Projeto Mostra SESC Museu da Pessoa
Depoimento de Liana Lacerda Keller
Entrevistado por Gustavo Sanches e Leandro Cusin
São Paulo, 09/03/2010
Realização: Museu da Pessoa
PC_MA_HV247
Liana Lacerda Keller
Revisado por Paulo Ricardo Gomides Abe
P1 – Bom, Liana, pra começar vou pedir pra você falar seu nome completo, seu local e sua data de nascimento.
R – Meu nome é Liana Lacerda Keller, eu nasci em Porto Alegre no dia 10 de junho de 1978.
P1 – Em Porto Alegre, você vivia com quem?
R – Eu nasci em casa mesmo e com os meus pais. Vivi com a minha mãe até os 15 anos.
P1 – Você conheceu seus avôs?
R – Conheci.
P1 – Ambos os avós, de parte de pai e ...
R – Sim, conheci ambos. E tanto os avós, os dois tiveram várias famílias, acho que era meio comum naquela geração... Tinha um... As minhas avós se tornaram mulheres, pensionistas, não trabalhavam e amargas e mal-amadas. Meus avôs tendo várias mulheres e vários filhos, uma loucura. Conheci...
P1 – Mas você conviveu com eles de freqüentar a casa deles e...
R – Sim, na verdade os avôs masculinos morreram quando eu era pequena ainda. um morreu quando eu tinha cinco anos e o outro quando eu tinha oito. Então, eu conheci pouco, assim... e os dois eram bem, junkies, fumavam muito, bebiam muito, usavam muitas drogas e tal, morreram meio que, por causa disto. E , as avós ficaram. (risos)
P1 – E com as suas avós você tinha uma relação mais próxima?
R – Tinha sim... Mais ou menos. Mais ou menos.
P1 – Você tem alguma lembrança da relação com elas, de infância?
R – Tenho, com a vó materna. Ela me ensinou a fazer tricô, crochê, a gostar destas coisas de... Se vestia muito bem, era muito elegante. Mas era super vaidosa, demais. Então ela não gostava muito de criança estragando as coisas dela. Eu gostava de comer os batons, ela ficava louca... (risos) Então, acabava não indo muito na casa dela, por causa disso.
P – A casa dela, você comentou, era uma pensão. Ela trabalhava na pensão e a casa dela era a própria pensão, não?
R – Não, acho que esse é um termo mais usado no Rio Grande do Sul. Pensão é quando o marido paga uma pensão.
P1 – Ah, entendi.
R – Pra mulher viver, e _______ não trabalha, deveria trabalhar que ia ficar melhor a vida dela.
P2 – Eles moravam juntos?
R – Sim, mas depois separaram, então aquela coisa. Toda vez que ia na casa da avó, só ficava falando mal do avô, o tempo todo, essa é uma coisa muito chata (risos).
P1 – A casa que você vivia no Rio Grande do Sul, você tem lembranças desta casa, de como era essa casa?
R – Eu morei numa casa até os seis anos e depois eu mudei. Nesta casa que eu morei até os seis anos, era bem numa mata. Era legal, era perto do rio que tem lá, que é... é como o Tietê aqui. É o rio Guaíba, que é bem poluído, tudo, coitado. Mas era legal, a casa; tinha muito cachorro, aquela coisa com a natureza mesmo, a ligação com a natureza. Depois eu mudei pra um apartamento, então vida mudou completamente. Não sei, é diferente, não tem nem comparação.
P1 – Mas, desta casa, você tem alguma lembrança das brincadeiras, você tinha vizinhos, como era esta infância na casa?
R – Não, a infância, essa minha primeira infância foi muito solitária, eu era bem anti-social, tanto que foi bem difícil depois pra me socializar com as crianças na escola. Não queria nem saber, não queria conversar, não queria interagir... Depois eu fiz amigos, em geral era muito amiga de meninos. A gente brincava na rua, tinha umas brincadeiras de... Tinha uma que chamava meia-lua, que era de correr, parar, tinha umas brincadeiras de estátua, eu gostava muito de brincar na rua. Jogar futebol... subir em árvore. Não gostava de brincar de boneca, detestava. No fim, é isso mais ou menos que eu lembro assim. Que eu comecei a brincar com outras crianças. Sozinha eu ficava viajando. Brincava com os cachorros, os cachorros viravam gente, aquela coisa.
P1 – Na sua casa, no cotidiano, os seus pais trabalhavam, a sua mãe trabalhava, não?
R – , meus pais eram hippies, bem hipponga. Eles faziam artesanato em couro, então era sapato, bolsa, aquelas coisas. E isso punham em feira, então eu ia bastante com eles, isso até os meus sete anos e então a família começou a pressionar, que aquilo era muito instável e eles começaram... Mas tiveram outro filho. Quando eu tinha quatro anos nasceu um dos meus irmãos e eles tinham uma vida muito doida, eram nudistas lá, eram naturistas e relacionamento aberto e a família de cabelo em pé, aquela coisa. Então o meu pai fez um concurso público, passou pro BNH, que é extinto hoje em dia, não existe mais. A vida mudou, porque a gente foi morar num apartamento. Meu pai mudou completamente o estilo, completamente e a minha mãe não trabalhou mais, a partir desta época. Meu pai virou um bancário e ele se viciou em cocaína e ficou uma pessoa bem difícil. Enfim... (risos)
P1 – Mas, disso tudo, desta infância ainda, deste período que eles trabalhavam com artesanato, como era a sua relação com a sua mãe, com eles ainda?
R – Era muito, era uma vida muito doida. Eu não entendia direito tudo aquilo, achava complicado, porque um dia eu acordava estava meu pai dormindo na sala com uma outra mulher abraçado. Eu: “Que é isso?!”. Minha mãe estava chorando num canto, depois eles ficavam bem. Eu ficava muito confusa com a vida deles assim. E porque era diferente da vida da... Eu ia em outras casas às vezes, via a vida das outras famílias, não tinha nada a ver com a minha. Eu ficava: “Ai, eu não estou entendendo. O que tá acontecendo?”. E também, eles não me deixavam comer carne, nem tomar refrigerante, não deixavam eu comer açúcar, só que não me explicavam o por quê e eu ficava revoltada. Ia pra casa da avó e mandava ver, comia tudo. Não dizia nada, _____ escondia. (risos) Ele era meio assim; é isso que eu lembro da primeira infância com eles, que nada era muito explicado, eu não entendia, só que me parecia algumas coisas erradas, que eu via com um certo sofrimento, que eles tinham uma vida muito louca e ao mesmo tempo eles não bancavam aquela vida, sabe? Eu não entendi direito, porque era muito pequena, mas sacava, com aquela sensibilidade infantil.
P1 – E quando o seu irmão nasceu, muda um pouco a sua relação ou as coisas...
R – Mudou, eu fiquei morrendo de ciúme. (risos) Detestava ele, coitado. Porque eu estava lá sozinha, eu, a mata, os cães, estava lá, _______ uma criança vai encher o saco. Chorava, aquela coisa. Eu meio que reneguei ele. Depois que fui ficar amiga dele, mas depois de muitos anos. “Porque eu não quero saber deste menino chato”.
P1 – Você falou bastante dos cães, desta relação com a natureza, era um lugar que, pelo visto, você tinha um certo apego.
R – Ah, eu gostava muito.
P1 – Tem algum lugar marcante, alguma coisa, mesmo dos cães, da natureza, que você... Um lugar que você lembre quando você estava... Algum lugar marcante deste lugar onde você ficava.
R – Tinha um jardim, que era um jardim enorme, onde eu ficava muito. Adorava. E também, tinha uma lareira, porque no Rio Grande do Sul é frio pra caramba no inverno. Só no inverno, no verão é horrível. E tinha uma lareira, eu adorava ficar na frente da lareira também, eram os lugares que eu mais gostava de estar, eram esses.
P1 – Você falou que depois vocês mudaram para uma apartamento e as coisas mudaram muito. Que mudanças foram essas?
R – O apartamento era muito pequeno, e lá era um lugar enorme, era super amplo. De repente um lugar pequeno... Não sei, foi muito contundente a mudança. E como os meus pais mudaram muito também, de atitude de vida, de tudo, ficou complicado, porque nasceram mais dois irmãos. E um dos irmãos era filho do amigo do meu pai, uma coisa assim de outro planeta. (risos) Então não sei, a gente ficava muito solto, pela rua, a gente podia ficar de madrugada na rua. A gente ficou muito exposto. Eu sofri diversos abusos sexuais e os meus irmãos também e a vida foi ficando muito dura, muito ruim. E meus pais não estavam nem aí. Minha mãe entrou numa onda lá de... Não sei, entrou no planeta. Ela e meu pai abusavam bastante de drogas, e minha mãe tomou muito LSD e ficou meio com um tipo de esquizofrenia na verdade. Ela abstraiu que ela tinha filho, ela abstraiu tudo, ficou... E meu pai entrou também numa coisa de fazer balada, não queria nem saber, não voltava mais pra casa. A gente ficou lá, meio à deriva. Aconteceram diversas coisas muito ruins. A vizinhança era um povo com má fé, eu diria, uma vizinhança especial neste aspecto. Mudou demais. Ficou muito... Pra mim, naquela época, parecia um inferno. Detestava a escola, achava os colegas um saco. Ah, não sei, era criança muito diferente de mim. Não tinha nada a ver comigo...
P2 – Uma outra realidade também.
R – Euestava infeliz na minha casa, desamparada demais. E as minhas avós eram chatas e não gostavam de ter neto. Eram umas avós meio complicadas, diferentes. Então, era muito, foi muita solidão, muita coisa e eu era a mais velha, eu cuidava dos outros, era pesado. Então, não lembro com muito carinho desta época, na verdade.
P1 – A rotina do seu dia-a-dia era ir para escola e voltar pra casa, como...
R –Voltava pra casa, tinha... Eu que fazia a comida, tudo, depois ia pra rua, brincava. E eu estudava por conta minha mesmo, porque eu sabia, de alguma forma, que se eu não estudasse, ninguém me cobrava. Ninguém mandava eu ir para a escola. Se eu não fosse, isso ia ser muito ruim pra mim, em algum momento, então eu ia. E cobrava dos meus irmãos isso também. Acho que a única coisa que o meu pai fazia era inscrever a gente na escola. Só. E pagava lá plano de saúde. Acho que já tinha até, porque era bancário e bancário já vem embutido essas coisas de filho. E deixa eu ver outra coisa da rotina... Eu ficava acordando a madrugada inteira, ficava vendo filme, Corujão, ninguém mandava eu dormir. Eu ficava dormindo na escola, às vezes, ficava dormindo de tarde. Eu tive uma infância muito livre, na verdade. Fazia o que eu bem entendia.
