P/1 - Eu vou pedir para você falar o seu nome, local de nascimento e data de nascimento. Você já falou lá dentro, mas só para deixar registrado.
R - Meu nome é Marco Antonio da Silva Souza, mas eu me conheço como Marquinhos, é um apelido muito antigo. Sou nascido em São Bernardo do Campo.
P/1 - Que dia você nasceu?
R - Nasci em 14 de maio de 1968. Meu pai é originário do Ceará, cidade chamada Missão Velha. Minha avó ganhou em torno de sete filhos, entre eles, três homens e quatro mulheres. Minha mãe é de Minas Gerais, uma família grande também, uma família de nove pessoas, oito mulheres e um homem. E meu pai... a família da minha avó por parte do meu pai veio cedo para São Bernardo, migraram e vieram mais ou menos no período dos anos cinquenta. A minha mãe veio trabalhar, aquela velha história conhecida do Brasil, de meninas muito novas, a partir dos dezesseis anos, ela sai de lá para vir trabalhar em São Paulo, em casa, de domésticas. Vem para São Paulo, o sonho de chegar à grande cidade, o sonho de conseguir um bom emprego, um grande futuro. E aí eles se encontraram em São Bernardo e então dessa história veio eu.
P/1 - Como eles se conheceram?
R - Eu não sei exatamente como eles se conheceram. Meu pai era muito ligado a...
P/1 - Ela veio para São Paulo. E o seu pai?
R - Meu pai já estava aqui, ele veio de lá e já estava aqui.
P/1 - De São Bernardo ele veio morar em São Paulo também?
R - Não, São Paulo não, São Bernardo. Tudo isso em São Bernardo.
P/1 - Sua mãe também foi para São Bernardo?
R - Para São Bernardo.
P/1 - Está bom, agora entendi.
R - Minha mãe foi trabalhar em casa de família, é muito comum. As minhas tias... Hoje eu tento entender a história, boa parte das minhas tias saiu de Minas Gerais, da cidade de Baependi. Baependi é um nome indígena, que dizia o seguinte, era mais ou menos dar “Boas Vindas”. A história conta lá que tem um rio, o Rio Baependi, para vocês terem uma...
Continuar leituraP/1 - Eu vou pedir para você falar o seu nome, local de nascimento e data de nascimento. Você já falou lá dentro, mas só para deixar registrado.
R - Meu nome é Marco Antonio da Silva Souza, mas eu me conheço como Marquinhos, é um apelido muito antigo. Sou nascido em São Bernardo do Campo.
P/1 - Que dia você nasceu?
R - Nasci em 14 de maio de 1968. Meu pai é originário do Ceará, cidade chamada Missão Velha. Minha avó ganhou em torno de sete filhos, entre eles, três homens e quatro mulheres. Minha mãe é de Minas Gerais, uma família grande também, uma família de nove pessoas, oito mulheres e um homem. E meu pai... a família da minha avó por parte do meu pai veio cedo para São Bernardo, migraram e vieram mais ou menos no período dos anos cinquenta. A minha mãe veio trabalhar, aquela velha história conhecida do Brasil, de meninas muito novas, a partir dos dezesseis anos, ela sai de lá para vir trabalhar em São Paulo, em casa, de domésticas. Vem para São Paulo, o sonho de chegar à grande cidade, o sonho de conseguir um bom emprego, um grande futuro. E aí eles se encontraram em São Bernardo e então dessa história veio eu.
P/1 - Como eles se conheceram?
R - Eu não sei exatamente como eles se conheceram. Meu pai era muito ligado a...
P/1 - Ela veio para São Paulo. E o seu pai?
R - Meu pai já estava aqui, ele veio de lá e já estava aqui.
P/1 - De São Bernardo ele veio morar em São Paulo também?
R - Não, São Paulo não, São Bernardo. Tudo isso em São Bernardo.
P/1 - Sua mãe também foi para São Bernardo?
R - Para São Bernardo.
P/1 - Está bom, agora entendi.
R - Minha mãe foi trabalhar em casa de família, é muito comum. As minhas tias... Hoje eu tento entender a história, boa parte das minhas tias saiu de Minas Gerais, da cidade de Baependi. Baependi é um nome indígena, que dizia o seguinte, era mais ou menos dar “Boas Vindas”. A história conta lá que tem um rio, o Rio Baependi, para vocês terem uma ideia, está perto da região de Caxambu, São Tomé das Letras, Três Corações, Varginha, está naquela região do sul de Minas. E aí dizem que chegou os bandeirantes lá e os índios davam boas vindas, e o jeito de dar boas vindas era falar Baependi. Diz que o pessoal desceu e foi literalmente um massacre com o povo que vivia lá, mas eles saíram de lá. Tem essa história de que, como é muito próximo de São Paulo, fica no eixo São Paulo, as pessoas iam para lá em situação de bastante precariedade e terminavam vindo para cá. Então, pouca escolaridade, analfabetas... Meu pai estudou até a quarta série. E o meu pai tocava violão, gostava de tocar violão. Meu pai sempre trabalhou na área de vigilância, trabalhava de pedreiro, de fazer ainda, eu acompanhei algum [trabalho] dele, de fazer poço, fossa. Eram poucas atividades que ele fazia, pintura... Mas gostava muito de tocar violão. E foi nessas histórias aí... a história que eu sei é que numas dessas festas meu pai estava tocando e minha mãe passou e gostou dele e tal. Eles se conheceram, ele a paquerou e aí começaram a namorar. Casaram, minha mãe me teve com dezenove anos, meu pai um pouco mais velho, não sei exatamente a idade dele, e aí eu nasci em São Paulo. Em São Bernardo, desculpe. E com um pouco, mais ou menos dois, três anos, eu voltei para Minas. A situação apertou, minha mãe morava no fundo da casa da minha avó, a situação apertou e minha mãe voltou para Minas. Aí em Minas meu pai ia nos visitar, não lembro, eu era pequenininho, era de vez em quando. Mas em torno de eu com seis para sete anos retornamos de novo para São Paulo.
P/1 - Então você morou dos dois, três anos, até seis, sete anos, em Minas?
R - Em Minas.
P/1 - Só com a sua mãe?
R - Só com minha mãe. Meu pai ia esporádico, morava lá num quintal, num terreno que a minha avó tinha lá, que tinha casa um pouco maior, e aí ele foi e buscou, nós viemos de novo para São Paulo. Aí eu já consigo lembrar um pouco mais, a memória.
P/1 - Você tem alguma lembrança desse período que morou em Minas?
R - Tenho, tenho bastante lembrança.
P/1 - E como foi?
R - Eu tenho lembrança do terreno. Hoje eu vou lá e a impressão era que o terreno era muito maior, assim que eu andava no terreno e tal. A minha família é de muita tradição de história oral. Até agora, nesse final de semana meu filho esteve lá em Minas e encontrou com uma tia minha, e minha tia contou a história do gato que o rabo não tinha fim. O menino está desesperado, tem dois dias que o menino não consegue dormir na cama dele. Minha tia é terrível.
P/1 - Quantos anos ele tem?
R - Está com dez anos, é o Gustavo. Então eles contam muitas histórias, muitas histórias. Minha mãe - então, é essa - contou que o menino que não obedece e sai à noite... e que a minha tia saiu um dia à noite e nessa história de sair à noite ela tentou entrar sem meus avós verem. E ela entrou e viu um gato. Tinha um gato olhando assim para ela, e ela olhou para o gato e percebeu que era um gato estranho, um gato preto, e começou a olhar, só que ela via que o rabo do gato... ela começou a olhar e via que o rabo do gato ia e andava pelo terreno inteiro e ia cercando e tal. E ela via que aquele gato era muito perigoso para quem não obedece o pai e não obedece a mãe. Então tem muitas histórias assim. O menino passou e eu também, vixe, eu ouvi muita dessas histórias. Essas e outras.
P/1 - Quem contava essas histórias? Sua Avó?
R - Minhas tias. Minha avó também, minha avó... E sabe, é verdade, hein, eu nasci no dia primeiro de abril, mas é verdade, então contava... Tem muitas dessas histórias, histórias de mula sem cabeça, de pau seco, da rua, que depois do horário quem anda na rua é para os mortos, não é para os vivos... Então preserva muito essa coisa da cultura popular, essa coisa da mística, essa coisa da assombração. E tinha uma família lá, uma família muito conhecida em Minas, da minha mãe, a família dos Quaresmas, um povo meio briguento, que tem sangue que gosta de brigar, bastante mulher, mas elas são... gostavam de arrumar confusão. E tinha outra família lá, de bastante mulher também, que é a família do Zé Rabinho. E o povo falava que o Zé Rabinho era um cara que diz, que se você chegasse e oferecesse sal ou alguma coisa para ele, que ele não pegava na porta de casa, na verdade ele virava lobisomem. Então imagina as histórias... E eu fui criado com essas histórias, várias delas, basicamente ligadas à questão de desobediência de pai, de tomar cuidado para não conversar com gente estranha a noite, que você pode às vezes estar conversando com uma pessoa viva e podia ser com uma pessoa morta. Então tem muitas dessas histórias, essa basicamente é a memória.
P/1 - E as brincadeiras?
R - Era jogar futebol, caçar passarinho...
P/1 - Você era bem pequeno.
R - Era, mas caçar passarinho, jogar bola, tentar soltar pipa, balanço... Lá tinha um bambuzal muito grande e tinha uma história que lá naquele bambuzal tinha uma cascavel, que vivia lá e era muito perigoso, então tinha de tomar cuidado para não entrar lá. Tinha história do Seu Trovão. Seu Trovão, um cara muito conhecido lá, segundo o pessoal era uma pessoa que foi para a Segunda Guerra Mundial e foi um herói de guerra, mas ficou louco, que ele tinha uma espada. Então eram só pessoas perturbadas que moravam na cidade. Tinha uma senhora também, que morava em frente à casa da minha avó, que chamava Nica Beizuda, que era uma senhora que diziam que tudo que ela catava, que ela guardava dinheiro e depois... Eu não lembro agora se é fantasia, mas eu tenho assim na minha memória, que quando ela morreu o pessoal foi na casa dela e tirou muita sujeira e realmente encontrou bastante. Porque ela pegava dinheiro, como ela ganhava muito, juntava o dinheiro, aquela história de juntar dinheiro no colchão, então achou muito dinheiro, mas já não valia, não tinha validade mais.
P/1 - O dinheiro era antigo?
R - É.
P/1 - E ela não tinha ninguém?
R - Ela tinha um filho dela que foi criado junto com a minha mãe, junto com a família, muito próximo.
P/1 - Era quase da família.
R - Em frente. Porque no interior essa coisa comunitária é muito mais forte, essas alianças comunitárias. São gerações e gerações que moram no mesmo lugar. Hoje se muda muito, principalmente na periferia. Pessoal está aqui, melhora um pouco, dá um pulo para lá, para cá... Então a vida comunitária era muito forte. E esse cara hoje ele é deficiente, ele não fala e não houve, o apelido dele é Mudinho. Inclusive, na ultima vez que eu estive lá em Minas eu fui visitá-lo no asilo, que a minha mãe sempre vai, minha mãe e meu padrasto sempre vão visitá-lo.
P/1 - É como se fosse um irmão?
R - É alguém, mora assim em frente ao terreno e ele é um filho dessa Nica Beizuda. E aí ele vive hoje no asilo, ele pede e ele gosta que a gente vá lá, reconhece-nos, dá para perceber pelo jeito de tratar que ele conhece, principalmente a minha mãe. Então eles têm esse vínculo bem forte, são famílias tradicionais. Agora um pouco mais adulto, conversando com a minha mãe, ela fala que a casa que tem lá, pelos cálculos que nós estamos fazendo, pode ter mais de cem anos. Se calcular, de cem a cento e cinquenta anos, o pai do meu avô morou naquela casa, criou os filhos. Meu avô nasceu naquela casa, meu avô hoje estaria com aproximadamente em torno de oitenta, noventa anos. Não, estaria com mais, minha avó morreu com setenta e pouco, ele estaria com cem anos, mais ou menos hoje. Cem, cento e pouquinho. Minha avó tinha quinze anos e ele trinta e cinco, uma diferença boa de idade quando eles se casaram. E ele foi criado lá, quer dizer, toda a minha família, dos nove filhos da minha avó, foi criada lá. E a casa permanece lá. Minha mãe até queria acabar com ela, que ela mudou para lá, mas eu falei não, deixa ela aí, vamos preservar e tal. Então tem essas histórias, casas muito antigas. Então a memória que eu tenho é essa, fora as dificuldades.
P/1 - Quais?
R - Dificuldades econômicas. Muito difícil, muito difícil, passou muita dificuldade com minha mãe.
P/1 - Só seu avô que trabalhava na época?
R - Não, eu não cheguei a ver o meu avô, quando eu tinha onze anos ele morreu. Mas ele que trabalhava, ele era a figura.
P/1 - Nesse período curtinho que você morou lá...
