Depoimento de Manoel Inácio
Entrevistado por Jonas Samaúma
São Paulo,
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Beatriz Cunha
Revisado e Editado por Jonas Samaúma
R – "Eu venho da terra chamada Sertão/ eu venho tratar de assuntos afim/ Eu sou do Nordeste do rei Lampião"/ Das terras que eu venho se conta a história/ que as naus da colonização/ por engano invadem com deuses/ ávidos e famintos de guerra e de paus e de Pau-Brasil/ ouro e mel se fartaram à vontade/ Mas, as dívidas de guerra alçaram os degraus que obscurecem o futuro da humanidade/ Futuro sem rumo/ à beira do caos/ Reverter tal futuro, é por ironia hoje, uma necessidade/ "Eu venho da terra do início do fim/ Eu venho da terra chamada Sertão/ Eu venho tratar de assuntos afim/ Eu sou do Nordeste do rei Lampião"/ Eu venho das serras de Manduladino/ das terras de "Retama". Uruburetama, Jaguaretama,Baretama, Pindoretama dos Tarariú/ Despido de flora, cultura e destino/ E vestido de morte nas guerras do Açu/ E dos fenômenos em choque, São José, Equinócio, Euquínio da indústria da seca, do maracatu e do reino indomável, o povo nordestino coroado com o estigma do mandacaru/ "Eu venho da terra do início do fim/ Eu venho da terra chamada Sertão/ Eu venho tratar de assuntos afim/ Eu sou do Nordeste do rei Lampião"/ Eu venho da terra que o sonho brotou do remanescente das guerras cruéis/ onde o chicote antes dominou as costas dos negros e dos índios fiéis/ que ainda pagaram promessas que o padre mandou andando de pés/ esperando o maná que ainda não chegou na terra dos santos e dos coronéis/ "Eu venho da terra do início do fim/ Eu venho da terra chamada Sertão/ Eu venho tratar de assuntos afim/ Eu sou do Nordeste do rei Lampião"/ Eu venho nas trilhas do sonho do novo. Do novo e dos velhos conselhos de Antônio/ De António dos sonhos sonhados com o povo/ Do povo e de Antônio/ Dos sonhos que livram a gente do estorno/ Estorno escravista, sistema medonho/ Medonho buscando seu filme novo/ Me movo entre anjos, santos e demônios/ "Eu venho da terra do início do fim/ Eu venho da terra chamada Sertão/ Eu venho tratar de assuntos afim/ Eu sou do Nordeste do Rei Lampião".
P/1 – Bem-vindo. Eu gostaria que você pudesse dizer o seu nome, local, data de nascimento, e além da terra do início do fim, você contar de onde o seu corpo veio…
R – Eu nasci no Sítio Serragem, do município de Cajazeiras, do estado da Paraíba. Alto Sertão nordestino. Em 2 de março de 1961. Aliás, é de março é a conclusão do meu nascimento, mas a controvérsias. Meu pai e minha mãe garantiam que eu havia nascido no dia 28 de fevereiro. Depois, quando foram batizar colocaram 2 de março e eu venho registrando essa data documental.
P/1 – Por que você se chama Manoel Inácio?
R – Pronto. Manoel Inácio também simboliza um pouco de debates entre a minha mãe e a pessoa que foi o meu padrinho. Minha mãe queria colocar o nome de Inácio, porque Inácio significa resistência para ela, Inácio de Loyola e tal. Ela é religiosa, então tem… "Coloca o nome de Inácio para ver se escapa", porque a mortalidade infantil era muito grande no Nordeste quando eu nasci. Depois… Por muito tempo perdurou essa mortalidade infantil. Morria a maioria das crianças antes de completar um ano de idade. Então, como eu era o terceiro filho… Quarto, aliás… Porque os três morreram antes. A minha mãe colocou o nome de Inácio para ver se eu escapava e chamou uma pessoa que se chamava Francisco (seu Chico) para ser o meu padrinho. Ele disse "eu só posso ser o padrinho de alguém se o nome for Manoel, porque seria o nome de Jesus Cristo". E ela disse, "ah, compadre, então não vai dar porque o nome do meu filho tem que ser Inácio". Foi assim, foi aquela discussão, "mas será que se a gente juntasse os nomes, não teria mais força?", "não, então vamos colocar Manoel Inácio". Chegaram a esse consenso e por isso meu nome é esse.