P1 – Mas, ainda , no apartamento a situação... você continuou muito solitária mesmo tendo os irmãos, mesmo...
R – Era, era solitário, porque... a solidão eu me sentia em relação mais aos pais, mas tinha muita criança no entorno. As crianças da vizinhança e os meus irmãos. Uma coisa que foi da rotina, que não foi legal, foi que meu pai, como ele começou a cheirar muita cocaína, ia um traficante em casa ficar lá rolando, todo mundo cheirando e eu ficava perguntando: “Que que é isso? Eu também quero!”, a criança... (risos) “Não, isso é remédio pro nariz, pra adulto.” Eu: “Ãhm?” “Mas eu quero, não quero saber”. E meu pai se tornava muito violento. Às vezes ele chegava em casa da balada, muito louco e eu me lembro uma vez, eu estava dormindo, ele me tirou pelo cabelo da cama e começou a me bater, sem nenhum motivo. Eu comecei a me tornar muito rebelde, porque: “Bom, estou apanhando sem motivo, estou sendo maltratada, o meu pai é um louco, um agressivo, então também eu vou fazer por onde”. Comecei, então, a me tornar uma capeta, infernal. A minha mãe também começou a ficar agressiva, porque os dois começaram a se bater e virou uma violência só o negócio.
P2 – E quantos anos você tinha, mais ou menos, quando você começou a pensar assim?
R – Quando começou esta fase mais violenta, tinha sete. E, também, como os filhos acabam pegando as coisas do pai, a gente começou também a todos se baterem, aquela coisa trash. (risos)
P1 – E mesmo seus irmãos, a relação com eles era difícil?
R – É, nós éramos todos uns bichos-do-mato. Eu não tinha muita instrução, a gente ficava lá, os pais medonhos, não estavam nem aí. Não tinha ninguém pra falar alguma coisa, pra pôr um pouco de paz ali naquela história, a gente apanhava muito. Então, sei lá, uns bichos mesmo.
P2 – E as amizades do bairro eram fáceis de você conseguir ou eles te discriminavam pelo fato dos seus pais serem daquele jeito?
R – Me discriminavam bastante, era bem chato. E, então, era muita guerrinha, muita coisa. Eu era muito briguenta, eu brigava muito. Voltava com os dentes quebrados, levava pedrada, era uma coisa, “trashona”, gangues infantis, uma coisa... muito louco. Não era um bairro, uma favela. Era um bairro de classe média, mas era uma criançada do inferno, impressionante. (risos)
P1 – E teve essa fase que você passou a ser mais rebelde? Mesmo na escola isso também mudou? Você continuou freqüentando a escola? O que muda quando você fala: “Agora não, não dá mais, eu tenho que reagir”?
R – Essa fase bem conturbada foi até os 14 anos mais ou menos. E na escola também era muito discriminada, porque eu era a única diferente e era... por exemplo, eu não sabia fazer laço no tênis, eu andava com os cabelos cheio de dread, cheio de nó, porque eu não sabia pentear o cabelo, eu não sabia escovar os dentes, eu não sabia essas coisas. Ninguém me ensinou. Eu fui aprendendo, meio na casa da família dos amigos, então era super discriminada, era muito quieta e não interagia. A criançada não perdoa. Eu só comecei a ser respeitada quando eu tinha nove anos, porque eu comecei a quebrar a cara das pessoas que estavam me incomodando. Eu ia lá e quebrava a cara... (risos) E, nossa, era agressiva, começou a haver mais respeito, mas os meus amigos da escola eram sempre os rejeitados. Aquela pessoa que repetia de ano, que estava lá há cinco anos fazendo a mesma série, ou então, a pessoa que tinha piolho, que ninguém queria chegar perto. Tinham poucos negros na escola, eu era amiga dos negros, eu gostava das pessoas rejeitadas, porque elas eram as mais interessantes que tinham. As outras eram chatíssimas pra mim. Enfim...
P1 – Você teve amigos, teve pessoas com as quais... você tem lembrança de amigos marcantes, ou...
R – Sim, eu tive bons amigos, queridos. Era um, dois, mas era bacana. Sempre tem, um amiguinho.
P1 – É, porque você comentou agora... até que você aprendeu umas coisas de ter... na casa da família, de amigos...
R – Sim, foi destes amigos que eu tive mais uma noção de família mesmo. Meio que era adotada pelas famílias dos amigos. Eles cuidavam, eu comecei a aprender certas coisas que na minha casa não aprendia.
P2 – É... Você contava pra eles o que acontecia dentro da sua casa? Eles te ajudavam?
R – Contava.
P2 – E o que eles faziam por você?
R – Ah, em geral, às vezes eu fugia da minha casa, ficava um tempão na casa dos amigos. Porque, quando estava muito tendo, não dava pra ficar. As pessoas eu acho, hoje, pensando como adulta que eu sou, que devia ser bem ruim pra uma pessoa ficar ouvindo aquilo, uma criança e não poder. Senti meio... impotente. O que eu vou fazer. Me meter? Chamar a polícia? Ninguém nunca fez isso, mas alguns casos seriam pra chamar a polícia sim, porque minha mãe tentou me matar uma vez, que ela estava surtada, me pegou pelo pescoço e começou a me sufocar, a me... sei lá, como é que chama? Degolar, enforcar. Ah, degolar é outra coisa. Enfim, tiveram momentos muito tensos, com muita violência mesmo. E...
P1 – Seus irmãos também saíam de casa?
R – Também, era tudo uma coisa salve-se quem puder. E... só que era a nossa realidade, pra gente não era tão estranho, porque a gente meio que se acostumou. Mas eu penso que se eu visse uma situação desta acontecendo, eu faria alguma coisa, com alguém próximo de mim. Fazendo isso com filho, não ia ficar observando e não fazer nada, sabe? Mas é muito delicado também, difícil se meter na vida dos outros.
P1 – Mas nesse ponto, acho que isso que você coloca, nunca ninguém interferiu, família...
R – Não.
P1 – Tios, nada, nunca ninguém fez nada?
R – Não.
P1 – Mesmo seus avós, também?
R – Não. Eu pedi várias vezes. Cheguei na casa de uma avó, de outra, de uma tia... “Ai, deixa a gente morar aqui, porque não dá, não dá pra morar com meu pai e minha mãe. Eles são loucos e um horror, é um inferno.” Umas das minhas avós disse assim: “Não, eu já estou muito velha pra ter criança na minha casa, esse carma é teu, se vira.”.
P1 – E você...
R – Eu tinha oito anos, foi quando nasceu o meu terceiro irmão. Ele tem oito anos de diferença de mim. E, nossa, foi muito difícil, porque a minha mãe rejeitou ele, a gravidez inteira ela: “Não, eu não estou grávida”. Com a barriga deste tamanho, ganhava presente, roupa de bebê, punha no lixo. Ela: “Não, eu não estou grávida, isso não está acontecendo” e quando ele nasceu, é muito estranho isso, o que a mente faz umas coisas com as pessoas... Ela foi fazer xixi no meio da noite e saiu o filho. Ela não sentiu nada. Ele bateu a cabeça no vaso, foi uma coisa assim... muito louca. Eu lembro que acordei no meio da noite, estava... já tinha um bebê lá, aquela loucura e ela não quis saber dele, quem cuidou ele, dele pequenininho fui eu. Na verdade, eu sei disso, mas não me lembro, meio que apaguei isso na minha cabeça. E que mais?
P1 – Você falou que até os 14 anos foi este cotidiano mais trash, mais difícil?
R – Foi. Quando eu tinha 12 anos, meu pai morreu de overdose dentro de casa. Estávamos só nós os filhos dentro de casa. Foi uma coisa bem horrorosa... Logo depois, meu tio, que eu considerava meu amigo, que era um tio divertido, tentou me estuprar, que foi outra coisa que acabou com a minha cabeça, foi uma semana depois. E a minha mãe ficou mais louca ainda do que ela já era, ela ficou violentíssima, ela só... Ela começou a me bater muito, a gente começou a brigar muito e ela parou com isso um dia que eu quase matei ela. Eu revidei, porque eu não revidava, eu deixava ela me bater, não tinha coragem, essa coisa católica: “A minha mãe, não posso revidar”. Eu já com 14 anos estava grandinha já e simplesmente veio uma coisa, como uma, uma... não sei, deu um preto, um blackout... Quando eu acordei daquela minha insanidade, eu estava matando ela. Meus irmãos me tiraram de cima dela, foi uma loucura. Nunca mais. Eu acho triste essa coisa do respeito ser imposto por violência, mas às vezes é necessário. E, a relação mudou, minha e dela. Acho que também, ela meio que acordou um pouco, mas muito logo eu saí de casa. Com 15 anos eu saí de casa já. Fui morar com amigas, começou a minha vida de aventuras, de morar em toda parte, tal e viajar e pegar carona, porque eu fiquei muito sem medo das coisas. Porque é o pior do que já aconteceu, não vai acontecer mais. Não tem como.
P1 – Até os 14, você só estudava, você também não trabalhava, você não tinha...
R – Não. Mas com 15 anos eu comecei a trabalhar. Trabalhei com tudo que foi coisa também.
P2 – Em Porto Alegre mesmo?
R – Em Porto Alegre. Eu saí mesmo de Porto Alegre com 27 anos. Que foi quando eu vim pra cá.
P1 – E quando você saiu da sua casa, como você saiu? Você falou: “Mãe, tchau, estou indo”, como é...
R –Foi numa discussão. Eu tinha umas amigas que eram praticamente a minha família, que eram irmãs, eram três irmãs, e eu fui morar com elas. Depois morei com namorado, depois morei com outras amigas, depois morei com outro namorado, ia indo assim. (risos)
P1 – Não vamos ______. Essas três amigas moravam sozinhas já também? Elas moravam com a família?
R – Elas eram do interior do estado. E elas também meio que fugiram, porque a cidade elas era uma bem rural e não tinha como continuar os estudos; depois de um certo tempo lá, as mulheres... o destino de todas as mulheres era casar com um cara e ser mãe e dona-de-casa. E elas: “Não, não queremos isso.” Elas foram pra estudar, pra Porto Alegre e todas foram trabalhar, primeiramente, como empregada doméstica pra poder morar no trabalho. E eram todas bem novinhas. A época que eu fui morar com elas, elas já faziam estágio, já estavam em outro momento.
P1 – Elas eram mais velhas?
R – Já, um pouco mais velhas que eu. E elas eram muito guerreiras, assim. É bem legal. Aprendi bastante com elas também. Com a família delas, que era um povo que na história rural lá, por exemplo, eles perderam a casa várias vezes por causa de vendaval, porque tem uns ventos muito fortes lá. E destruía, eles tiveram a casa destruída umas três vezes e era uma família enorme. Ficavam sem casa, eles mesmos tinham que construir com as próprias mãos novamente a casa. Então, pessoas muito fortes. Elas trabalharam na lida rural desde pequenininha, tinham as mãos bem calejadas, de... não tiveram bonecas. Foi uma vida bem louca também.
P2 – Você conheceu elas...
R – Quando... Eu conheci com 13 anos... Elas.
P2 – Como você conheceu?
P1 – As conheceu?
R – Na escola.
P2 – Na escola?
R – É.
P2 – E como que foi quando vocês se conheceram, como que foi esse...
R – Eu conheci uma delas e... Foi uma empatia de primeira. Depois conheci o resto da família também, gostei de todo mundo, todo mundo gostou de mim. A gente foi indo. Somos amigos até hoje, todos.
P1 – E, depois da briga, elas te ofereceram abrigo ou você...
R – Sim, ofereceram.
P1 – Foi a primeira vez que alguém pediu pra você ficar na casa?
R – Sim. Foi bem legal.
P2 – E pra onde... você foi lá pra casa delas?
R – Fui pra casa delas, que era alugada. Um apartamento alugado e a gente ficou dividindo lá até que eu arrumei um namorado e fui morar com ele. Depois de um tempo.
P1 – Mas, ainda antes disso, você teve teu primeiro emprego, o primeiro trabalho, você comentou. Como que foi isso, esse primeiro...
R – Eu trabalhava com pesquisas, com panfletagem, trabalhei num supermercado, depois trabalhei numa padaria e fui sempre tendo esses trabalhos temporários. Enquanto estudava também. E o primeiro trabalho que fiquei mais tempo foi numa balada. E eu trabalho em balada até hoje. (risos) Eu sempre tive muitos trabalhos, sempre... Não sei se tem a... eu acredito em signo; eu sou geminiana e diz que geminiano é meio, tem que fazer um monte de coisa ao mesmo tempo. Eu sou assim.
P1 – E você falou que conheceu esse seu primeiro namorado, como é que foi quando você o conheceu, foi...
R – Na verdade, foi bem intenso. (risos) Porque ele era muito mais velho que eu; eu tinha 17 anos, ele tinha 32. E tinha um filho, já tinha sido casado um tempão. Ele morava com família, morava com irmãos dele, era muito diferente de mim em tudo que se pode imaginar, que possa ser uma pessoa diferente da outra. E a gente brigava pra... Demais, eu era toda seqüelada, nessa coisa da sexualidade. Nisso foi até uma coisa, um ponto pra ele, porque ele foi muito paciente comigo, teve uma paciência assim... Porque eu chorava, eu surtava, tinha muita dificuldade mesmo. E nós ficamos três anos juntos. Depois, acabou tragicamente... (risos) Eu fui morar com outra amiga. Também que morava com os avôs dela, mas eles eram legais...
P1 – Mas esses três anos que você ficou com ele, você continuou trabalhando e ainda concluiu os estudos também.
R – Sim. Nesta fase que eu estava com ele, eu também já entrei na faculdade, que eu não... Eu fiz um semestre e não quis mais. Porque eu não estava dando conta de trabalhar e a faculdade era particular, porque eu não tinha saco de estudar pra federal, federal é difícil, eu não quis. A minha avó ofereceu pagar meus estudos, mas ela me cobrava muito. Ela dizia: “Não, ____ uma louca, e não vai... esse dinheiro você não está pagando a faculdade, está comprando drogas”, ela surtava... Eu: “Não, está aqui o comprovante”, ela: “Não, você é uma picareta, forjou.” Eu disse: “Ah, vó, então esquece, eu não vou mais fazer nada, acabou, vou trabalhar, eu não preciso do teu dinheiro, vai pro inferno.” E desde essa época eu não falo com essa avó. Essa aí, nunca mais. E...
P2 – Essa avó é mãe do seu pai ou da sua mãe?
R – Mãe do meu pai. É uma pessoa muito... não sei. Não gosto dela.
P1 – Você tinha ainda contato com a sua avó até essa idade e contato com a sua mãe e seus irmãos, você rompeu de vez ou você tinha contato?
R – Não, eu não rompi. Mas toda vez que eu tentava me aproximar, ela arranjava uma coisa, uma briga, uma coisa. Com meus irmãos eu me dou bem. Nós somos amigos, nós temos uma ligação boa, mas ao mesmo tempo, a gente ficou muito desligado, se fala raramente, mas quando se vê, é legal. E quem se importa mesmo de ir até eles sou eu. Eu que vou lá e visito, porque ninguém vem aqui pra São Paulo. Mas eu entendo.
P2 – Eles moram lá ainda?
R – Sim, eles moram, mora todo mundo lá.
P1 – Fora você, ninguém saiu de casa? Naquela época ainda, eles eram bem mais novos que você também.
R – Sim. Não, um outro irmão que eu tenho saiu de casa bem cedo. Ele saiu com 17. E ele também foi trabalhar, já foi trabalhar de pedreiro, conheceu uma menina que era uns quatro anos mais velha que ele, que já estava grávida de outro cara, ele assumiu o filho, casou com ela... Ele estava querendo muito ter uma família. Urgente. E depois, ele prestou um concurso, se tornou carteiro, ficou um tempo como carteiro. Prestou um outro concurso e agora ele é oficial de justiça, mas separou desta outra menina e agora é casado com uma mulher que é 20 anos mais velha que ele. E ele também tem uma banda cover do Elvis. E ele é o Elvis. (risos) É engraçado. A loucura dele. Porque ele é muito certinho, um caretão, todo sério, mas essa é a parte que ele dá uma piada, é legal.
P1 – Deixa eu voltar então. Você ficou com esse namorado três anos, aí agora você só estava trabalhando. Você falou um pouco que trabalhava em baladas, que foi o primeiro trabalho que você teve afinidade. Como é que foi isso, como é que você foi parar aí?
R – Ah, foi em uma balada. Eu gostei muito da balada, então eu disse: “Eu quero trabalhar aqui.” O cara: “Está bom, amanhã pode vir.” (risos) Foi bem assim.
P2 – O que você fazia lá?
R – Eu trabalhava como garçonete, pois tinha uma parte que era da pista de dança e tinha um bar. Era muito louco o lugar, chamava El Perdido, era tudo retrô, cheio de coisa colada, tinha umas paredes de meio de pelúcia rosa, um negócio muito doidão. Era legal. E nessa época eu era careca, era toda assim meio punk, era legal. Tinha a ver com o lugar. (risos) Eu fiquei também, acho que dois anos e meio, três, mais ou menos, trabalhando neste lugar.
P2 – Você falou agora de punk e tudo mais. Quando você descobriu um estilo pra você, uma forma de vida? Foi você que decidiu ou foram suas amizades? O que te fez...
R – Foi mais ou menos nesta época que eu mudei, que eu tinha um cabelão meio de crente, enorme. Era toda meio menininha, depois eu fui ficando mais revoltada e a coisa foi mudando. É careca, um monte de piercings, as tatuagens, começou. Eu comecei a adorar isso.
P1 – E você ficou três anos namorando, trabalhou na balada, depois você ficou muito tempo trabalhando na balada ou você também...
R – Ah, nessa balada foi esse tempo, depois eu: “Nossa, não quero saber de balada, chega.” Eu arrumei um trabalho numa cooperativa ecológica, porque eu sou vegetariana e nessa época, eu não bebia. Foi tanta droga na minha vida, que não fui eu que usei, que eu não quis nem saber. Apesar da balada era bastante, mas eu não. Não usava nada, mas era já louca o suficiente, naturalmente. Eu fui trabalhar nesta cooperativa ecológica e também comecei a trabalhar com pintura. Fui num ateliê, ser aprendiz e tal e trabalhava com a pessoa que pintava e reformava móveis, reciclava móveis. Comecei a entrar neste mundo. Eu trabalhei em ferragem, em loja de pintura predial, _______ decoração, eu fui trabalhando com tudo que era coisa, em salão de cabeleireiro, tinham vários trabalhos, ___________ de manhã, à tarde e à noite também. Me tornei espírita, ia no centro espírita fazer trabalho voluntário em favelas, dava aula de desenho pras crianças. Ia fazer, tinha a sopa do pobre, vários dias da semana ia lá e ajudava a fazer a sopa. E eu conheci um outro cara, que também era bem mais velho que eu, nessa fase que eu estava mais zen, meio querendo o bem do mundo, eu queria fazer trabalhos sociais. Conheci ele. Ele tinha dois filhos, que eram grandes também e eu fiquei três anos. Três anos é a minha... uma... um número assim...
P1 – Um ciclo...
R – É. Fiquei três anos com ele e o cara entrou numa depressão, foi uma história meio pesada, porque uma fase era meio eu que pagava as contas todas e pagava a pensão dos filhos, porque ele não conseguia trabalhar. Foi meio pesado. Foi difícil, assim. Depois desta relação, nunca mais tive uma relação séria com alguém, eu peguei um trauma (risos).
P2 - Um trauma?
R – É, porque foi pesado. Mas, também, foi muito bom, aprendi horrores de coisas.
P2 – Você tinha quantos anos quando você conheceu ele?
R – Ele? Eu tinha 21.
P2 – Vinte e um?
R – E essa relação durou até os 24 anos. Nessa época, eu cansei da vida social, de querer fazer o bem, pois eu vou cuidar de mim, vou ser egoísta, acabou isso aí. Eu voltei a trabalhar à noite; fui trabalhar num bar, e nesta época, eu pintava as minhas roupas. Começou o povo que ia no bar a se interessar pelas roupas. Eu comecei a pintar roupas e vender pra essas pessoas e comecei a participar de eventos. Começou a acontecer um monte de coisa diferente. Rolaram desfiles e tal, aí, começou uma outra fase da vida. Bem legal, deu pra conhecer muita gente, fiquei muito popular. Como na verdade, nunca foi uma... Eu era muito, meio... Comecei com esta história social de gostar das pessoas, mas... Eu me tornei muito popular, conhecia todo mundo, era uma coisa assim. Mudou muito a minha vida essa fase.
P2 – Você gostava de ser assim?
R – Por um tempo, gostei bastante. Depois, não. Tudo uma hora fica chato. Nessa época, eu comecei a beber muito, comecei a fumar, comecei a fazer muita balada, fiquei meio doidona demais da conta. E, também, mas como eu sou meio contra isso, uma hora meio que me deprimiu. Eu voltei meio pra minha... Mas, foi mais duns três anos pra cá que eu me acalmei. Que também, vim pra São Paulo, um monte de balada, um monte de gente nova, eu também. Queria mais é fazer balada mesmo e não queria nem saber de nada.
P1 – Liana, eu vou voltar um pouquinho pra sua fazer zen, que você estava falando... Como é que foi essa fase, porque você já tinha, acho, que um ímpeto, você falou, que você comentou dos seus pais terem sido naturistas na infância, você não poder comer carne, agora você opta por ser vegetariana, por ser espírita, como é que você chegou até esse lugar? Porque a gente ouviu de você, mas a gente não sabe como que foi esse trajeto. Como é que foi?
R – Ah, assim. Vegetariana mesmo, me tornei com 14 anos, porque eu conheci os hare krishnas, eu ia nos templos lá deles e eu comecei a ler como é que os animais eram mortos e tal, fiquei passada, assim... Se meus pais tivessem me contado aquilo, talvez eu “Tá, legal”, nunca mais ia querer saber. Mas, também, eu comecei a comer carne com seis anos mais ou menos e meu corpo sempre rejeitou. Eu vomitava muito quando ia num churrasco, passava mal, mas comia. Quando eu vi como é que era, a coisa do matadouro, “Nossa, caraça, nunca mais, não quero saber!” Eu sou uma simpatizante dos hare krishna, não tenho coragem de ser uma, mas eu simpatizo muito, às vezes vou. O espiritismo, essa minha avó que falou: “Esse carma é teu”, ela era espírita. E eu também, muito pequena, eu freqüentava centro espírita e sempre também simpatizei muito. Aquela história de gente lá fazendo coisa, recebendo espírito, achava aquilo “Uau, que loucura!” (risos) Adorava aquela coisa meio outra dimensão, o mundo dos mortos. E lia os livrinhos infantis espíritas, tinha toda essa história... Uma época, muita coisa ruim aconteceu, coisa do meu pai e eu fiquei com muita raiva do meu pai, _______ ele morreu, eu continuava com raiva dele e não... Eu não tinha muita paz, era muito rancor, tinha raiva de todo mundo, da minha mãe, do meu tio, de todo mundo. Eu: “Ah, tem que ter uma explicação essa história. Por quê? Por que, simplesmente eu nasci e aconteceu isso tudo comigo? Por quê?” Eu queria entender, tinha que ter um motivo, nem que fosse um motivo surreal, não sei, espiritual, outras vidas, carma. Eu comecei a ir no centro espírita pra meio que pra...
P2 – Ter respostas.
R – É, ou pra me acalmar, pra sentir um pouco mais de compaixão, a história do perdão, não sei o quê. Porque catolicismo já nunca me interessou muito. Tentaram me levar para a igreja, fazer catequese. Eu fugi, detestava, não fiz, não quis saber. E já o espiritismo, já achei sempre mais, bacana, me interessou mais. Eu comecei a freqüentar e recebia passes. Comecei a fazer trabalhos junto com o povo todo lá, me envolvi. Teve até uma época que foi interessante, que eu trabalhava num restaurante muito chique, na hora do almoço, alguns dias na semana e nos dias na hora do almoço eu ia servir a sopa do pobre pros mendigos, me dividia. Eu comecei a notar uma coisa muito interessante: que os mendigos, os moradores de rua e as pessoas que tinham muita grana tinham um comportamento meio parecido. Eram muito arrogantes, todos eles. Então... (risos) E isso foi uma coisa, foi uma lição também pra mim, porque às vezes, ______ “Ah, eu estou fazendo um serviço social, estou sendo boa e o ser humano é muito... não sei... não sei”. Não é porque o cara está morando na rua que ele é um coitado, que ele não tem o brio dele, a história dele. Eles eram super mandões, exigentes, tratavam mal a gente, tinham até raiva da gente, porque...
P2 – Mas você sabia _______ de estar lá.
R – A gente tinha casa, comida e roupa lavada e eles não. Eles estavam na rua e tinha muita coisa da lei da selva. Só tinha homens na sopa do pobre, nunca tinha criança e mulher. Eu me questionei: “Por que não tem criança e mulher neste lugar?” É porque eles ameaçavam, eles diziam “Vou quebrar a tua cara, vou te matar, aqui é pra eu comer. É só homem, a lei da selva, lei do mais forte”. Eu comecei a ficar com uma raiva deles (risos). Eu: “Que o quê?! Que nada! Que trabalho social, que nada!” Tinha uma favela, que lá a gente não chamava favela, chamava vila. Era bem pesadona, Pedreira, que chamava. Era um morrão, e eu ia com umas enfermeiras. Tinha um grupo e a gente ia dar aula sobre higiene pras crianças. Criança já é mais bacana, criança sempre, por mais revoltada que seja, tem uma outra visão mais maleável, mais flexível. Nós viemos ______, a gente levava lanche e a aula sobre higiene era: “Vamos desenhar o banho, o chuveiro; isso aqui é o sabonete.” E era bem legal, só que as crianças às vezes eram _____ do caramba, não tinham sapato, estava tudo doente, cheio de piolho, tudo carente, vinha pro colo, ficava abraçando e era uma coisa que eu sofria, porque eu saía sempre muito mal. E um dia teve um tiroteio, quase acertaram um tiro em mim, eu não quis mais ir também. Eu fiquei apavorada assim. Eu não tenho condições emocionais de agüentar isso de vez, ficava muito mal, eu ficava muito mal, aquelas que ficavam com vontade de levar todas crianças para casa e ficar cuidando delas. E não dava assim.
P1 – O mais interessante que a gente não conhece Porto Alegre, mas você andava pela cidade inteira, você conhecia todos os lugares e pessoas...
R – De todos os tipos.
P1 – Fala um pouco pra gente, pra quem não tem ideia de como é Porto Alegre...
R – Porto Alegre? É uma cidade assim... ela é muito plana, tem alguns morros, não é que nem São Paulo, tem muita ladeira aqui. É diferente. E é muita árvore, muito verde, tudo. E tem uns lugares bem perigosos, às vezes tem uma vila no meio de uns bairros mais... com infra-estrutura boa. Por exemplo, neste lugar que a gente ia dar essas aulas, era meio non sense dar aula sobre banho, porque na maioria das casas não tinha banheiro, não tinha chuveiro e as crianças não sabiam nem como era um chuveiro. “O que que é chuveiro?” “O que que é torneira?” Não tinha. Então, era muito louco. Tem esta discrepância também de um desnivelamento social, que tem no Brasil inteiro. Às vezes as pessoas pensam: “Ah, lá é Rio Grande do Sul, tem a melhor qualidade de vida e tal, todo mundo é educado...” e não, isso não é verdade. É que é muito escondido, quase ninguém sabe, nem quem mora lá sabe que tem uma realidade dessas. Gente que não tem banheiro, que não sabe o que é banheiro, que não tem rede de esgoto, que mora numa condição desumana, horrorosa. Meninas de 16 anos com seis filhos, sabe?
P2 – Mas as pessoas que moram lá, elas não querem saber disso ou elas não vão atrás ou...
R – É que é muito marginalizado, é complicado. Muita pobreza. Que condição tem essa pessoa? A pessoa não estuda, é uma marginal, a pessoa vai ter pouca abertura social pra trabalhar, pra não sei o quê.
P1 – Agora vou te perguntar: de onde surgiu você ir para aquela fase das roupas, a ideia de pintar as suas próprias roupas? Isso sempre foi... Como começou?
R – Eu sempre gostei de mexer nas minhas roupas, desde... Eu não gostava de brincar de boneca, mas eu gostava de fazer roupa pras bonecas. Eu criava uns modelos, fazia desfile com as bonecas, cortava o cabelo delas, pintava. E sempre gostei de também ficar transformando. Eu cortava, criava umas coisas. Sempre fui assim. E , quando eu comecei a mexer mais com tinta, comecei a ver que dá pra pintar roupa também. Então eu comecei a pintar roupa, porque houve um interesse de outras pessoas. Começou a rolar. Foi por causa de um menino, na verdade. Ele disse: “Ah, adorei esta camiseta, está muito legal, não sei o quê, eu também faço umas camisetas, eu vendo, quero comprar...” Eu fiquei até desconfiada. “Não, não vou vender, não quero” Ele: “Não, eu quero comprar. Faz um preço, eu compro.” Um dia ele foi participar de uma feira, ele: “Faz um tanto, que eu levo e vendo.” Foi assim que começou. Foi uma pessoa que me incentivou, que me puxou.
P1 – E você fez pra essa primeira feira e depois começou a vender?
R – Começou a pintar um monte de encomenda e foi andando a coisa.
P1 – E você conseguiu viver de renda da venda de camiseta ou você sempre teve mais de um emprego?
R – Sempre tive outras coisas junto. Nunca foi só isso.
P1 – E você não se estabeleceu, porque você viveu várias vezes com várias pessoas, mas tinha uma fase que você morava sozinha, como é que...
R – Teve um momento... Eu morei três anos de novo, sozinha. (risos) Eu e gatas, tinham duas gatas junto. E foi uma época interessante também, porque foi uma de muita criação. Eu comecei a juntar material da rua, como gavetas e comecei a fazer quadros nas gavetas, fui fazer exposições, começou a acontecer um monte de coisa também nesse sentido da arte. Eu comecei a me firmar mais como artista, mas sempre foi uma coisa, não... Eu fiz cursos da prefeitura, de desenhar a figura humana, desenho básico, não sei o que aí me despertou muito a coisa de começar a pintar, de ver materiais, mas foi muito do meu interesse mesmo. E não fiz um curso de formação, faculdade. Sempre foi uma busca minha, assim.
P1 – Do que você desenhava, tem uma vontade, acho que você tinha um gosto, mas quando você desenhava, o que você desenhava? Era pessoal, era só para você? Antes de ser comercial, como que era?
R – Ah, a princípio era só pra mim, mas como comecei a fazer muito e as pessoas gostavam e começou a haver uma abertura, eu comecei a fazer umas exposições um pouco, digamos, marginais, porque há margem para fazer em bares. Como eu trabalhava em bares, tinham uns bares bem... ______ tem uns bares bem bacanas, tem uns bares bem loucos, bem... Tem muita cultura, passa filme, tem exposição, tem uma... um movimento cultural bom lá. Eu comecei a fazer muita exposição e as minhas camisetas, também eu fazia varais nos lugares, fazia fotos e me juntava com outros artistas. A gente fazia umas histórias juntos, era bacana.
P2 – E as suas artes era pra passar alguma mensagem sua ou era só...
R – Ah, sempre teve, a mensagem... No começo pintava muito umas figuras sem rosto, com muito movimento... é que vai se transformando, hoje em dia já não é assim. Exatamente. Tem... a base é a mesma, porque é um desenho que depois que eu fui olhar coisas mais antigas minhas, é um desenho que eu fazia quando eu era pequenininha. Ele ressurgiu depois, porque eu acho que quando a gente para, alguma coisa para naquele ponto, quando vai retomar, vai retomar no mesmo ponto. Então, a coisa que eu sempre fiz em uma figura do feminino muito forte, umas bonecas, umas dançarinas, gato, muito gato, sempre teve muito gato... Entrou um motivo, isso é mais recente, entraram caveiras, órgãos agora. Intestino, coração, entrei numa fase mais revoltada, de mal com a vida, comecei a ficar meio ácida. Mas sempre teve assim uma... O princípio era passar cor, movimento, alegria, coisa das bonecas, passar sempre uma boa vibração para as pessoas, uma boa ideia.
P1 – Você começou a fazer exposições e você resolveu vir pra São Paulo em que momento disso tudo?
R – Não sei, a vida estava super boa, mas eu queria ir embora de Porto Alegre, porque Porto Alegre é uma cidade muito... o povo é muito tradicional e bastante machista, bastante mesmo, muito chato. E eu sempre fui muito discriminada, tanto que eu me tornei meio punk, careca, não me depilava, então a galera, nossa, a galera ia à loucura. Causava socialmente e eu achava que deve ter um lugar que seja mais legal de viver do que aqui, sabe? Eu vim conhecer São Paulo, porque eu vim visitar uma amiga que morava aqui. Eu: “Nossa, que loucura, muito louco...” E gostei, achei... me identifiquei. Não, vou dar um jeito de morar em São Paulo. Comecei um processo de me preparar mesmo, trabalhar bastante, guardar dinheiro, vender minhas coisas todas que eu tinha, entregar meu apartamento. Só que nesse meio tempo, surgiu um amigo, ele disse: “Ah”, ele estava morando em Portugal: “Olha, tem casa e tem trabalho aqui em Portugal”, em Lisboa. Eu fiquei numa dúvida cruel, porque eu tinha gostado muito de São Paulo, mas Lisboa me pareceu uma aventura maior, mais louca. Nesse meio tempo, o bar que eu trabalhava, eles tinham me demitido sem mais nem menos, eu estava processando Eles estavam uma confusão, a minha vida... Eles eram uruguaios. Eles ainda estão vivos. E eles eram envolvidos com a galera meio da pesada. Eles me ameaçaram de morte, umas viagens. Foi muito louca essa fase.
P1 – E você não foi para Portugal ou ou foi?
R – Eu fui. Cheguei lá, arrumei um trabalho num café. Estava morando num lugar, fui com uma amiga, que ela também foi na mesma pegada que eu. Mas era ilegalidade. Aconteceu uma coisa muito louca (risos), não era para ficar lá mesmo, porque a gente foi numa festa e até estava o Alexandre Frota lá na festa, porque ele é idolatrado em Portugal, não sei por quê. Que horror! (risos) E a festa estava terrível, uma festa do capeta, aquilo, a gente foi embora. Nós começamos a caminhar, no Rio Tejo, é tudo muito ermo lá, tem muita gente velha, não gostei muito de lá. E eles têm muito preconceito com brasileiro, com brasileira principalmente, porque a prostituição das brasileiras lá é forte. Enfim, eles colonizaram o Brasil, eles não esquecem disso. Nós estavamos caminhando e lá o povo é machista pra caramba também. Estava um carro acompanhando a gente, tinha uns caras incomodando e como eu e ela muito brancas de olho claro, a gente não parecia ser brasileira, se a gente não abrisse a boca, eles não iam saber. Só que chegou uma hora que eu me irritei e disse: “Vai embora, seu bosta, sai daqui, inferno!”. Eram dois caras portugueses mesmo. O cara: “Ah, uma brasileira, ah prostituta, vagabunda!” Veio já pra cima pra me bater, eu saí correndo, minha amiga foi tentar me defender, _____ bateu nela. Eu _____ parar tudo que era... que só passavam carros, não tinha nada, nenhum lugar aberto, não tinha nada. Acabou parando um ônibus, ela já estava no chão já sangrando. Tinha um me segurando no braço, me falando um monte de coisa. Um pesadelo. A gente entrou no ônibus, os caras vieram atrás de carro, seguiram o ônibus, minha amiga chorando, em estado de choque: “Cara, o que está acontecendo?!” Nós vimos uma padaria aberta. Nós entramos, descemos do ônibus, entramos na padaria: “Chama a polícia.” O cara não fez nada, que era um senhor português, não quis saber. Uma senhora: “Ah, são brasileiras.” Não quiseram ajudar. E essa minha amiga tem um visual muito diferente do meu, ela é toda, meio fatal, usa decotão, batom vermelho, sei lá, estavam pensando mesmo qualquer coisa. E os caras ficaram esperando um tempão a gente sair desta padaria. Foi muito louco, muito ruim. E depois que eles foram embora, nós fomos atrás da polícia. Entraram três policiais, um carro estava atrás deles, então: “Lembra da placa?” “Não, não lembro da placa.” Não tinha como guardar uma placa naquela situação. Eles começaram a _______ o oposto do que eu tinha dito e começaram a falar: “Nós não queremos brasileiro aqui.” “Vocês têm que ir embora.” “Estavam andando na rua a essa hora por quê?” E que mais? Nos largaram nos quintos dos infernos, tirando o maior sarro da nossa cara. Foram embora. Foi muito ruim isso.
P2 – E você estava lá já fazia quanto tempo em Portugal?
R – Nem um mês, fazia. E isso se deu bem na mesma época que teve... Tem uma praia que se chama Carcavelos e teve um arrastão nesta praia. Roubaram todo mundo que estava na praia, as bolsas e tal. Eles atribuíram isso aos brasileiros, mas na verdade foram africanos, porque Lisboa se divide em três partes a população: os portugueses, os africanos e os brasileiros. Os africanos e os brasileiros, porque são os colonizados, são super maltratados, tratados com muito preconceito, mas eles estão lá, dominando. Tem muito nordestino, muito! Só se escuta axé. Vamos no ______ os botecos ouvindo axé, é muito louco. _________ acredito. E lá tem muito neonazista, na Europa toda tem. E eles fizeram um movimento neonazista, fascista, pra pegar os brazucas e bater e começou a sumir um monte de brasileiro. Ser espancado na rua, nossa, uma coisa , que...
P2 – Em que ano foi isso? Você lembra?
R – 2005. E ninguém fica sabendo dessas coisas, só se vai até lá. Um negócio super bloqueado, isso acontece em vários outros países também. Mas foi tristíssimo. Às vezes, a pessoa: “Ah, tenho um amigo que foi morar na Europa, ô, Disneylândia.” “Não, não é, é difícil”. Se não tem uma cidadania, até com cidadania é complicado. É brasileiro de qualquer jeito, tem um passaportinho brasileiro, já.
P2 – Por causa disso tudo, você resolveu voltar?
R – Eu voltei, vim pra São Paulo diretamente. Fiquei um pouco na casa desta minha amiga; eu tinha uma amiga e um amigo aqui. Arrumei trabalho já na primeira semana, que foi um lugar que eu fiquei trabalhando anos, que é o mesmo grupo de pessoas com quem eu trabalho até hoje. Foi uma balada, eu trabalhei no (Milo Bar?), ____, quando eu cheguei. Foi o primeiro trabalho e consegui com as roupas, houve um... Rolou muita coisa legal, saí na Folha de São Paulo com as minhas coisas. Foi muito legal, aconteceu muita coisa bacana depois que eu vim morar aqui.
P1 – Eu vou voltar para Portugal, desculpa, é que eu perdi... Você, depois que os policiais te abandonaram, naquele lugar, você e sua amiga, vocês vol...
R – A gente foi no consulado reclamar, mas não adiantou nada. A minha amiga ficou muito mal, eu também, dois dias depois, eu estava no avião voltando. Não quis mais ficar lá.
P1 – Vocês tinham um amigo lá, o que que tinha...
R – Eu tenho um amigo que vive lá até hoje e... Não, ele ficou muito chateado, mas ele não queria fazer também. Ele: “Não, mas tenha calma, todo mundo passa por perrengue no começo, tem que ter calma.” E eu não tive calma, eu não fiquei nem um pouco calma, eu disse: “Isso não é vida, isso é vida pra barata, na boa, eu não quero saber disso aí, senão não serve”.
P1 – No fundo, essa cultura tradicionalista é a mesma coisa que você passou no rio Grande do Sul?
R – Sim, as mesmas coisas. Não sei. São Paulo tem uma coisa mais interessante de ser todo mundo mais nivelado, as mulheres trabalham, as mães. Porto Alegre tem horrores de dona-de-casa, impressionante.
P1 – Sua amiga voltou junto com você ou não?
R – Não. Ela foi pra Espanha. Depois ela foi pra Nova Iorque, que é onde ela está até hoje. E eu vim pra cá.
P1 – E aí, chegando aqui, financeiramente, como você estava? Você teve dinheiro pra passagem...
R – Tive, a passagem já deveria estar comprada, sempre tem que comprar a passagem de volta, não é permitido comprar apenas ida, porque eles não querem que as pessoas fiquem lá. No geral, compra passagem de volta, mas fica lá e perde a passagem. É assim que a galera faz. Este é o esquema.
P1 – E você chegou aqui e você se estabeleceu na casa deste amigo e como é que foi essa primeira chegada, sair do Rio Grande do Sul, sair de Portugal e chegar aqui em São Paulo? Você conhecia um pouco, mas você falou das diferenças.
R – É, conhecia um pouco, eu estava bem __________, meio triste, desanimada, mas eu cheguei indo à luta. Não deu muito tempo, já fui atrás de tudo que eu estava interessada em fazer, lojas pra vender as roupas, lugar pra trabalhar, já cheguei arrumando currículo e já indo embora procurar lugar. Morei em diversas casas (risos), cansa só de pensar. Quando fui embora de Porto Alegre, tinha um namorado. E eu fiquei triste, fui pra Portugal, ficava: “Ah, aquele namorado, eu gostava dele.” Quando eu vim pra São Paulo, ele veio logo depois. A gente foi morar juntos, mas não deu muito certo. E, pra cá, a vida toda era diferente, muito perrengue. Estavam difíceis as coisas, o começo é difícil, não estava ganhando muita grana e tinha gastos em euros de dinheiro. Então, realmente, dá uma desfalcada. Eu morei com ele um mês, numa casa que morava um chileno, um uruguaio, era uma loucura a casa, era...
P1 – E onde que era, aqui em São Paulo?
R – A primeira casa que eu fiquei um tempo, temporariamente, foi na casa dessa minha amiga, ela morava na Brigadeiro com a Paulista. Era bem localizado, assim pra tudo que era lado. Depois, eu fui pro Bexiga, que é essa casa com essa galera doida aí. Depois, eu fui morar no Paraíso com uma menina que eu encontrei, que era de Porto Alegre, que eu não via há anos. Encontrei ela na rua, fui morar na casa dela. Eu fiquei uns meses lá. Logo eu conheci um cara que estava alugando a casa, tinha uma casinha atrás da casa dele, num como é que chama esse?
P2 – Edícula.
R – Isso. Morava na edícula da casa, lá eu fiquei um ano e alguma coisa, também foi bem legal morar nesta casa. E o cara era pianista de um grupo de teatro, do Teatro Oficina. Era muito bom, tinha um quintalzão cheio de árvores frutíferas. Foi uma boa época. Depois, fui morar no Sumaré, que é onde eu moro agora. Morei numa casa, casa mesmo...
P1 – Sozinha?
R – Não, morei com uma amiga, até que eu resolvi surtar de novo e fui pra Europa de novo (risos). Eu morei um ano e tanto nessa casa, tinha sociedade com essa amiga. A gente estava brigando, começou a brigar, em determinado momento, a gente se dava muito bem, daqui a pouco, as coisas não deram mais certo. E eu resolvi sair do Milo, que era onde eu trabalhava e romper a sociedade e ir pra França. “Vou pra França”. (risos) Eu falava muito pouco francês. Foi uma grande aventura, eu tinha uma história também com um cara, não chegou a ser um namoro, mas eu gostava dele, sempre quando eu estou prestes a viajar, arrumo algum namorado pra incomodar, atrapalhar. (risos) Eu fui, viajei, fiquei dois meses viajando pela Europa. Eu fui pra Espanha, fui pra Turquia, pra Finlândia, pra Alemanha e pra Grécia, pro Chipre, fui pra lugares muito doidos. Porque no meio da viagem, também veio esse namorado, a gente viajou junto. Depois eu fiquei sozinha um tempo, fiz amigos, viajei de carona, expus legalmente em vários lugares. Foi muito legal. Foi bem legal mesmo. Só que eu estava... Quando eu vim morar em São Paulo, bem no começo da minha estadia aqui tudo, eu fui roubada na 25 de Março, roubaram meus documentos e fizeram um cartão de crédito no meu nome e começou... Eu tive muitos problemas com a justiça. Eu comecei a processar vários lugares por terem aceito esse cartão, que era fraudulento. E até hoje eu estou ainda processando lugares, porque não para de aparecer protesto. Então eu estava viajando, eu estava nesta viagem, __________ lá: “Tem uma audiência e tem que voltar, porque não tem como ir lá” “Ah, não...” Eu voltei; “Não, mas depois eu volto”, porque eu já estava decidida a ficar na Espanha. Queria ficar lá, que nada, vim pra cá, o namorado já estava aqui, eu estava numa instabilidade só. Eu tinha me desfeito de todas as coisas outra vez, que nem eu fiz em Porto Alegre, não tinha nada, tinha roupas. Eu fiquei meio perdida, porque não era muito o plano meu. “Quer saber? Já que eu ia continuar viajando pela Europa, agora vou viajar pelo Brasil”. Comecei a viajar por vários estados, pro Mato Grosso, conheci os índios xavantes, que esse colarzinho deles. Fiquei apaixonada lá pelo lugar, o Mato Grosso é maravilhoso. Fui num encontro de 20 etnias indígenas. Conheci os índios do Xingu, os caiapós... oi?
P1 – Onde foi o encontro?
R – Foi em Canarana, no Mato Grosso mesmo. Eles me pintaram. Eu fiquei: “Nossa, eu quero ficar aqui! Eu quero ficar com os índios, eu quero virar índio, eu não quero mais voltar pra São Paulo, aquela loucura”. Eu estava muito confusa sobre... me questionando muito. Viajei, fui pro sul, para Porto Alegre, pra Curitiba, Florianópolis, depois Rio de Janeiro. Eu fiquei viajando, pra lá e pra cá. Eu fui pra Minas Gerais, uma hora cansei de tanto viajar, voltei pra São Paulo, fiquei uns meses, morei um tempo com esse namorado. Mas logo a gente começou a se desentender muito, porque ele tem um problema com bebida alcoólica. Bebe demais, eu não segurei a onda. Enfim, fui morar nesta casa que eu estou agora, que é de uma amiga minha. Fiquei um tempo morando, fiz vários trabalhos freelancers, tanto na balada, na (Nói?), quanto com desenhar pra uma marca de surfe radical que chama MCD. E eu fiquei desenhando pra essa marca, juntei uma grana e “Não, eu vou pra Argentina agora”. (risos) No final de 2008, eu fui pra Argentina, fiquei lá uns meses. Esse namorado foi atrás de mim, abalou as estruturas. Eu: “Não, então eu acho que eu vou voltar pra São Paulo”. Me roubaram os documentos de novo...
P1 – Na Argentina?
R – É, eu lá, estrangeira sem documento. Eu fui levando a vida, também expus lá, aconteceu muita coisa bacana. Conheci muita gente boa. Adorei Buenos Aires, viajei pelo interior... Eu estava: “Vou voltar pra São Paulo pra fazer meus documentos.” Eu briguei com esse namorado de novo, ele foi embora de lá. Eu vim pra cá, fiz os documentos de novo, comecei a arrumar outros trabalhos. Eu fui ficando, rolou uma exposição, ah, eu vou ficando e estou aqui. (risos)
P1 – É... eu vou voltar bastante. Porque você ficou aquele período... Você falou um pouco de São Paulo, da primeira vez ainda que você veio pra São Paulo, você basicamente trabalhou e juntou dinheiro... Você viveu na... teve uma época que você ficou sozinha, mas quando você foi pra Europa, conta pra gente com um pouco mais de detalhe, como que foi essa viagem pra Europa, como é que foi se manter lá, coisas engraçadas, coisas difíceis que aconteceram...
R – Bom, nesse... O dinheiro pra ir pra lá, por exemplo, foi o Milo, né, onde eu trabalhava. É uma balada diferente, porque as baladas costumam não assinar carteira. Ele também não assinava, mas ele pagava férias, pagava 13º e pagou uma grana quando eu saí também, quando eu decidi ir embora. Eu já tinha juntado dinheiro, então eu pude ir , com uma certa tranqüilidade. Quando eu cheguei em Paris, eu encontrei uma amiga, que eu namorava um francês, que era do interior da França, eu fiquei uns dias em Paris, estava tendo um festival lá de música e nós arrumamos lugar também pra expor, que ela também fazia um trabalho com ______ colares e tal. A gente conseguiu expor numa loja, foi super legal. E depois nós fomos viajar pelo interior da França. Fomos para a casa dos pais deste namorado dela, eu aprendi meio que a falar francês na marra, porque ninguém no interior fala inglês, ninguém. Português, então, nem pensar. (risos) E foi muito legal a viagem, embora eu estivesse angustiada, porque eu estava com medo, cheia de dúvidas, de eu ter largado toda a minha vida que estava legal aqui em São Paulo e de me jogar assim na incerteza daquele jeito. Nós viajamos de carro por várias cidades, fomos visitar vinícolas lá em Bordeaux. Foi uma viagem de sonho, eu sempre quis fazer. Sempre fui encantada com a França, aquela coisa. Depois da França, nós fomos de carro até a Espanha. Nós fomos para Barcelona, em Barcelona chegou esse namorado; ele trabalha com Comércio Exterior, então ele viaja muito. E ele é já de um outro mundo, que é diferente do meu mundo. Ele trabalha. Ele vende madeira brasileira pra Arábia Saudita, pro Egito. Eu já nem sei qual é que é muito deste negócio aí, mas tudo bem. (risos) É a vida do cara. E ele tinha várias reuniões de negócios em países muito doidos. Ele: “Ah, eu tenho que encontrar um cliente na Finlândia, outro no Chipre, outro na Grécia, outro na Alemanha, outro na Turquia”.
P1 – Vamos. (risos)
R – Eu: “Ok, beleza”. A gente fez um pacote lá de viagem aérea e eu fui indo com ele e conheci outro planeta. O planeta do business, do povo desse nosso mundo que tem muito dinheiro, é uma coisa. Eu sou muito curiosa, eu gosto de conhecer os mundos. E foi interessante, mas eu não gostei muito. Foi interessante com certeza. Aprendi alguma coisa. E depois desta eu fiquei mais ou menos um mês nesta coisa, nessa volta com ele. Voltei para Barcelona, fiquei em Barcelona mais um tempo. Eu estava já vendo trabalho, estava a fim de ficar lá. E eu tenho uma amiga que mora lá, que é uma grande amiga. Ela estava me ajudando a conseguir as coisas e eu falo espanhol bem assim e ao mesmo tempo eu estava morrendo de medo, mas queria ficar, estava uma confusão. Confusa a minha ideia. E essa viagem firmou muito a minha relação com o cara, eu gostava dele, eu pensei: “Se eu ficar em Barcelona, não vou ficar com ele.” O advogado chamou, meio que tudo juntou e eu: “Ok, se for o caso, depois eu volto”. Não voltei, fui pra outra... Horrores de outros lugares e não voltei. É mais ou menos isso.
P2 – Essa viagem que você fez com ele, nesse mundo diferente do seu, o que que você ali viveu, alguma coisa que te marcou, o que que...
R – Não sei, por exemplo, a gente ficava em hotéis caríssimos, eu me sentia super mal. Porque não era eu que estava pagando aqueles hotéis. Eu não gosto de ser bancada. Me incomoda muito. E eu não achava que fosse meu mundo aquilo, não é o meu mundo. E eu gosto de viajar, ficar na casa das pessoas, pra conhecer como é que é o dia-a-dia, eu gosto de conhecer os hábitos do povo. Quando vai pra um hotel fica uma coisa meio turista, não conhece as coisas direito, sabe? Daquele mundo de luxo, de exagero, aquela... Uma comida qualquer custa uma nota, eu achava aquilo um absurdo, e aquilo me revoltava. Então eu estava, mas eu estava é contrariada, assim... E acabava discutindo muito com o cara. Ele: “Ah, mas eu tenho muito dinheiro, não precisa se preocupar com isso, a gente tem que curtir.” Eu: “Não, isso não é curtir”, ficar pagando um preço abusivo para uma coisa que eu acho que não vale, sabe? Então, a gente ficava sempre na discussão de filosofias de vida, ele do mundo dele e eu do meu, sabe. Ele não entendia porque também eu não curtia, era bem complicado de se entender.
P1 – E você voltou e saiu viajando pelo Brasil?
R – Sim.
P1 – Outra pegada agora.
R – É porque, como eu estava meio nessa coisa de instabilidade, e essa minha relação era uma coisa que não era muito assumida, estava eu, minha mala, minha cuia, tudo na casa do cara e ao mesmo tempo eu não sabia se queria realmente aquilo e eu: “Ah, eu vou viajar pelo Brasil pra lugares que eu sempre quis ir e depois eu penso o que eu vou fazer”. (risos) E levei.
P1 – Então a gente estava falando agora da viagem pelo Brasil, você estava falando.
R – Ah, mas tem um detalhe interessante, que na verdade é muito importante sobre a viagem de ir pra Europa, tudo. Foi que eu comecei a ter um problema no ovário, e eu sou meio dramática, achei que ia morrer. (risos) Bom, já que eu vou morrer, vou viver do jeito que eu quero, vou fazer tudo que me der vontade. (risos) Eu não vou... Vou me jogar por aí. Umas das primeiras coisas que aconteceu foi eu saltar de pára-quedas, sabe... (risos)
P2 – Isso tudo aqui?
R – Eu comecei: “Ah, vou me jogar, vou enfrentar o desconhecido e ver o que acontece”. E aconteceram só, na verdade, coisas muito boas; conheci gente muito legal saltando de pára-quedas, foi incrível e... Mas sempre rolava um medo. Eu estava... tinham dois corações: um que era da aventura, outro da tristeza, porque eu achava mesmo que ia morrer. E, enfim, estava uma coisa meio dividida. E, bom, isso é um detalhe.
P1 – Mas você teve uma volta, você acompanhou o resultado do ovário, desses problemas?
R – Na verdade, existe um problema, mas agora ele está mais controlado. Eu estava tendo muita hemorragia quando vinha a menstruação. Eu ficava com uma hemorragia violenta, eu ficava mal, não conseguia levantar da cama. Quando eu estava na Espanha, eu fiz amigos lá, amigos assim. Quando eu eu fui pra Portugal também, passei por Portugal. E conheci num festival de música um cara. Eu ____ achei o cara tão interessante, ele tinha um visual muito louco, eu cheguei: “Nossa, muito legal a roupa.” Acho que ele nem entendeu o que euestava falando. Ele era brasileiro! (risos) _____ Curitiba. Nós ficamos amigos. Eu falei: “Em breve eu vou pra Barcelona.” Ele: “Ah, eu também, então, a gente se encontra lá.” A gente se encontrou em Barcelona depois, e ele me apresentou um outro cara que também era de Curitiba, que era casado com uma espanhola, que estava morando lá. Eu fiquei muito amiga dos dois, a gente viajou de carona pelo interior da Espanha, lá na Catalunha. A gente foi visitar a casa de Dali. Foi super aventura. E a mulher deste menino tinha um apartamento numa praia lá, nós fomos naquele apartamento e lá eu fiquei doente pra caramba e os dois cuidaram de mim. Demais. Foi muito legal a amizade com esses... E um deles foi interessante, porque ele era a cara do meu pai. Eu nunca tinha encontrado uma pessoa que fosse parecida com o meu pai. Me lembro que quando eu conheci ele, achei... Fiquei meio “Aaah... Estranho”. E ele cuidou de mim. Ele fazia a comida, sopa, eu doente, ele cuidando de mim, parecido com o meu pai, foi meio estranho aquilo. Depois quando eu fiquei boa, nós fomos para a praia e a gente conversando, ele: “E aí, Liana, tem encontrado muitos espectros por aí?” Rindo, eu achei muito sinistro a pergunta, eu disse: “Ah, eu tenho!”. (risos) Mas nunca fiz o comentário pra ele, porque ele foi, na verdade, um pai. Naquele momento pra mim, que meu pai nunca foi, sabe? Foi interessante, foi como uma... essa viagem foi (ótima?), teve muita simbologia, de retomada de várias coisas, porque eu lembro que num momento eu: “Puxa vida, eu vim até aqui e eu vim junto, né, pô, queria ter me deixado pra trás”, porque eu estava com todos os meus tormentos e as minhas dúvidas e os meus fantasmas, todos viajando comigo. Do que adianta estar tão longe e no fim estar tão perto, com a cabeça ainda nas mesmas questões. E foi bem... teve muito resgate, muita coisa foi legal.
P1 – É, eu vou retomar o Brasil, então, pra gente falar um pouco da viagem do Brasil. E você voltou, mas isso, você falou agora, é bem significativo, você nunca se deixou, mesmo estando na Europa...
R – Sim,estava presa.
P1 – E a viagem no Brasil teve também um pouco disso ou não?
R – Teve, eu estava meio... Continuava na coisa de me... Eu estava me julgando pra tentar encontrar um sentido maior pra minha vida, que eu, em determinado momento, achei que minha vida estava muito sem sentido algum. “Minha vida está sem graça”, eu comecei a ficar deprimida, achar São Paulo um lugar frio, todo mundo robotizado, “dinheirista”, e o ego, e as coisas, e a aparência e não sei o quê. Comecei a ficar numa grande crise. Junto com a coisa do ovário, quem sabe sou a favor do lugar, as coisas mudam de prisma e eu encontro novamente um sentido pra minha vida, pra continuar caminhando, porque eu, na verdade, estava pensando em me matar. Se eu não morresse, eu me matava. (risos) Eu estava de saco cheio de tudo. Eu vou voltar pra Europa mais uma vez, depois a gente volta pro Brasil, porque eu lembrei outra coisa. Eu, na Espanha, estava numa casa que tinha uma banheira. E eu tramei meu suicídio, como seria, uma forma fácil de me matar, que não fizesse muita sujeira, que fosse uma... Eu enchi a banheira, a água bem quente, corto assim o pulso. Estou lá, a água está quente que é amortecido, o sangue sai rápido e eu morri. Acabou, olha que beleza. Ninguém vai saber por que eu estou aqui. Eu jogo fora os documentos, fico de indigente e deu. Nesse dia que eu estava pensando, isso que é bem mórbido, mas acho que de vez em quando as pessoas pensam esse tipo de coisa. E eu fui expor num parque lá, que é o Parque Guell, que é um parque muito doido que tem em Barcelona, muito bacana... Estava expondo e veio um hare krishna, novamente os hare krishnas na minha vida (risos). Ele veio, tinha um olhar super profundo. Ele: “Ah, vamos lá no templo comigo.” Eu fui. Ah, por que não? Eeles me deram um instrumento, eu toquei, dancei, comi, uma festa, ah, que beleza. Estava me divertindo. Veio o monge deles lá, mais velho, olhou pra mim: “É, vou te falar uma coisa: não adianta se matar.” Eu fiquei pensando: “Será que está escrito na testa isso.” Ele: “vai continuar existindo, não tem como fugir. Você não está sendo muito criativa. Existem muitos caminhos pra se escolher e pode escolher outra forma de viver, mas fugir não vai adiantar, porque não tem como fugir.” Eu fiquei “Ah... tá bom”. Desencanei da ________, continuou a história do Brasil. Eu: “Ah, pô, tanta viagem pra Europa e não conheço o Brasil direito. Bom, eu preciso conhecer o Brasil”. Porque o dinheiro que eu ainda tinha pra viajar pela Europa, eu usei pra viajar aqui. E também levei minhas coisas pra vender, vendi, fiz feiras no Mato Grosso e fiz vários contatos com vários estados, por Brasília também e encontrei amigos. Em todos os lugares que eu fui, tinha alguém que eu conhecia já. Alguns também não, no Mato Grosso foi bem aventura. Eu tinha uma amiga pela internet, uma coisa Orkut, que ela era a única pessoa que eu conhecia lá, que eu nunca tinha visto ela na minha vida, nem por foto. Ela foi me buscar quando eu cheguei. Não tinha rodoviária, parava numa estrada assim. Ela chegou motoqueira, lá todo mundo é motoqueiro. _____ me buscar, nossa, aventuras... Louquíssimos, que lá todo mundo é muito de fazer aventuras na natureza mesmo, de descer com boia na corredeira, lá no rio. Tem um Rio das Mortes, que tem uma correnteza super forte, um monte de gente morre... Eu desci de boia aquele rio e eu saltei de pedra em cachoeira. Eu estava assim na da aventura,.estava querendo realmente fazer coisas, que eu teria medo de fazer em outro momento. Ir de moto por estradas de chão batido, ia numas cachoeiras muito doidas e conhecendo aquelas pessoas que no geral, quem vê, fica com medo. Porque eu lembro quando eu disse pra algumas amigas que eu ia pro Mato Grosso, “O quê? Mato Grosso sozinha? Está louca? Só tem homem lá! Só tem jagunço, só tem não sei quê...” (risos) E eu: “Ah, nada a...”. Realmente tem muito homem e se for levar pelas aparências... Nossa, um povo maravilhoso, super acolhedor, fui super bem tratada, nossa, foi demais, fiquei apaixonada. Eu fiquei em Nova Xavantina, que é uma cidade bem pequenininha. Mas tem gente de outros lugares, por ser uma cidade também universitária. Tem umas faculdades lá. E árvores de manga, caju pela rua, “Ai, pega aqui caju, manga ali”, eu: “Nossa, essa daqui é o paraíso!” As pessoas todas sorridentes e amorosas, eu: “Nossa, isso daqui é demais!” E tinha gente que não... tinha bastante gente de São Paulo morando lá, pessoas que já tinham morado nos estados Unidos, no Japão, tudo morando lá. “Não, aqui é o melhor lugar pra se viver” “É aqui que eu vou morrer, eu fico pra sempre”, sabe pessoas que já foram fora, pessoas de lá mesmo, mas muito interessante. E é legal ir conhecer um lugar diferente, bem diferente do Rio Grande do Sul, não tem nada a ver, bem diferente daqui. O Brasil é muito rico. Cada estado tem a sua...
P2 – Diversidade.
R – É, muito legal. Mas, assim...
P1 – Por que você resolveu sair do Mato Grosso, por exemplo, e ir para outro lugar?
R – Porque... Bom, por causa deste namorado que eu tinha em São Paulo, eu voltei porque eu ia voltar, mas eu estava muito naquela dúvida: “Não, Mato Grosso é legal, mas como eu vou viver no Mato Grosso?” Depois de um tempo, não ia mais conseguir ganhar grana com a mesma fonte, é difícil falar. Não tem trabalho naquela cidade, tem pouco. Lá tem frigorífico pra trabalhar, tem a faculdade, dá pra dar aula, ou fazer aula na faculdade, ter uma bolsa, mas é difícil e... Pra viver de vendas, que por algum tempo seria, mas depois quase não precisa de muito dinheiro lá, não precisa mesmo. Mas eu não ia me sentir bem pensando que em breve eu não poderia mais ter uma liberdade de ir e vir, sabe? “Não, eu vou, vou voltar pra São Paulo, vou juntar uma grana, vou voltar, comprar uma casa”, porque lá tem casa que custam oito mil reais. Eu compro uma casa e fico de boa. Fico vivendo de rendas... Mas com o tempo, as coisas mudaram outra vez. Ainda penso nessa... Isso é um projeto. Mas não é pra já. Mas ano passado eu fui outra vez, fiquei um tempo lá, expus num evento que teve, fiz muitos amigos. Adoro, mas é um projeto que vai levar um certo tempo.
P1 – E desta volta pelo Brasil, você chegou a passar em Porto Alegre, você falou também.
R – Passei, fiquei um tempo.
P1 – E como é que... você revê seus irmãos, eles sabem de tudo da sua vida, esses movimentos todos?
R – Eles sabem, eles acham que eu sou louca. (risos) Eu sou a irmã louca, ________ bem mais certinhos, mais... Têm um estilo mais... não sei, comparando com o ____ mais padrão...
P1 – Eles nunca saíram de Porto Alegre?
R – Não. Eles, nossa, eles acham que eu sou uma doente doidona, que eu vou me jogando, que eu vou pra tudo que é lado.
P1 – E a volta pra Porto Alegre foi difícil?
R – Sempre é. Eu fui muitas vezes nesse meio tempo e sempre depois de uns dois dias começo a me sentir mal, começo a querer ir embora de lá. Começa a me dar um desconforto.
P1 – Você chegou a rever a sua mãe? Voltar e vê-la?
R – Sim. Nós iniciamos uma nova forma de vida de uns anos para cá. Nós fizemos um acordo mesmo, que, como mãe e filha, a gente... Não se criou um vínculo, ela meio que “Ah, eu sou a tua mãe, e ta-ra-ra.” Eu disse: “Não, eu não te vejo tanto como mãe, me desculpa, é difícil.” Então, acho que nós podemos ser amigas, nós somos mulheres, adultas e nós podemos começar outra coisa.
P1 – Ela vive sozinha em Porto Alegre?
R – Ela vive com dois dos meus irmãos e é isso. Mas ela é muito solitária, fica muito dentro de casa, vendo televisão, é... Está sempre doente, enfim, mas é uma mulher jovem ainda, tem 52 anos, mas meio que desistiu de viver. É uma pena, mas... Enfim, com o tempo de repente...
P1 – E você comentou da volta pra São Paulo e aquele namorado... Como é que foi? Depois que você voltou pra São Paulo e agora você se estabeleceu aqui.
R – Eu acabei indo morar com a minha amiga, porque esse namorado na verdade ia atrás de mim nos lugares só pra me incomodar mesmo. Depois ele sumia, a gente brigava muito sobre essas questões da diferença de estilo de vida... Só que nós tivemos diversas recaídas, até novembro do ano passado, que nós brigamos fisicamente. Ele quebrou meu nariz, nunca mais. (risos) Foi _________ é foda.
P1 – Você não falou da Argentina, a gente não falou... Depois de você viajar no Brasil, você foi pra Argentina também.
R – Sim, fui pra Argentina, com a intenção de ficar lá, trabalhando, estudar, tudo e... Porque lá é mais fácil de ficar, dá pra ficar legalizado com muita facilidade. Do Mercosul. Aquele acordo. E, eu estava lá, estava tudo certo. Mas o cara chegou, balançou lá as minhas ideias, me roubaram. Eu não tinha... roubaram o meu cartão do banco, eu não tinha como tirar meu dinheiro e estava mais difícil de conseguir trabalho, porque realmente a economia na Argentina está bagunçada. Difícil o negócio. Lá, o dinheiro é desvalorizado em relação ao nosso, então, como eu tinha as minhas economias, eu estava numa boa a princípio. Mas logo como eu não podia tirar o dinheiro. Como que eu ia pagar o aluguel, eu fiquei muito confusa. Eu: “Não, eu vou voltar pra São Paulo, pelo menos pra resolver essas coisas”. E, como eu cheguei e apareceu um freela legal pra fazer, apareceu uma exposição pra fazer, que era legal também, eu fui ficando. E não voltei mais pra Argentina. Mas eu também adoro a Argentina, é show. Bacanérrimo lá.
P1 – De todos esses lugares, qual foi o lugar mais marcante que você já esteve, que você fala: “Não, esse lugar...”...
R – Tiveram três lugares que eu gostei muito, que foi a França, adorei, a Argentina e o Mato Grosso. (risos) Os três, que cada um não tem comparação alguma com o outro, não tem nada a ver com o outro. São mundos diferentes, mas me interessa ainda na minha vida fazer o possível, passar uma temporada em cada lugar desse, uma boa temporada, pra curtir até o osso, o caroço. (risos)
P1 – Hoje você tem, com essa coisa do ovário está mais resolvida, você tem acompanhado...
R – Tenho acompanhado, mas na verdade, eu teria que tomar hormônios, de acordo com os médicos e eu não quero tomar hormônio. É uma coisa complicada. A tentativa toda agora que eu fiz é... mudei a minha alimentação, porque embora vegetariana, comia tranqueira pra caramba, dormia mal, nunca cuidava da saúde. Agora eu estou voltada pra cuidar da saúde. Me alimento direito, como comida, durmo direito e caminho muito, pratico ioga, faço reiki e acupuntura. Eu estou procurando esse tipo de equilíbrio no meu corpo, porque hormônio realmente não dá pra agüentar.
P1 – Você tem um sonho? Ou alguma coisa pra realizar ainda, que você fala: “Olha, não, isso tem...” Você fez muita coisa já, mas você fala: “Não, olha, ainda preciso fazer”.
R – Ah, tem. (risos) Um sonho que eu tenho é ter uma casa cultural, com alguns amigos, que todos trabalham com alguma... Com música, com pintura, com teatro, com cinema e fazer uma cultural, que nós possamos dar aulas e fazer eventos. E que seja bem... Um lugar bem do jeito que eu penso, todo pintado, todo colorido, com uma proposta legal. Iso é um sonho. E outro é viajar pra vários lugares, pra Índia, ir pra China. Tenho vontade de conhecer esta parte do oriente; pra Austrália, ainda quero conhecer outros lugares. Mas os sonhos são mais esses. E que por exemplo, essa casa que eu falo, essa casa cultural se torne também uma forma de renda também. Enfim, é mais ou menos isso.
P1 – E tem alguma coisa que a gente não perguntou, que você gostaria de falar, que ficou por...
R – Ah, creio que não. (risos)
P2 – De toda essa bagagem que você viveu, que coisa você pode falar: “Eu aprendi isso, com a vida.” O que você aprendeu esse...
R – Ahm.... ah, uma coisa, que ainda estou aprendendo cada vez mais é da expectativa das coisas, o quão diferente as coisas são da expectativa que se põe nelas. E que o rancor pelas pessoas, ou a expectativa, a confiança nas pessoas, as minhas revoltas, que eu estou aprendendo ainda a lidar com isso, realmente porque me lancei na vida muitas vezes e muitas vezes pessoas que eu não conhecia, pessoas estranhas me ofereceram a mão. E isso mostra pra mim que... Houve uma época que eu achava que as pessoas não valiam nada mesmo, por causa da minha família. De ficar mais aberta às pessoas e confiar mais na vida e não criar expectativas. Deixar a vida mais livre, pra não sofrer por decepções, e pra aprender que cada pessoa tem sua forma de ver o mundo, de ver a vida. Isso não é fácil. De não achar que só o meu ponto de vista que vale, enfim, essas coisas. Acho que, principalmente, isso. E que é bom ser flexível na vida e adaptável, que as coisas mudam. É isso.
P1 – E a gente tem agora uma última pergunta, que é: por que você quis contar sua história de vida e como é que foi contar a sua história pra você?
R – Bom, eu fiquei sabendo aqui do Museu da Pessoa por uma amiga, que falou do grupo das meninas e o dia que eu vim e tal, que elas falaram sobre esta história de contar e ficar gravado para os autos e à disposição de outras pessoas, como material. E eu achei super interessante, porque realmente a história de uma pessoa conta também a história de um lugar, da onde ela veio, conta uma parcela que, ás vezes, não dá pra saber. E é sempre muito particular a vida de cada um, mas também tem a coisa do contexto social, da cultura local, então conta também um pouco. Eu ____: “Ah, que bacana, que legal isso”. E o projeto delas eu achei super legal e foi bem catártico pra mim, fiquei meio em catarse. Eu fiquei meio estranha depois que eu lancei uns desenhos sobre a nossa vida e rolou gente chorando, foi uma loucura. Eu fiquei com vontade de contar pra participar, pra partilhar, compartilhar a minha história, porque eu achei legal, achei importante, achei bom esse projeto, bom esse trabalho aqui do museu. E como está sendo contar pra mim? Tem coisas que não são muito fáceis, meio que engasgam, mas eu consigo, de certa forma, ver já em terceira pessoa algumas coisas também, o que já faz tempo e sempre, cada vez que se conta uma coisa, acho que é como reviver ela e olhar ela novamente com outros olhos... É bom, eu acho, sempre é bom. E eu gostei da forma que vocês conduziram, ficou dinâmico. É legal.
P1 – Ok, a gente agradece. Obrigado.
R – Obrigada. (risos)
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