Projeto: A Economia Solidária na Vida das Pessoas
Entrevista de Joaquim Melo
Entrevistado por Bruna Oliveira
Entrevista concedida via Zoom (São Paulo/ Fortaleza), 03/05/2023
Entrevista n.º: IPS_HV002
Realizada por Museu da Pessoa
P/1 – Joaquim, para começar, eu queria que você dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento?
R – Eu me chamo João Joaquim de Melo Neto Segundo, nasci em 06 de abril de 1962, em uma cidadezinha do interior de Pernambuco, chamada Pontas de Pedra, mas fui registrado em Recife/Pernambuco.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Meu Pai se chama Célio Xavier de Melo a minha mãe Jacira Biquara Luna de Melo
P/1 – E com o que eles trabalhavam?
R – O meu pai ele foi, que já está falecido, funcionário público aposentado, ele trabalhava nos correios. E a minha mãe sempre foi doméstica, ela sempre trabalhou em casa.
P/1 – Você sabe como eles se conheceram?
R – O meu pai, pelo fato dele ter se aposentado muito cedo, se aposentou por motivo de saúde, então ele era do Amazonas, na região norte do país, e costumava viajar muito pelo Brasil, mesmo…Para passear, enfim, estava aposentado, e ele conheceu a minha mãe lá nessa cidadezinha, interior lá de Pernambuco, chamada Pontas de Pedras, e por lá eles se conheceram e começaram a namorar, lá em Recife, em Pernambuco na verdade, né?
P/1 – E como você descreveria eles?
R – O meu pai, ele era uma pessoa, assim, muito digamos, fechada, muito militar, ele foi muito influenciado pelo golpe de 64, então ele tinha uma boa… Uma paixão pelas forças armadas, com aqueles valores, né, hoje a gente chamaria de valores desse movimento bolsonarista, na época não tinha isso, mas ele era muito militar, muito assim, ligado a família, a pátria, aquela coisa da ordem, do progresso. Era uma pessoa muito, digamos que nós poderíamos chamar hoje assim, muito reacionária, né, para sociedade. Mas, muito influenciado pelo golpe...
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Entrevista de Joaquim Melo
Entrevistado por Bruna Oliveira
Entrevista concedida via Zoom (São Paulo/ Fortaleza), 03/05/2023
Entrevista n.º: IPS_HV002
Realizada por Museu da Pessoa
P/1 – Joaquim, para começar, eu queria que você dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento?
R – Eu me chamo João Joaquim de Melo Neto Segundo, nasci em 06 de abril de 1962, em uma cidadezinha do interior de Pernambuco, chamada Pontas de Pedra, mas fui registrado em Recife/Pernambuco.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Meu Pai se chama Célio Xavier de Melo a minha mãe Jacira Biquara Luna de Melo
P/1 – E com o que eles trabalhavam?
R – O meu pai ele foi, que já está falecido, funcionário público aposentado, ele trabalhava nos correios. E a minha mãe sempre foi doméstica, ela sempre trabalhou em casa.
P/1 – Você sabe como eles se conheceram?
R – O meu pai, pelo fato dele ter se aposentado muito cedo, se aposentou por motivo de saúde, então ele era do Amazonas, na região norte do país, e costumava viajar muito pelo Brasil, mesmo…Para passear, enfim, estava aposentado, e ele conheceu a minha mãe lá nessa cidadezinha, interior lá de Pernambuco, chamada Pontas de Pedras, e por lá eles se conheceram e começaram a namorar, lá em Recife, em Pernambuco na verdade, né?
P/1 – E como você descreveria eles?
R – O meu pai, ele era uma pessoa, assim, muito digamos, fechada, muito militar, ele foi muito influenciado pelo golpe de 64, então ele tinha uma boa… Uma paixão pelas forças armadas, com aqueles valores, né, hoje a gente chamaria de valores desse movimento bolsonarista, na época não tinha isso, mas ele era muito militar, muito assim, ligado a família, a pátria, aquela coisa da ordem, do progresso. Era uma pessoa muito, digamos que nós poderíamos chamar hoje assim, muito reacionária, né, para sociedade. Mas, muito influenciado pelo golpe de 64 dos militares. A minha mãe era uma pessoa, morava, filha de pescadores, morava em casa, com a sua família, sempre foi uma pessoa muito recatada, do lar, para usar a expressão do momento, e muito religiosa, enfim, não teve muitas chances na vida assim, de estudar, de conhecer outras pessoas. Então, ela sai da casa dos pais que são pescadores, em uma vila de pescadores, e vai morar com uma pessoa que tem uma formação assim, bem fechada, então ela tinha muita dificuldade inclusive, de ter relações sociais, de ter amigas, de ter outros contatos lá fora. Ela sempre ficou dentro de casa, cuidando dos filhos, tal, como era bem o costume da época, né, mais ou menos assim. Eu tenho poucas lembranças assim, minha memória afetiva, temporal, dos pais, são pequenas, porque eu saio de casa muito cedo assim, com 14 anos para 15 anos eu já saio de casa, aí vou para o seminário, minha vida lá, fazer formação religiosa, então eu tenho uma ideia assim, do meu pai e da minha mãe muito ainda enquanto adolescente, se formando ainda, não tive muitas influências na minha formação deles, né, mas eu tenho uma memória. A minha mãe ainda é viva, ele já faleceu,mas uma memória sempre disso, sempre meu pai muito machista, muito forte, muito presente, e a minha mãe muito tranquila, muito em casa, muito acatada, enfim, muito resguardada para tomar conta dos filhos, essas coisas todas, né, de uma família tradicional.
P/1 – E quantos irmãos você teve e os nomes deles?
R – Olha, eu tive dois irmãos homens e uma irmã mulher, para você ver bem a cabeça do meu pai, ele tem essa história também dos planetas, essa coisa, ele achava que ele ia se impor pelo nome dos filhos. Um dos meus irmãos chama-se Lunique Luna de Melo, porque Lunique era uma nave espacial, uma coisa, dessas coisas da lua, e o outro chama-se Interplanetário Luna de Melo, você imagina o que é uma criança se chamar Interplanetário? Porque isso que eu te falei, justamente, das conquistas. Eu escapei, porque a minha família conta que eu ia me chamar Sputnik, o próximo seria Sputnik, que era outra nave, essas coisas todas, mas acontece que no dia que eu nasci, o meu avô, que era o pai do meu pai, faleceu, e o pai do meu pai se chamava João Joaquim de Melo, João Joaquim de Melo Neto, é por isso que eu fiquei como João Joaquim de Melo Neto II né, na cabeça do meu pai para manter a continuidade da família, aquela coisa toda. Sorte ou azar eu escapei de ser chamado Sputnik, e a minha irmã terminou levando o nome da mãe dele, da mãe dele que é minha avó, chamava-se Ana Xavier de Melo, e ela passa a ser chamada Ana Xavier de Melo Neta. O pessoal até brinca, como que uma família que tem um Interplanetário, um Lunique, tem depois um João e uma Ana, né? É um recorte muito grande, mas vem para segui aí as tradições e as lógicas… Bem engraçado, mas é isso.
P/1 – Você chegou a conhecer os seus outros avós?
R – A minha avó por parte de pai eu conheci, o meu avô eu já não conheci, porque eu nasci no dia que ele morreu. Por parte de mãe já não, eles já ficaram lá na cidadezinha, lá onde eles moravam, lá para bandas de Pontas de Pedras, e eu já, minha memória mais antiga, já não conhece mais eles, né. Eu saio de lá muito cedo também, tanto é que eles vão para Recife, para a capital, lá eu nasço, de lá eles já saem migrando pelo nordeste, a minha história é bem assim, como meu pai era aposentado, e minha mãe era doméstica, eles podiam morar em qualquer canto, então ele tinha esse espírito de aventura de sair viajando, então ele viajava literalmente, um ano morava em Recife, no outro ia para Paraíba, no outro ia para o Rio Grande do Norte, no outro ia para o Ceará, assim ele foi andando, andando, andando até chegar lá no Pará onde ele vai falecer. Tanto é que meu currículo escolar, se você pegar, cada ano é um estado, né, primeira série, aí vai, até eu fazer o ensino médio, cada ano é em um estado diferente, então a minha criança, para adolescente, essa peregrinação pelos estados do nordeste, até chegar no Pará, quando ele chega no Pará, aí sim, fiquei mais tempo lá.
P/1 – E pensando na infância ainda, você lembra de algum cheiro, ou alguma comida, ou alguma data comemorativa que lembra essa época?
R – Acho que da minha infância, acho que a coisa que eu mais me lembro, mais forte, é a gente em cima de um caminhão. Que assim, meu pai era aposentado, uma pessoa de baixa renda, minha mãe já não tinha nenhuma renda, então com ele com esse espírito aventureiro de viajar, ele alugava um caminhão, na moda antiga, botava os móveis que a gente tinha ali, mesa, geladeira, tudo em cima do caminhão. Eles iam na boleia, e a gente, os filhos iam atrás do caminhão, na carroceria, então me lembro dessa imagem da gente na estrada, aquelas estradas de antigamente, de barro. A gente na estrada no caminhão, viajando de um canto para o outro, tal, essa é assim, a memória mais forte. A memória das casas, dentro, já é mais distante, porque mudava tanto que não é uma coisa… Aqui e acolá eu tenho uma lembrança, outra, tal, mas a minha lembrança mais forte é eu em cima de um caminhão, viajando de um estado para outro. Como toda criança para adolescente ali, preocupado com a nova escola quem eram os novos amiguinhos da escola, quem eram os novos colegas, pessoal de rua tal, mas assim, não tenho muitas lembranças fortes e nem muitas histórias do passado, porque imagina, cada ano em um canto diferente, isso ia terminando que fragilizava ter aquele amigo de infância, aquele amigo que sempre vivia lá em casa, eu não tenho muito essas coisas, porque, até porque assim foi até os meus, sei lá, 15, 16 anos, por aí né, era se mudando de canto para canto. Mas, o caminhão a memória é muito forte para mim até hoje, foram muitas viagens… Umas 8, 10 viagens, peregrinando pelo nordeste, pelo norte.
P/1 – Você lembra de alguma história, de alguma viagem em que foi marcante ou não lembra, assim, de nenhuma história?
R – Todas elas marcaram muito pela quantidade de acidentes que tinha, você imagina, você pega um caminhão, embora você perto, por exemplo do Rio Grande do Norte para o Ceará, isso hoje você faz de carro, com estrada, você faz em 8/9 horas, naquela época um caminhão, geralmente em estradas de carroçal, esses caminhões davam muito problema, furar o pneu, você tinha que comer na estrada, fazer comida na estrada. Era quase uma vida de caminhoneiro, né, e desses perrengues de estrada de carroçal, móveis que se quebravam no meio da viagem, ou mesmo até acidentes de animal que morriam, algumas pequenas batidas. Sempre essas viagens que eram feitas em 1, 2 ou 3 dias, dependendo dos perrengues, eu acho essa lembrança dos perrengues, quando eu encontro com a minha irmã, que minha irmã até hoje é viva, né, os meus irmãos já morreram, então a gente sempre conversa das viagens né, a memória das viagens, hoje já não tem mais nenhum sentido essa, tem carro, estrada, avião, tal. Mas, eu estou falando isso do começo da década de 70, os meados da década de 70, as minhas memórias de infância para adolescência são as viagens, os caminhões, as boleias, as estradas, e os perrengues do meio das estradas, né. Nada assim mais concreto, eu acho que talvez até pelo fato de não ter uma sequência assim, não ter uma casa que eu morei, fiquei ali até x anos, que ali eu fiz amizades, isso nunca houve, sempre muito se mudando de um canto para outro, tal. Então, eu morei muito mais em cima de um caminhão do que nas casas, a única coisa transversal nas história é o caminhão, né? Pegou o caminhão, pegou o caminhão, tal, mas bem legal
P/1 – Joaquim, nessa época tinha alguma profissão que você já queria seguir quando você era pequeno?
R – Eu sempre admirava a profissão de advogado, direito, mas aquele advogado naquela cena de tribunal, que ele vai lá, que ele defende, que ele tira o cara da cadeia, que ele vem e da uma argumentação muito forte, evita o cara ser preso, então eu sempre tinha essa imagem do tribunal, não sei explicar bem o porque, mas a imagem de um cara defendendo alguém, para alguém evitar de ser preso, então aquelas cenas de tribunais eram sempre cenas que eu assim, que me chamavam muita atenção, então eu sempre disse que ia ser advogado quando crescer, advogado, hoje eu diria, advogado criminalista né, naquela época, enfim, não saia nem dizer esse nome, né, falava advogado de tribunal, de jurado lá, então o sujeito tinha feito alguma coisa muito ruim né, porque a ideia era de escapar a pessoa, mas assim, isso era, não sei, talvez pelo fato de eu sempre falar muito, embora lá em casa eu fosse o mais recatado, né, na minha família os meus dois irmãos eram mais de rua, mais de brincar, de beber, de farrear, e o meu pai também gostava dessas coisas, né, que todo homem teria que ir para rua beber, enfim, homem é homem né, tem que ir para rua e a mulher ficar em casa. E eu sempre o que mais estudava, o que ficava em casa, o que fazia companhia a minha mãe, a minha avó sempre morou com a gente, até morrer, a minha avó mãe do meu pai, ia para igreja, e eu acompanhava ela na igreja, aquele negócio todo do filho mais calminho, tal. Eu não sei que talvez isso, me dá essa introspecção, e sei lá, não sei o porquê de defender os pobres, de fazer o advogado, não deixar essas pessoas serem presas, esse negócio todo, então assim, se eu tiver uma memória de dizer uma profissão eu queria me formar em direito, ser advogado.
P/1 – E você estava contando que você viajou bastante e isso fazia com que você passasse uma série em cada escola, né? Em cada lugar. Quando você foi para o Pará, como é que foi, assim, que você falou que ficou mais tempo lá, onde você estudou lá?