P/1 – Manoel é o nome de Jesus?
R – Seria Emanuel, mas a compressão popular levou para Manoel só. O povo entendeu Manoel e deriva do nome de Jesus Cristo, quer dizer, Deus conosco.
P/1 – Entendi. E você conta que você nasceu… Qual que era o nome… Nasceu nessas condições assim… Qual era o nome da sua mãe e do seu pai? E se pudesse contar um pouquinho do que você lembra da história de cada um…
R – Certo. São origem de agricultores, ali no sertão da Paraíba, enfrentando os tempo duros da seca que até então era seca e a seca era fenômeno natural. Então, se entendia que a problemática do Nordeste era seca. Então, José João do Nascimento é o nome do meu pai, que nasceu também no nosso Sertão Nordestino no estado da Paraíba, mais precisamente na região do município de Cajazeiras. Somos todos ali de Cajazeiras. A minha mãe também, Irene Maria de Jesus, que depois tornou-se Irene Maria do Nascimento pelo casamento civil. E nossos nomes ficaram com Nascimento pelo sobrenome do meu pai. Então, por muito tempo essa família viveu transeunte. Quer dizer, nômades da seca. Um tempo estavam na Paraíba, mas quando a seca chegava, iam buscar outras regiões que pudessem ter melhor condição de sobrevivência. Iam para as beiras dos açudes públicos, açudes feitos pelo governo. Foi uma política de muito tempo, que perdura desde o século XIX, 1850. O primeiro açude do Nordeste foi feito ainda pelo império, em… Depois 1850. Pelo imperador Dom Pedro II. Ele fez o açude Cedro, lá no Ceará. Um dos maiores açudes dos primeiros que foram construídos nessa política de visão de combate às secas. O problema seria a seca até então. Todos eram convencidos disso e se trabalhava nessa ideia de que a seca que castigava. O povo vivia a perambular. Quando era época de seca, às vezes dois ou três anos que as chuvas não eram o suficiente para criar a plantação, esse povo tinha que migrar em busca de condições de sobrevivência. O governo por algum tempo implementava as frentes de serviços. Algumas dessas frentes de serviços eram só anunciadas e não eram executadas. Imagina que o governo anunciava uma grande obra, como foi a do Açude do Patu, no Sertão Central do Ceará. Em 1932, o governo faria esse açude, o recurso já estaria liberado. O povo se aglomerou para trabalhar, pra ser mão de obra e ganhar dinheiro fazendo esse açude. Eles se beneficiariam depois com a sua água, se beneficiando antes com o salário que receberia em troca do seu trabalho nessa construção. Imagine que ali, em torno de cinco ou oito mil pessoas se aglomeraram morando nas condições que chegaram, em barracas improvisadas de madeiras, de resto de telha e do jeito que dava para fazer. Eles ficaram por lá e o dinheiro foi desviado, não chegou dinheiro nenhum. A seca castigou em 1932 e foram 3.000 pessoas que morreram. Lá, em Senador Pompeu tem ainda o cemitério da barragem. Ao invés de ser construída uma barragem… Foram feitas valetas para enterrar pessoas. As pessoas cavavam grandes valas, e ao final do dia, enterravam. Não dava para enterrar as pessoas todas uma por uma, porque morriam muitas, de fome e de doenças decorrentes dessa fome que eles passavam. Essa era a realidade.
P/1 – Os seus avós tinham a ver com esse contexto?