R - Ele já era falecido. Então tem essa cultura muito forte que o homem trabalhava e quando ele morreu, na verdade desorganizou toda a estrutura, a base da família, e a gente passou muita dificuldade. Então minha mãe fala assim, que o menino que gosta de canjica e de comer angu, porque angu é diferente de polenta aqui de São Paulo, angu é aquele bem molinho, com pouco sal, é angu com feijão, ou comer angu com açúcar e tal, basicamente sou eu. Os outros meus irmãos não, nasceram lá em Minas nesse período, mas já não gostavam tanto. Foram momentos bem difíceis, financeiros, economicamente, de passar fome, às vezes ter que pegar a galinha do vizinho. Fazer bastante coisa pra sobreviver.
P/1 - Seu pai que mandava o dinheiro para vocês?
R - Eu não sei se mandava o dinheiro não, ele ia lá de vez em quando. Porque na verdade era muito difícil. Só tinha eu e moravam outras tias minhas e meu tio lá na casa. Mas era basicamente... E eu lembro, a minha mãe sempre trabalhou. Eu lembro a minha mãe, outra memória que vem agora, tinha uma mata lá que se chamava Mata da Onça, e a minha mãe, por exemplo, cortava lenha. Então juntava ela e mais algumas mulheres e elas iam para essa tal de Mata da Onça comigo, eu lembro que eu ia, acho que tinha outra criança, não lembro quem era. Umas três ou quatro mulheres entravam no meio do mato, cortavam e faziam aqueles feixes de lenha e quando chegava o final do dia ia o cara buscar. E em cima do tanto que elas faziam que elas recebiam. Depois minha mãe também lavava roupa, junto com outra tia minha, para time de futebol. Então dias e dias lavando aquele monte de roupa de vários times de futebol. Depois ela foi trabalhar num local que matava codornas. Lembro bem desse daí porque eu tinha pavor de ver matar codorna e eu tinha que ir junto. Então esse negócio de creche, de escola... Eu era muito pequeno, mas sempre tenho na minha memória.
P/1 - Não tinha com quem te deixar?
R - Não, não tinha, eu ia junto. E nós voltávamos num caminhão, era um caminhão basculante. Eu e ela na frente, junto com o motorista, e atrás ia aquele monte de crianças para estudar. Como se fosse hoje... Acho que o Ensino Médio tinha que ir para outra cidade, ou numa melhor qualidade de ensino, não sei exatamente. Estudavam numa cidade chamada Caxambu. Então entrava aquele monte de criança no caminhão, esse caminhão basculante, e o cara dava carona. Era muito comum isso durante muito tempo, eu tenho isso na minha memória. Então foi basicamente esse período de nós em Minas.
P/1 - Mas você não chegou a frequentar escola lá?
R - Lá eu comecei a frequentar, foi no primeiro ano de escola. Por isso a minha ideia de ter vindo para São Paulo entre seis, sete anos, eu saí de lá no período e vim para cá.
P/1 - Entendi.
R - E durante um período minha mãe também trabalhou num local que cuidava de criança, um lugar público, ela trabalhava na parte de limpeza. Basicamente são as memórias. Os meus primos, primas também, uns que ficaram por lá... A família depois foi se dividindo, um para um lado, um grupo foi para São Paulo.
P/1 - Muita gente migrou? Não só vocês?
R - De lá, agora que a minha mãe está retornando. Na verdade todos saíram de lá, todos. Meu tio foi o último que saiu, para morrer em São Bernardo, coitado. Ele trabalhava em cortar pedra, e tem uma doença que o pessoal chama de pó da morte, que seca os pulmões, então não usava os equipamentos e o pessoal não exigia, quando ele estava doente o pessoal falava que ele tinha que ir atrás dos direitos. Ele falava: “Não. Sou homem. - Na questão trabalhista - Eu sou homem, o cara me atendeu bem, eu não vou atrás de nada. Isso é responsabilidade minha” e tal. E ele terminou morrendo bem cedo.
P/1 - Era o seu tio mais novo?
R - Era o único tio por parte da minha mãe, o único homem desse grupo das oito mulheres. E aí terminou morrendo em São Bernardo. Minha mãe o trouxe para São Bernardo para cuidar, mas ele acabou pegando uma tuberculose, e junto com o pulmão que vai ficando seco, perdeu força. Não conseguia andar, não conseguia fazer nada, teve uma morte triste, tadinho. Então ele foi o último. Ele ficou lá porque era aquela coisa do homem, do terreno, ele que tinha que cuidar, sempre trabalhador. Bebia bastante também, terminou falecendo. E das outras todas saíram, uns foram para Minas, boa parte da família; uma parte está em Varginha, as tias em Varginha; uma parte em São José dos Campos; veio um pessoal para São Bernardo. Em São Bernardo uma tia minha mudou para Guarulhos, casou e está em Guarulhos. Então ficou dividido o pessoal. E o ponto de referência era a ida lá para Minas, para a casa onde eles nasceram. Agora minha avó morreu há uns anos aí e desorganizou um pouco mais.
P/1 - Entendi. Aí teu pai foi lá e pegou vocês e trouxe de volta, trouxe para São Bernardo?
R - É, fizeram acordo e viemos para São Bernardo.
P/1 - E você continuou morando no quintal da sua avó?
R - Não, aí não. Quando eu voltei para São Paulo, entre seis e sete anos, nós fomos morar numa favela. Porque nessa favela já morava um tio meu por parte do meu pai, que tinha casado com uma tia minha, por parte da minha mãe.
P/1 - Ah, tem essa?
R - Tem essa história. E eles moravam num local e ali eu lembro que era do lado de um corregozinho. Montou exatamente um cômodo e aí foi lá que nós fomos morar. A gente morou um período, não lembro exatamente qual, só lembro que teve um período que choveu. Pela primeira vez, mesmo com a pobreza de Minas, eu vi água entrando dentro de casa. E já não tinha nada e o pouco que tinha... Minha mãe falando: “Sobe em cima do sofá”. Tinha um sofazinho e eu subindo em cima. Ah, nesse período em Minas, nasceu um irmão meu lá.
P/1 - Isso que eu ia falar. Já tinha irmão?
R - Tinha um irmão abaixo de mim.
P/1 - Quantos irmãos são?
R - Somos quatro irmãos, quatro homens. Aí o abaixo de mim nasceu em Minas, basicamente com seis anos de diferença, chama-se Claudinei, basicamente seis anos diferença de idade minha para ele. Então ele nasceu e a minha mãe veio para cá ele era bem pequenininho. Ele veio mamando, ainda de colo, acho que não conseguia nem andar. Aí nós estávamos lá e minha mãe falava: “Sobe em cima do sofá”. E eu subia em cima do sofá, a água subindo e molhando o pouco de coisa que tinha. E aí terminou que perdeu quase todo o material que tinha. Ah, desse período que eu tenho uma foto, que eu estou segurando meu irmão. Que eu tinha comentado com a Judite, eu tenho a foto, essa é a foto que eu tenho pequena, segurando o meu irmão. Aí de lá meu pai conseguiu ali num bairro de São Bernardo, conhecido, o Bairro Assunção, bem conhecido da cidade, tinha uma chácara, tinha chácaras naquela região, e meu pai conseguiu lá para cuidar da chácara.
P/1 - Para ser caseiro?
R - Para ser caseiro dessa chácara. E aí nós mudamos para lá e já era uma casa maior, era uma casa tranquila, tinha mais de um quarto e tal.
P/1 - De alvenaria?
R - Aí meu pai dividiu, meu pai morava na metade da casa e na outra metade cedeu para outro tio meu, meu tio Valdomiro, que é irmão dele. Aí nós ficamos morando aproximadamente entre os sete e oito anos e eu começo a estudar numa escola no Bairro Assunção.
P/1 - E como foi? Você lembra o começo da escola aqui?
R - Eu tenho algumas lembranças. A primeira é que eu tive um apavoro quando eu lembro que eu fui estudar e a professora falou assim: “Agora você vai ter aula de português”. Eu fiquei em pânico, porque eu não sabia o que era português. Meu Deus do Céu, me deu vontade de ir ao banheiro, subiu o gás. Eu não tinha ideia do que era estudar Português, nunca tinha ouvido falar desse treco. (risos)
P/1 - Essa é muito boa.
R - Eu lembro ainda que algumas vezes eu fiquei de castigo, eles colocavam. Eu fiquei ajoelhado atrás do lado da... isso ficou marcado na minha cabeça, eu fiquei do lado da bandeira. O castigo era ficar do lado da bandeira, de costas, ajoelhado numa quina assim, do lado da bandeira.
P/1 - E porque você ficou de castigo?
R - Acho que eu aprontava um pouco. Imagina num ambiente desses, que eu nem sei o que era o português e nem nada. Qualquer motivo para mim... acho que a escola era pequena para mim. E a partir dali... Ali tem um lugar que tem numa instituição muito conhecida em São Bernardo, que chama [Lar da] Mamãe Clory, e os meninos da Mamãe Clory estudavam na mesma escola. A partir dali eu fiz contato com esse grupo, com esses meninos que estudavam lá, e eles começaram a me chamar para a gente sair. Depois da aula a gente podia passear, podia sair, podia ir daqui para lá. E eu comecei a andar pelo bairro e andar pela rua.
P/1 - Eles podiam?
R - Não sei se eles podiam. A Mamãe Clory era, digamos, um tipo orfanato de crianças que estavam com problema com a família ou não tinham família. E eles andavam, começaram a me chamar, e eu me enturmei. Foi a primeira turma que eu lembro que eu arrumei. Hoje seria mais ou menos equivalente a quatro quilômetros de onde eu morava que eu andava. Num raio de quatro quilômetros em torno eu ficava andando, procurando, pedindo. Os meninos: “Vamos pedir coisa na rua”. Então foi aí que eu achei que eu comecei a minha história de conhecer a rua, de pedir coisa, e saber o que tinha e o que não tinha. Então os meninos sabiam o lugar onde tomava água, onde tinha umas minas. Depois de muitos anos eu vim a saber, que essa mina foi um dos lugares onde a minha avó, por parte do meu pai, tomou conta de outra chácara. Era esse lugar que é na Humberto Castelo Branco, é uma avenida lá de São Bernardo, e lá tinha uma água e os meus avós tomaram conta daquele lugar. E aí eu comecei a ter esse contato com eles e dali...
P/1 - Que eram mais espertos.
R - Já tinha esse costume, já tinha mais esse pique. Os meninos dali não tinham muito esse costume, eu comecei a sair com eles até para me adaptar. Então, desse local eu tenho essas memórias. E outra que eu tenho muito forte foi que teve um amigo secreto e eu participei. Eu também não sabia o que era isso, ninguém tinha explicado para mim. Aí quando chegou, assim, acho que uns dois dias antes, me falaram que tinha que levar um presente e eu não tinha o que levar. Peguei uns lápis que eu tinha, uns lápis pretos, acho que uns quatro ou cinco, e juntei os lápis e embrulhei eles. Aquele era o presente que eu tinha para dar assim de improviso. E eu lembro que eu ganhei uma camiseta e aí o que eu dei na verdade foram esses lápis. E gerou um mal estar muito grande. Eu lembro que eu fiquei incomodado e a outra pessoa que ganhou também ficou incomodada, que tinha dado outro tipo de presente. Então foram essas coisas. E aí acho que no segundo ano, estava entre o primeiro e o segundo ano, na formação, a professora fez uma bolsinha transparente, acho que era vermelha, ou cor de rosa, e eu dei essa bolsa para a minha mãe, dei de presente para minha mãe. Engraçado que agora, depois de trinta e poucos anos, minha mãe ainda tem essa bolsinha guardada. Quando eu a vejo, ela fala: “Lembra disso aqui?” Aí eu falo: “Lembro”. São as memórias que eu tenho desse período. Daí nós saímos dali e fomos morar num lugar, no Alvarenga, para tomar conta de chácara, outro bairro, bairro de periferia, bem mais afastado.
P/1 - Aí teve que mudar de escola?
R - Não, eu estava na mesma escola, que foi no período de ano. Foi essas coisas, acho que eu estava no segundo ano, comecinho do segundo ano, mas não trocava assim fácil que nem hoje. E lá não tinha escola perto durante esse período.
P/1 - Então continuou estudando nessa escola?
R - Continuei estudando nessa escola, um lugar longe...
P/1 - E como você ia para essa escola?
E - Então, ia de ônibus. E nessa época que tinha uns carimbos assim. Para colocar “presente” você tinha que colocar... era tipo uma cadernetinha, uma caderneta com a foto do aluno e tal, e o mês você colocava “presente”, todo dia tinha “presente”.
P/1 - Eu lembro. Deixava a caderneta numa caixinha toda aberta.
R - Isso. E um desses meninos deu a senha da história: “É o seguinte, escreve certinho do jeito que está escrito presente na borracha. Você passa por cima a canetinha preta e vai lá e “presente”, não precisa de a gente entrar na aula. E eu comecei a aprender como é que é matar aula, devia ter uns oito anos.
P/1 - Quantos anos?
R - Uns oito anos mais ou menos.
P/1 - Nossa.
R - Aí quando a minha mãe foi descobrir, já tinha tempo que eu não ia para a escola, muito tempo que eu não ia para a escola.
P/1 - E o que você ficava fazendo?
R - Aí comecei a vir para a rua, andar lá no bairro, que já andava, uma vez ou outra ia para a escola, e de lá ia para o centro da cidade, que era um pouco mais distante. E aí comecei então a usar dessas estratégias que tinha, pra não ir para a escola. Escola muito chata, muito distante, não me agregava nada. Lá no Alvarenga é um bairro que está localizada a Represa Billings, um braço da Represa Billings. E tinha um lixão, tinha um lixão muito grande lá, era o lixão do Alvarenga, na divisa de São Bernardo com Diadema. E aí, morando ali fiz novas amizades. Para ir para o lixão, o pessoal que trabalhava no bairro do Alvarenga tinha que passar por dentro da chácara que o meu pai tomava conta, e nessa passagem pelo meio eu fui fazendo amizades com os filhos dos trabalhadores que trabalhavam no lixão.
P/1 - Eles levavam as crianças também?
R - Levavam as crianças. Alguns levavam, outros não, e as próprias crianças iam trabalhar. E numa dessas amizades que eu fiz, terminei indo trabalhar no lixão também, terminei indo para o lixão para trabalhar. Essa casa era interessante, ela estava bem no meio do mato, bem abandonada, e meu pai matou muita cobra lá. Eu lembro assim que uma coisa que tinha era muita cobra, matou muita, muita cobra, sei lá, dez, quinze cobras em torno da casa, para arrumar a casa.
P/1 - Só para limpar o terreno.
R - Só para limpar o terreno, num local que era um ninho de cobras. E me impactou muito, eram cobras grandes e tal. Então limpou em torno, eu lembro que comprou umas galinhas e falava que era bom ter galinha, que galinha espanta esse tipo de coisa, não deixa chegar animal. Esse tipo de bicho que avisa, sempre a gente também tinha um cachorro. Mas aí então nessa ida, nesse contato com os meninos, eu lembro que nessa época aí o forte mesmo era jogar fubeca, fubeca é bolinha de gude, e era fácil, no lixão você achava muita, ou ia aos depósitos. Tinha muita, jogava de muita bolinha. Até esses tempos atrás, eu estava jogando com os meus filhos lá, depois de pouco tempo a gente não esquece, é que nem andar de bicicleta. A mira fica um pouquinho... mas você ajusta. Aí eles: “Como você joga bem”. “O pai jogou muita fubeca e tal”. E então comecei a ir ao lixão, e no lixão para ganhar dinheiro, como os meninos.
P/1 - O que vocês pegavam lá?
R - Então, lá a gente pegava o resto do resto. Porque no lixão, pelo nesse que tinha lá, mas acho que deve ser uma coisa que deve acontecer nos outros, você tem uma regra também social muito forte. E o lixão tinha as pessoas que dominavam, geralmente tinha os homens que controlavam.
P/1 - E você, por ser uma criança, não tinha acesso?
R - Não tinha. Por exemplo, os caras sabiam dos caminhões que chegavam, sempre tem os acordos. Caminhão chega lá embaixo, tinha uma balança, um lugar que ele parava, e tinha autorização para ele poder jogar, despejar o lixo. E quando o caminhão é bom, os caras já sabem. O que é caminhão bom? Dependendo do lugar que o caminhão vinha, os caras sabiam o que era caminhão bom e tal.
P/1 - Na época o que era forte? Papelão?
R - Não, já era alumínio, cobre, ferro. Papelão já vem lá embaixo. É o mais barato papelão. Lata, sem ser latinha de alumínio, lata comum...
P/1 - Resto de panela?
R - O alumínio já tinha também, isso são as coisas boas do lixo. Aí depois sobra o papelão, depois o papel. E mesmo assim, depois que todo mundo cata, sempre você vai revirando e no que você vai revirando você acha um pedacinho de alumínio e você acha outras coisas. Então a gente sempre falava assim, que primeiro eram os adultos, homens, depois vinham as mulheres, depois os jovens e depois éramos nós. Depois só sobravam os cachorros. Então muitas vezes a gente disputava com cachorros. Eu me lembro de que de terça feira, por exemplo, em casa era o dia que o meu irmãozinho esperava, porque era o dia que geralmente tinha bastante Danone em casa, era o dia que eu ia e conseguia e trazia. O pessoal levava para jogar os materiais vencidos, então a gente levava e tirava um monte de Danone em casa. Então nesse período do Alvarenga nasce outro irmão meu, que é o Claudemir, terceiro irmão.
P/1 - Quanto tempo de diferença?
R - Tem uns quatro anos.
P/1 - Tem uns dez anos a menos que você?
R - Tem uns dez anos, mais ou menos. Tem de três a quatro anos de diferença do Claudinei, então deve dar uns dez anos mesmo. Aí nasce ele e eu fico um período ali. Aí os meninos, alguns dos meninos aprendem com os meninos um pouco maiores, com os adolescentes, o seguinte: que o que tinha que fazer para conseguir um pouco mais de dinheiro no lixão era pegar os caminhões vazios que estavam saindo do lixão e vir com o caminhão no sentido centro, e você conseguir descer o mais longe possível e aí você ficar esperando, tinha alguns pontos estratégicos, que você pegava o caminhão, você já sabia que o caminhão estava cheio, pegava o caminhão de volta, entrava em cima do caminhão e aí você conseguia catar um pouco mais de material. Quando chegasse um pouco antes do lixão, descia, e aí fazia o esquema de jogar o saco fora. Lá tinha alguém de nós esperando, quando pegava fazia a divisão. Então chegou a fazer isso. É isso, a vida é assim, as estratégias vão aparecendo de acordo com a realidade.
P/1 - Chegou a pegar doença ou alguma coisa?
R - Não, não lembro não. Sempre fui muito resistente, minha mãe fala que é por causa do angu, do angu e da canjica. Então sempre fui resistente. E outra coisa, eu mamei até os sete anos, então minha mãe fala que é o angu, a canjica e o leite de peito dela.
P/1 - Então sua mãe chegou a dar para dois?
R - Ela parou exatamente quando o outro nasceu, aí ela parou. E o segundo ela colocou bosta de galinha, colocou pimenta no peito, colocou tudo, só não conseguiu falar não, chega. E eu parava e ia, chorava, e ela terminava me dando. Então de certa maneira eu tenho uma resistência boa. Depois caiu um pouco.
P/1 - Mas as crianças ficavam doentes?
R - Ah, não lembro, não era um dado importante. O importante era o lixo e fora isso era uma grande brincadeira. Porque lá sempre levava bola para casa, sempre levava disco, levava... Às vezes achava correntinha, não sei se era de ouro, mas levava. Achava anel, disco... Meu, esses caras querem achar relíquia, você vai nesses locais onde separa lixo, é muita relíquia, aparecia muita coisa assim. Então, desodorante, por exemplo, eu tinha um monte em casa. Todo mundo em casa, eu tinha um monte que eu conseguia tirar do lixão, era uma grande brincadeira. Eu brincava com os meninos lá, jogava bola, corria... Tinha uma parte que eles jogavam e separavam os materiais de... Como chama isso, quando a gente compra alguma coisa que vem acoplado para não quebrar?
P/1 - Isopor?
R - Isopor. Aquele monte de isopor.
P/1 - Porque isopor não recicla.
R - É. O que a gente fazia? Isopor jogava lá, aqueles pedaços grandões, a gente pegava, os meninos perto da represa, pegavam um pedaço de bambu, pregava dois, três daqueles lá e fazia barquinho. E ia para o meio da represa. Aí minha mãe endoidava, vixe Maria, a veia brava, vixe. Minha mãe agora acalmou, mas era muito pavio curto, para colocar rédeas. E ela sabia quando ia nadar, porque ela colocava o dedo assim e corria. Quando ela fazia assim ficava aquele risco da água. “Foi nadar?” vixe... Minha mãe me bateu bastante.
P/1 - Você aprendeu a nadar na represa?
R - Aprendi a nadar comendo Guaru.
P/1 - O que é Guarú?
R - Guarú é um peixinho pequenininho, barrigudinho. Não sei se aquela peste não vira sapo. Brincadeira. Não, Guarú é um peixinho que não cresce muito, bem barrigudinho, e a lenda nossa era a seguinte, quem engolisse o peixinho vivo aprendia a nadar rápido. E colocava e “vum”.
P/1 - E aí vocês comiam Guarú.
R - O barato era comer Guarú. Aí foi perdendo o medo e atravessava de um lado para o outro, ficava brincando horas e horas na represa. Então foi uma vida que teve muito disso.
P/1 - E você continuou, você nunca largou a escola?
R - Não. Nesse período estudava, estava na escola.
P/1 - Então de manhã ia para a escola?
R - Estava matriculado, como eu te falei. Às vezes marcava, mas ia para a escola. Repetia, era um período que repetia de ano. Acho que a primeira série eu repeti. Quando eu mudei ainda fazia a primeira série, repeti umas duas ou três vezes. Repeti a terceira série, repeti a quinta série, repeti a sexta série. Repeti bastante serie. E aí depois que eu vou nesse Alvarenga e fico um tempo, eu mudo de escola, eu vou para uma escola mais próxima.
P/1 - Mas aí você já estava bem maior do que os outros meninos, porque você já tinha repetido.
R - Eu lembro. Mas repetia muita gente nessa época, repetia muita gente, não sentia essa diferença não. O que eu lembro é que eu morava no Alvarenga e essa escola atendia três bairros, quatro bairros ali. O Orquídeas, que era próximo, mas um bairro um pouco melhor, um bairro organizado; o Telma, que era um bairro já bem melhor; o Fabrício e o Alvarenga. E nós que morávamos no Alvarenga, pelo menos isso era o que eu sentia, as salas nossas eram todas salas de madeira e a dos meninos de alvenaria, eu lembro que isso foi uma coisa que me marcou muito. E os meninos que tinham dificuldade de escola, de aprendizagem, ou quem era mais bagunceiro, geralmente sentava... Eles dividiam a turma, na sala tinha duas turmas, a do lado direito e a do lado esquerdo. E eu ficava sempre nessa turma, que seria a turma da repetência, turma mais bagunceira, turma que estava atrasada. E sentava no fundo, sempre sentava no fundo nas salas de madeira. E aí era combustível, então a gente ia, por exemplo, brincava muito, acho que tínhamos nove, dez anos, por aí, pegávamos, por exemplo, a liga, essas liguinhas, e fazíamos um estilinguinho. Colocávamos clipes e ficávamos jogando nas pessoas. Aquilo lá eu joguei e machucou a perna da menina, furou a perna da menina que estava fazendo treinamento, aquela época de escola que as meninas usavam um calção, que parecia um fraldão, calção azul.
P/1 - E uma sainha por cima.
P/1 - Você lembra isso?
P/1 - Lembro, eu usei o fraldão.
R - As meninas usavam aquilo e eu jogando essas coisas e machuquei o pessoal. Às vezes levava aquelas cobrinhas verdes e colocava na gaveta onde a professora ia abrir.
P/1 - Cobrinha? Cobrinha mesmo?
R - Cobrinha mesmo, mas aquelas cobrinhas verdinhas que o pessoal já sabe que não faz nada, só que dá um pânico. Sapo... Então eu aprontei isso aí e as advertências começaram a vir e eu comecei a ser um problema para a escola.
P/1 - Pronto Marcos. Você estava falando que começou a ser um problema para a escola. E?
R - E fui convidado para sair dessa escola, para ir para outra escola nesse período.
P/1 - Essa que era a escola mais próxima da sua casa?
R - A mais próxima da minha casa, acho que uns quatro quilômetros, três a quatro quilômetros, e aí nesse período perdi o ano. Era difícil também entrar no meio do ano, era bem mais difícil do que hoje. E nesse período então, de também estar indo cada vez buscar mais longe o material de lixo e essas coisas, eu comecei... Eu já tinha contato com o pessoal do Mamãe Clory e comecei a vir para o centro da cidade.
P/1 - Você continuou a amizade com esses meninos?
R - Não com eles, mas você começa a circular. Eu já conhecia o lugar e nesse lugar você conhece outros meninos. E aí eu comecei a conhecer o centro de São Bernardo, a Praça Lauro Gomes, aquela que tem a foto, e ali eu conheço outro grupo de meninos, que têm alguns do Lar lá, que é dessa época que eu tinha estudado. Alguns do Alvarenga, que já trabalhavam lá no Alvarenga, que eram amigos meus, mas já vinham trabalhar no centro de São Bernardo e me convidaram, falaram: “É melhor para ganhar dinheiro se você for trabalhar em São Bernardo”. “Mas trabalhar do quê? Eu não sei fazer nada”. “Calma, a gente engraxa de meia”. Aí engraxar de meia é quando você vai e não tem nada, eu pego o freguês e eu engraxo o sapato, e cinquenta por cento do dinheiro é meu e cinquenta por cento é do cara dono da caixa. Então era outro jeito. E você está no centro, o centro é outra pegada. Quer dizer, o bagulho do lixo, os grandões baterem na gente ou colocarem para correr uma vez ou outra, as dificuldades, lá é embaçado. Teve por exemplo, o colega meu, o Pelé, que numa dessas vezes estava catando o resto do lixo assim, mais atrás, e a máquina que vinha, que revirava o lixo, não viu e jogou o lixo. Revirando o lixo, jogou o lixo e caiu por cima dele. E ele ficou com problema, sequela na perna, ficou muito tempo sem andar, muito tempo mesmo. Depois ele ficou... deu um problema a perna dele, não firmou mais, ficou deficiente. Uma vez ou outra a gente via pessoas que foram enterradas no lixo e terminaram morrendo. Ele ainda sobreviveu, era amigo muito próximo, mas outras pessoas que terminaram morrendo no lixo e tal...