R – No Pará, eu chego no Pará mais ou menos com 17 anos para 18 anos, por aí, aí meu pai já estava um pouco mais cansado, um pouco mais de idade, a minha mãe também, e no Pará foi uma cidade muito diferente, a gente chega em Belém, né? Muito diferente do nordeste, a vida era mais cara, as escolas eram bem menos escolas, naquela época Belém era bem menos desenvolvida do que é hoje, e lá tem muitos mangues, as casa… Claro, a gente sempre ficava em casas mais populares, porque a gente tinha muito pouco dinheiro, alugava, sempre morei em casa alugada, a vida inteira. E nós fomos morar em uma área que alaga muito, que é como é no Pará, os bairros mais populares de Belém do Pará, os bairros mais populares eles são perto de mangue, dos rios e quando chove alaga muito. Então, eu chego em Belém, vou para Marambaia, que era um bairro na época, hoje já está, asfaltaram e tudo mais, mas na época era um bairro muito popular, e eu chego na marambaia, fico em uma casa que toda vez que chovia alagava, e aí tem rios e córregos por perto, e tinha todas as histórias que tinha jacaré, que era perigoso quando o jacaré chegava com as águas e alagava tudo mais. E lá eu fico 2, 3 anos, então assim, ainda fico um pouquinho mais, eu vou estudar em uma escola pública, não me lembro o nome da escola mais… Alves, eu acho o nome, e vou para escola pública, já estava aí, no que seria hoje ensino médio, terminando o segundo grau. E lá eu fico, lá eu fico e vou estudar numa escola perto de casa, né, e morando lá, e começo a procurar emprego, para poder ajudar em casa e tudo mais, mas não chego a trabalhar profissionalmente em nenhum local, né. É lá, perto da casa onde a gente mora em Marambaia tem uma igreja que fica aí, a mais ou menos uns 150 m, e lá eu vou para missa todo dia com a minha avó, acompanhar minha avó na missa, como sempre eu faço, então lá na igreja tem um pouquinho mais de estrutura, tem os coroinhas, tinha aquele povo lá que fazia a celebração da missa, para ajudar o padre, e ali eu começo a olhar para aquilo diferenciado, né. Para o pessoal que estava lá na igreja, achava aquilo bonito, os jovens que vinham, aí eu começo a me relacionar um pouco com esses jovens, a conversar, o que que eles faziam, eram pessoas voluntárias, não tinham nenhuma hierarquia com a igreja, mas aquilo me coloca em contato com esse mundo mais sacerdotal, aquela coisa mais. E aí eu vou, e um dia eu digo isso para minha avó: “Eu queria entrar para igreja e ser padre.” Muito mais com uma empolgação por achar aquilo bonito, por finalmente estava morando a mais tempo no mesmo local, estava começando a ter raízes, e eu resolvi assim, do nada, de tanto ir para igreja e conversar tal, eu queria ser padre. E claro para a minha avó, você não imagina, a minha avó mega religiosa, rezava o terço todo dia, e tudo mais, não tem os livrinhos de oração? Me lembro ela com os livrinhos de oração, que ela rezava aquilo desde a infância, livros que já tinham décadas, a mesma oração de sempre, né? E eu começo a acompanhar elas com essas orações também, lendo aqueles livros, não é livro, é escrito a mão, né, as orações lá que eram uma repetição danada tal. E aquilo começa assim, a tomar cor, eu começo a conversar com o padre e tal, e um belo dia eu decido ir para o seminário, eu não sabia nem o que era, como era, de que forma andava, e o padre disse: “ Olha, nós temos que te levar para conversar com o bispo….” Que era Dom Alberto Ramos, o bispo da cidade “... Você chega lá e conta para ele que você mora aqui perto, que você acompanha aqui a paróquia, que você acompanha a sua avó, que é muito religiosa, tal.” Ele marca com a minha avó claro, né, e me leva lá para o palácio do bispo, um dia lá, vai lá, o bispo chega lá e nessa época para ir para o seminário tinha que pagar, era um seminário diocesano, mas a família pagava para o jovem estudar e se formar lá, para ser padre, o processo era pago. … Imagina, se chegasse em casa dizendo que teria que pagar para ir pro seminário, né? Era completamente impossível, e aí eu digo para ele “ Olha, eu não tenho dinheiro, minha família não tem dinheiro, eu quero ser padre e a gente não tem como pagar.” O padre lá já me conhecia, vai lá, fala com o bispo, que era bom, enfim, dá uma chance, o jovem tal, enfim, aí o bispo chega a uma conclusão “Ok, você tem que ir para o seminário, a gente vai te dar uma bolsa, você vai morar lá … No seminário, estudar lá e ficar lá, morar lá, só tem uma coisa, seu pai é casado?” “ Eles são casados há muitos anos.” “ Mas é casado, casado?” “Não.” “Então ele tem que casar, que você não pode ir para igreja, ser padre, com os pais solteiros, né? Eles não são casados na igreja.” Só que o meu pai, eu nem sabia dessa história, ele já tinha sido casado lá para trás, com outra mulher, né? Lá quando ele era mais adolescente, eu não sabia, só que a igreja lá descobriu isso, não sei como é que eles entraram em contato, eles descobriram isso, que tinha esse impasse lá, tal. Bom, enfim, aí o bispo deu lá, um jeito de…Não perdão, ele não era casado na igreja, ele era casado no civil, ele era casado no civil com outra mulher, era uma coisa que nem fazia parte da nossa vida, a gente nem sabia e tudo mais. E o bispo aceita casar o meu pai no religioso, somente para proporcionar eu entrar no seminário, e assim ele faz. Uma coisa assim, bem legal que eu lembro, que a gente prepara a casa toda, prepara o bolo, e o bispo marca um dia, via na minha casa, e vai lá e casa o meu pai com a minha mãe, e aí estava lacrada a história de que eu teria já condição de ir pro seminário, que para mim isso ia ter uns 17, para 18 anos, e para mim era assim, uma grande novidade, era uma coisa que eu não sabia o que esperava lá, não tinha muito contato. A verdade é que eu tinha acabado o segundo grau, né, que hoje é o ensino médio, então eu teria que, já tinha que entrar fazendo a teologia, filosofia e teologia, que se chamava na época o seminário superior… Então, no começo do semestre, eu vou para o seminário, entro na filosofia, e começo a morar no seminário, que dizer é, já tinha, começando meus 17 anos, um pouco mais cedo. E no seminário, o seminário completamente assim, reacionário, né, imagina, um seminário em Belém do Pará, o bispo reacionário, que tinha todas as apologias, a revolução, ao golpe militar, aquela coisa toda, e eu viro completamente reacionário, que a literatura que eu lia era totalmente. Com 2 anos de filosofia o seminário permitia que você, que é assim, 2 anos de filosofia, e 4 de teologia para você virar padre, que tem todo o ritual. Com 2 anos de filosofia ele permitia que eu fosse fazer trabalho pastoral da comunidade, já um pouco na preparação sacerdotal, é aí que minha vida começa a mudar, porque nessa altura do campeonato meu pai tinha saído da Marambaia, e tinha conseguido uma casa na COHAB, antiga COHAB, uma casa de conjunto habitacional, muito barata, paga em 50 anos, pois bem, então eu saía no sábado de manhã para paróquia.. Paróquia do coqueiro, e no domingo eu voltava para o seminário, durante esse período eu ficava com o padre da paróquia ensaiando as coisas da igreja, a celebração, ajudando nas missas, tal. Só que o padre da paróquia, é completamente ao contrário, é o padre da teologia da libertação, que tinha um movimento amplo em defesa dos presos políticos, tal… Então, a semana inteira de uma doutrina conservadora, já o final de semana eu ia para a paróquia e era a lá revolução maior do mundo, as missas muito de esquerda, todo mundo né, os movimentos de jovens, e aí assim, rapidamente, foi coisa assim, de 15 dias, eu mudo a minha matriz ideológica, né, então, aquele negócio de companheiros, de abraçar, de confraternizar, de libertar os presos, eu acho que foi juntar isso aquele desejo de ser advogado, porque tudo era muito, na época, estamos falando ainda na época da ditadura, aqueles presos políticos. E eu fiquei, quando eu volto para o seminário eu sou outra pessoa, já falando de esquerda, lendo…Aquela explosão de literatura diferente, eu começo a criar muito estranhamento no seminário, com a minha postura lá, os cursos, as narrativas, tal, e é aí que um dia o padre me chega e fala assim: “Olha, tem um movimento, que é clandestino, chamado MLPA, que é o movimento de liberação dos presos do Araguaia.” Só que em Belém do Pará, ficava o quartel para os militares do exército, onde os presos políticos iam para lá, principalmente os presos políticos do campo, né, da zona de terra, do problema agrário, tal, e lá… Da área do Araguaia, da guerrilha do Araguaia, era muita presença ainda de presos políticos dessa época, e muito recentemente dos padres, padre Francisco Aristide Cambio e Francisco Dorio tinham sido presos, e estavam no quartel, e a gente o MLPA, estávamos nos organizando para ir invadir o quartel, e resgatar os presos políticos da mata. E esse movimento se reunia clandestinamente, só que era na terça-feira, e terça-feira eu estava no seminário, como é que eu ia fazer para ir nas reuniões? E na verdade eu fugia do seminário, porque como seminarista, porque lá no seminário é assim, os que não tem grau superior, estão na filosofia, ficam em um quarto coletivo, e os que já estão da filosofia ou da teologia, ficam no quarto separado, isolado, né, dá mais conforto. Isso me permitia que a noite eu saísse escondido, pulasse o muro do seminário, e fosse na reunião do MLPA, cujo a função era se organizar para invadir o quartel, e libertar os presos, era uma coisa assim, louca. Então, eles faziam treinamento de guerrilha, como é que rastreava, enfim, toda aquela história dos treinamentos. E é ali que eu começo a minha vida política no MLPA, a paróquia era o grande guarda-chuva, mas no MLPA, ali tinha disciplina, ali já tinha estratégia, meta, já sabia o que ia se fazer, e aí eu fico militando final de semana, e a tarde, e terça-feira a noite eu ia para a reunião do MLPA, que era reunião ultra clandestina, porque se descobrissem aquilo ali ia todo mundo preso, mas ali eu começo a formar a minha personalidade, a minha ideologia, tal. E muitas pessoas que eram do MLPA eram padres, de esquerda, eram pessoas das pastorais, operária, tal… Vai é vem, o seminário, extremamente conservador, o reitor que é conservador, descobre tudo isso, né, descobre que eu pulo o muro, que eu vou para reunião do MLPA, não sei se o mais grave é pular o muro ou ir para reunião do MLPA. Para encurtar a história, ele me chama lá um dia, no reitor, e disse: “ Olha, você…” Eu como sempre bom estudante, eu lia muito, as minhas notas eram impecáveis, eram as melhores notas do seminário, isso eu já estava no segundo ano de teologia, tal, o reitor chama e diz: “Olha, a sua situação é muito difícil, você é um bom aluno, tem todas as características de um bom padre, mas, infelizmente, né, Deus não permite esse tipo de violência, de invadir quartel, então você vai ser expulso do seminário, a gente não lhe quer mais aqui.” Olha a confusão, porque eu tinha passado todo esse tempo no seminário, a minha comunidade lá na paróquia todo mundo esperando um padre jovem, que ia ter daqui, tal, meus pais moravam lá, e eu ia ser expulso, essa é a verdade, não tinha mais… Colegiado de bispo, a grande coincidência é que, vizinho ao seminário, que era um seminário grande, moravam as freiras religiosas, e essas freiras tinham uma casa também em Fortaleza, e conhecia Dom Lorscheider, na época era o arcebispo cardeal de Fortaleza, exatamente, aí eu estou falando final de 83, para 84, o Dom Lorscheider começa em Fortaleza o movimento contrário ao de Belém, que eles achavam o seguinte, que ele tinha um seminário, final de semana ele mandava os seminaristas para as pastorais, os seminaristas não queriam ir, queriam ficar no seminário, porque dormia, comia, e bebia de graça, e os padres aqui, os padres se formavam, e quando se formavam não queriam ir trabalhar nas paróquias pobres, ficavam burgueses, só queriam saber das paróquias ricas, não tinham trabalho com as comunidades. E o Dom Lorscheider faz um movimento contra o clero daqui que era conservador, aqui no Ceará, chamados “Padres da favela” que ele queria que os seminaristas morassem na favela, estudassem teologia no seminário, mas não morassem no seminário, e a freira que é irmã Luzia me disse isso: “Olha, está começando no Ceará o movimento, tal..” E é tudo no mundo que eu quero, eu quero ser padre, e quero ficar na minha militância política, bom, a irmã era amiga do cardeal, ela vai, liga para ele, conta a história, o cardeal pede para eu ligar para ele, para contar da minha vocação, tal, e eu digo a verdade, ele diz: “Então você vem para cá.” Você imagina que eu não tenho ninguém no Ceará, não tinha parente nenhum, tal, eu pego a minha mala, aquela mala de cearense, de nordestino, de madeira gigante, boto as minhas coisas dentro, marco o dia e venho para o Ceará para fazer a experiência dos “Padres da favela.”
P/1 – Joaquim, antes de você continuar, eu queria saber como você se sentiu com a expulsão do seminário?
R – Eu, você fica um pouco revoltado, assim, porque você passou a sua vida toda para aquilo ali, você veio estudando, 1 ano, 2, 3, 4, você largou sua família, isso tem um sacrifício pessoal grande, né? Você já tinha resolvido não namorar, no seminário não namora, né, de adolescente para jovem ali, eu era mega querido na comunidade, imagina né, jovem, da comunidade, ia ser padre, tal, mas também não podia namorar, tal. Eu era, embora fosse revolucionário, do ponto de vista de… Eu era muito certinho, eu não namorava, eu não bebia, eu seguia aquele ritual da igreja, né, a única coisa que eu fazia era uma ideologia diferente, então eu achava que era muita injustiça, ao tempo que eu sabia que ali, de alguma maneira, em algum momento iria acontecer aquilo. Eu acho que eu já esperava, mas é que eu revolto, que eu queria ser padre lá, na cidade nova, né, que é a paróquia do coqueiro onde eu estava. Então é um pouco de revolta, mas talvez um pouco de sentimento de que isso fazia parte, porque nessa altura do campeonato, eu já via muito amigo meu ser preso, muito amigo ser torturado, muitos padres que eu conhecia que eram presos, então a desgraça já era muito maior do que uma expulsão, né, então era um pouco ali de revolta, mas ao mesmo tempo assim, de ratificação que eu estava no lugar certo, porque era um seminário conservador, um bispo conservador, que pega um bom aluno, com boas notas, com bom comportamento, embora eu tivesse essa rebeldia de pular o muro, mas no seminário eu não dava problema, né, tinham seminaristas muito problemáticos, né, que tinham crises de choro, que desistiam, que não se relacionavam com os outros, que brigavam, eu sempre fui muito certinho, assim, na minha posição, enfim… Sempre fui muito conformado, ou muito resiliente como a gente fala hoje, né, de aceitar essas coisas que a vida apronta, a verdade é que e vim para o Ceará, e vou para onde? Quando eu chego aqui eu desço na rodoviária, eu vim de ônibus, claro, e vou para o palácio do bispo, né, chego lá eu a minha mala e a promessa dele que eu viesse, e eu pergunto para ele, aí peço para entrar, espero, me deixam entrar, me apresento: “Olha, eu sou o Joaquim.” Naquela época não tinha whatsapp, então ninguém se conhecia antes, né, não tinha chamada de vídeo, eu disse: “ Eu sou o Joaquim, o rapaz lá do Pará, tal, o senhor mandou eu vim para fazer a experiência, tal.” Ele disse “Que bom.” O Dom Lorscheider é um santo, de uma sabedoria, um cara muito espirituoso, fisicamente muito forte assim, ele tinha uma presença muito robusta, tal, e eu sempre fui muito magrinho, naquela época eu era muito mais magro, barbudinho assim, tipo mesmo aqueles ativistas da época, sacolinha do lado, chinelo, e ele me fala “ Você veio fazer o que aqui?” “O que eu que vim fazer? O que a gente combinou, eu vim ser padre." Ele disse: “Mas por que aqui? “Porque eu vim trabalhar nas comunidades, tal.” “Mas para que?” “ Porque eu quero ser igual ao povo, eu quero viver como o povo vive, vim decidido.” Ele diz: “ Você quer viver igual ao povo? Entendi, tudo bem, me diga uma coisa, você tem quantas mulheres?” Eu disse: “ O senhor só pode estar de sacanagem bispo, não é possível, não o senhor está se confundindo, eu sou o rapaz que veio ser padre, o seminarista lá de Belém.” “ A o senhor não tem nenhuma mulher?”“ Não.” “ A, porque o povo para onde você vai tem muitas mulheres, o povo lá, cada um tem 2, 3 mulheres. Me diga uma coisa, você bebe o que todo dia?” Eu digo: “ Não, o senhor está me confundindo, eu sou o rapaz que veio ser padre e tal, o seminarista, tal.” “ Não, para onde você vai o povo bebê todo dia, e droga, o senhor fuma o que, craque, maconha, cocaína?" Eu digo: “ Olha, vamo parar por aqui, que não é possível, o senhor não está entendendo.” Ele disse: “ Meu filho olha, entendi, vou dizer uma coisa para você, não queria ser igual o povo, você não vais er igual o povo, você vai para um canto que o povo é muito diferente de você, você vai para lá, mas eu não lhe chamei para ser igual ao povo, eu lhe chamei para você ter um compromisso com o povo, vou lhe mandar para o Jangurussu….” Jangurussu era a rampa do lixo de Fortaleza, Fortaleza tinha um lixão né, e que agora está desativado já “...Então eu quero que você vá morar lá com os catadores, porque lá o povo sofre muito, é uma região muito pobre da cidade, então eu quero que você more lá, e a tarde você vem estudar…” Eu estava no último ano de teologia. “... Você vem estudar aqui teologia no seminário para você se ordenar padre.” E aí eu fui, isso era janeiro de 1984, e é ali morando com os catadores, na rampa do Jangurussu que realmente eu acho que eu radicalizo a minha… Que as vezes as pessoas perguntam para a gente assim: “Qual foi o momento da sua vida..” Eu sempre gosto de dizer, não teve um momento na minha vida, eu não vi um clarão, eu não ouvi uma voz dizendo “Joaquim”, eu não senti um tremor, nada disso, minha vida foi sempre linear, desde que, mas tem um momento que se eu pudesse destacar, é quando eu morei no lixão, eu acho que todo mundo que morou no lixão, que ali você não sabe o que é bicho, o que é comida, o que é gente. é tudo uma coisa só. Não chegavam aqueles caminhões de lixo, aquelas imagens que a gente vai na televisão, e eu passei o ano ali, a polícia entra, prende, organizamos os catadores, aí criamos a associação dos catadores do Jangurussu, vivendo lá e estudando no seminário pelo dia. Aí como tinha problema nos currículos, tive que fazer mais dois anos, enfim, ali foi um momento muito forte, muito marcante, quem mora no lixão eu acho que tem muitas memórias né, de violência, de crime, que ali você não tem nada, né, ali todo mundo é humano e todo mundo é bicho, e todo mundo é urubu, e todo mundo é tudo, né. Passado mais ou menos um ano, o bispo me chama e fala assim “ Olha, lá vizinho aonde você está tem o conjunto Palmeiras, que é um canto muito pobre, a maioria das pessoas que estão lá são rampeiros, e eu quero que você vá para lá, porque lá tem dois padres… Que vão embora para Itália, que são italianos, e eu quero que você vá para lá.” E eu já conhecia o Palmeiras, claro, porque ficava há 2km dali, os catadores moravam aqui, e aí eu venho pro Palmeiras, onde eu estou até hoje, isso é janeiro de 84. Quando eu chego aqui está tudo para fazer, eram barracas de lona, não tinha água encanada, não tinha luz, era o povo que tinha vindo da beira mar de Fortaleza, expulso pela especulação, eu vim como seminarista, tinha uma igrejinha católica, tinha sido criada em mutirão pelos moradores, e do lado da igrejinha tinha uma casa, que poderia se chamar casa paroquial né, que era basicamente uma sala, um vão, e eu morava lá, na casa paroquial aí todo dia eu ia estudar teologia a tarde, e ficava aqui morando, e aqui começa a me envolver com mutirões comunitários, a construir as escolas, mutirão para construir casa de parto, e aquele sofrimento imenso, 30.000 pessoas morando em barracas de lona, enfim. E aí o bispo me deu, ainda como seminarista, ele me deu os poderes de eu poder celebrar os sacramentos, né, então eu celebrava extra unção, casamento, batizado, tudo que um padre fazia, embora eu não fosse padre, mas tinha essa autorização, até hoje muita gente acha que eu fui padre, me chama de padre aqui na comunidade. E assim foi, e assim foi, e assim deu 88, eu me formei em teologia, acabei os meus estudos, e tinha que me ordenar padre, só que eu estava tão envolvido aqui nos mutirões, aí eu tinha entrado já no PT, fazia as campanhas políticas, já estava tão envolvido, que na minha cabeça era aquela comunidade que tinha deixado lá atrás em Fortaleza né, e aí não tinha o que fazer, ou ia ser padre, ou ia desistir, aí eu arrumei a coragem que eu tinha de dizer pro bispo, que em trouxe lá de Belém, que bancou os meus estudos, que fez toda essa trajetória, que enfrentou o clero, porque o clero daqui não gostava dessa ideia desse seminarista morando numa favela, dizer pro bispo que eu não queria mais ser padre. Só que eu não tinha mais, eu estava tão envolvido, e aí fez literalmente uma assembleia, teve uma dia que eu chamei todo mundo da comunidade, aqui também tinha… A comunidade… A gente tinha criado nossa associação de moradores, chamei e contei a verdade, eu disse “Olha gente, a minha história vocês já conhecem, eu acabei meus estudos, eu tenho que me ordenar padre, ou então eu desisto de vez, então vocês que decidem. Qual era o problema, se eu me ordenasse padre, nada garante que eu continue aqui, o bispo pode me chamar para qualquer canto que ele queria, porque é uma diocese.” E a comunidade decide que não, se é de eu ir embora, é melhor que eu não seja padre, bem corporativo, né? Que eu nãos seja padre e continue aqui, era tudo que eu queria ouvir, que nessas alturas do campeonato eu já não estava tão certo, o engraçado dessa história, é que qual era a coragem que eu tinha de falar isso para o cardeal? Dizer - “Olha, meu chapa beleza, mas eu não tenho mais…” Que eu fiquei adiando né, adiando a conversa, e o prazo acabando e eu tinha de ser, e não vai, e um dia ele me chamou lá, eu lembro até hoje “É hoje que ele vai me excomungar da igreja.” Que nessa altura do campeonato já tinha percebido, pois olhe, essa é uma cena muito forte na minha vida, porque é a cena da bondade, quando a pessoa tem empatia, quando ela conhece o outro, e eu fui, morrendo de medo… Naquele dia ali, até porque eu gostava muito de Dom Luiz, né, além de ser assim, um cara que tinha me ajudado, era um cara muito humano, preparado, conversava muito comigo, dava conselho, e tudo mais, mas eu tinha que entrar e dizer para ele que não queria mais ser padre, e aí eu fui me acabando de medo, era uma tragédia para mim dizer aquilo, quando eu abri a porta, lá na sala dele, lá no palácio do bispo, ele olhou para mim e disse assim “ Tire o espinho do seu coração.” Eu nem abri a boca. “ Tire o espinho do seu coração, eu vou lhe dizer uma coisa meu filho, não só tem um jeito da gente servir a Deus não, não é sendo padre que a gente serve a Deus, tem várias outras formas, eu só quero que você faça uma coisa, vá e nunca deixe de trabalhar pelos pobres, eu te abençoou, pode ir embora.” Olha, um segundo e eu estava do outro lado da avenida já, era a maior felicidade, tirou todos os pesos do meu coração, da minha consciência, e aquilo ficou na minha cabeça, como é que o cara sentiu, ele poupou de eu me sacrificar, e explicar, e dar uma desculpa. Ele sabia já, né, ele já sentia isso, mas eu fiquei com essa coisa na minha cabeça: “Nunca deixe de trabalhar pelos pobres.” E daí para frente a minha vida seguiu o caminho na mesma pegada, né, assim, fiquei aqui no Palmeiras, aconteceu os mutirões comunitários todos, a comunidade foi melhorando, e até que a gente cria o banco Palmas aí, não sei se vai querer fazer as perguntas, vai lá, pode fazer.
P/1 – Joaquim, nessa época, antes da transformação do conjunto palmeiras, eu queria saber como que era quando você chegou, como que era?
R – O Palmeiras, eu não conheço no Brasil, é claro, que isso foi possível na ditadura militar, uma tragédia urbana tamanha como foi a do Palmeiras, o Palmeiras eram pescadores, 2.000/3.000 pescadores, que viviam na beira mar de Fortaleza, na zona nobre da cidade, que hoje é zona nobre, que estão os hotéis, tal, na época era 73, então era ditadura, os caminhões do exército encostaram, arrastavam as pessoas, porque ninguém queria vir, jogavam dentro de uma caçamba, isso hoje ninguém admitiria um negócio desse, né? Jogavam dentro da caçamba, derrubaram as casas, casas que estavam ali há 50, 100 anos, de bisavós, tataravós para netos, e trazia para cá, porque aqui era ao redor da rampa, a casa mais próxima estava a 10 km daqui, não tinha nada, tinha só uma grande estrada que dava na rampa, e a 2km estava ali, onde eles demarcaram a terra, e a terra era muito barata, porque era muito afastada da cidade, era terra alagadiça, e jogavam as pessoas aqui, literalmente, a caçamba chegava, despejava, dava uma barraca de lona, para cada morador, e demarcava o lote, 10x20, que a pessoa ainda era obrigada a pagar depois. Até hoje eles não deram… Regressão de área, e a pessoa armava sua barraca e ficava ali, não tinha nada, não tinha água, não tinha luz, não tinha nada, e assim foram trazendo as pessoas, 1.000, 2.000, 3.000 pessoas, e ficaram aqui, até 88 não tinha nada igual, fazia fossa, como era um terreno que era muito alagadiço, a água subia na chuva, a fossa estourava. Então, quando eu chego em 84 não tem nada, tem uma casa de parto comunitária, as mulheres criaram a casa de parto, e uma faz o parto pela outra, uma escola comunitária, onde dava aula. Tudo era comunitário, no bairro tudo era construído pelos moradores, escola, primeira escola, a primeira igreja, a primeira casa de parto, primeiro mercado. Então, quando eu chego não tem nada, era uma coisa assim, quase que parece um filme, uma novela que você está contando, e nós todos os dias fazendo os mutirões, para ir construindo. Não tinha ônibus, tinha um ônibus que vinha de manhã 6:00 horas, e voltava 6:00 da noite, não tinha carro, porque também não tinha estrada, o carro era cavalo, tinha as carroças, né, a água tinha um chafariz, ou um poço, mas o poço era contaminado pelas fossas, então, enfim. Era uma cena de guerra, mas a guerra é guerra, essa foi uma cena provocada pelo poder público, e não tinha ninguém para ver, porque o Palmeiras era afastado da cidade, então ninguém chegava aqui, somente os caçadores de… Mesmo assim, não chegava até o Palmeiras, né, então não tinha impressa, não tinha mídia, é claro que com um tempo a gente começou a fazer um movimento de denúncia, e organizar, e conseguia fazer passeata pelo meio do matagal até ser visto na br que era… O mais perto, então a gente foi aos poucos criando tudo isso em mutirões, fazendo as casas, e tudo mais. Então, essa foi a luta de sempre, claro que isso deu para o bairro, isso foi a grande vitória do rio do Palmeiras, nossa até hoje, foi essa capacidade de resolver o seus problemas, como o povo muito cedo se organiza, e se autoestima, eu sempre digo, aqui tinha duas coisas, ou você ia embora, ou você ficava chorando e morria ali, porque não tinha outras condições de remédio, de saúde, de nada, ou você mudava para fazer. Então, muito cedo o povo do Palmeiras, na sua origem, resolveu resolver o seus problemas, né, e assim foi, assim nós fizemos tudo, o Estado chega aqui no começo da década de 90, isso eu estou falando de 73, eu estou falando quase 20 anos depois que você vai ter uma obra do Estado, né? Pois bem, quando a gente consegue melhorar o bairro, já tem escola, já tem creche, o canal de drenagem que a gente fez para conter os alagamentos, tudo muito popular, aí a empresa começou a vir, isso começou a despertar os olhares da empresa,né, então o Palmeiras começou a ser um bairro super respeitado, porque um povo que constrói, porque aí também a gente começou a fazer as mobilizações maiores, você levava 100, 500, 1000,2000 pessoas para o palácio do governador, né, jogava pedra na polícia, aquele negócio do movimento meio que rebelde, muito organizado, muito rebelde, e ficou mega conhecido, até hoje é, como um bairro super organizado. E aí começa a história do Banco Palmas, se eu posso pular para ela, porque quando a gente organiza melhor o bairro, as casas começam a ter valor, aqueles barracos que ninguém queria porque não tinha água, agora chegou água, já tinha luz, já tinha escola, já tinha creche, as casas já eram, a maioria já era de tijolo, embora tivesse casas de taipa, mas aí já vinha aí quase 20 anos de luta e organização, o estado começou a chegar também, trazendo serviço de energia elétrica, e tudo mais, então começa nova especulação imobiliária, porque o povo vinha de fora, o Palmeiras começou a crescer também para zona sul, o que é, onde cresce até hoje, o pessoal começou a vir de fora, e comprava os barracos das famílias, isso é muito comum em favela que se urbaniza, quando melhora a situação do bairro, e não melhora a renda, na primeira necessidade você vende a casa e vai embora, o filho foi preso, enfim, precisa fazer uma cirurgia da mulher, tal. E começou o povo do Palmeiras ir embora do próprio bairro, a gente que estava numa luta de 30 anos para construir o bairro, pedia para morar num bairro que… Daí virou história, porque a gente tinha uma tradição que a gente tem até hoje, antigamente era todo dia, agora é uma vez por semana, que era a chamada reunião das 6:00 horas, todo dia as 6:00 da noite, a gente se encontrava no barracão de palha, essa imagem é muito forte para mim, o grande barracão, a gente se encontrava lá, se encontrava porque era um ponto de encontro mesmo, porque não tinha nada para fazer mesmo, e ali se conversava, o que se tinha conseguido durante o dia, os problemas, então essa reunião das 6:00 ficou conhecida, todo dia as 6:00 horas a gente se encontrava, e foi numa dessas reuniões das 6:00, quando veio a inspiração de se criar um projeto de geração de renda, a gente tinha feito projetos… Urbanos, de criação de creche, tal, a gente falou assim: “ O pessoal está indo embora…” A gente contava essa história que eu te contei aqui, e aí resolveu fazer a tal da pesquisa para saber o que o pessoal comprava, onde comprava, qual que era a dificuldade, né, depois a gente batizou de mapa da produção e do consumo, que era uma pesquisa que você perguntava as pessoas “Onde você compra o seus produtos? O que é que você consome? Etc e tal.” Eram 20 jovens, de casa em casa, essa literatura já é mais conhecida, que ao final a gente viu que tinha 1,2 milhões, aqui na minha frente tem esses mapas, 1,2 milhões, só que tudo era comprado fora do bairro, a gente tinha cuidado de fazer escola, mercado, rua, canal de drenagem, mas não tinha se preocupado com a renda, com emprego, com as empresas, locais e tudo mais. E aí a gente começou a discutir, era uma coisa incrível, porque a gente pegava o resultado da “pesquisa”, entre aspas, jogava em umas cartolinas, e jogava isso nos postes dos bairro, nas igrejas, nos cajueiros, era um coisa muito assim, quase rural, mostrando que x kg de arroz, x kg de feijão, 3.000 sabonetes, 10.000 litro de coisa, e se começava a discutir, e aí é quando a gente conhece Paul Singer, porque tinham duas literaturas que a gente queria, as coisas de Leonardo Boff, teologia da libertação, porque eu era da igreja, das servas, e tal, eu herdei tudo isso comigo, Leonardo Boff, Frei Beto, tal lutava na comunidade, como protagonista, o Deus que veio e libertou, aquele negócio todo. E os livros do Singer, que eu conheci também lá no seminário de filosofia, que falava das cooperativas da Europa, como começou o cooperativismo, e tal, e a gente lia muito aquilo, auto de data, a gente fazia cópia desses livros e lia, tinha grupo de estudo e tal, e a gente começou a achar aquilo maravilhoso, o compor de uma cooperativa de crédito, e se juntava, tal. E começamos a fazer reuniões de como que seria um programa de geração de renda aqui na comunidade, é nisso aí, com a velinha, lá dos 80 anos, na hora das reuniões disse assim: “ Olha, poderia ter aqui um cartão, que nem tem esses cartões por aí, mas um cartão que só circulasse aqui, para nós compramos aqui, um dos outros.” A velha matou a charada, ela não sabia o que ela tinha feito naquele momento, caiu a ficha, velho é isso, então a gente não é pobre porque a gente não tem dinheiro, porque a gente pega as nossas poupanças, se eu conseguir montar um cartão aqui, que só circule aqui, como disse a velha, a gente vai conseguir. E aí foi, essa discussão, foi essa discussão, até que alguém deu o nome de Palmas, em homenagem ao Palmeiras, que ia se criar um banco, e o nome do banco seria “ Banco Palmas “ em homenagem ao conjunto palmeiras, aí começamos toda aquela loucura da história do palmeiras né, de onde vem o dinheiro, de onde vem o dinheiro tal, enfim, para resumir a história, cria o banco, resolve criar o banco, aí com aquela empolgação, por que que chamou de banco? Empolgação nossa né, “banco palmas” em homenagem ao palmeiras, nós éramos o que? Nós éramos quem? A diretoria da associação de moradores, os padres da igreja, agora já tinha chegado um padre, vamos criar o banco, não tinha dinheiro para criar o banco, tínhamos 2.000 contos emprestados, de uma ONG, “Ceará periferia” e a gente resolve em 20/01/1998 criar o “banco palmas” e o “palmacartão” , muita gente pensa que começou com a moeda palmas, mas era o cartãozinho de crédito, que era feito no mimeógrafo, nem computador tinha naquela época, só que o cartãozinho de crédito circulava só na comunidade, e a 2.000 reais era pra emprestar para quem quisesse produzir, daí isso virou uma verdadeira revolução. Para nossa sorte o banco central em 3 dias vem aqui para fechar o banco, aquela história que eu conto sempre, porque saiu no jornal nacional…Saiu no jornal nacional, né, com 3 dias o Willian Bonner “ Palmeiras agora tem um banco dos pobres” Que naquela época isso era uma coisa… De sucesso, e o banco central não entendeu nada, pensou que era um banco… Veio com polícia aqui encapuzado,aí teve aquela palhaçada, e processou, aí deu mais visibilidade para gente ainda, esse processo do banco central, e aí começou a cooperação internacional. Oxford na Inglaterra… Da Alemanha, começou a mandar dinheiro para cá, para esse banco local e tudo mais. E o banco começa a criar empresas locais, palmafashion, palmacarne, palmatica, pequenas empresas, mas com uma marca muito grande, tudo era palma, né, palmafashion, e pela autoestima que a gente tinha também, a gente achava que ia mudar o mundo, realmente plamafashiom, palmacarne, palmaligue, palma não sei o que, e as marcas. E aí foi, só que a gente não tinha dinheiro, e era processado, aí em 2003 a revista “Isto é” nos colocou na capa, porque depois a gente mudou para moeda de papel, né, a revista “isto é” colocou: “Aceita palmas?” Na capa da revista, “O Brasil agora tem uma outra moeda.” Você imagina que isso hoje não teria nenhum efeito, porque hoje tem dezenas, só que o banco central veio, processou, dessa vez ele pegou mesmo, abriu um processo, mandou prender, mandou acabar, envolveu o ministério público federal, e nós tivemos muita sorte, porque quando a polícia veio aqui com o ministério público, a gente viu que era uma associação de moradores pequena, uma comunidade muito simples, uma moeda que era… Em reais, que todo mundo comprava e vendia, ninguém ganhava dinheiro com aquilo, e o delegado aqui também, começou na delegacia o processo, o delegado nos conhecia também, toda a nossa história, dá um parecer bem favorável a gente, o ministério público acata, segue o delegado, e o juiz segue o ministério público, que é uma coisa muito interessante. Dá um parecer fantástico, primeira frase é o seguinte: “ O banco central deve desculpa ao banco palmas, esse processo é uma palhaçada.” Aí a gente pegou moral, saiu pregando o parecer do banco central nos postes da comunidade, tudinho lá, tal, mas enfim, mas ficou assim, a gente estava aqui, com cooperativa internacional, o banco central… A justiça, mas o banco central estava ali na dele assim, dizendo tipo assim: “ Olha, não posso prender, mas também não reconheço.” Isso afastava todo mundo de querer repetir, aí mais uma vez, agora fisicamente, entra Paul Singer nessa história, em 2003 começa as SENAES, no começo de 2004 a Sandrinha Magalhães que está no céu, que na época era minha companheira também, ela conhece Paul Singer em Brasília através de Ademar.. Que era da… Ele apresenta o Singer fala: “Singer, é uma experiência muito fantástica." Contou um pouco a história, o Paul Singer já conhecia a história, tinha ouvido falar e chama a Sandrinha para almoçar com ele em São Paulo, na casa dele, e isso tudo foi em São Paulo, não sei mais qual era o encontro, que se encontraram com ela, ela me liga e diz: “ Olha, o secretário do Paul Singer quer que eu vá almoçar na casa dele para contar a história do banco Palmas, eu vou?” Eu digo: “Lógico, você é doida? É claro que você vai almoçar com o homem.” E eu conhecia paul Singer pela literatura, tinha visto ele pouquíssimas vezes, e ele vai, convida Sandra para almoçar na casa dele, e para escutar a história do banco Palmas, e ela chega ela me conta que, vou falar agora o que ela me conta “ Pois eu estava na mesa, meio assim, temerosa, estava com a mulher dele, aí ele começa o almoço me servindo, eu já achei aquilo estranho, né, ele em serve o prato, tal, a gente almoça, depois ele senta e diz: ‘Agora me conte, sem limite de horário, me conte toda a história.’ Aí eu puxo o cartão e ele me diz assim: ‘Não, isso aqui já foi depois, né? Eu sei que vocês chegaram lá e construíram as casas.’“ Ele queria saber toda a história, né, das casas construídas, e a Sandrinha conta tudo para ele até chegar no banco palmas, meses depois, ou anos depois, ou alguns meses depois, ele lança um edital, nem lança edital, naquela época nem tinha edital, o Singer diz um seguinte: “ Pois, eu vou levar isso para o Brasil todo, eu quero que o banco palmas, leve essa experiência para todo o Brasil. O banco central está lá, não tem nenhum processo contra, eles venceram, deixa o banco central de lado, eu vou bancar isso para o Brasil todo.” Naquela época o Singer faz uma parceria com a fundação Banco do Brasil, porque era um trâmite burocrático, e é o Singer quem leva a experiência nos outros bairros, e nos outros municípios, a gente foi fazendo município a município, e eu literalmente, quer dizer, eu digo sempre isso, se não fosse Paul Singer a gente não estaria aqui hoje, talvez nem a gente os bancos, nem a economia solidária, porque é o Singer que vai lá no banco central com a gente, que depois vai no BNDS, na Caixa , ele vai criando um cinturão aí de pressão popular, ele era do governo, ele era secretário do governo, não só a figura de Singer, intelectual, tal, mas era pelo governo. Aí em 2010 o Banco Central reconhece que errou, faz a nota técnica, faz toda a retratação pública, e aí seguiu a história, porque aí foi edital, mais editais, aí foi embora e tudo mais. Aí o Singer vem aqui em Palmas várias vezes, e tudo mais, mas é aí que eu conheço Paul Singer, que vai marcar a vida do banco Palmas profundamente para toda a vida, então foi o almoço na casa do Singer, que ele que decidiu que ia levar essa experiência para todo o Brasil, muito antes de Banco Central, de tudo isso. Eu não deixo você perguntar,vai.
P/1 – Está ótimo, fica tranquilo, você está respondendo tudo. Eu queria saber, como foi a primeira vez, se você lembra, a primeira vez do Singer aí no banco Palmas?
R – O Singer é difícil falar de Paul Singer, porque você não sabe como é que você fala dele, que ele é o grande professor, o grande mestre, isso aí qualquer um fala né, isso aí basta ter a coleção dele, e tudo mais. É a figura carismática que o Singer tem, o Singer parecia que ia chegar assim, um Deus, parecia que ia chegar um disco voador, porque ele vem, eu me lembro bem… Estava aqui, a gente estava no museu da moeda social, nessa época tinham várias moedas, de papel naquela época, e nós pegamos uma salinha na associação, e pregamos na parede, colocamos a coisa, e tal, e eu fiz o evento, para da uma empresa, que o Paul Singer, secretário de economia solidária vinha inaugurar o museu das moedas sociais, uma sala com umas moedas pregadas na parede, a gente pensa até hoje aqui, e vinha Paul Singer, para inaugurar o museu…Olha que fino, Paul Singer, secretário de economia solidária, inaugurar o museu da moeda social, e estava a imprensa, estava a mídia, estava todo mundo, uma muvuca, gente que já fez feira de economia solidária, aquela coisa toda que junta tudo, para dar volume e tudo mais, tal.. Perto da associação, nessa época o banco funcionava dentro da associação, agora a gente criou um anexo, e está o banco, e lá vem o Singer, finalmente né, ficou em um hotel, o nosso pessoal foi buscar ele no hotel, e lá ele, com a fitinha o museu, que era uma sala, mas tinha uma fita para ser cortada, todo mundo filmando, esperando a hora do secretário tal, e Singer desce, com aquele jeito dele lá, caminhando com aquela paciência, e o povo vai pra cima do Singer, que era o que ninguém esperava um negócio desses, não era um galã de televisão, era uma pessoa simples, e ele vai com uma paciência, conversando com um, e pergunta o nome, e o pessoal começa a entender também que ele é uma pessoa do governo , e começa a falar ali dos problemas da comunidade, e ele vai: “ A é? E tal.” Escuta, e chama um “ Olha, Joaquin, você tem que ir lá, tal” E eu: “ Doutor Singer, professor, vamos para inauguração? Que a empresa está toda lá posicionado para o senhor inaugurar o museu da moeda social.” Olha, da onde para o carro, ate a sala do museu, não tem mais do que uns 30 metros, isso leva uma hora para Singer chegar lá, porque não tem jeito, ele para conversar com todo mundo, e tira foto, e não sei o que, tal, com aquela paciência enorme, e não era um postar, não era um cara que o jovem, que o adulto.. Era o professor Paul Singer, até que ele vai, então minha imagem é aquela imagem da gente puxando o Singer e ele ficando, puxando o Singer e ele ficando, aí ele inaugura a moeda, depois ele volta 3 vezes, né, volta 3 vezes depois. A última imagem que ele teve aqui, eu acho que já em 2012, por aí, ele vem e tem um projeto com mulheres, que é inaugurar o projeto “Elas” com as mulheres, eram as mulheres do bolsa família, e era campal, e o Singer está um pouco mais, exigindo um pouco mais de cuidado, nós tínhamos um palco, uma cadeira para o Singer lá em cima, tal, e não era nem previsto que era campal, as mulheres iriam fazer uma fala, e iriam ficar lá, aí o prefeito da cidade ia falar, quando no meio da conversa, o pessoal toca um som, e as mulheres resolvem fazer uma ciranda, elas dão as mãos na multidão, aquele negócio meio carnavalesco, elas começam a rodar, aí o Singer não tem o que fazer, resolve descer do palco, e ir para as mulheres. Não vai dar certo nunca isso, era um sol de meio dia já, pois ele desce o palco, vai nas mulheres e começa a rodar. O misericórdia, isso vai dar problema, tem que tirar esse homem de lá, e quem tira mais Singer de lá? Quem tira Singer de lá? E aí era, então as vindas de Singer aqui, desse jeito, mas sempre, a minha memoria afetiva, são, é sempre assim: “ Fale de Singer “ Eu falo “ A um homem que escuta, que fala, tal.” Aí depois a Sandrinha que era minha companheira adoeceu, teve câncer, não podia mais ir para Brasília para as reuniões, eu ia, e não tinha uma única vez, naquela tensão já, já tem aquele negócio pré, golpe da Dilma, tal, então as reuniões eram muito tensas, Singer entrava na sala, e aonde eu estava ele ia “Como é que está Sandrinha?” Não é possível que ele não tenha esquecido, ele perguntava, e queria saber, e escutava, tal, era de uma empatia enorme. Aí depois tem outra cena que eu lembro muito do Singer em Maricá, Maricá é uma cidade do Rio de Janeiro, que tinha lá o cartão…E era o dia de lançamento do cartão, aquela muvuca também, tudo mais, tal, tal, tal e tem o lançamento, prefeito fala, todo mundo fala, a gente desce depois do palco, ia levar a gente para almoçar, e em frente a um bar tinha uma cadeira, O Paul, ele puxa a cadeira e senta, eu tenho essa foto, ele senta, e o povo fica ao redor dele. Parecia ser aquelas coisas de antigamente… Ele sentado lá, sem conhecer ninguém, o povo, falando, e o prefeito em pé, o secretário em pé, para ouvir Paul Singer. Mas enfim, são as minhas memórias de Singer, né, muito solidário sempre, enfim, para não falar dos projetos, dos trabalhos todos. É contigo.
P/1 – Joaquim, você começou a contar um pouco sobre como era a comunidade né, o conjunto Palmeiras naquela época, no começo do banco Palmas, e eu queria saber como que foi o processo de convencer as pessoas, de apresentar essa ideia? Eu sei que foi orgânico, porque foi discutido no meio de uma assembleia, de uma reunião das 6:00 horas, né, mas eu queria saber como que foi a aceitação das pessoas naquela época á ideia de uma moeda social?
R – A gente já tinha um histórico da comunidade acreditar, a gente tinha uma credibilidade muito grande, e tudo mais. A ideia do banco era doida, assim, era diferente, né, era um cartão de crédito, um negócio complicado, então eu sempre vim, no bairro, a gente sempre usou o teatro de rua, pintava o rosto, fazia uns batuques, fazia muito teatro de rua, teatro de mamulengo, que é muito forte aqui no nordeste, teatro de bonecos e tudo mais, então a gente utilizava muito teatro de rua para convencer as pessoas. Com a historinha de um cara que comprava de outro, e a moeda circulava aqui, aí fez várias dinâmicas, tinha a do balde furado, que as pessoas colocavam o dinheiro no balde, depois tirava a roupa e o dinheiro escorria, nós criamos várias técnicas locais, para fazer as pessoas entenderem a importância do dinheiro circular localmente, né, e foi sendo isso, qual era a estratégia? Começar pelos grandes, então o cara que tinha o marcadinho maior, o cara que o posto de gasolina, a farmácia aceitassem, os outros iriam aceitar, porque o pessoal tem disso né, que diz assim:“ Não, se fulano aceitou, é porque o negócio é bom.” Então no começo claro, todo mundo desconfiava, acabou que nós tínhamos a história da gente ter credibilidade no bairro, e dezenas de oficinas, teatros de boneco, a gente tinha uma rádio comunitária de megafone, que naquela época era mais forte, hoje em dia nem tem mais, né, então 6:00 da manhã tinha os megafones, tinha a história da bandinha, porque também tinha empréstimo, então tinha a bandinha de música, quem ficasse devendo a bandinha ia para frente da casa tocar, dizer “Olha, ali tem um cara que não pagou o banco.” Então, isso virou quase que uma graça, como uma mitologia assim, era um negócio meio que engraçado que depois veio a moedinha de papel também, pegava na moeda, brincava com a moeda, trocava, tal, e também fotonovela, a gente fez uma fotonovela, que era uma coisa que nem se usava mais, real, onde era um casal que ia se casar, então ele vai comprar as roupas no shopping e lá a presidente da associação, isso tudo real, os personagens eram reais, a presidente encontra ele lá no shopping, e traz ele para comunidade, e mostra que tudo que ele quer para se casar, tinha aqui, o buffet, tinha a roupa, tinha o perfume para ele se perfumar, e na história vai se fotografando, se mostrando tudo isso, né, e aí era uma coisa com muito humor, porque ele era um cara assim, meio que mole, e ela era muito danada, né, e termina a história que ela leva ele pro motel, a lua de mel é no motel do bairro, que aqui tem um motelzinho, ele vai para o motel, e lá ele fica desfalecido, porque a mulher é muito ativa, e termina a história ele no posto de saúde do bairro, tomando soro, né, que a mulher dele ia matando ele, então o nome da fotonovela é “Santo de casa também faz milagre.” E você espalha isso pelos bares da cidade, todo mundo pegava isso de graça, contando a história da moeda, que a mulher comprou tudo no bairro, e foi feliz, o dinheiro ficou aqui, e depois a moeda, como os personagens eram reais, né, claro, o cara com um senso de humor muito grande, porque a galera fica “ A, vai lá, frouxo”, aquela história toda do popular, mas a cultura aqui no palmeiras, e eu fiz teatro de rua, nunca fiz teatro profissional, mas teatro comunitário, até hoje a nossa sede, nossa sede é em um teatro, você entrar na sede da associação dos moradores, e no próprio banco palmas, as colunas são redondas, o palco de nossa sede é um palco que tem uma boca de cena para a gente fazer as coisas, tem uns focos de luz, então o teatro sempre foi muito forte, então a gente sempre trabalhou muito com o humor, com a cultura, com a leveza, com o jornal, com a radio, com as pinturas de muro. Quer dizer, a gente pintava: “Compre do bairro, é mais emprego, e tal.” Você entrar hoje, hoje, nós estamos em 03 de maio, vai estar tudo pintado, né “.25 anos de banco Palma, 50 anos de conjunto do Palmeiras.” As frases espalhadas… É uma frase que o Singer tinha que é “ Ninguém supera a pobreza sozinho”, está espalhado pelos muros do bairro, então a gente sempre trabalhou muito com isso, né, e isso ajudou a convencer. É claro que a imprensa vai, com o tempo, vai crescendo, você vai dando resultados, isso vai chamando atenção da imprensa, então vai saindo nos jornais, televisão, a gente começa a se profissionalizar mais, tal, até que depois virou digital, aí sim, aí depois que virou digital, espalha no Brasil todo e enfim, que é o estado já que a gente está hoje.
P/1 – Eu queria que você contasse um pouco quem são, quando você fala, você fala a gente, quem é a gente?
R – Quem é a gente, né? Hoje nós somos aqui, é difícil falar nisso, cada momento histórico a gente foi uma coletiva, mas a gente sempre teve um processo de organização muito forte, ações de moradores, séries, creches comunitárias, organizações comunitárias, hoje nós temos o chamado “G50” , que é uma brincadeira com “G20”, com “G7”, que é um grupo de 50 organizações, entre igrejas, escolas, alguns comércios, grupos culturais, que fazem a gestão do bairro né, daí é o “G50”, são 50 associações, então a gente é muito coletivo, a gente aprendeu a ser coletivo demais por natureza, né, aí tem vários, no ‘G50” tem os consórcios de várias organizações, tudo mais. Eu não falei uma coisa, já que eu estou falando da história da minha vida, para ser justo com algumas companheiras que passaram pela minha vida, né, eu posso voltar para trás? Volta para trás, é pleonasmo, né? Em 1988 quando eu desisto de ser padre, aí eu me junto com a presidente da associação de moradores, que era a Dorinha, que era uma menina muito dinâmica, muito do teatro e da cultura, e também muito articulada, e fico com ela durante 5 anos, depois a Dorinha, enfim, não deu mais, ela fez uma articulação internacional, começou a viajar para países, foi embora para Alemanha, e de lá não voltou mais, né, mandou uma carta dizendo que ia ficar por lá, enfim, mas foi uma pessoa muito forte na minha vida, assim, minha primeira relação realmente, né, porque até lá eu era seminarista. Em 2001 já um ano depois, eu vou conhecer a Sandra Magalhães, conhecida como Sandrinha que é mega conhecida no Brasil todo, que na época ela era do governo, da prefeitura, e ela fazia aqui, a gente começou a fazer aqui o trabalho de urbanização, já com participação da prefeitura, e ela vinha representando prefeitura, ela era assistente social, e tinha um projeto muito bacana de urbanização, e tinha um conselho local, participativo, e uma vez na semana ela vinha para reunião, naquela época chama-se o… Que era reunião das associações organizadas pelo grupo Palmeiras, e claro, ela era da prefeitura, eu era da comunidade, a gente se batia muito nas reuniões, discordava tal, porque ela vinha com um pensamento do governo, tal,mas entre uma discussão e outra, a gente vai se entendendo, e lá para dois anos depois, a gente começa a morar junto, então eu fico com Sandrinha 21 anos da minha vida, e era feminista, enfim, uma mega mulher conhecida no Brasil todo, muito amiga de Singer, vai praticar dos fóruns de economia solidaria. E a gente tinha uma estratégia política, eu como era muito comunitário, ficava mais na comunidade, na luta local, e ela fazia as articulações.. Porque ela falava inglês, falava espanhol muito bem, inglês fluente, então ela fazia essas relações lá fora, e eu fazia mais para dentro, era um pouco combinado, eu voltava mais para cá, ela cuidava mais lá fora, por isso que é ela que vai almoçar na casa do Singer, né, até hoje eu tenho ciúmes disso, que não era eu que estava lá, era ela que estava lá. Pois, Sandrinha, e esse talvez tenha sido o golpe mais duro da minha vida, Sandrinha uma mulher feminista, acostumada a dar palestra sobre gênero, sexualidade, pega um câncer de mama fulminante, a gente faz tudo que pode, leva para todos os médicos, faz quimeo, faz cirurgia, e morre rapidamente, né, em 2013, agora, 14 de junho, vai fazer 10 anos da morte de Sandrinha, e foi um golpe muito duro, tanto para nós, enquanto instituição, grupo Palmas, e tudo mais, quanto para mim, porque ali tinha um negócio que ia muito além da vida afetiva, só amorosa tal né, era a pessoa que eu fazia dobradinha, era o braço forte assim, na articulação, e era, além de tudo ela deixa órfã a articulação política da casa, porque ela que fazia a relação internacional, a relação externa, né, e aí coube a mim também, em ser muito meu forte, de fazer essa coisa lá fora, até hoje a gente sente muito isso, né, alguém que faça essa articulação lá fora, tal. Mas assim, não pode falar da minha, já que eu estou falando da minha história de vida, não pode passar da minha história de vida sem falar de Dorinha e sem falar de Sandrinha né, as duas... Inclusive parecidas, só que a Sandrinha era mais intelectual, um pouco mais, a Dorinha não, era mais comunitária mesmo, mais de base, mas enfim, todas as duas.. Uma está no céu, a outra está na Alemanha, a Dorinha ainda é uma grande militante lá na Alemanha até hoje, é, e a Sandrinha está no céu. Segue a vida contigo.
P/1 – Como foi esse momento de vivenciar o luto e também ter que readaptar a realidade do banco Palmas?
R – Essa história de luto, é uma coisa muito difícil, porque cada qual tem uma história, eu não sei, eu não sei se eu superei o luto, faz 10 anos, até hoje eu tenho aliança, o pessoal pensa que eu estou casado, até hoje é a aliança da Sandrinha, eu nunca tirei do dedo, né, outras pessoas devem fazer isso também, eu acho que essa história é assim, não sei, você se acostuma, é, para mim era muito difícil, porque era uma dupla, literalmente, uma boa parte das pessoas da economia solidária do Brasil que nos conhece, conheceu eu e Sandrinha né, os dois muito fortes, muito comprometidos, tal. A gente tinha uma relação muito forte assim, de compromisso de vida, né, embora a gente viajasse muito, a gente morava junto, e trocava muito e ela era muito assim, competente, dedicada, passiva muitas coisas, ela não começou aqui, fui eu que comecei, ela chegou no meio da jornada, mas ela terminou preenchendo um espaço muito grande, então é uma coisa muito difícil porque era quase como perder, ficou um buraco dentro da instituição que a gente não tinha como preencher, porque uma coisa é eu contratar um técnico para fazer isso, outra coisa é uma pessoa que ficou com a gente, que fez parte, inclusive quando a Sandrinha chega aqui ela ainda chega na parte de construção do banco Palmas, então ela estava muito presente até na construção, então foi uma história de vida muito grande. Aí eu peguei e mudei, essas coisas são meio doidas, assim, cada qual supera de um jeito, se você entrar hoje na casa que a gente morava, ela está igualzinha eu não mexi em nada, está lá há 10 anos, os móveis, do jeito que ela saiu da última vez, estão lá, eu não tenho coragem, algumas coisas derretem, sapato se acaba sozinho, algumas coisas se acabam sozinhas, se destrói, mas até hoje eu não tive coragem de acabar com a casa, né, de me desfazer da casa e dos móveis, embora eu não more mais lá, quando ela morre eu vou morar com a mãe dela, porque ela cuidava da mãe, embora a mãe dela seja uma pessoa muito lúcida tal, mas era uma senhora de 70 anos de idade, e ela que dava apoio, então eu vou morar com a mãe dela, passo 3 anos morando com a mãe dela, fazendo as coisas que ela fazia pela mãe, e aí veio um neto morar na casa lá com a mãe dela, e eu resolvo sair, eu também não ia poder ficar lá pelo resto da minha vida, e venho ficar aqui morando na pousada do palmeiras. Há uns 4 anos eu fico morando aqui vizinho ao banco, que é nossa pousada, eu não quero voltar para casa que eu morava com a Sandrinha, e eu fico morando na pousada, que é mais perto do banco, tem mais sentido para mim do que voltar para casa, enfim essas coisas da vida né, que cada qual faz de um jeito, meu jeito foi assim, mas não tem jeito, essas coisas da vida você tem que pegar e tocar a vida, né, como sempre a gente fez, com foco, tocando a vida e tal, mas a morte da Sandrinha, a perda dela, isso aí tudo foi o fato mais, digamos, difícil né, de eu contornar na vida. Embora a gente não tivesse filhos, e tudo mais, mas foi o fato mais forte, aí não sei, aí tem que deixar por psicólogo dizer se superou se não superou, mas enfim, eu toquei minha vida e faço as coisas hoje. Eu acho que minha vida toda, eu acho que assim, eu acho que eu nunca deixei também... Eu acho que eu nunca deixei de ser uma espécie de um “sacerdote”, entre aspas, né, porque a minha vida toda foi aqui, eu nunca estudei, embora tenha terminado teologia, mas enfim, é um curso que eu fiz por conta de ser padre, resolvi não ir para universidade, resolvi não ir para os partidos políticos, eu poderia ser ou vereador, ou deputado, tal, pela base enorme que a gente tem aqui, eu não resolvi ir para sindicato, eu resolvi ficar no movimento popular. E dentro do movimento popular, nesses últimos anos, o movimento de bancos comunitários. Não tenho filhos, moro em uma pousada comunitária, isso me dá uma leveza muito grande, de assim, quando você não tem na vida o que perder, você fica muito leve, né? Então, eu tenho muita facilidade de fazer qualquer coisa que eu queria fazer, de ir para qualquer canto, enfim, porque eu não tenho, a minha mãe mora em Belém do Pará com a minha irmã, minha irmã é viva até hoje, cuida da minha mãe, de maneira que eu também tenho uma liberdade, uma liberdade assim, no sentido, de não ter compromisso assim, eu não tenho assim, compromissos, eu não tenho filhos para criar, eu não tenho quem sustentar, eu não tenho uma casa para me preocupar, porque a pousada lá o pessoal toma conta né, a nossa pousada comunitária, então eu tenho tempo para fazer as coisas que eu quero fazer, de me dedicar a luta, a organização popular, e assim eu quero ser visto quando eu morrer... Adoro aquela frase do Cortela... No meu túmulo dele teria assim: “ Aqui jaz (o nome da pessoa) contra a sua vontade.” Poderia ter isso no meu túmulo também “Aqui jaz Joaquim contra sua vontade” mas, assim, já tenho 62 anos, 61 né, porque eu conto sempre um ano a frente, já fiz 61 em abril, então começou o 62, já tenho 62 anos, então a gente começa a se preocupar muito mais com o que vai ter lá em cima do que com aqui em baixo, mas enfim, é assim né, estou bem desse jeito.
P/1 – Joaquim, você estava falando sobre a articulação, e eu queria saber da articulação do banco palmas dentro do Brasil com outras moedas, com outros bancos comunitários, com outras moedas sociais, como que se dá essa articulação entre os bancos comunitários hoje.
R – O banco palmas fez uma coisa fantástica no Brasil, não só porque a gente foi o primeiro banco comunitário né, a gente foi o primeiro banco comunitário, passamos por todos os processos... Na nossa vida, multiplicamos isso em vários outros locais, é claro, surgiram outras organizações também, ONGs, universidades também começaram a entender a metodologia, e passamos pelos processos do banco central, conseguimos um fato inédito que foi se digitalizar, inédito porque é caro, aquelas moedas sociais, a gente criou uma plataforma digital, porque a plataforma é dinheiro Brasil, nós enfrentamos, quando acabou as SENAES, muitas organizações começaram a fechar a partir dali, os bancos continuaram, depois veio o impeachment, acabaram com as SENAIS, e nós continuamos fortes pelo Brasil, depois veio uma pandemia, e nós continuamos fortes no Brasil, prenderam o Lula e nós continuamos. O que que foi a grande contribuição do banco Palmas, primeiro ter organizado essa rede, ter capacitado outros autores, ter se digitalizado, e ter convencido prefeituras, isso que a economia solidária do Brasil é importante, a gente convenceu prefeitos que eles poderiam também criar bancos locais, bancos municipais, comunitários municipais, que a gente chama hoje. Primeiro foi em Maricá em 2013, depois entrou Niterói, depois o Rio de Janeiro foi um atrás do outro, usando a nossa plataforma, então o que está lá é o DNA dos bancos comunitários, eu sei que cada prefeito chama de um nome, tem prefeito que prefere dizer que é a marca é dele, não tem problema, mas toda essa rede brasileira utiliza uma única plataforma digital, autogestionaria que é nossa, é da rede brasileira, que hoje está em 150 bancos, 90 municípios, 20 estados, já são 10 prefeituras, prefeituras do nordeste começam também a entrar. Agora todos esses bancos comunitários, hoje digitais, utilizam a plataforma, e aí é uma produção bancária, você não cria uma plataforma digital, um banco digital sem ter um suporte, tanto de T.I, de programador, desenvolvedores, como suporte mesmo, que seria “Ou, perdi minha senha, olha meu dinheiro desapareceu, eu não reconheço tal conta”, então toda essa parafernália de computadores, digitadores, pessoal do suporte, continua aqui na favela do conjunto Palmeiras, então hoje essa grupo que iniciou, o mérito dele é só por ter iniciado, e só depois ter passado, esse grupo que mantém viva essa, e não é feito Robin Hood, é claro, a prefeitura como a de Maricá, que paga 30 milhões, por mês de benefícios sociais, a gente cobra uma taxa de 2%, um percentual fica pro local, um percentual vem para rede, então esses grandes bancos, que tem muito dinheiro, muito envolvimento, subsidiam os que têm pequeno, isso que é o barato bom da rede, que a própria prefeitura no interior do Amazonas, que tem uma movimentaçãozinha ali pequena de 10.000, 15.000, não ia pagar o custo de uma plataforma digital caríssima, programador, desenvolvedor, segurança, então que tem mais... Eles nem sabem disso, que é com dinheiro de quem está usando mais, gerando mais taxas, possibilita que os pequenos bancos, que jamais poderiam usar uma plataforma digital, possam utilizar. Então, foi aqui, por isso eu ainda tenho um sonho na minha vida, não acabou não, é porque se eu não fizer logo eu não vou conseguir, eu quero escrever um livro, eu estou escrevendo já, que é escrevendo do palmacard, que era feito no mimeógrafo as moedas digitais de alta ponta no Brasil, né, como os bancos comunitários mudaram o Brasil, é “Do palmacard a moeda digital”, essa tecnologia sofisticada hoje, agora nós estamos no bloco no bloco... Tem toda essa parafernália, mas isso começou aqui, isso continua sendo mantido, gerenciado por pessoas da periferia de Fortaleza, isso é muito importante de ver, então quando você entra no grande município, que é o município de Niterói no Rio de Janeiro, utilizando a moeda... Fazendo a suas compras, ou em Maricá com os royalties do petróleo, eu fiquei arrepiado quando eu vi no intervalo do Fantástico a propaganda de Maricá, o programa lá com o PPT, rodado na plataforma digital dos bancos comunitários mantidos por jovens da favela. Então, de manhã cedo, para quem conhece o Palmeiras, chega 8:00/7:30 da manhã, 30 jovens sentam nos seus computadores e vão fazer com que o Brasil possa operar poupança favela, então isso para gente, para economia solidária é muito importante, e para a gente aqui do bairro, ter essa rede de pé. E hoje foi um dia importante, eu estou gravando isso é 3/05/2023, hoje foi o relator da proposta do Paulo Paim, possibilita que o bolsa família seja pago por bancos comunitários, é claro, pra quem quiser pagar, hoje o relator deu o voto favorável, então nós estamos perto de uma grande mudança do país, seria um programa bilionário como o bolsa família, poder ser pago na sua comunidade, pelo banco que agrada sua comunidade. Então, eu tenho um orgulho disso, sabe, assim, gigante, é claro que se você perguntaR – “Mas, oxi, muita gente está melhor? Tem muita empresa que já faz isso.” Mas, não distribui, não distribui, a gente faz isso, e o lucro, a riqueza gerada é distribuída, então hoje tem cerca de 2 milhões de reais que arrecada, com essas taxas, com juros, com não sei o que, que é distribuído por esses bancos no Brasil inteiro, gerando e distribuindo riqueza, e mantido pelos jovens da periferia de Fortaleza, então a gente tem muito orgulho disso, e eu vou contar essa história no livro, se eu não contar logo, não vai dar tempo, porque minha memória está se acabando já, né, já tenho tanta coisa para contar que a memoria falha. Mas sabe que antes de ontem chegou aqui: “Porque o senhor não fala no podcast”, eu disse: “Rapaz, o cabra está doido para fazer um livro, o outro chega e aconselha a falar um podcast.” Mas, enfim, eu sou muito orgulhoso assim, eu te digo de coração assim, eu, assim, tem muito orgulho do que a gente fez, do que a gente construiu, da maneira como a gente ficou aqui, porque poderia, muita gente diz assim, a gente sofre muitos preconceitos, sabe? O pessoal aconselha que nossa sede e matriz vá para o Rio de Janeiro, porque é lá que estão os maiores clientes, é lá que estão as prefeituras, ou em São Paulo, tem gente que diz assim: “Rapaz, sabe qual é o problema? Você fala assim ‘A, 2022 movimentamos 1,5 bilhão’, aí vai lá e procura banco Palmas, é dinheiro Brasil, quando vê a sede lá no conjunto palmeiras, em Fortaleza, na favela do Palmeiras, o pessoal não leva a sério isso não, o pessoal pensa logo que é mentira e diz logo ‘Rapaz fui enrolado aí, não é possível, que essa dinheirama toda desses bancos todos, essas prefeituras, sejam o povo lá da periferia de Fortaleza.’ Então, se você vier para São Paulo, abrir uma sede aqui bonita, ou no Rio de Janeiro, vão te dar mais moral.” Mas, qual é o sentido, meu Deus, que faz isso? A riqueza disso é que nós ficamos aqui, construímos no Brasil inteiro, a nossa sede é aqui, são jovens daqui, é claro, que em cada canto tem seus funcionários, né, mas a matriz, a sede, é aqui, onde tudo começou, né, esse é o grande barato. É isso aí.
P/1 – Joaquim, eu queria saber assim, depois desses 25 anos, e ainda acredito que muitos a frente, eu queria que você refletisse, como que a economia solidária, esse banco comunitário, e o trabalho autogestionado e coletivo, impactaram a comunidade de uma maneira geral, do conjunto Palmeiras?
R – Eu nem sei se a pergunta é ao contrário, talvez eu diria assim, como é que essa comunidade organizada, mobilizada, com histórico de consciência, uma cultura da solidariedade sempre, impactou na criação desse banco e desse movimento, é claro que hoje em dia uma coisa que vai e volta, né, é aprendendo, e ensinando como diz a feira de Santa Maria, aprendente e ensinante, é uma palavrinha assim. Eu acho que o banco Palmas está para o palmeiras, para as lutas do Palmeiras, como o grupo Palmeiras está para o banco Palmas, foi uma coisa muito coletiva, sabe? Eu acho que o banco Palmas ele vai revigorar essas caminhada que foi todos os mutirões, da resistência, depois o banco, depois outras conquistas, eu acho que foi uma coisa que tem muito a ver, eu acho que o Palmeiras inspira muito a gente, você vem hoje aqui e continua pobre, as casas são humildes, os prédios são pequenos, mas o que era antes, o que é hoje, então acho que essa auto estima que o povo tem até hoje , até hoje se tem muito palmas, consórcio, as paredes pintadas, “Deus criou o mundo, nós construímos o conjunto Palmeiras”, essa frase até hoje está em todas as partes do bairro, nas paredes do bairro, na pracinha do bairro está escrita “Deus criou o mundo, nós criamos o conjunto Palmeiras “, eu acho que essa coisa de superar, a síndrome da... Que não pode, que não sei do que, de que precisa das grandes empresas, eu acho que isso é uma coisa que nós ajudamos muito uns aos outros, eu achei, esse é um desafio hoje dos nossos líder comunitários, não só lideres comunitários, sindical, partidário, que acha que tem que se afirmar por ser grande, estar em São Paulo, por dizer que faz parte de uma grande empresa, que é patrocinado por uma grande empresa, mostra paletó, porque acha que o paletó você pode ter direito, eu sei que você pode usar o que você quiser, paletó, gravata, mas não precisa se afirmar por aí , eu acho que o bonito é dizer que eu sou daqui, né, o maior indicador de crescimento que eu tenho é dizer que nós fizemos o que nós fizemos, e nós estamos aqui. Se eu tivesse hoje morando em São Paulo, ou no Rio, minha sede estivesse lá, eu seria mais um, não seria uma economia solidária da vida, que é a economia que junta as pessoas, que se juntam para viver, acho que a minha história é um pouco disso, não é porque eu não tenho, que eu sou um santo que quis ir para o convento, e resolvi… A vida me conduziu assim, é claro que eu fiz escolhas, tal, mas foi assim, eu sempre estive aqui, sempre lutei, fiz o banco, me casei, uma foi embora, a outra morreu, e fui morar na pousada, veio o banco, me digitalizei, eu viajo e volto para cá, eu passo um dia, 20 dias no Rio, e viajo para cá, e sofro preconceito demais, né, acredita, tudo mais... Mas, eu acho que é uma coisa natural, certo, da vida, da comunidade, da comunidade com a vida, eu faço parte desse produto, sou um produto desse processo todo que teve aí, né, de coisas, de realizações que aconteceram. É claro que você tem suas méritos, porque eu não sou uma pessoa, assim, que não tenho meus méritos, de ter buscado, de ter estimulado, de ter animado a comunidade, para mim isso é a maior, esse é maior papel de um, sei lá, de um animador, de um homem comunitário, de um líder, é animar uma comunidade, você é um animador, você é uma pessoa que faz com que as pessoas pensem e tenham certeza que vai da certo, tal. Então, eu acho que eu cumpri bem esse papel, eu quando vejo nossa festa de 25 anos aqui, a quantidade de jovens de pessoas da comunidade que produziram o evento, que fizeram o evento, quando eu vejo de manhã cedo, é uma coisa para a gente filmar assim, para ver 8:00 da manhã a quantidade de jovens que dão turno no Brasil inteiro, que fazem, e é uma coisa que mexe com bilhões de reais, então a responsabilidade desses meninos de mexer nos computadores, mexerem nas contas bancárias, trocar de senha, como a geração se formou, alguma coisa assim... Tinha nossos cursos, que nós demos, mas é a própria personalidade, que acho que as pessoas hoje, já nem me levo tão a sério, porque tudo é digital, e eles gostam de me sacanear muito, com os nomes digitais todos, mas eles me tem como a referência de uma pessoa que se doou a vida toda, que fez as coisas acontecerem, e que formou uma geração. Se eu desaparecer hoje, que vai acontecer de alguma forma, se eu morrer, sei lá, o banco não sofria nada, ele vai continuar do jeito que continua hoje, claro que sofre né, claro que enfim, é uma inspiração a menos, mas todo mundo aprendeu a fazer as coisas, todo mundo sabe tocar tecnicamente, todo mundo sabe tocar do ponto de vista de animação da comunidade, eu acho que isso é uma questão fundamental né, como é que se cria essa nova geração, né, ficando bem com isso, né, de forma saudosista não “A, porque eu vou morrer.” Não é isso não, eu espero não morrer nunca, mas eu tenho certeza que tem toda uma geração que já está preparada para tocar o barco, né, o que é muito bom.
P/1 – Como você vê o futuro do banco Palmas?
R – Eu acho que esse futuro está muito próximo do que a gente imaginava ser, nosso slogan, se você entrar em nossa sede, um dos cartazes lá de trás, 2001, era assim “cada município vai ter o seu banco, banco Palmas, cada munícipio pode ter o seu.” Até hoje eu tenho esse cartaz pregado lá na associação, já velhinho. Eu acho que nós estamos perto disso, eu acho que o banco comunitário no Brasil, com a história dos bancos municipais que estão entrando, cada dia, não tem um dia que passe que um prefeito não peça orientação, como é que coloca um banco no seu município, fora as comunidades que são várias, as comunidades não tem dinheiro, as prefeituras conseguem ter, esse diálogo com o governo central, com o governo federal, essa possibilidade de engatar no bolsa família. Eu acho que nós estamos mudando a cultura financeira no Brasil, que é. O pior que tem, o sistema financeiro no Brasil é pior de todos, é o mais centralizado, enfim, é o mais carrasco, mas eu acho que se abre no Brasil a ideia de que não se tem mais como segurar o sistema financeiro do Estado, que precisa de novos bancos, que precisa de novas moedas. Aí tem todo movimento também da tecnologia, das criptomoedas, dos cripto... Tal, não é o que nós fazemos, mas há um ambiente favorável, eu acho que muito em breve nós vamos ter no Brasil um movimento fortíssimo de gestores públicos da sociedade civil, brigando, e lutando, e implantando bancos nesses locais, eu arriscaria dizer, que nos próximos 3 anos o município que não tiver um banco local, um banco que faz seu arranjo de pagamento, uma moeda social, um sistema financeiro ali circulando, ele vai estar fora do baralho, é como se não tivesse uma escola, é como se ele não tivesse o posto de saúde. Eu acho que o banco Palmas vai deixar esse legado para o Brasil muito em breve né, que pela nossa metodologia, o banco Palmas só pode ter no Palmeiras, mas quando eu falo banco Palmas, eu falo a rede de bancos comunitários, essa ideia no Brasil, nós nunca estivemos tão perto de ter realmente uma expansão, uma política pública, e eu diria com muita convicção, que nós vamos estar no movimento de crescente dessa nova modalidade, né, a gente tem conversado muito com Gilberto Carvalho, com o pessoal das SENAES, e todo mundo tem isso como uma coisa certa, ou a gente enfrenta o sistema financeiro de cara. Não é... Mas, enfrentando essa nova modalidade, nunca eu acho que se teve um momento tão sensível, eu acho assim, que com 25 anos o Brasil descobriu que é possível fazer, claro que digital ajuda, mas os prefeitos descobriram, o governo federal descobriu, olha quantas emendas não estamos no governo federal hoje? Paulo Paim ainda hoje pregou, o deputado que era o relator me ligou “Olha, nós vamos aprovar hoje a medida, tal.” Quer dizer, ou seja, isso tem hoje se espelhado pelo Brasil de forma muito concreta, então eu estou muito esperançoso, muito esperançoso, de que o banco Palmas... Como aqui é só nós, se os bancos comunitários no Brasil vão crescer, e se Deus quiser nós seremos 5600, com a matriz aqui em Fortaleza, né, se deixarem no conjunto palmeiras. É claro que vão surgir, hoje nós temos uma plataforma digital, que é o “É dinheiro” evidentemente, que o “É dinheiro” sozinho não dá conta do Brasil inteiro, mas quando essa ideia for para frente, e as pessoas foram, vai existir dezenas de... Dezenas de outras moedas, dezenas de outras organizações, e nós nos esforçamos pra isso, nós seremos mais uma, né, o “É dinheiro” no Brasil, será uma, a gente não vai dar conta de 5600, a gente vai gerar uma cadeia produtiva de computadores, de smartphones, de chips, de todos os equipamentos que a gente usa para colocar a moeda para frente vai surgir no Brasil, uma cadeia produtiva gigantesca, e o que é bom que aconteça né, a gente está torcendo para acontecer isso.
P/1 – Joaquim, e como que o Covid 19, a pandemia impactou, se teve algum impacto no bairro e no banco, e na sua vida também?
R – Olha, os bancos comunitários cresceram muito na covid, nós éramos digitais, nós tínhamos uma metodologia de credenciar comércios, de distribuir dinheiro a distancia, nós arrecadamos mais de 13 milhões de empresários e beneficiamos mais de 20.000 pessoas no Brasil todo, que abriu sua conta digital a distância, credenciava o comércio do bairro, nós mandávamos dinheiro, eles compravam dos comércios locais, isso foi muito bom. No conjunto palmeiras, é claro, as comunidades que estavam mais organizadas no Brasil inteiro sofreram menos, a gente sofreu muito, tiveram muitos companheiros nossos que morreram, lideranças que morreram, mas nós conseguimos dar uma assistência de alimentação, de comida, de remédio muito forte aqui no bairro né, como outras comunidades no Brasil também fizeram. Eu digo até isso no livro, que se Deus quiser vai sair, né, que assim, quis a história, que eu tivesse em Maricá, Rio de Janeiro na pandemia, por força do trabalho, dos contratos que a gente tem com as prefeituras, eu tenho que ir lá de 15 em 15 dias, ver no Rio de Janeiro, trabalhar naquela região, para poder da assistências, acompanhar e tudo mais, então no inicio de março de 2020, eu fiz uma viagem de rotina para Maricá, para acompanhar lá o banco, com 3 dias o Brasil entrou em lockdown, e assim, fortíssimo, entre descobrir a pandemia e entrar em lockdown, foi até aquela coisa do “fique em casa, fique em casa” todo mundo usando máscara, e aí os aeroportos fecharam, e eu não tinha mais como voltar, e a prefeitura de Maricá chamou e disse: “Olha, a gente vai ter que fazer um trabalho gigantesco...” Já tinha o trabalho lá... “ Vamo ter que fazer um trabalho gigantesco de assistência, vamos ter que criar vários programas, voluntários, de amparo ao trabalhador das empresas, e vai ser tudo com a moeda social, vocês já estão aqui mesmo.” Então eu fiquei toda a pandemia a parte mais grossa, de março até setembro, novembro, setembro, eu fiquei em Maricá, a cidade em lockdown. Interessante, por que não tinha onde a gente ficar, eu fiquei em uma pousada lá, só que pelo lockdown as pousadas fecham, né, e eu fiquei com a chave da pousada, era uma pousada de 4 andares, eu fiquei morando em uma pousada com a chave, eu não tinha onde ficar, o cara deixou que eu ficasse lá, mas com a pousada fechada, porque se não era multado e tudo mais, e nós fizemos muitas coisas em Maricá, os projetos da prefeitura todos, vários programas, isso terminou que deu muita visibilidade para o banco também, né, o banco depois foi premiado, o banco... Que é da nossa rede, né, é de Maricá, a plataforma “É dinheiro” ficou muito conhecida, eu ganhei o premio da Folha de São Paulo do legado da pandemia, então deu muita visibilidade, só que eu passei a pandemia o mais forte em Maricá, mas de Maricá que tudo era digital, a equipe aqui local do banco Palmas fez um trabalho gigante, e a gente pode atender muita gente na pandemia, e o banco cresceu, enfim, como tudo que foi digital que cresceu na pandemia, né? Mas, o banco pelo fato de ser digital e conseguir distribuir os recursos, e o fato também de Maricá , que Maricá depois da pandemia o ... Subiu, o emprego subiu, porque o prefeito jogou muito dinheiro, e como a gente estava lá foi possível a gente segurar o tranco e botar a plataforma pra rodar e tudo mais, né. Não peguei covid, fui pegar covid depois, já muito tempo depois, já estava até vacinado já, então não tive nenhum sintoma, tive sintomas muito leves de covis, não tive sequela nenhuma, graças a Deus né, mas teve muita gente nossa que morreu no bairro né, poderia morrer muito mais, mas a gente conseguiu atenuar, eu pelo menos socorrer quem a gente pode, graças a Deus eu não sai com nenhum problema maior da pandemia, né, graças a Deis e a vacina, né. Não virei jacaré, que foi importante.
P/1 – Joaquim, eu queria saber o que o banco Palmas representa na sua vida?
R – Tudo, assim, há 25 anos eu não faço outra coisa da minha vida, literalmente eu não faço outra coisa, né, eu não escrevo sobre outro tema, não converso sobre outro tema, eu não vou para uma reunião que não seja esse tema, eu não faço outra coisa, há 25 anos no Brasil, eu faço não só o banco Palmas, o banco Palmas é uma referencia, eu faço essa rede de bancos comunitários, conversando com prefeitos, conversando com articuladores, todas as minhas viagens, então os bancos comunitários, o banco palmas é o maior, nossa sede, mas os bancos comunitários, eles representam tudo na minha vida, os 25 anos, tudo que eu fiz nos 25 aos para cá foi em torno disso, tudo que eu li foi em torno de finanças solidarias, economia solidaria, todas as minhas conversas, meus relacionamentos, minhas projeções, meus projetos que eu escrevi vários, foram sobre o banco comunitário, então uma relação assim, tanto que agra eu moro na pousada que chama-se assim: “Palmatour” que parece que é para você dormir e não esquecer né, tem uma plaquinha lá fora “Palmatour”, então eu saio daqui abro o portão, durmo, se a pousada cair eu vou dormir dentro da minha sala aqui no banco Palmas, mas foi uma grande, o Palmas foi o maior evento da minha vida, né, se eu poder fazer assim, a maior construção. Claro que a história do banco se confunde com a história do bairro, né, ninguém pode falar do banco sem falar do conjunto do Palmeiras, mas foi daqui... Até hoje a grande referencia, que a gente fez as coisas todas que a gente fez no Brasil, as cosias todas que eu falo é só o banco comunitário, mas hoje é grande, hoje é uma rede, que se mantem viva, não é fácil, porque se fala há 25 anos, é ¼ de século , não é ¼ de século parado, é se movimentando, agitando, crescendo, construindo, largando a discussão, o debate, tudo mais, né, mas sem o banco palmas não sei, talvez eu tivesse sido advogado, né? Que era a vocação... Ou então padre, voltado a ser padre, mas não tem perigo não, é isso mesmo. É bom assim, eu acho que você , as vezes você faz umas opções de vida que você carrega para sua vida toda né, e você olha para trás e fala assim “Foi certo, e fez tudo isso.” Bem legal.
P/1 – E você estava contando do sonho de escrever um livro, e eu queria saber quais são seus outros maiores sonhos hoje?
R – Escrever o livro, escrever o livro. Eu tenho um receio, eu tenho muito medo da meritocracia, eu acho que esse movimento em bancos comunitários, e moedas sociais, nesses movimentos que crescem no Brasil, têm muitas empresas, corporações, se incorporando da narrativa, o que é comum, entendeu? Eu também faço banco comunitário, eu também faço moedas sociais. Aqui, mesmo nos 25 anos, várias empresas privadas vieram para fazer negócios “A porque eu tenho uma tecnologia muito maior que a de vocês, uma tecnologia melhor, a gente poderia se juntar e fazer isso numa escala maior para o Brasil, e tudo mais, tal.” A nossa diferença é que quem distribui riqueza, a gente não basta ser grande, não basta estar grande por um tempo, tem que distribuir a riqueza gerada, então eu tenho muito medo da meritocracia “Porque eu faço melhor.” Essa área tecnológica, eu sei que tem muita tecnologia melhor que a nossa, o meu medo é dos prefeitos, dos gestores, dos companheiros, embarcarem nessa história de querer o melhor né, eu sempre digo que não tem um dia que passe que alguém me ligue, do setor privado, do setor publico, e diga assim “ Olha, eu tenho uma funcionalidade para descobrir, não sei quem faz, ou o chinês faz, eu não sei que faz, consegue fazer um... Melhor que o seu.” Eu sei, que tem muita gente que tem tecnologia melhor do que a nossa, isso aí é muito bem a quem está a serviço a tecnologia dele. Nosso negocio tem que funcionar, é bom, mas a principal riqueza dele é que ele é nosso, ele é autogestionado, ele é de uma organização da periferia da cidade, ele gera e distribui riqueza. Aí tem uns prefeitos que, hoje não é dinheiro, contratou com a gente, que chega aqui com as coisas, “Porque teve uma multinacional que me ligou” . A pergunta que você tem que começar para ele é se essa tecnologia é melhor ou pior, distribui ou não distribuiu a riqueza? A gente não pode perder isso, o risco da meritocracia, nos momentos que o Brasil se volta com esse tema, é gigante. Então eu tenho medo dessa história ser perdida , porque as grandes corporações, bancos, e adquirindo esse cartão e tudo mais, por isso meu sonho e me dedicar para fazer o livro, eu quero contar isso, né? Esses bancos comunitários do Brasil hoje, desde os mais ricos, que geram milhões de reais por mês, até os pequeninhos do Amazonas, é a mesma história de 50 anos atrás, das barracas que foram construídas no Palmeiras, é a mesma história do palmacard, que foi evoluindo, evoluindo, evoluindo, hoje nós estamos onde estamos, mas é a mesma história, o propósito sempre foi o mesmo, distribuir riqueza, não pode deixar, ainda hoje falei com Paulo Paim, a gente não pode deixar, sabe, que... “Ah, será que não era bom a gente abrir pro mercado?” Pode abrir pro mercado, desde que a lógica não seja do mercado, não é só ganhar dinheiro, é distribuir riqueza né, é por isso que eu estou muito dedicado agora a escrever o livro, dedicado assim, um dia eu escrevo, um dia eu viajo, um dia eu estou. Mas, eu não tenho muitos sonhos, não, sabe Bruna? Eu não tenho sonhos assim, eu acho que a minha vida vai terminar aqui mesmo, no banco Palmas, morando na pousada, construindo o debate dos bancos, alarmando, eu tirei agora para escrever o livro para contar como é que tudo isso começou, e como é que nós chegamos aqui, nunca esquecer disso, dessa história, e eu lhe juro que eu não sonho assim, não tenho mais nenhum sonho maior, acadêmico, e afetivo, financeiro eu nunca tive, graças a Deus, graças a Deus eu nunca tive dinheiro, e graças a Deus eu vivo muito bem assim, né, eu só assalariado, ganho meu salário no banco, e daí eu não quero passar disso. Então eu não tenho, o meu sonho é continuar fazendo o que eu faço, é isso, com saúde né, a saúde para mim agora é muito importante, que eu possa ter saúde. E não perder o humor, eu sei que as coisas são difíceis, eu sei que cada vez mais a gente vai fisicamente ficando mais, não tem tanta energia como antes, mas eu acho que das coisas que eu mais gosto em mim mesmo é a capacidade de brincar, de fazer humor, de fazer alegra tal, de divertir as pessoas, de falar com humor. Nós estamos no momento, enfrentando um momento dificílimo, muitas corporações, quem nós acompanha está acompanhando isso, o ataque está sendo violento, tem muitas empresas privadas... Mistério público, tribunal de contas, tentando criminalizar de novo os bancos comunitários, as moedas sociais, nós estamos passando novos processos, e a gente acha que vai superar, mas também já está acostumado com isso, né, está acostumado com isso. Agora isso não pode tirar a alegria, né, vai ter que enfrentar tudo isso com leveza, e tenho conversado isso com... Com leveza eu vou, o meu medo é, do ponto de vista político a meritocracia, e do ponto de vista pessoal, isso para mim seria uma grande dor, seria eu me entristecer, ou me cansar de ficar alegre, ou as contradições, as injustiças, fazer com que eu perca essa capacidade de ficar sempre bem, alegre, bom humor e alegria, essa é o meu papel, animar a comunidade, então eu quero ficar velhinho, e quanto mais velho, mais... Deve me achar engraçado, porque eu vou brincar. Eu tirei minha carteira de idoso no dia que eu fiz 60 anos, todo dia, porque você não está aqui, a palhaçada é grande, porque aqui todo mundo é nerd, né, a garotada tecnológica, então eles mangam de mim, mangam do celular, e baixam os aplicativos que eu não sei , e nesses brincadeiras a gente vai construindo, né? Embora eles gostem, me respeitem muito, mas é isso, eu tenho uma meta no momento, escrever o livro, mas os sonhos são os mesmos de sempre, né, não tenho tantas ousadias maiores daqui para a frente
P/1 – Eu só tenho mais 3 perguntas, a gente já está chegando ao fim, a primeira delas é qual o legado que você deixa para o futuro?
R – Do ponto de vista prático, do ponto de vista digamos, mais quantitativo, os bancos comunitários, isso é um legado para o Brasil, eu acho que daqui a 200 anos o Brasil, se acabasse hoje o banco Palmas essa história seria, o que nós fizemos no Brasil, pautar os bancos comunitários, as moedas sociais, a maneira como isso cresceu no Brasil, a maneira como isso está hoje no banco central, em todos os cantos, esse legado está dado, né? A caminhada dos bancos comunitários, eu acho que no futuro, o que que eu deixo, eu acho que a contribuição de fazer comunidades fortes, fortes, eu não gosto do termo potentes, tal, que as vezes essa potencia é assim, de você conseguir que a comunidade, todo mundo se empregue, tal, pode ser a potência de ser uma comunidade animada, que briga por direitos, que briga, que reivindica, que luta, que não quer ser empregado de ninguém. Não é fazer projeto para comunidade virar empregado dos outros, que ela pode criar seus próprios empreendimentos, suas próprias cooperativas, de que ela pode ser empreendedora nesse sentido, que ela pode resolver seus próprios problemas. E a molecagem, vou insistir na molecagem, na alegria, porque esse para mim é o grande papel de um líder, animar as pessoas, né, então se você vem aqui no banco palmas, não sei se você já veio né, o pessoal é muito maneiro, tem muita cooperativa, tem muito trabalho, é muito maneiro, então eu acho que esse é um legado da vida comunitária, da autogestão, da vida comunitária, do líder que ajudou a criar todo um bairro, que ajudou a criar o movimento no Brasil, e continua na comunidade simples, né, eu não quero estar de paletó em São Paulo, porque no Brasil tem um problema, não sei da onde é que começa isso, do indicador de crescimento, a pessoa cresceu se ela saiu da comunidade, perguntam “ Onde é que você está agora?” “ No Palmeiras.” “Ixi, ainda está lá?” Então não cresceu, não saiu da favela, né? Então, as pessoas tem que achar que bom é você continuar onde você está, alegre, feliz, você pode crescer e viver bem aqui né, então tirar das pessoas essa ideia que elas têm que ir embora. Ainda tem a hierarquia dos movimentos “Está aonde”?” “Em um movimento popular, comunitário.” “Rapaz, não deu nem para ir para um sindicato, um movimento estudantil? Tem que fazer parte de uma central.” “Não, estou lá no palmeiras.” “Rapaz.” Isso não pode ser, você tem que trazer essa coisa de que o bom é você ficar aí, desde que você fique bem, que faça os outros ficarem bem, né, nem sei mais qual era a pergunta de origem, acho que eu fugi da pergunta.
P/1 – Era sobre o legado, eu acho que você respondeu bem. A outra pergunta é se tem alguma coisa que eu deixei passar, que eu não te perguntei? E caso não tenha nenhuma história que você queira contar, eu queria que você deixasse uma mensagem.
R – Olha, quando você faz 61 anos de idade você tem muita história na sua vida para falar e para contar, mas eu acho que a gente conversou um pouco sobre tudo, e também porque eu acho que a minha história é simples de ser contada, porque ela é uma coisa linear, uma pessoa que nasceu numa comunidade pobre, que viveu a vida inteira na comunidade, que foi fazendo coisas, e que se dedicou 25 anos a um tema, que é os bancos comunitários, então é uma história boa, feliz, mas sem muitos espetáculos, sem muitos pontos fortes, né? Eu me lembro bem que a Mara Mourão, que é uma produtora de cinema de São Paulo, ela muito conhecida, fez o “Quem se importa”, aí ela chegou para mim e falou: “Joaquin, eu preciso fazer um filme agora só com você.” E eu estava em São Paulo quando a gente teve esse papo no jantar, e ela chamou a produtora de filme dela, e conheceu um pouco a minha história e pediu que eu falasse um pouco, resumidamente minha trajetória, tal, e eu falei essas coisas que eu falei aqui, mais ou menos, né, e ela disse assim: “Não, mas a gente precisa que o filme, a cada 15 minutos, 20, ele precisa ter um pique, um grande fato, depois ele parte para outro pique, você tem que dizer quais são os piques.” “Essa é a parte mais difícil, que não tem pique para eu contar.” “Mas, você tem que contar não é possível, quando aconteceu uma pedra caiu na cabeça, tal, essa parte do Jangurussu, opa essa boa, vai ser um pique, o banco central, opa essa boa.” E é uma dificuldade enorme de encontrar os momentos porque ela foi linear mesmo, muito rica, mas além da riqueza, essa linearidade. Acho que minha mensagem que tinha para dizer é isso, né, a mensagem é isso, que é possível você ser feliz onde você está, onde você mora, com quem você quer, não se importe muito em ir para academia, ir para universidade, se você puder ir vá a universidade, mas não é lá que você vai ser feliz, você não tem obrigação em ir para a universidade, se formar, você não tem obrigação de ter um bom emprego, um bom salário, tente alegrar a sua comunidade e ser feliz da maneira que você puder ser, da maneira que você é. Eu acho que para mim esse é, digamos, uma coisa boa que eu construí na minha vida, é que eu sempre tive muito poucas coisas materiais, muito pouco estudo científico, mas sempre eu estive muito bem, eu não tive momentos ruins, até nos momentos mais difíceis eu estive bem, então a mensagem é isso, seja feliz, toque a vida, enfim, e tudo vem com o tempo.
P/1 – Por fim eu queria saber como foi contar sua história hoje no Museu da Pessoa?
R – Eu acho que foi muito bom, foi muito prazeroso, uma conversa tranquila, como tem que ser, como deve ser, e eu espero que fique guardado, que nada aconteça com o museu da pessoa que essa história se perca, e que alguém algum dia na vida possa escutá-la de ponta a ponta e se inspirar e aprender o que puder aprender, e se animar com aquilo que a gente fez, que foi construir essa rede de bancos pelo Brasil inteiro. Bem legal o papo, te agradeço, o pobre aí do meu companheiro que ficou olhando o teto, fiquei todo tempo falando do teto, porque isso faz parte de quem é doido, também assim, tal, mas parabéns para nós todos, obrigada a vocês do museu da pessoa que se prontificaram a ir para o museu vivo durante muito tempo... Eu não posso terminar sem fazer aquilo que todo cearense faz e que eu faço sempre, ninguém pode esquecer, uma marca minha que é o final dizer “Ihuul” e assim que termina, com o grito do cearense.
P/1 – Você acredita que cortou o áudio...
R – Não acredito,
P/1 – Pode fazer de novo...
R – Eu digo que todas as nossas conversas, lives, as reuniões, virou uma marca esse grito meu no Brasil, eu termino com um grito que é um grito típico do cearense, né, que é assim “ Brigado, até mais, valeu ihuul”.
[Fim da Entrevista]
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