R – Os meus avós… O meu bisavô, por exemplo… O meu avô herdaria as terras. O meu bisavô seria… Me falaram que ele era latifundiário, um homem que tinha muitas terras lá em Cajazeiras, na Paraíba, mas ele vendeu porque foi anunciada a guerra de 1914 lá em Juazeiro do norte. Então, era uma guerra tramada por uma classe… A classe rural, a classe alta rural, a classe economicamente dominante. Na época, era muito mais os latifundiários. Então, era como se fosse o feudalismo da idade média. Existiam os latifundiários que dominavam o cenário político no Sertão. Então, quando eles queriam provocar um enfrentamento e derrubar algum governo, eles buscavam de qualquer forma manipular as pessoas. Aproveitaram um momento de um cara muito bom, que serviu muito ao povo e teve uma popularidade muito grande pelo bem que fazia à população, aproveitou assim do Padre Cícero Bartolomeu, esse grande coronel político da época. Deputado lá do Ceará. Foi anunciada uma grande guerra e só sobreviveria quem estivesse em Juazeiro do Norte. Então, o meu bisavô vendeu todas as terras por quase nada, veio e comprou uma casa em Juazeiro do Norte com toda a família. A família ficou ali por um tempo, depois eles morrem e meu avô volta sem nada para sua terra de origem. Lá ele encontra com a minha avó, Maria Alexandrina, neta ou bisneta de outro latifundiário também da região, que depois as suas terras foram divididas entre a família. Casou três vezes e teve 50 filhos. Quando morreu, a terra foi dividida e minha avó ainda ganhou um pedacinho de terra. Eu ainda tenho uma pequena terra lá na Paraíba. É só uma lembrança assim, o fio condutor que leva à origem, que está na beira de um açude grande que foi feito pelos órgãos, pelo DNOS (Diretório Nacional de Obras contras as Secas). Até então, todas as obras eram de combate às secas, contras as secas, contra esse fenômeno natural. E aí, os açudes são feitos lá. A população entendia que seria em benefício dela, no entanto, as terras que ficam por trás do Açude são bem mais beneficiadas, porque são as fazendas, o gado, o patrão que mora nos vales e nos rios rios. Os rios são perenizados para eles. Os grandes açudes que são feitos, não servem para a população. A população fica na parte da vazante que fica na frente do açude, na beira da água. Aparentemente você acha que seria mais beneficiado quem fica na frente do açude, mas quem fica atrás daquela grande parede, da represa que tampa um rio, que fecha o rio e a água fica presa para lá para trás… Eles constroem sempre um canal, um duto, que é chamado de galeria e essa galeria fica aberta perenizando o rio e beneficiando os fazendeiros.
P/1 – Os seus avós moravam nessa beira de açude que você está descrevendo?
R – Eles moravam numa região… Um vale muito lindo que tinha projeção do governo para ser feito um açude ali.
P/1 – E aí, o que eles foram fazendo? Porque o seu bisavô vendeu a terra, era latifundiário. E seu avô estava voltando para esse lugar na Paraíba e conheceu a sua avó…
R – Conheceu a minha avó, que herdou um pedacinho da terra de outro, entende? Da mãe dela, que era fila do finado Vicente Paulinho da região, que tinha uma grande faixa de terra. Terra de se medir com o dedo. Lá não se media terra com aquele… Era com dedo. Quem media era o latifundiário. Está avistando ali? Era lá da ponta daquela serra para a ponta daquela outra. Vai daquela para aquela (risos). Onde o dedo dele e sua vista alcançasse, ali era a terra dele. Então, quando é dividido, todo mundo tem que reconhecer. Se ele chegar e dizer "aqui ainda é minha terra", a pessoa tem que sair, porque os caras tinham poder. Na época, os poderes se manifestavam pela força econômica que possuíam esses coronéis e muita gente trabalhando para eles. Era a época do gado e do algodão. Esses caras latifundiários, tinham muita gente trabalhando para eles, produzindo algodão e pagando a meia. "Você produz, desmata aqui 10 15 ou 50 hectares, numa faixa de terra de 10, 15, 20 mil hectares". Tinha cara que dominava 20.000 hectares. Então, as pessoas chegavam, trabalhavam ali e metiam o fogo. O fogo queimava tudo e ali enchia de algodão. A metade era do patrão. Ele colhia o algodão e dava já prontinho. O resto, ele dava para o patrão de novo, porque o patrão tinha o fornecimento do alimento que ele tinha que comprar. Tinha o comércio do patrão que tinha o preço que queria e ele dava o algodão dele para pagar o fornecimento que ele tinha tirado durante todo o ano para trabalhar e produzir aquele algodão. Ele vivia sem nada sempre e o patrão tinha poder e dinheiro - poder político e poder econômico. O poder jorrava de tudo quanto era lado para esses caras.
P/1 – E aí os seus avós eram meeiros, no caso?
R – É, eram meeiros. Só que a minha avó como era neta do finado Vicente, foi criada pelo próprio avô, que tinha muita terra. Mas quando o avô morre, e vai morrendo sucessivamente, eles vão distribuindo as terras. Esses impérios vão caindo com a crise do algodão. Todas as lavouras, por exemplo as de subsistência, que é milho, feijão… Às vezes pareciam durante os tempos de seca, não davam muito. Mas o algodão, dava. Então, se o proprietário não ganhasse muita renda com o feijão - e sempre ganhava alguma coisa -, a certeza do algodão lhe garantia seu status e poder. E o gado se dava muito bem com o algodão, que o gado comia folhas de algodão ou ele em si. Quando o algodão não tinha valor, o que acontecia às vezes… Havia concorrências também. O cara soltava o gado dele dentro do algodão que comia tudo, e os trabalhadores e os moradores daquela terra tinham por obrigação cuidar do gado do patrão. Então, o cara não pagava a mão de obra. Dava um pouquinho de leite a cada um e estava garantido. O estado sempre ajudou também fornecendo… O poder político, tinha muita peixada. O banco não tinha medo de soltar dinheiro para o patrão, porque em nome da criação, em nome da plantação tirava dinheiro. Então, ele investia em gado e o povo trabalhava sempre com fome. Muita gente, porque mesmo com fome, sobrevivia. Então, você não ia morrer de fome. Claro que ele não iria deixar o povo morrer de fome, porque se morresse de fome, ele também não teria quem trabalhasse para ele, não teria seu poder econômico…
P/1 – E as pessoas aceitavam, né?
R - Aceitavam a condição. A crise para os patrões bate a partir da década de 60, 70… Em meados dos anos 80, é a pancada de misericórdia, a quebradeira, a falência. A crise bate principalmente com o início da industrialização aqui no Brasil. Essa industrialização acontece principalmente aqui no Sudeste. Então, aumenta a alternativa… Também já vinha um pouco essa crise em decorrência da exploração da borracha na Amazônia. Os patrões, na época de seca dispensavam o povo e era mais fácil encontrar saída para ir embora para a Amazônia com barcos levando. Quem conseguisse chegar vivo ao litoral, à beira mar, podia de repente encontrar uma vaguinha. Era muita gente disputando, então muita gente morria nas estradas antes de chegar no litoral nos portos. Outros morriam porque não conseguiam vencer a competição de quem conseguiria uma vaga e quem conseguiria uma carona nesses navios para levar até a Amazônia. Outros tentavam chegar em São Paulo de qualquer jeito.
P/1 – Isso era em que época?
R – Isso desde a década de 50. Mas a questão da borracha, foi até tempos atrás. O poder dos coronéis não caiu de uma hora para outra, foi aos poucos, porque os governos não investiam absolutamente nada no Nordeste para o povo. A terra o… concentração de terra, de poder e de riqueza e a grande massa estava lá a mercê do que desse.
P/1 – Mas vamos voltar aqui para a sua história de vida. Você nasceu sob todo esse contexto, né? E você teve três irmãos que parece que foram antes de você. Eles foram pelo quê?
R – Francisco nasceu em… Eu acho que foi 57 ou 58. Nasceu depois Maria de Fátima e depois nasceu Benedita. Três morreram antes de mim - um irmão e duas irmãs. Depois eu nasci, sobrevivi e minha mãe disse que foi porque colocou meu nome de Inácio. Depois de mim, vem Maria das Graças, Gracinha, que mora aqui em São Paulo. Vez ou outra eu consigo visitá-la. Depois dela vem Maria de Lúcia que morreu.
P/1 – Morreu de que?
R – A Maria de Lúcia morre em decorrência de desnutrição, subnutrição. A gente viajando para lá e pra cá. Lá na Paraíba não dava mais, então ficávamos saindo de lá para o Ceará. Nós éramos transeuntes. Eu sempre digo, "comecei a nascer na Paraíba e terminei no Ceará, assim comecei a nascer no dia 28 de fevereiro e terminei no dia 2 de março".
P/1 – E quais são as suas primeiras memórias que você lembra mesmo? Quais são as primeiras...
R – As minhas primeiras imagens são sempre de viagem.
P/1 – São sempre de viagem?
R – É, quando não era do Sertão da Paraíba para Cariri, era viajando para as frentes de serviços fazendo estradas e rodagens.
P/1 – E vocês viajavam como?
R – A gente viajava… Porque o governo anunciava frente de serviço. Na minha época, havia uma política chamada política de combate à seca, desde os finais da década de 50. Em 57, 58 já havia as frentes de serviço. As frentes de serviços eram fazendo estrada. As estradas não eram feitas à máquina, era à força humana, carros de mão, carregando a terra… Para fazer as estradas. Muita gente… Eu lembro… Em 1970, por exemplo, a minha lembrança… Antes de 70, desde os quatro anos de idade eu lembro da gente viajando de trem. Quando chovia, a gente voltava para a terrinha, para o sertão. Quando era seca, nós corríamos, porque lá era um pouco mais fresco, era mais fértil, tinha mais água, tinha mais rio e o nosso Sertão era um pouco mais duro. A gente ia para a casa da fazenda de parentes que tinha uma terrinha lá que produzia até melhor. Então, a gente estava para lá e pra cá. Eu só lembro da gente pra lá e pra cá
P/1 – E você trabalhava já também ou você assistia?
R – Eu lembro que meu pai me levava a partir dos cinco anos… Desde criança pelo menos a minha mãe já levava minha rede com a rede dos meus irmãos e irmãs, amarrava debaixo das árvores onde estava trabalhando. Nós já estávamos assistindo ali, então, nosso aprendizado e familiaridade com o trabalho com a terra, traz uma memória muito antiga, bem de início, de origem de vida, de origem de você estar começando a ver as primeiras coisas. Era sua mãe e seu pai se movimentando pela sua sobrevivência, em nome da sua sobrevivência. Queria vê-los chorar, era quando um de nós pedia comida e eles tentavam esconder a situação. Nunca eles diziam que não tinham. Eles podiam até não comer, mas passavam diretamente para gente tudo que eles conseguiam.
P/1 – E você lembra de você passar fome?
R – Lembro, lembro.
P/1 – Chegou um momento que você…
R – Chegou o momento, chegou. Chegou o momento que não tinha mesmo. Chegou o momento que minha mãe fazia a gente… Chamava chá de feijão. Quer dizer, às vezes alguém dava, o vizinho, a vizinha… Ela pegava folha de quiabo, pedia alguém que tivesse algumas folhas… Semente de gerimum, pisava e fazia leite para gente. A gente comia aquilo achando que sentir fome era a coisa mais normal do mundo. Às vezes apertava um pouco mais e chorava com fome, mas não tinha mais o que dar. Quando dava para fazer uma garapa, fazia garapa. A gente dormia com a barriga cheia, buchão cheio de água e açúcar quando dava para arrumar.
P/1 – E como foi esse episódio. Depois que você nasceu, quantos foram seus irmãos que morreram?
R – Francisco, Maria de Fátima, Benedita, Lúcia. Depois de Lúcia, veio João Bosco que escapou. Bosco nasceu em 1969. Eu nasci em 61, minha irmã nasceu em 63, outro nasceu em 69… Então, fomos três que escapamos.
P/1 – De nove?
R – É. Outro foi aborto. Nasceu um depois do Bosco, Orivaldo que morreu já perto de um ano de idade. A Lucinha morreu com uns três anos de idade.
P/1 – E você tinha quantos anos?
R – Quando Lucinha morreu, acho que eu tinha uns seis anos.
P/1 – E como foi que seus pais falaram para você assim? Como foi que eles contaram isso para uma criança?
R – Essa situação ninguém apresentava, a gente vivia. Então, tinha lembrança e tinha coisa que não dava para contar que a gente percebia, que chegava em outros cantos. Algumas famílias tinham alguma coisa. Então, assim a miséria era desigual, não era para todos. Tinha alguns que passavam por uma depressão mesmo no quadro da miséria… Se você vai fazer as marcas, o diagrama da miséria, vai ver que tem os que vivem a pior situação e outros numa situação um pouquinho melhor. É tudo desigual, mas têm momentos difíceis na situação de cada um. Nós vivemos situações muito difíceis nessas épocas e a gente sentia. Não dava, não tinha como não comentar. É claro que eles buscavam qualquer coisa que fosse melhor para suas crianças. O pai saía com o saco nas costas, "eu vou para feira, vou pedir, vou saquear, vou fazer qualquer coisa" e saqueava. Você vai procurar os saques no Nordeste, eram muito constantes. Bastava que a chuva demorasse um pouco. A gente esperava as chuvas até o dia 19 de março que é o dia de São José. Cantava isso, "apela para março que é o mês preferido do santo querido, senhor São José". Quer dizer, até aí. Quando não chegava até o dia 20 de março… No dia 21 de março, que coincide com a passagem do equinócio], aquela coisa… Depois que a gente fica sabendo pelos movimentos quando a gente se engaja do que era tudo isso. Vai fazer uma leitura a partir do que os movimentos começam a pesquisar o era a seca, que era uma indústria. Até então, muitas coisas paliativas o povo tentava também, como roubar santos, sequestrar santo.
P/1 – Você viu isso?
R – Vi sim. Fazia. Isso a gente acompanhava.
P/1 – Como que era?
R – Todo mundo esperançoso que o santo que estava sequestrado… Todo mundo no Nordeste… Esse hábito foi sendo perdido com o decorrer do tempo, com a modernidade, os pensamentos novos, as coisas novas foram surgindo e depois os santos foram trocados por artistas de televisão (risos). Começam a surgir as revistas, as novelas, essas coisas assim. Antes tinha os santos nas paredes, todo mundo tinha os seus santos. "Aqui é São Sebastião que vai nos proteger da fome, da peste e da guerra". Então, santos de grande força. Santo Onofre, que morreu de fome e sede perdido nas matas. São José pai de criação de Jesus Cristo, e esse é o homem responsável por administrar parte da chuva. São José que faz chover.
P/1 – Você chegou a roubar algum santo?
R – Não roubei, mas eu fui com a minha mãe para… Segurei o banquinho para ela subir e tirar o santo da parede da irmã dela. Nisso, a pessoa tinha que roubar o santo do outro - aquele santinho naquele quadradinho na parede. Cheio de santos na parede, as pessoas tinham. Cada um tinha seu santo, Damião, coração de Maria, São Francisco de Canindé, São Francisco para nos proteger da cegueira, São Brás para nos proteger do engasgo. Se comia muito peixe, e aí quando a pessoa se engasgava, dizia essas palavras para tirar o engasgo. São Bento para nos livrar das cobras. Cada santo tinha uma função na vida. A gente sabia que estava protegido. Estava passando por aquilo, mas era necessário. Nós somos pecadores, mas as crianças não, as crianças não são pecadoras. Deus ainda olha o mundo por conta das crianças. Esses são todos valores religiosos que as pessoas tinham, minha avó… Esses valores foram crescendo com a gente e alimentando inclusive essa paciência histórica que o povo tem. Sua paciência política, sua paciência história, sempre adiante, sempre esperando o Messias. O Messias sempre estava presente, vai sempre aparecer e vai haver alguém, o salvador, Deus vai salvar um dia. O que acontece? A gente roubava aquele santo, escondia e ele só seria devolvido quando começasse a chover. Se não chovesse, o santo ia ficar preso, o santo não iria ser liberado. E ninguém sabia. De repente se dava conta de que alguém tinha roubado um santo. "Oxe, meu São José, carregaram. Ah, meu Deus, quem terá sido? eu acho que foi fulano", "mas tu viu…". Ficava aquela especulação. Todo dia ela olhava o santo escondido, fazia oração, "São José, manda chuva". Quando chovia, quando acontecia de chover, saía, fazia um andor, colocava aquele santo com muitas flores, muitas velas, um monte de gente e ela anunciava, "tal dia vamos fazer a devolução do santo". Então, devolvia sobre grandes aplausos e festas para aquele santo porque ele tinha feito chover. Podia ser o São José, podia ser o São Francisco, São Sebastião, podia ser… Agora muito medo e carregar Jesus. Nossa. Carregar esse santo aí. Melhor deixar para lá porque o mundo pode se acabar com água, pode ocorrer uma grande… Sabe lá qual é a reação do santo, né? