78, 79 você acompanhou as greves do ABC então também?
R - Então, eu fui naquela assembleia grandona. Você sabe que nós tínhamos uma…nós fizemos campanha para arrecadar alimento para a greve. Uma forma que a gente contribuiu foi quando a gente ajudou a fazer o trabalho popular. Chegou ter um pessoal a fazer um comitê de solidariedade, mas era um grupo pequeno, mas nós junto com toda a oposição, com o trabalho popular, com a igreja, todo mundo, fizemos um comitê de solidariedade, arrecadamos bastantes alimentos, igreja, fábrica, a gente passava lençol nas portas de fábrica pedindo dinheiro para poder comprar alimento para o pessoal, teve um apoio, sempre teve. Uma época nós tivemos até uma divergência com a oposição metalúrgica, que em plena greve do ABC, eles fizeram um congresso, nós fomos contra, porque a gente acha que não era o momento, nós acabamos saindo desse congresso, fazer esse trabalho de apoio à greve. Teve essa divergência, ele chama o grupo dos 21, mas eles nunca falam qual foi o motivo, é claro que tinha motivo, a divergência política também, porque a oposição, nós temos uma visão que ela queria ser um tipo de um partido, de enquadrar, já como eram a frente tinha que ser mais consensual. Então ele tem essa divergência também, a gente aproveitou e não sei se foi oportunidade da nossa parte, e deu-se no mesmo tempo, é claro que a gente ia enfrentar esse debate ainda, nós propusemos, o Santo junto também, O Santo saiu comigo, de ser adiado o congresso, fomos para lá para adiar, o pessoal não aceitou, eles ficaram fazendo o congresso. E nós voltamos para os bairros para ajudar nessa arrecadação, no comitê de solidariedade a greve do ABC. A minha participação maior foram essas duas coisas, porque tivemos uma posição política que pode ser chamada de visionista. Mas por outro lado também, teve o papel da gente ser solidário aos companheiros. Naquele momento a gente optou pela solidariedade ao ABC.
P/1 - E em 79, você ainda esperava que um companheiro seu fosse assassinado?
R - Em 79, a igreja ficou muito chocada, como a gente já tinha perdido muitos companheiros da esquerda, e a gente sabe que na luta de classe, claro que a gente sabe que a burguesia não vacila, acabou a ditadura, mas ela não desarmou o braço direito dela que é o exército, que é a polícia militar. Eu, pessoalmente, não tinha ilusão, eu sabia que podia acontecer. Na luta de classe o que a gente via, nós fomos agredidos muitas vezes, mesmo os pelego não era junto, se nós desse malha, eles iam lá para bater em nós nas assembleia. Então a gente estava sujeito no choque de luta de classe. Nós sabemos. E o velho já falava que a luta de classe é considerada uma guerra, é coisa de sofrimento mesmo. No meu entender, e até hoje eu acho que é possível uma greve ou qualquer luta dos trabalhadores, dos camponeses, qualquer luta que vai confrontar a ordem burguesa está sujeita companheiro. A Marielle não foi morta há pouco tempo por defender uma posição? Quantos já morreram, quantos índios estão morrendo agora? Sindicalista, partidos políticos, quantos de nós são ameaçados, os mais aguerridos, os que se acham mais perigosos. Então no processo da luta de classe é sujeito, é claro que a gente é a favor da paz, mas eles são a favor da guerra. Nós somos a favor da revolução, e na revolução é outro patamar de luta. Eu não sei, eu nunca participei, mas entendo que não é fácil também não.
P/1 - E hoje o senhor está como de vida? Está ainda militando por todas essas questões no Santo Amaro? Você não parou com a militância?
R - Hoje eu parei, estou de uma forma mais leve. Eu era muito dedicado. Hoje a gente está retomando esse grupo, eu fui falar com muito desempregado lá na leste, a gente está na luta, de ajudar mais assessorando, vamos dizer. Eu passei por um grupo do PSOL, tinha muitos problemas. Estou me sentindo tipo um sanduíche nas duas corrente, eu falo para as pessoas, eu não sei se pode publicar, mas eu saí do PT, eu falo isso publicamente, o pessoal não tem problema não. Eu tenho um problema que é o seguinte, existia um poder muito grande dos parlamentares. E você estava no diretório, eu passava no diretório do M'boi Mirim, e se você não era do mandato, ficava aleijado ali. A decisão era dos acordos lá daqueles mandatos. Então o diretório não servia mais para nada. Nós fizemos uma casca quando nós saímos, um grupo, e virou bando, e os militantes do PT virou um “militonto”, qualquer coisa, e a gente não queria ser “miliquanto” e nem “militonto”, a gente ajudou a construir, fui membro do vetor nacional do PT. À medida que você vê que o partido desviou toda aquela política, que eu acho que estava correto dos núcleos, diretório funcionando, os núcleos não era para ficar discutindo parlamentar, era para discutir a luta, é por o povo em movimento em todos os níveis, forma concreta das lutas do bairro, da fábrica, cultural, educacional. Então nós aprendemos a fazer, os núcleos era para isso, muitos núcleos fizeram isso, que eu conheci, a ideia era essa. Aí fez toda essa crítica que a gente fez ao PT, eu estou no PSOL tem muita gente boa, mas já tem um problema de muitas tendências. Acho que tem 10 tendências. Eu não estou afim de me envolver em uma tendência, que eu já entrei no bonde andando, o pessoal está há muito tempo uns 04 anos por aí, estou tentando, agora eu tenho um grupo de reflexão, algumas companheiras que entraram junto comigo, eu tinha entrado primeiro, se não quiserem entrar eu respeito, porque eu acho importante ter um debate nacional, não ficar só em termos de região sul, porque como eu sou a favor da luta regional, mas que esteja ligado a questão nacional ou internacional até, uma perspectiva, aí eu vou entrar, fiquei lá, então tem uns grupos, até que a gente tem afinidade em algumas coisas, outras não, tem os problemas das tendências, muito difícil também. Porque boa parte tem mais interesse de crescer as tendências do que o partido, a gente percebe isso, ninguém é doido, muito difícil. E como é um partido também praticamente da ordem, você fica meio perdido, se vale a pena. Estou no núcleo lá, tento ajudar no debate. Inclusive, essa a ideia do núcleo, de criar o movimento voltado contra o desemprego, surgiu inclusive o que eu propus lá no núcleo do PT do Capão Redondo, como eu estava falando que está faltando bandeira que une o povo, eu fiz uma proposta da gente fazer 03 propostas para região sul, uma era retomar a questão de mulher desempregada, a luta contra o desemprego, e a outra era a questão da universidade pública para a região, porque a universidade pública que unifica o jovem, o pai, dona de casa, um movimento que é necessário e que pode trazer uma retomada da luta de novo, com a perspectiva do povão. Porque essas lutas isoladas que eu estou falando são importantes, mas nós não temos uma bandeira que unifica o todo; e a outra era a questão do meio ambiente, hoje no momento, a gente avaliando, ficou muito a questão dos especialista em ambiente, acho que é um papel dos comunistas, dos socialistas, porque nós temos que salvar o planeta também, recuperar o planeta. Eu fiz essa proposta da gente levar para o PSOL, fizemos até um documento. Na hora que era para fazer, para ganhar o apoio, veio o diabo da pandemia, não teve a convenção, mas mesmo assim eu acabei chamando alguns companheiros, um companheiro ajudou, começou a articular aqui um grupo de companheiros que participaram do movimento de desempregados até 2013, por aí, e foi daí que a gente está retomando. Tem companheiro da Pastoral Operária, tem o pessoal que vem na leste estão fazendo trabalho de grupo lá, estamos tentando ver se esse momento cria, a nossa ideia é que esse seja um movimento nacionalmente, e nós estamos defendendo a renda mínima, renda básica, de um salário mínimo. Inclusive, nós vamos ter uma reunião no dia primeiro, até o Plininho acho que vai lá, outro companheiro. Eu defendi essa ideia. Nós estamos abrindo o debate. Eu estou servindo para isso. Ser uma pessoa que ajude pelos meus conhecimentos, outros companheiros ajude esse momento, ajudando no debate político também, e que a gente faça um debate entre nós no comitê, o grupo chama-se Movimento Contra o Desemprego, próxima reunião é sempre o último domingo do mês, nós vamos fazer um debate aprofundado que a gente tem a bandeira, mas a gente precisa aprofundar. Como é que nós vamos colocar essa bandeira da renda mínima sabendo que uma reunião é uma luta paliativa? Mas é uma luta necessária de resistência da classe trabalhadora. Porque os empresários, os patrões não tem amor, não tem compromisso com a questão social. Então nós queremos criar, a gente sabe que em alguns países, a gente está até tentando pesquisar, acho que a França tem, é criar uma renda básica que o companheiro que fica desempregado, que hoje não tem mais segurança e nem vai ter emprego para todo mundo, a grande verdade é essa, no processo, acho que não vai ter, espero estar errado, tomara que esteja, não é que a gente deseja que não tenha, a gente quer que tenha, mas a nossa luta é para isso, mas enquanto não tiver, a gente quer lutar por uma renda básica, que aí nós temos que nos aprofundar sobre essa renda básica, que ela seja para pessoa desempregada, que seja um salário mínimo, e que ela não seja uma política de governo, seja uma política de estado, e se sair o governo, mas que ninguém mexa, que ela seja votada. A minha perspectiva é discutir em debate de onde viria esse dinheiro, porque eles vão perguntar para nós, de onde que vai vir esse dinheiro?, nós vamos ter que nos aprofundar, para onde é que nós vamos propor isso, de onde é que vamos tirar esse dinheiro, vamos fazer a campanha ao mesmo tempo. A medida que estiver claro o apoio maior no Brasil, eu não sei, como está muito difícil organizar os trabalhadores, mas um ano eleitoral ainda, todo mundo voltado para pedir voto, nós estamos também aprofundando essas questões, para o ano que vem, quem sabe a gente poder dar um salto na frente, mas a ideia é essa, e com isso a medida que a gente tiver claro. A outra é a questão do transporte grátis para desempregados. A ideia do próximo debate é fazer, nós vamos aprontar primeiro esses dois debates, que é um debate que requer despesa, porque algumas lutas nós temos é já está claro para nós, a questão de horta comunitária, a questão de frente de trabalho, isenção de água e luz, isso é um negócio que é possível você brigar e conseguir com algumas prefeituras, algum estado. Nós temos que ir clareando essas bandeira que é mais clara ao governo do estado, que é mais clara a prefeito e o governo federal. Como a luta federal é a mais difícil e nós temos que envolver a classe trabalhadora, aí não pode ser só São Paulo, a gente tem que se preparar, você tem que se preparar. A gente acha que a medida que a gente tiver claro isso e for crescendo, nós estamos entrando em contato com outros estados, nós fizemos um documento dirigido a todas as entidades, a todo mundo, a partido político, chamando para vir para essa luta, a gente quer dialogar com eles. A medida que tiver mais clara essa ideia do uso da renda básica, a gente pode pode trabalhar um projeto popular, não pedir seu voto, não temos projeto popular da constituição? A gente vê lá como é que vai fazer, quantas assinaturas precisar e começar ali, pode ser um trabalho que justamente a gente possa unificar toda a classe trabalhadora. Os que estão trabalhando, os desempregado, na informalidade, as dona de casa, se nós não ganhamos um projeto popular, então o projeto popular não pode ser só coisa dos operários, só dos bancário, nós queremos fazer, retomar aquela luta ampla que nós queríamos, que nós aprendemos fazer no passado e que deixamos de lado.
P/2 - Quando você pensa hoje nessa questão de muitas pessoas defendendo a volta da ditadura, dizendo que a ditadura era uma coisa boa, enaltecendo o regime militar, dizendo que para o Brasil foi muito bom, aquele tempo que era bom, o que você falaria para os jovens hoje, ou para as pessoas que falam isso? Que resposta você teria para dar?
R - Eu falo, “não entra nessa, não”. Primeiro, não entra nessa que não é coisa boa. Mas eu acho que parece que o Brasil era o segundo partido fascista, o segundo maior no Brasil. Então o fascismo nunca parou. Então você vê essa luta do fascismo e do conservadorismo é uma luta velha e nós vamos estar com essa luta por muitos e muitos anos. Até se a gente não conseguir derrotar essa luta conservadora, reacionária, fascista, terrorista. Eu acho que o jovem tem que entender que o fascismo é um regime terrorista, e quem disse que foi bom é a ideologia de quem tem interesse de retomar a questão do fascismo, da ditadura. Não é à toa, eu acho que existe na própria imprensa, na própria vivência das pessoas, esse discurso que era bom, usando a ignorância do povo, a falta de conhecimento. Quantas vezes nós ignoramos e nem sabemos quantas pessoas lutaram por nós no mundo e não somente no Brasil? Aquela greve maleta na Bahia. Ninguém fala. Ninguém propagandeia as lutas que o pessoal se rebelaram contra as injustiças. Ninguém fala. Então existe uma campanha permanente da burguesia também. A burguesia faz seu trabalho permanentemente para ganhar a mente do povo. Não é só a esquerda que quer ganhar a mente do povo não. Pelo contrário, a burguesia tem mais poder do que a esquerda. A burguesia tem os meios de comunicação. O ensino, boa parte dos currículos é tirado pela da ótica da burguesia, do poder burguês. Então, a juventude, se ela quer se libertar, ela defende a democracia, ela tem que lutar pela democracia, e essa democracia não vai ser dada de mão beijada. Tudo que a história, que eu tenho para dizer aos jovens, que toda luta nossa foi na marra, e muitas vezes até com morte, com sangue, com torturas. Então, a juventude, em primeiro lugar tem que pensar, estudar um pouco o que é socialismo, o que é fascismo, o que é burguesia. Não dá para ficar tomando a posição só por um lado, sendo seguidores daquele fulano lá. Vocês não podem seguir só um socialista, nem seguidor da direita. Você tem que ser seguidor do socialismo, das ideias de um projeto político. Porque a própria escrita também está sujeita a errar, a fazer propostas fora da ordem, do tema. O jovem tem que em primeiro lugar ser um protagonista da sua transformação. Quem quer usar um país democrático e igualitário tem que lutar por ele, não vai achar que Lula, qualquer que seja, é mais um, é um lutador tal, mas ele tem limite. A luta tem limite no campo institucional, eu falo que a juventude tem que primeiro lutar por um projeto político, por aí passa a questão do projeto que vai resolver os problema da maioria do povo, no meu entender só tem uma saída, é a luta pelo socialismo, uma luta onde os trabalhadores administram as riquezas que ele constrói. Você constrói riqueza e dá para o outro lá administrar? Eu acho que nós estamos errado também, não reivindicar o nosso pão de cada dia, os nossos direitos, eu acho que a juventude tem que ficar de olho nessas propagandas fáceis.
P/1 - Seu Fernando, como é que foi contar um pouco da sua história hoje pra gente?
R - Olha, dia desses eu fui dar uma entrevista lá no IEP, um depoimento e eu acabei chorando, que era sempre triste, porque quando você é criança quer chegar aos 18 anos para ver o mundo, ser liberto, usar sua liberdade, você acha que vai fazer tudo. E contar a minha história, eu acho legal, fico feliz de ter alguém que queira ouvir, mas ela é boa para umas partes e triste por outras também, não é fácil os tombos que a gente levou. A gente recorda muitas coisas. Eu sei que eu sou um produto do processo do Brasil, da mudança, e eu acho legal, eu fico contente, se eu puder contribuir para mim é um prazer. Aí tem hora que eu fico, toda vez que eu vou falar isso aqui eu fico pensando, que muitos companheiros que chamaram os trabalhadores, chamaram a classe operária pelo caminho, começaram a desviar por outro caminho, eu não acho legal essas coisas, sem fazer autocrítica. Quem se propõe a mudar o mundo tem que ter um mínimo de coerência. Nós temos que trabalhar um pouco diferente para o próprio povo acreditar na gente, e poder inclusive educar de uma forma correta. E para isso, eu acho que meu papel hoje é contribuir um pouco, como nós estamos em um mundo muito individualista, competitivo, salve-se quem puder, eu me sinto feliz em dar, pelo menos ter um espaço onde eu possa falar essas coisas. E obrigado, viu!
P/1 - Obrigado o senhor, foi um prazer também ouvir o senhor!
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