P/1 - Mas assim, de acidente?
R - De acidente, era muito comum. Porque ali é montanha e você pensa, são vinte e quatro horas, tem gente trabalhando à noite, os caras trabalhavam várias horas trazendo o lixo e você está atrás. Mesmo de dia, se você está atrás e o cara está remoendo o lixo ali, se você está ali, você está pegando alguma sobra, então se ele joga ali vai em cima da pessoa. No caso dele pegou daqui para baixo, ele conseguiu gritar e o cara parou e socorreu, mas já estava tudo cortado e infeccionado. Ele ficou muito tempo sem andar, acho que quebrou a perna e deu uma sequela. Até hoje, faz muitos anos que eu não o vejo, mas ele andava mancando. Então foi um dos casos. E no centro não, é diferente você estar no centro, é mais adrenalina, gente de todo lado, fala que é mais iluminado, mais mágico. Então eu comecei nesse período a vir para o centro, a frequentar um pouco o centro. Nesse período minha mãe trabalhava em fábrica química e meu pai trabalhava de segurança numa fábrica metalúrgica, então sempre fazendo esse tipo de atividades, sempre trabalhando. E aí os dois trabalhavam e eu era o mais velho e minha mãe falava que eu tinha de cuidar dos meninos, e tinha a escola... Então a época que eu tinha era a escola, matava a aula e saía.
P/1 - Porque depois da escola você tinha que voltar e cuidar.
R - Voltar e cuidar dos meninos. Porque também creche e esse tipo de coisa eram longe, não tinha nada, entidade social era muito pequeno e muito restrito. Aí eu comecei a vir nessa história para o centro até que, acho que eu estou falando mais ou menos em 1982...
P/1 - Tinha um quatorze anos?
R - ... É, 1982, quando meu pai é assassinado. Meu pai foi vítima, ele estava trabalhando, já não estava nesse trabalho, trabalhando em outro, de segurança também, e pelo que eu sei, o pessoal montou uma emboscada para ele e um amigo dele e tentaram pegar a arma dele. Aí ele foi baleado e veio a falecer. O outro também foi baleado, só que o outro sobreviveu. Balearam os dois. Aí nesse período minha mãe está grávida, estava grávida de nove meses, para ganhar o meu irmão mais novo. E a gente não mora nessa chácara, eu moro no Alvarenga, mas meu pai conseguiu com o tempo, achou um lugar que estava fazendo uma nova favela, ele conseguiu cortar um pedaço de terreno que tinha lá e fez uma casa. A gente tinha uma casa lá, era uma cozinha e o quarto grande dele, e um quartinho pequenininho para mim e meu outro irmão. Um dormia ainda no berço, que era pequeno, e minha mãe grávida. Então foi mais ou menos nesse cenário. Eu lembro que no fundo de casa passava um corregozinho bem pequenininho. Eu abri um buraco, gostava de criar peixes lá, criar peixes e criar galinhas, era pequeno. E aí foi quando meu pai foi assassinado. Aí a minha mãe ficou desesperada, porque logo em seguida ela ganhou o meu irmão, coisa de quinze dias, vinte dias, mais ou menos, e ela ficou preocupada comigo. Eu era novo e ficar ali e saber que foi alguém por ali, o bairro era violento, já tinha tradição de matar muita gente, tinha muita briga, muita morte e tal. Ela pegou e saiu de lá. E aí vamos morar em outro bairro, meus tios chegam para ajudar, tentam apoiar um pouco ela. Queriam levar um dos filhos, ela fala que não, que ia ficar com todos nos. E esse período intenso da volta para a rua. Eu volto para a rua, continuo ficando na rua, e acontece em 1982.
P/1 - Teu pai morreu em 1982?
R - Junho de 1982. Junho ou julho de 1982. Aí passa e eu continuo a trabalhar na rua. Aí eu não mexo mais com o lixão e começo a ganhar dinheiro na rua, começo a conhecer um grupo, a desenvolver várias atividades na rua. Quando chega em 1983 começa um grupo de educadores sociais na rua a fazer contato com a gente.
P/1 - O que você fazia na rua? Primeiro você começou de meia.
R - Comecei de meia, de engraxate. Depois consegui minha caixa, eu ajudava a cuidar... eu cuidei de ervas dos índios, tinha uns índios que vendiam ervas na praça, eu ajudava a guardar. Depois entreguei panfletos, tipo de panfleto pessoal, que a gente entregava. E aí apareceu um camarada nosso que esteve em São Paulo e falou o seguinte, que em São Paulo tinha um jeito de ganhar dinheiro, os caras ganhavam dinheiro tomando conta de carro. Então nós fomos um dos primeiros grupos a tomar conta de carro em São Bernardo, falar onde que é... Eu chego lá e domino, entendeu? Nós vamos para lá e aí, onde tem aquela foto junto com o bispo, no estacionamento, eu levo uma turma para lá. Porque o cara falou que ganhava mais dinheiro e nós levamos um grupo pequeno, senão todo moleque ia querer ir junto. Aí nós fomos para lá e começamos a tomar conta de carro, que era outra modalidade. Então na rua, tudo que aparecia na rua na verdade você fazia. Desde plaquinha... E as pessoas oferecem também serviço. “Vocês querem fazer tal coisa? Quer fazer coisa aqui?”.
P/1 - Te vê trabalhando em alguma coisa e chega lá e te chama.
R - Chega oferecendo algum dinheiro. “Querem ganhar um dinheiro? Quer não sei o que?” Quer dizer, está na rua, está à disposição. Aí eu estou trabalhando, nessa época saia um dinheiro legal, e sempre na rua você está com um pé dentro da legalidade e com um pé na ilegalidade, quer dizer, você fica numa linha muito tênue. Por exemplo, tinha um mercado em frente lá, que a gente entrava no mercado, geralmente depois o pessoal foi descobrindo, geralmente a história era comprar pão, só que entrava para comprar pão e entrava outros meninos e pedia, sei lá, meio quilo de mortadela, meio quilo de não sei o que, e deixava num lugar. O cara ia e passava direto. Outro ia lá e colocava dentro do saco. Estratégia de sobrevivência, mas termina numa coisa ilegal. Não é legal. E com isso a gente saia. Se fosse hoje, simbolicamente era um real de pãozinho e mais ou menos com uns quinze reais de mortadela ou queijo. Ou qualquer coisa parecida, dentro do próprio saco do pão. Aí tirava os pãezinhos e distribuía no mercado para ninguém ver. No meio colocava e fechava lá e estava lá o preço. Que antes não era por quilo, então tinha um preço que você pagava, já saía da padaria com um preço. E pagava um real e fazia isso. Então, esse tipo de coisa. Ou engraxate, o pessoal perguntava quanto era o sapato. Se fosse hoje você falava: “Treze”. E o cara: “Quanto?” “Treze”. E aí você vai e mete tinta no sapato do cara. O cara não pediu, uma coisa que pode custar três, quatro reais, você fala treze. Entendeu? E se o cara entrou, depois tem que pagar. E bate o pé daqui e bate o pé dali, iniciou muita briga e muita confusão. Na pessoa que descuidava... Não é toda pessoa que é engraxate que faz isso, mas são estratégias de sobrevivência, são estratégias que você tem de sobrevivência. Ou mesmo já outros jovens que estão na rua para... que já estão para praticar pequenos furtos, já não são esses meninos trabalhadores, garotos trabalhadores, já estão com essa disposição de pegar alguém, de terminar furtando alguma coisa, ou em carro, ou pegar algum casal ou alguém que está desprevenido, ou pegar um idoso. Geralmente alguém que acha que é uma vítima que está ali desprevenida e chegam dois ou três e terminam furtando alguma coisa. E a gente se envolve nessas coisas. E com isso daí, nesse período, dos doze anos até os dezesseis, tive várias passagens na Febem, fui várias vezes preso. Em São Bernardo tinha a Fuben [Fundação do Bem Estar do Menor SBC], diferente de outros municípios, tinha uma unidade própria de atendimento, inclusive para meninos infratores. Então...
P/1 - E como era? Era de menor porte?
R - Na verdade eram celazinhas que você podia ficar determinado tempo. Na verdade, a maioria das vezes ficava um pouco mais do que a legalidade, mas era um caminho para você não vir para a Febem. E na maioria dos casos era quebrado, que você podia fazer uma “LA” lá mesmo, Liberdade assistida, então dei várias entradas lá.
P/1 - E quanto tempo você ficava?
R - Acho que o tempo que eu fiquei mais nesse período, devo ter ficado uns oito meses, mas aí já foi na Febem mesmo, na UE 12, aqui na Celso Garcia. Mas lá ficava quinze dias, dez dias, doze dias, até que chegava o pessoal e ia lá e quebrava e colocava você em medida de Liberdade Assistida. Isso foi várias vezes. Uma vez estava lá e os meninos que estavam lá antes de nós tentaram quebrar tudo, tentaram uma fuga, na verdade. Era perto do Natal e aproveitaram do Natal... Natal não, do Carnaval, aproveitaram que no Carnaval a polícia concentra muito em atividades de repressão, em ficar em torno do desfile, e tentaram uma fuga, mas a fuga não deu certo. Aí eles estavam sendo transferidos e nós ficamos na cadeia de adulto, eu tinha treze para quatorze anos. E aí a primeira vez que você entra num sistema, você vê aquele monte de grade grossa, você entrando num local com grade e entra em outro local com grade, até chegar à cela. E aí o pessoal da época, nós tínhamos chegado, tinha sido pego por um assalto e nos levaram para esse lugar. Então foi uma coisa que eu lembro, chegamos à noite, quando bateu o sol começou a soltar os presos, nós não ficamos soltos, ficamos detidos, mas aí começou os presos encostarem-se às grades e aí foi uma sensação de você sentir que ali era cada um por si mesmo, não dava para contar com ninguém. Mesmo estando com três amigos, só que três amigos no meio da cadeia inteira. Então lá eles deixaram a gente pouco tempo, tentaram reformar, não deu, e nos levaram para o Fórum. No Fórum não sei se a gente ficou cinco, seis dias, mas chegou uma época que a gente com cinco, seis dias já não distinguia quando era noite e quando era dia, era tudo escuro, não tinha janela e não tinha nada. Só via trocar os seguranças que estavam lá e tinha uma luzinha em cima que ficava ligada o tempo inteiro.
P/1 - Vocês não faziam nada?
R - Ficávamos inventando coisa. O pessoal pedia papel ou jornal e brincava muito para passar o tempo. Na cadeia você faz de tudo, mas uma coisa que eu lembro muito era os pirulitinhos. Pirulitinhos eram mais ou menos esses canudos que você faz e a gente molhava a ponta no cuspe, na saliva, e a brincadeira era jogar ele assim e bater no teto e ficar preso, ver quem batia isso e ficava lá. Aí os que fossem cair, esquentava e dava um murro no braço. Você tinha que jogar para ficar. Depois de duas, três horas você estava com o braço todo anestesiado, todo mundo também dava murro para valer. Então brincava disso. O pessoal fumava muito pasta de dente com cigarro, dava uma dor de cabeça desgraçada. Qual a vantagem disso? Para quem não tem nada, dor de cabeça dá uma brisa, parece brincadeira. Fazia isso, zoava os meninos menos experientes. Você faz de tudo. Na verdade quando você não tem uma atividade dirigida nem nada, você termina e fica maquinando coisa, fica maquinando coisa doida. Passou, mas o que mais chamou a atenção desse episódio especial foi quando saiu assim que bateu a luz do sol e queimou a vista, senti assim uma queimação da vista. Eles não orientaram nada, saímos todos com os olhos fechados, não sabia mais quando era dia ou noite. Foi uma sensação, com treze anos, pesada.
P/1 - Ainda mais você que era da rua.
R - Você sabe que o pessoal da rua, na verdade, quem está na rua está completamente em desvantagem. Ao contrário do que o senso comum pensa. Os meninos que estão no sistema e tal, são meninos que estão envolvidos, alguns deles estão envolvidos com quadrilhas, são meninos que tem uma carreira quase, ou construindo uma carreira na criminalidade. O garoto da rua, esse menino que a gente vê muitas vezes que está num farol e faz uma besteira e vai preso, coitado desses meninos. É que a gente já, como eu falei para você, a gente veio de bairro. Quer dizer, tem muitos meninos que tem conhecimento, então eu vim de bairro, conhecia os meninos do Lar, já conhecia outras pessoas que estavam lá que já tinha mais experiência. Os caras que tentaram fazer isso daí já eram amigos nossos e aí termina com certa proteção. Mas olha, o pessoal que vai sem proteção nenhuma passava muito mal, passa muito mal. O pessoal coloca alho debaixo das axilas, coloca o alho e tampa para deixar queimar. Maldade, maldade. Raspa a sobrancelha, tinha abuso sexual, é cabuloso, cabuloso. Então você vê, está ali e está correndo qualquer risco, mesmo estando com seus amigos. Porque tem dois grupos. Quer dizer, tinha um lugar lá para quatro pessoas, nós devíamos estar, no período de carnaval, com vinte e três. Entendeu? É isso, dorme no chão... E tem alguns que falam que tem que dormir no boi [vaso sanitário] e aí você fica ali, como você não tem muito o que fazer e tal, você fica esperando alguém fazer alguma coisa errada, como se fosse uma isca. Joga uma isca para você fazer uma coisa errada, atropelar alguma coisa para ser motivo para virar a bola da vez. Então todo tempo você está na linha ali, tem que andar na linha. E não andar muito, se andar muito o trem pega, se sair da linha. Então é isso.
P/1 - E esse tempo que você esteve preso, tua mãe ia te visitar? Como foi a relação?
R - Teve um episódio.
P/1 - Seus irmãos não entraram nessa?
R - Não. Mais para frente começou a se envolver com uma paradinha, mas depois eles... Caiu a ficha, não precisou ser preso. Os bichos são tudo danado, tirando o mais novinho, que a gente mesmo ajudou a proteger ele depois e tal, mas os outros... É isso. Coitada, foi muito difícil para a minha mãe. A gente no começo, depois que vai ganhando consciência política e tal, é uma coisa muito difícil. Eu vou contar mais um episódio de outra prisão. Fui outra vez preso, peguei uma tortura desgramada por causa de uns cordões de ouro e tal. E eu tinha conhecido uma menina e ia ter um feriado e ia ter uma festa, num baile lá. Nessa foto, tem uma foto da Praça Lauro Gomes, em frente à Praça Lauro Gomes tem um colégio público, mas um colégio muito bom. Pessoal que mora ali no centro... O colégio chama Maria Iracema Munhoz, Professora Maria Iracema Munhoz. E eu trabalhava ali na praça e minha mãe sempre investiu nesse negocio de educação, então eu estudava lá, estudava à noite e trabalhava ali também. E conheci uma menina que estudava lá e nós marcamos de sair no final de semana. Ia ter um feriado grande e ela falou comigo se tudo bem, se dava para se encontrar nesse lugar. “Tudo bem, pode crer que a gente se encontra lá”. Aí eu fui me preparar, estava sem dinheiro, ficando na rua, ficava um dia em casa e cinco dias na rua, dormindo na casa de amigos ou dormindo na rua, dormindo numas quebradas. E já estava envolvido, estava na rua, mas já estava envolvido mais na criminalidade, fazendo coisas ilegais ou inaceitáveis socialmente na rua. Precisava de dinheiro para ir para essa festa, queria essa menina de todo jeito, uma morenona bonita, moreninha, na verdade, bonita, com todo respeito, que ela é casada hoje e tal, mas na época... E aí que acontece, fui fazer uma fita e deu errado. Foi negócio desses cordões aí, para pegar dinheiro, e terminei sendo preso de novo.
P/1 - Bem no dia que você ia sair com ela?
R - É, porque eu precisava do dinheiro para a noite. Nós íamos para a festa e na festa lá eu tinha alguns minutos para acertar a sintonia, mas eu achava que ia dar certo, estava eu mais um parceiro meu, tinha duas meninas, tudo certinho, aquela coisa de filme. Ia acabar em final feliz e deu errado. Sei que juntou isso, fui preso, acho que foi uma sexta à noite. Pegar uma tortura desgraçada, porque estava com mais umas pessoas e os caras queriam e a gente falava que não. E eu sei que nisso aí destroncaram meu braço e depois falaram que era para eu chegar lá e falar que tinha caído, machucado, que os caras iam levar para o hospital, mas que eles não iam levar, isso os policiais. Bom, terminou que eu fui preso.
P/1 - A Polícia te pegava e depois te encaminhava?
R - Era o certo. Ocorrência e levar para a delegacia, investigador e delegado fazer o procedimento, é menor de dezoito anos leva para o local devido, ou solta e libera. Nesse caso nós tomamos um sacode disgramado, apanhamos para caramba, horas e horas, horas e horas. E acabou na história que fomos presos de novo, estou eu de novo no sistema. Aí passou o final de semana e não deixaram, avisaram a minha mãe, ela ficou sabendo e desesperada foi lá para a porta, mas não deixaram ver, só falaram que eu estava bem, se precisava de alguma coisa. Aí eu já cheguei, tinha uns meninos que estavam lá e não conseguiam dormir, os moleques em pânico. Falei: “Vamos dormir, isso aqui não adianta, nós não vamos sair não. Final de semana, só vamos sair quando começar a funcionar o sistema”. Sistema que eu estava falando era horário comercial, tudo voltar ao normal.
P/1 - Que era segunda feira?
R - Os meninos novatos ali, alguns dos meninos, sorte que eu já tinha experiência, já tinha ido outras vezes.
P/1 - Segunda a sexta que funciona?
R - Geralmente sim, mas como tinha um feriado teve uma emenda. Tipo assim, você lembra que eu falei, feriado, acho que era na terça feira e emendou, só ia voltar na quarta feira. Na minha cabeça só ia sair na sexta feira ou na segunda feira da outra semana, minha cabeça já estava... Eu sei que no meio dessa história, quando chega a quarta feira, como eu pensei, nós não saímos. Mas na hora da visita minha mãe vai me visitar e fala: “Tem uma pessoa que está te procurando, que falou que tinha marcado um negócio com você. Foi atrás de mim e falou que queria te ver de todo jeito”. Era a menina que eu tinha marcado com ela.
P/1 - Como ela descobriu que você estava lá?
R - Então, menina, foi por causa desse outro amigo meu, que era um parceiro, mas que não tinha ido comigo nisso daí.
P/1 - Ela foi para a festa?
R - Não foi, mas ela foi para a escola. Eu não sei, eles fizeram algum tipo de contato e ele se conectou e falou: “Ele está preso”. E aí ela perguntou. Nem perguntei isso para ela... Ela foi atrás, foi na minha casa, conversou com a minha mãe, minha mãe falou que a noite ia visitar, que a visita era à noite, era das sete às nove, ou das quatro às sete, um negócio assim.
P/1 - A visita é à noite porque as mães trabalham?
R - Não, lá era à noite porque no local funcionava um posto dos Correios e tinha que fechar no horário comercial, para abrir para visita. Nessa época eram duas celas só, que tinha lá. Aí eu chego lá e minha mãe fala: “Quem é essa pessoa?” Minha mãe falou o nome. E eu: “O que ela está fazendo aqui?” “Ela falou que você tinha marcado um negócio com ela e que ela não é essas de desistir não”. Mas não falou nada do que eu tinha feito, não perguntou nada, a minha mãe perguntou, mas ela falou que a menina não perguntou nada. Aí, quando foi na sexta feira os caras liberaram. E na segunda feira eu fui à escola atrás dela e nós começamos a namorar. E aí depois, um ano depois, mais ou menos, eu tive uma filha com ela, que é a minha primeira filha.
P/1 - E como chama?
R - Chama Kassery. Então foi uma história bem cabulosa mesmo. Uma história... Então foram várias.
P/1 - Quanto tempo você ficou com essa moça?
R - Acho que fiquei uns quatro anos, quatro, cinco anos. E aí depois continuei trabalhando. E o que aconteceu, nesse período, também do projeto e tal, o pessoal fazia muita atividade.
P/1 - Como foi o projeto? Você começou contar lá atrás e parou.
R - Eu ia fazer um link com essa história. Como eu tinha um pouco desse e continuava trabalhando um pouco na rua, terminou acontecendo o seguinte, nós fazíamos muitas atividades, o projeto fazia muita atividade envolvendo os meninos e eu era uma das lideranças. Sempre puxava os meninos para fazer coisas, gostava do pessoal do projeto, confiava. Uma galera, primeiro uns religiosos, que dava para identificar alguns, outros eram religiosos mas não identificávamos, porque eles nunca falavam isso, e um monte de menininhas e rapazes, tudo novinhos, principalmente as menininhas, tudo universitárias. Minas começando a faculdade, as gatinhas, aquelas histórias de rua e todo mundo. Então a gente que gostava deles, era uma galera bem legal, cabeça aberta.
P/1 - Como é que eles se aproximaram?
R - Isso. Eles foram para a rua mesmo, fazer contato com a gente, estavam trabalhando e chegavam e ficavam sentados ali. Quando pensa que não, faz amizade, quando pensa que não, está conversando. E fala: “Posso voltar outro dia?” Não falava que era de projeto, não falava que era de nada, estava fazendo amizade, foi desse jeito. Quando nós passamos para a outra praça, eles foram atrás da gente na outra praça. Porque eu que liderei, junto com esse outro menino aí, foi um dos que liderei para a gente ir para outra praça, eu e mais dois.
P/1 - Porque vocês quiseram ir para outra praça?
R - Porque lá esse esquema que ele trouxe de São Paulo, falou que dava mais dinheiro.
P/1 - Ah, tá. Aquela história de guardar carro.
R - Aí dominamos. A parte de cima que era minha e de mais uns caras, a parte de baixo de outros, onde tem aquela foto que está eu com o Bispo era o meio. A parte de cima era eu que tomava conta e mais uns moleques; a de baixo já era outro grupo. Aí os outros que chegaram eram para outra rua, para cá, mandava para outro lugar, ali não, ali já era nosso. Então dominava ali. E começaram a aparecer muitas atividades. Estou falando no começo dos anos oitenta, começam projetos alternativos de atendimento a meninos de rua, começa a aparecer essa coisa da violência às crianças, começa a aparecer um monte de situações. E lá fazem vários eventos, em São Bernardo, e em muitas vezes me colocaram para falar um pouco da minha experiência, do próprio grupo. Não tinha muitos modelos para fazer. Eu sei que nessa história eu fiquei muito marcado lá, então muitas vezes não podia ir à rua, estava saindo na rua, estava tomando geral. Era grupo paramilitar atrás de mim, dando geral, procurando não sei o que... E nesse meio de caminho eu fui preso mais algumas vezes. Teve dessas histórias também. Outra vez trabalhando ali também na Praça da Matriz, do lado ali próximo tinha uma escola muito importante de São Bernardo, uma escola ricona lá, e a mesma coisa. Conheci, tinha um lugar que o pessoal gostava muito de ir, que era no Riacho, Riacho era um lugar de balada, sempre a gente ia lá, de vez em quando colava lá para tomar conta de carro, mas tem que ir um pouco melhor.
P/1 - Riacho era um lugar?
R - É um bairro que tem, ligado ali à Represa Billings, local turístico, tem muita água, tem uns restaurantes flutuantes. Aí nós vamos para lá e tem que ir com uma roupa melhor, porque era noturno e tal. Aí mesma história, trocando ideia assim e mexe com as meninas, as meninas entram na conversa, “Tudo bem? Você vai para o baile ali?” “Lógico, vamos”. “Tudo bem?” “Tudo. Você tem celular?” Falei: “Puxa, eu estou sem meu celular. Está em casa e tal”. Aí a menina falou: “A gente podia se encontrar”. “Deixa seu celular que eu ligo”. “Você tem carro?” Falei: “Tenho”. E ela perguntou que carro que eu tinha. Falei “tal carro”. “Ah, se você quiser você pode me buscar em tal lugar”. Marcamos. Não deu outra, saiu, vamos atrás dessas “minas” aí. Aí terminei indo e imagina, tinha que chegar lá com o carro. Vocês imaginam o que aconteceu? Entendeu? Aí fomos. Eu fui, falei: “Vou pegar ela e depois pego o cara”. Só que eu dei uma bobeira, porque era tarde, tinha marcado umas sete horas para pegar. E nós fomos atrás para ver se achávamos o carro, mais ou menos o modelo que eu tinha falado. E pegou o carro, peguei o carro e estacionei e fiquei esperando perto da casa da menina. Aí só encostou as viaturas “vruummm”. Preso de novo.
P/1 - E quantos anos você tinha aí?
R - Uns dezesseis anos.
P/1 - Sempre menor.
R - Sempre menor, depois dos dezoito anos eu não tive esse problema com policia mais não.
P/1 - Tomou juízo.
R - Esse tipo de problema não, tive outros, mas ligado ao trabalho. Então sempre coisas aparentemente bobeira, por uma aventura ou coisa parecida. Essa aí não teve jeito não, depois não quis nem saber o desdobramento que deu. Estava falando da história da Praça...
P/1 - A história da Praça. Vocês mudaram de Praça e o pessoal do projeto foi atrás de vocês.
R - Foi atrás. E aí a gente começou a ficar muito perseguido, porque onde eu ia, os caras começaram... Porque também eu já tinha várias, estava há muito tempo na rua, já tinha algumas passagens e as pessoas já nos conheciam, principalmente os grupos que operavam no centro, de justiceiros, conheciam o nosso grupo. E o nosso grupo começa a ganhar certa visibilidade, mas pelo trabalho do projeto, começa a ganhar, de ir aos locais, começa a articular várias redes, eu e os meninos piores. Uma boa parte deles sempre estava na frente dos processos. Começa a ter uma pressão muito grande e aí eu, com a minha filha pequenininha também, eu fico numa situação muito difícil e eu tenho que começar a sair da rua, sem chance. Daí, nesse período terminei me envolvendo com o tráfico. Era para mim… não tinha outra perspectiva, pouca escolaridade, período de 1985, 1986.
P/1 - Você chegou a terminar o que?
R - Eu devia estar aí na sexta série. Quer dizer, não tinha escolaridade quase nenhuma, não tinha profissão. O que eu sabia fazer era trabalhar na rua, tomar conta de carro, fazer esse tipo de coisa, engraxar sapato. E aí eu terminei me envolvendo com o tráfico, comecei a movimentar o tráfico onde eu morava. E aí eu estou em casa um dia, saí das ruas, e os educadores não. Aí eu estou em casa um dia, batem lá na porta. Não vendia droga na minha casa, tinha uns caras que vendiam para mim, eu coordenava um pouco o trabalho do movimento, mas alguns que a gente conhece mais e amigo mais chegado às vezes ia buscar. Aí quando eu abro a porta assim, a maior surpresa: era o educador. Eu pensei: “Esse filho da mãe veio buscar droga”. Que era um dos universitários, “Ele veio pegar uma aqui e não sabia que era eu”. Entendeu? Na hora minha fita foi assim. Aí eu olhei assim: “O que você está fazendo aqui, mano?” “Vim conversar com você”. “Conversar o quê?” “Não, porque a gente está com um projeto tal e a gente pensou, você deu uma sumida. Ficamos sabendo que você teve uns problemas aqui na rua e tal”...
P/1 - Mas eles nunca perguntavam nada?
R - ..Não, perguntavam. “E a gente queria o seguinte, a gente quer um cara para trabalhar com a gente e gostaria que pudesse ser você, se você queria aceitar para trabalhar”. “Mas trabalhar no que, mano? Não sei fazer nada”. “Não, a gente quer o seguinte, quer um cara que possa ir ao banco para nós. A gente quer continuar o trabalho com os meninos e quer alguém que faça a ligação, ver o que está acontecendo com os meninos e falar para nós. Venha aqui e traga para nós o que está acontecendo e que pudesse acompanhar”. “Mas eu não sei fazer esses bagulhos, eu vou ficar caguetando os moleques? Não posso fazer isso aí”. “Então faz o seguinte, pensa bem e aí você vai a tal lugar”. Me falaram o endereço que era para ir, aí eu falei com ele assim, pensei assim. “Vai ter carteira registrada?” Porque essa era a senha para eu fugir dos caras, porque com os policias é isso aí, você tem que mostrar que tem carteira registrada e de preferência de calo na mão. Então eu fui.
P/1 - E ele falou que sim?
R - Ele falou: “Vai lá e conversa”, foi isso que ele falou. Aí eu cheguei e eles terminaram falando. Eu lembro assim, assinava um papel, era Projeto Alternativo de Atendimento de Meninos e Meninas de Rua, e conseguiram registrar a minha carteira. Então eu consegui o primeiro registro de carteira que eu tenho, foi a partir dessa oportunidade que eles me deram. Então primeiro assim, a questão da confiança daquele grupo, e que viram o potencial, de todas essas coisas que eu estou contando um pouco para vocês. Eles conseguiram não só observar que tinhas essas questões, mas conseguiram observar a potencialidade em mim, que poderiam investir. E eu comecei a trabalhar com eles e eu ficava lá. Aí por exemplo, o pessoal foi comer, almoçar, e ia ao bagulho vegetariano. Eu sempre falo para o pessoal, não tenho vergonha de falar, eu fui ver, tirando tomate, e mesmo assim, e vários tipos de coisas… eu fui aprender a comer alguma coisa com dezesseis, dezessete anos. Sabe, para mim eles comiam mato. Falava com a minha mina, “Os caras lá só comem mato. Eu tenho que ir comer e não gosto daquele bagulho não. Só comem mato, é impressionante. Vários tipos de mato verde e fala que o bagulho é saudável. Não tem gosto de nada, amargo, um negócio ruim. Eu não sei se vai dar certo esse bagulho não, eles são muito diferentes de mim”. Então ligar telefone, atender telefone, telefonar pela primeira vez, assim, atender telefonema... Quando eu via alguém falando dava uma sensação estranha, de estar num aparelho. Então não tinha nada desses baratos aí e foi no Projeto que eu comecei a acessar esse tipo de coisa. E aí eu fui indo, por exemplo, chegou uma vez, eles mostravam confiança com tudo isso, o cara levava para ir ao banco. Uma vez me deram para eu ir ao Banco do Brasil. Não, antigo do Estado de São Paulo, Banespa. Fui ao Banespa e peguei, se fosse hoje, não lembro, mas se fosse hoje, mais ou menos equivalente a uns seis mil reais. Imagine eu com esse histórico e os caras colocarem um cheque e tal, e eu fui lá e peguei o dinheiro. Só que aí, o que eu fiz? Fui lá à Praça rever os meus amigos. E eu, para não mostrar que tinha mudado, nem nada, cheguei para o cara e falei: “Terminei de ‘catar’ um cara ali, dá uma olhada”. E mostrei assim, tinha aqueles pacotão de dinheiro. Na hora que eu mostrei o moleque falou assim: “Dá para mim, eu também quero”. E aí fiquei na saia justa. Eu saí fora, eles correndo atrás de mim, meus próprios camaradas correndo e eu correndo na Marechal, avenidona de São Bernardo. E os caras atrás de mim querendo pegar um pouco do dinheiro. Menina... E eu com o dinheiro dos outros, mas para ganhar a moral com os caras falei que tinha roubado o dinheiro. Então eu passei por muitas situações assim. Até de cair na ficha dessa possibilidade de acessando, de entendendo um pouco mais, de despertando para outras coisas, de voltar a estudar, de entender esse papel... Foi muito difícil. Pelo menos com a primeira turma, eram os próprios amigos que estavam comigo na rua, que moraram comigo na rua.
P/1 - Esse trabalho que eles queriam que você fizesse, que era justamente a ponte. O grupo que você pertencia e o Projeto. Como era feito isso? Porque era uma das principais atividades, pelo que eu entendi, que eles queriam.
R - Que eu fizesse, na verdade, dentro do desenvolvimento. Primeiro eu não estava na rua mesmo, eu não sei se eles estavam ligados que eu estava me envolvendo com o tráfico, e eles me ofereceram. Eu lembro na época, era um salário mínimo que eles me pagavam, que podiam pagar, e carteira registrada. Isso foi determinante pela situação que eu estava, porque eu conseguia ganhar mais. Tinha uma filha pequena, conseguia ganhar mais na atividade que eu estava, mas eu encarei. É aquela coisa de oportunidade, a gente decide também, a gente não é só um sujeito passivo, a gente é ativo no processo. Então eu decidi, achei que era a melhor saída. Logo depois disso daí, acontece em 1986, em Brasília, o Primeiro Encontro Nacional de Meninos de Rua. Vão onze meninos de São Bernardo, alguns, inclusive, do lixão, que eu já não conhecia, outra geração. Vai lá para Brasília para a gente discutir um pouco os direitos das crianças e adolescente. Ali começa a participação das crianças, que depois veio, mais para frente veio a se chamar Estatuto da Criança e do Adolescente. Então eu lembro que ali, por exemplo, foi um local decisivo, que eu cheguei para uma dessas pessoas, que eram os educadores, e perguntei se todo aquele pessoal que estava ali, estavam todos ali junto com a gente, estava todo mundo no mesmo barco. Aí o pessoal falou assim: “Não, esse pessoal está tudo junto com a gente. É gente do Rio de Janeiro, é gente do Rio Grande do Sul, é gente de Belém do Para, é gente de Brasília, é gente de Pernambuco, tem gente aqui do Brasil inteiro. E está tudo no mesmo barco”. Aí eu olhei, mano. Falei: “Ah, não sou bobo nem nada. Do lado de cá a casa está caindo e tudo, eu vou correr para esse lado aqui”. Então foi importante para mim também aquele encontro, foi importante a confiança que os educadores tiveram em mim, foi importante não ter pré-julgamentos. Acho que foi importante acreditar no ser humano que estava ali, foram ferramentas.
P/1 - Você é o único menino que estava nesse projeto, com esse perfil trabalhando junto com eles?
R - Fui o primeiro.
P/1 - E aí foram agregando outros?
R - Aí foram agregando outros. Eu fui o primeiro, basicamente o meu trabalho era de fazer esse contato. Eles iam para a Praça e eu ia junto, falavam para eu estar ficando na Praça para saber o que estava acontecendo, conversando com os meninos, se tinha alguma atividade que avisasse, se tivesse alguma reunião para eu falar onde ia acontecer. Então era uma ponte mesmo. Também sabendo da limitação que tinha, eu estava começando, não tinha nada esquematizado dessa transformação, ou como construir essa transformação dos meninos virarem educadores sociais. Não tinha muito esquematizado, não tinha muitos exemplos para a gente, tinha coisas bem esporádicas. Então nesse momento eu começo a fazer essa ponte. E tem esse problema, principalmente com os órgãos de segurança, porque muitos me conheciam, então ficavam nessa cabreragem de sempre acreditar que eu estava driblando eles. Então várias vezes, várias vezes fui para a delegacia, várias vezes. Com um monte de marmita, os caras abrirem marmitas para ver se tinha alguma coisa dentro das marmitas. Entendeu? Carteira profissional, antes você não podia. Depois: “Qualquer um pode ter”. Antes pedia, depois que eu mostro, agora, qualquer um pode ter. Então os caras iam dar uma geral. Às vezes achavam um negócio a cinco metros, qualquer coisa já associavam a você. Então é uma dificuldade, era uma dificuldade. Falava que estava trabalhando, aí o cara falava assim: “Mostra a sua mão, se estiver trabalhando, como não tem calo na sua mão?” Então quer dizer, para um cara que esteve na rua, afro brasileiro, trabalhando, você tem que ter calo na mão. Entendeu? A gente não podia perguntar: “Então mostra a sua mão policial. Mostra sua mão se tem calo”. Não podia, que você apanhava. Então foi bem difícil, bem difícil. É uma parte, até que nós conseguimos, em 1986, também ter um espaço comunitário para trabalhar com os meninos, um espaço maior para que pudesse desenvolver atividades de forma mais sistemática, não só a rua. A rua continuava, mas num outro local.
P/1 - Que tipo de atividades vocês faziam inicialmente?
R - Na rua?
P/1 - É.
R - Na rua era acompanhar os meninos, tinha algumas reuniões, tinha algumas assembleias com os meninos, para decidir, por exemplo, se ia para o acampamento. Os meninos apontavam a questão da comida... Eu lembro que no começo eu falei que muitos garotos tinham que ficar furtando para conseguir se alimentar. A alimentação da rua em geral é comer coxinha, comer cachorro quente quando tem dinheiro, ou é alguém que passa e dá alguma coisa. Então não é uma comida adequada para quem tem dez, doze, treze, quatorze, quinze anos. Idade nenhuma na verdade. Então umas das primeiras atividades que se organizou nesse período, inclusive que eu participei, organizou-se um almoço. Então uma das coisas que tinha, os meninos pagavam simbolicamente pela refeição e nós levávamos a refeição até onde estavam os meninos.
P/1 - Por isso que você estava levando as quentinhas?
R - Às vezes eu estava levando as quentinhas. E aí muitas vezes, quando eu ia nisso, os caras que estavam junto comigo, os melhores amigos meus da época da rua, eu chamava eles para ajudar a levar e eles iam. E a partir daí, outros deles, mais para frente, começaram a serem chamados para estar trabalhando também, para fazer a mesma atividade que eu. Então começou a arrastar e depois nós tínhamos um grupo bom de meninos, esses que estavam na rua. Algumas das meninas vieram participar desse grupo nosso que chegou naquela Praça, a Praça da Matriz. Nós chegamos a ter um grupo de aproximadamente vinte e três pessoas. Nós devíamos ter, dessas vinte e três pessoas, devia ter umas cinco a sete meninas. Então já... algumas irmãs e algumas namoradas dos meninos. Eu estava sossegado, era casado e tal, então...
P/1 - Você tinha uns dezoito anos aí?
R - De dezessete para dezoito. As meninas já vêm antes, na Praça eu vou antes. Quando eu vou para a praça acho que eu tenho menos. Porque a minha filha nasceu em 1985, fui para lá em 1984.
P/1 - Você tinha dezessete?
R - Dezesseis, dezessete, por aí. Então para a Praça Lauro Gomes sempre teve quando a gente foi nessa leva. Porque para engraxate já não tinha mais menina, mas para tomar conta de carro, o pessoal ganhava um pouco melhor também, o tipo de atividade, então tinha as meninas, algumas irmãs dos meninos que estavam fazendo essas atividades, que eram amigos meus. Agora desse grupo foi uma coisa interessante, que depois nós fizemos um levantamento desses vinte e três, lamentavelmente acho que até algumas meninas morreram. A maioria deles foram todos assassinados, foi um período muito duro, os anos oitenta foram. Olha, eu falo com tranquilidade que eu sou um sobrevivente. Sou sobrevivente. E o Projeto foi, em algum momento desse processo, foi aquele click que deu para mudar esse rumo, essa história. Então eu tive vários enterros de amigos meus. Imagina, cara que você está todo dia, amigas, que foram assassinados, um e outro porque arrumou briga.
P/1- Mas aí foram de várias formas? Por exemplo, tráfico...
R - A maioria grupo de extermínio. Teve várias situações, a maioria foi grupo de extermínio. O mais forte dele aconteceu dentro do próprio Projeto, mas é um pouquinho mais para frente, onde seis meninos de rua, em 1987, três de setembro de 1987, foram assassinados. Então tinha um local lá nosso que faziam atividades e à noite os meninos não podiam ficar lá, mas eles, como não tinham alternativa de albergue, alternativa de lar, de casa, nem nada assim, eles terminavam ficando na região e à noite o pessoal ia embora e eles entravam, eles entravam para dormir lá. Eles foram acuados lá por três ou quatro pessoas, essas pessoas, eles foram correndo e levaram eles para o banheiro. E lá dentro do banheiro eles foram assassinados a tiros e facadas. O menorzinho tinha doze anos, é o Sandrão, e o mais velho tinha dezessete anos, é o Renatinho. Então só nessa levada, mataram seis. Então a gente foi perdendo esses amigos. Outros foram... tomou tiro não sei de onde, outro saiu do baile e foi morto... Assim, parece que foi um grupo nosso marcado, um grupo marcado, vários deles. O que sobreviveu, por ironia, que eu tenho contato, são dois irmãos. Um ficou, ajudou lá em 1989 a forçar a aprovação do ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente], depois foi preso e ficou quatorze anos preso, no interior. Saiu agora há uns três anos, está bem para caramba, terminou o segundo grau, falou que quer fazer uma faculdade. Trabalha num local lá na região, é um grande amigo meu. Várias dessas historinhas que eu contei ele estava junto comigo. O irmão dele está preso nas penitenciárias do interior de São Paulo, foi um amigo que me deu a mão quando eu tive na rua. Estava um dia na rua em não tinha onde dormir, ele falou: “Não, hoje você vai dormir na minha casa”. Levou para dentro da casa dele. Devo muito favor para ele. Tem um, pelo que eu sei, tem muitos anos que eu não vejo, diz que é pastor, está na Igreja, é o Tonho. E tem outro que virou policial militar. Então do nosso grupo...
P/1 - Só sobraram vocês.
R - Que eu tenho contato só sobraram esses. E duas dessas meninas, de umas sete. Uma que eu sei que é mãe de família, que está casada. Outras foram assassinadas junto com os meninos e tal. Então foi um que daquele lugar saiu muita luta, é um lugar de muita luta, mas a gente perdeu bastante, perdeu bastante desses amigos. Tem uma foto que eu mostro ali, daqueles meninos ali, estão mortos. Então foi um momento, nos anos oitenta, que foi muito duro. Depois, com essa morte dos seis, fechou um ciclo muito grande de enfrentamento à violência, aos grupos de extermínio. E a gente era acuado, não podia trabalhar e era quase outra geração. Depois de cinco, sete, dez anos, muda muito a rua. Pessoa que está muito tempo nos conhece, mas já vai mudando. Os grupos de segurança mudam, a gente fica marcado, um ou outro lembra, olha e fala: “Você me conhece?” “Também te conheço”. Mas no geral, a população vai mudando, o movimento vai mudando. E esses meninos, foi chegando meninos novos e a relação um pouco diferente, começam a ficar preocupados. Não tinha marca, “Ah, é o Marquinho educador, o Marquinho do projeto. Não é o Marquinho que esteve na rua, não é o Marquinho que batia em mim, não é o Marquinho que fez isso, que fez aquilo”. Então ajudou bastante. Porque na rua não tem jeito, descia a lenha nos moleques. Muitas vezes é a lei do cão.
P/1 - Agora você está com a barra limpa.
R - No meio de cobras, você tem que aprender a ser cobra, não dá para ser minhoca, se for minhoca já era. Então era muito duro. E foi mudando um pouco, espalhou muito, o pessoal da região central é muito duro, os educadores não podiam trabalhar. Houve denúncias internacionais, houve CPI contra o extermínio e a gente enfrentou isso e de certa maneira eu fui um pouco simbólico desse processo. Porque eu era alguma coisa para o Movimento Nacional dos Meninos de Rua. E mesmo para o Projeto de Meninos de Rua lá de São Bernardo eu carreguei esse peso muito grande, eu era um menino que deu certo. Com toda essa história contando, eu era um menino que foi capaz. De toda essa história, de reverter, de olhar minha história, reviver minha história, recontar minha história, colocar minha história no devido lugar dela, pessoal, dentro das lutas de classe, dentro da história social, de tentar imaginar a luta, de não entender porque da ida para a rua. A perda do meu pai, e da minha mãe a violência, minha mãe foi muito dura, batia e tal. E consegui entender que isso na verdade era aquela máxima, ela batia para eu não ir para a rua e eu ia para a rua porque ela batia. E de entender que na verdade todo o esforço e os recursos que ela tinha, a capacidade humana, a capacidade pedagógica de educar, era aquilo que ela tinha. E uma mulher para cuidar de quatro filhos... Ela foi arrumar outro companheiro dela depois do meu irmão grande já, o pequenininho já com treze anos, mais ou menos. Então durante esse período, com quatro filhos, vivendo sozinha, tendo o marido vítima... Então minha mãe... Até já escrevi no segundo grau, tinha o dia oito de março e a professora mandou fazer um texto sobre a mulher. E eu resolvi escrever a história da minha mãe. E escrevi. Lembro que eu escrevi e comecei a colocar e não parava mais, deu umas duas, três folhas. Para quem não sabe escrever, isso é um livro. E quando a professora leu ficou extremamente emocionada. “Nossa. É a sua mãe? A história é verdadeira?” “É a história dela”. Então comecei a recontar a minha história nessa perspectiva, das dificuldades, dos impactos culturais, de ter vindo de uma vida mais comunitária, de uma vida rural, de uma cidade pequena para vir para São Paulo. Entender... Muita gente fala que quem defende direitos humanos é porque defende direitos de bandidos e não sei o que, que nunca passou por isso, que já não é o meu caso. Eu tive dentro da minha própria família, minha própria família foi vítima da própria violência. Acho que em algum momento eu produzi essa violência na sociedade. E hoje eu trabalho nessa perspectiva, de estar exatamente enfrentando essa violência, de não deixar que meninos, que tem capacidade, que são audaciosos, ou meninas audaciosas, que possam ter um lugar para essa audácia ser boa para a sociedade. Poder produzir coisa nova, para poder mexer com as estruturas que estão aí. Então, enxergar nessa perspectiva. Mas quando a gente não tem essa oportunidade, ou não tem essa facilidade, muitas vezes essa adrenalina, essa química, você vai levando ela, vai usando. Em algum momento você está nesse cenário, o cenário que eu um pouco contei, que eu passei, que eu vi. Ali em frente, já trabalhando no Projeto, esses grupos nunca deixam a gente em paz. Por isso que eu estava falando na questão das fotos, que a gente estava conversando. Então eu vou, por exemplo, estou numa festa tal. Saí. Mesmo na minha juventude, dezoito, dezenove, vinte anos, vinte e dois anos, não saía para festas. Eu fui pessoa que depois da abertura política tive que viver, durante um bom período, de certa maneira, com algumas restrições. Que a gente vai levando isso aí para a vida, de não poder ir numa festa. Então por exemplo, tinha uma festa boa, que vai cantar um grupo que eu gosto, de samba ou de rock, eu não poder ir. Porque eu sei que se eu for lá, os perfis do pessoal que trabalhava em segurança e tal, eu era uma pessoa visada para morrer, ser morto, como dava. Porque depois de tudo isso aí, eu devo ter visto muita coisa, eu já vi muita coisa. Esse corpo já tomou muita pancada de muita gente, já viu muita gente comprar mercadoria, já viu gente que fez isso ou que fez aquilo, já viu autoridade não sei o que tornar-se uma pessoa não muito grata. Termina tendo informações nesse período aí, informação que podem prejudicar pessoas que tem outro interesse. Então, durante muito tempo, muito tempo, tive que morar, por exemplo, em outro estado.
P/1 - Onde você foi morar?
R - Morei no Estado do Espírito Santo, morei um tempo no Espírito Santo. Passei um período que eu fui para Belém do Para. Quer dizer, eu morando em São Bernardo e andando ali pela região, por exemplo, estava perto e já passei, mais de uma vez com gente de fora, de outros países, para mostrar um pouco da periferia e da violência, passar em frente à casa da minha mãe, e não podia parar para tomar um copo de água. Porque o local era dominado por grupo de extermínio e se descesse ali poderia colocar em risco as pessoas, primeiro a minha mãe e depois eu. Então você viver isso...
P/1 - Quando você morou nesses lugares, mas você continuou sempre ligado ao Projeto?
R - Sim, até o Projeto que facilitou essas idas. Por questão de sobrevivência, questão de estratégia.
P/1 - E aí como era seu trabalho à distância?
R - Na verdade eu fui fazer… eu estive, por exemplo, no Espírito Santo, eu estive lá e ajudei, por exemplo, a fortalecer o Movimento Nacional de Meninos de Rua numa cidade do interior, que foi uma cidade que eu estive lá.
P/1 - Entendi, eles tiveram contato com outro grupo lá e você.
R - Pela experiência que a gente já tinha e tal. Porque aí já mudou, está vendo? Já não é pela atividade que eu fazia primária, mas pela perspectiva que eu tinha. Eu fui para o Encontro Nacional, eu comecei a ter contato com a imprensa, comecei a falar e eu tenho essa história toda. Eu falo para você e vejo o rosto das pessoas, eu vejo a imagem, sei exatamente tudo que aconteceu, como aconteceu, muita coisa aconteceu. A gente nessa época fez um levantamento e mais de cem meninos foram assassinados só na minha organização, em vinte e cinco anos que ela teve. Nós fizemos um levantamento, já está com vinte e oito. Então a gente viu como que montou esses grupos, como é que facilitaram para deixá-los crescerem, dar título de cidadão São Bernardense para uma pessoa que foi acusada depois pelo Gilberto Dimenstein, no A Guerra dos Meninos, como um dos maiores matadores que tinha na minha região. O cara faz filme, fez dois filmes, filme comercial, contando a história dele, falava que bandido é que nem piolho, tinha que pegar e esmagar. Filme feito. Então quer dizer, são coisas pesadas. Então eu tinha que manter certa segurança, não podia aproximar muito. De preferência dava... evitar falar onde está morando, não podia ir a festa, se fosse tinha que tentar vir para São Paulo, para algum outro lugar, tomar sempre cuidado, nunca levar pista de onde você está morando. Viver certa semi-clandestinidade, num país em plena democracia.
P/1 - E o resto do grupo? Também tinha esse tipo...
R - Eles foram para outros caminhos, como te falei.
P/1 - O resto do grupo que você chamava de universitário?
R - Esse grupo, depois da morte dos meninos, em 1987, eles não aguentaram. Não é que não aguentou, fugiu do barco. Mas o impacto foi muito grande, eles terminaram, um trabalha na Febem, um foi para a Universidade, outro montou uma firma paralela, outro acabou tocando projetos comunitários. Então dispersou um pouco.
P/1 - E aí quando renovou. Daí você continuou?
R - Eu continuei, um grupo continuou.
P/1 - E os outros meninos também?
R - Dessa parte.
P/1 -Teve uma renovação do perfil.
R - Desses meninos aí, vários outros meninos saíram para outros estados, vários. A gente montou na época, no Brasil, montou uma rede muito forte de apoio aos ameaçados de morte, que hoje é uma política do Governo Federal. A Sociedade Civil já fez isso aí no final dos anos oitenta, estava fazendo e, diga-se de passagem... Bom, alguns meninos morreram. Porque depois voltou essa coisa de você, da sua identidade, do local de onde você é e tal. Alguns desses jovens aí morreram, voltaram e terminaram sendo assassinados, mas uma parte, boa parte deles está viva, pais de família, meninas, donas de casa, mães de família, trabalhadoras. Conseguiram sobreviver. Alguns também vieram para São Bernardo, que eram de outros estados, nossa região acolheu os meninos e tal. Vixe, eu fui levar menino para Rio Grande do Sul. A gente tinha um lugar aqui no litoral paulista, tinha uma chácara para meninos ameaçados de morte, tinha alguns lugares. Tinha uma rede, tinha certa rede de proteção pelas entidades sociais, como a nossa organização, que terminava trazendo. Mas é difícil, o cara traz, tem a questão da identidade, questão da cultura.
P/1 - Uma hora ele se trai.
R - O bagulho é perigoso, o negócio é sério. Aqui, com os meninos que vieram para cá, terminou não acontecendo. Boa parte desses que foram, voltaram. Alguns estão vivos, boa parte está viva. Depois, como eu falei, casaram, são pessoas trabalhadoras, são pessoas de bem. Mas foi um momento muito difícil, foi um momento que de certa maneira despertou no Brasil, despertou nas autoridades, de pensar em ações, realmente de enfrentamento à violência, que se falou de uma política organizada e estruturada de extermínio de crianças no Brasil e isso deu um impacto muito forte. Fora esse discurso elaborado do técnico, político, de colocar... a gente estava vivendo na prática isso. E eu, por isso, acho que a diferença que tinha era por essa possibilidade de eu sair da situação que eu estava. E comecei a tentar em locais estratégicos, então, por exemplo, conversar com autoridades, conversar com deputados, caminhar com Gilberto Dimenstein quando ele estava elaborando o livro dele, ajudar a participar do levantamento para as pesquisas sobre extermínio. Essa foi uma das várias brigas nossas. Então esse momento foi muito difícil, aí a gente fez essa opção de distanciar um pouco de quem estava mais próximo, de evitar expor o lado mais familiar, das nossas famílias.
P/1 - E a sua vida pessoal, você tinha voltado a estudar naquela época.
R - Eu voltei e depois parei, porque é difícil. E fora isso você tem a questão psicológica que pega, questão psicológica. Se você andar assim e está olhando para um lado, você vê matador, sem ter. Estudar na escola te dava um pânico, que você ficava uma semana sem ir, porque achava que tinha alguém na porta, que estava esperando eu sair para me matar, entendeu?
P/1 - Você já tinha separado da sua primeira esposa?
R - Assim que eu separei dela, logo depois eu casei de novo. Eu tive três casamentos, estou no terceiro casamento, meu último casamento agora está com onze anos.
P/1 - Você casou de novo e teve filhos no segundo casamento?
R - Fiquei treze anos casado. Sou casado desde criança, eu falo. Conheço minha esposa desde criança, desde pequenininho. Vida louca desde pequeno.
P/1 - Você teve filhos nos três casamentos?
R - Nos três casamentos, dois meninos e duas meninas. Dois netos.
P/1 - Ah, você é avô.
R - Sou avô, avô da Giovana e do Renan. O Renan tem dois aninhos e pouco e a Giovana tem seis anos, está estudando. Estive com eles faz pouco tempo, sempre a gente está se vendo. E então foi isso. Essa foi uma das fases mais duras. Depois, já no Projeto, eu tive oportunidade de conhecer. Que nem em Belém do Para, de fazer, por exemplo, semi estágio. Eu fui para lá para conhecer um pouco, como a gente tinha pouca experiência, para conhecer como os outros trabalhavam, então fiquei lá um tempão, bebi numa boa fonte de lá, trouxe bastante ideia para o Projeto. Depois de lá fui para o Rio de Janeiro, fiquei um tempão no Rio de Janeiro conhecendo as experiências que tinham, comunitárias. Depois de lá fui para o Uruguai, fiquei um tempo no Uruguai, pouco tempo, conhecendo as experiências, fazendo intercâmbio. Depois eu fui, tive oportunidade de ir para a Argentina, conhecer as experiências de trabalho com crianças, defesa de direitos. Depois estive no Rio Grande do Sul, depois fui para Brasília, conhecer experiências... Mesmo no Espírito Santo, conheci várias experiências, depois fiquei em Minas Gerais, conheci vários trabalhos em Minas Gerais, depois tive a oportunidade de ir para o Nordeste, conhecer trabalhos no Nordeste, em Pernambuco e no Ceará. Depois estive no Paraná, para conhecer também trabalhos comunitários no Paraná.
P/1 - Você viajou o Brasil inteiro e mais a América Latina.
R - Depois em Santa Catarina. Ajudei um pouco aí em alguns trabalhos, levando um pouco e aprendendo dessa experiência, ou seja, virou uma. Aí depois, mesmo nesse trabalho e um pouco mais depois, começando a falar em defesa dos direitos da criança, como a própria organização, tive a oportunidade de ir para a Europa, oportunidade de ir para a América do Norte, nos três países da América do Norte, México, Estados Unidos e Canadá. Vários países da Europa, falando em defesa do direito da criança, participando de seminários ou em dar seminários, ou falar sobre criança de rua. Experiência na América Central, falei na Nicarágua, estive na Nicarágua, em El Salvador, estive na República Dominicana, no Haiti, em Cuba, estive no Panamá, na Costa Rica. Então abriu uma possibilidade, abriu oportunidades certas em alguns momentos, indo aprender, na maioria das vezes de aprender, algumas vezes indo levar experiências, algumas vezes articulando o movimento em defesa da criança latino-americana e caribenha. Então consegui, acho que consegui depois de toda essa fase difícil da vida, os traumas familiares e tal, a voltar a abrir um bom diálogo com a minha mãe. Eu sempre falo assim, que se ela foi de educação muito rígida, bateu muito, mas a gente conseguiu superar isso, consegui conversar, ser parceiro, ser amigo, estar ligando, estar conversando. De estar como irmão mais velho, de estar orientando meus outros irmãos. De estar.
P/1 - Você tem contato com todos eles?
R - Tenho contato. A gente marca, pelo menos uma vez por mês, a gente se encontra. E agora minha mãe, ela estava morando num bairro distante e ela mudou, a danada me deu essa daí, depois de quarenta anos foi morar perto de mim. Estava morando a trezentos metros da minha casa, nós viciamos nela. Eu, meus filhos e minha esposa viciaram. Todo final de semana era alguma coisa na casa da minha velhinha, sempre. Ela é muito animada. E ela pegou e voltou para Minas, o mesmo lugar que eu contei a história, ela voltou para lá, está com um mês e pouco que ela está lá. E agora o pessoal montou e fez uma escala, eu e meus irmãos, de pelo menos a cada dois meses alguém ir para lá. Ou toda a turma vai para lá para visitar minha mãe, deles, eu vai ser um pouco mais difícil de ir, mas...
P/1 - Como é o seu cotidiano hoje? Na Organização?
R - Eu coordeno o Projeto Meninos e Meninas de Rua, que é essa Organização, que tem desde 1983. Eu sou coordenador dela desde 1995, trabalhei um período como educador social e desde 1995 assumi a coordenação geral. Hoje nós temos três sedes, nós temos em São Bernardo, em Guarulhos e em Diadema. Nós trabalhamos com meninos em situação de rua e seus familiares. Um critério da nossa Organização é que pelo menos um terço dos nossos funcionários, diretores da nossa Organização, seja da comunidade, ou seja, de ex-meninos de rua. Então a gente tem essa coisa que aconteceu comigo nos anos oitenta, a gente tem isso hoje. Na área de segurança, como educador, na área administrativa, na diretoria, como assessoria, em toda parte nós temos ex-meninos de rua que participaram. Eu estou na coordenação, faço parte da Coordenação Nacional do Movimento de Meninos e Meninas de Rua, a nível nacional. Participo dessa rede de solidariedade que constrói justiça com criança e adolescente na América Latina e Caribe, que junta quatro países. E acho que no ano que vem vai ser aqui no Brasil o encontro. A gente deve agregar mais um país, que vai ser o Haiti. Uruguai, Brasil, República Dominicana, Nicarágua, com apoio dos Estados Unidos. E agora a gente está chamando o Haiti, que vai entrar nessa rede, fortalecendo essa rede conosco. E eu sou conselheiro nessa atual gestão, sou conselheiro do Conadca - Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente. Então nessa caminhada toda nossa, com essa coisa mais pessoal, eu também tive oportunidade de participar desde os anos oitenta, de uma boa parte de todo o processo de democratização da sociedade brasileira.
P/1 - E quando que você voltou para a universidade? Onde você estuda?
R - Eu estudo na faculdade lá no ABC e eu faço um curso de Ciências Sociais.
P/1 - Porque você resolveu voltar a estudar?
R - Por necessidade. Chega uma hora que a gente, com o avanço das políticas sociais. E mesmo com essa experiência toda, você tem que entender com mais profundidade algum local que você consegue esquematizar isso. Eu consegui achar que talvez pelas Ciências Sociais, seja um local que eu tenha... Todo mundo fala que eu tenho sempre essa ideia de tentar pegar mais geralzão, gosto muito, o pessoal fala que é muito difícil eu ter uma fala muito pontual, a minha fala é muito geral, sempre eles falaram isso. Eu acho que eu posso contribuir um pouco nesse debate. Então eu voltei para tentar sistematizar um pouco essa experiência, muito sistematizada, nossa organização deve ter pelo menos umas sete teses de doutorado, se não tiver mais, umas vinte, vinte e cinco de mestrados. E eu não consigo te dizer a conta de TCCs. Então eu acho que eu vou colaborar nisso também, quero entrar nesse debate. Então é por isso, volto nessa perspectiva de atualizar.
P/1 - Marco, qual é o teu sonho hoje?
R - Bicho, eu tenho vários, sou uma pessoa sonhadora. Sou uma pessoa... Eu acredito na humanidade. Acredito nas crianças e nos adolescentes. Antes, quando eu era... uns anos atrás, falava assim, que o meu sonho era querer ver o circo pegar fogo, mas queria estar lá para ver esse circo pegar fogo. Hoje acho que eu já estou depois do circo pegar fogo. Entendeu? Eu queria ver uma sociedade justa, fraterna, mais igualitária, com oportunidades. Eu fico imaginando um colega escrevendo um texto sobre, talvez, quantos Zumbis, quantos Pelés, quantas Dandaras o Brasil não perde todo ano pela sua desigualdade social, pela sua injustiça social, pela sua baixa qualidade da sua política social para os pobres. Isso me toca muito, então eu queria ver uma sociedade onde as crianças pudessem ter um papel importante; onde os idosos pudessem ser reconhecidos como berço de sabedoria; onde as mulheres pudessem ter vez de voz; onde não houvesse espaço para a homofobia, onde as pessoas não me olhassem pela minha cor. Eu acredito que é um pouco mais complexo de quando eu era pequeno, mas eu acho que a humanidade, de certa maneira vai caminhar para isso. Caminhar não sei quando, nem como. Eu acho que eu já não vou ver essa história mais, eu tenho a impressão de que eu não vou estar mais lá, mas em algum momento, se eu puder estar contribuindo para ajudar, ou adubar, ou ajudar a montar as primeiras coisas que amanhã vão virar adubo, alguma coisa, eu quero estar por aí. Por aí que eu quero me encontrar, eu acredito nisso. Fora isso, quero em especial, pessoalmente, envelhecer ao lado da minha família. Eu perdi muito tempo, com essas histórias que eu contei para você, eu não vi a minha filha crescendo. Até que da pequeninha é que eu mais lembro, mas eu não vi muito a fases dela, eu não vi. Quero tentar tirar isso um pouco com o meu filho, o menor, e aproveitar mais alguns anos aí, ao lado da minha mãe. Fiquei muitos anos sem ver os meus irmãos cresceram e então eu não vi os meus irmãos serem adolescente, eu não vi eles, as primeiras coisas. Que nem meu filho, vai e pergunta alguma coisa: “Está acontecendo isso comigo, eu fiz isso, fiz aquilo. O que você acha?” Então eu quero aproveitar isso agora com meus filhos, com meus irmãos, com meus sobrinhos, estar um pouco mais perto da família. É isso, tocar para frente, estar à disposição para lutar onde tiver coisa que possa ajudar a melhorar um pouco esse mundo, eu vou estar por ali. Falo para os meus filhos sempre: “Filho, é bem provável que vocês vão ver seu pai perdendo muita luta por aí, porque a gente luta contra gente muito poderosa. E onde tiver alguma luta boa, seu pai vai estar por lá. Então você vai ver muitas derrotas, mas não é porque seu pai é um derrotado. É que seu pai vai estar lutando”. E sempre eu falo isso para eles: “Lute contra alguém maior do que você. Não faça o que muita gente fez conosco na história. Sempre usar a força contra o mais fraco. Não. Lute com o mais forte. Talvez a gente perca, mas não perca a esperança onde a gente possa vencer”.
P/1 - Marco, como foi contar a tua história hoje aqui?
R - Oralmente.
P/1 - Você entendeu.
R - Acho que foi legal, uma experiência. Várias dessas histórias eu já falei, apareceram coisas novas, interessante ter a coisa do comecinho. Eu vi que eu fiquei muito tempo, comecei falando coisas que eu não tinha falado para outras pessoas. Então vai aparecendo sempre elementos, é bom, a gente vai reconstruindo. Eu tive... Às vezes eu vou a alguns encontros e sempre a pessoa apresenta o nome, e eu começo falando nome, lembrando os meus avós, da minha avó. Aliás, dos meus bisavôs, o que eu consigo lembrar, o que eu consigo levantar um pouco através dos meus pais. Aí depois eu falo dos meus avôs e da minha mãe, e falo de mim. Acho fundamental lembrar a nossa história, sempre. Com certeza tem período que a gente corre mais, tem período que a gente corre menos, por a gente ser um agente militante, um agente com envolvimento social, envolvimento político. A gente tenta fazer uns cortes. Eu vi que eu fiquei um bom tempo, por exemplo, em mim mesmo, isso terminou sendo assim. Eu não sei, só sei que foi assim. E agora no período mais final...
P/1 - A gente chamou para contar a sua história.
R - ...E no final eu envolvi um pouco mais essa história com esse movimento social que é um movimento que liberta a gente. O Mário Volpi falou e é verdade, você entra nessa luta e essa luta entra na gente. A gente não sabe, chega uma hora que não sabe onde que começou ali, onde está o trilho. Mas é isso, eu achei que foi legal, foi bom estar lembrando as histórias. Vai ficar um dia gostoso.
P/1 - Obrigado Marco.
R - De nada.
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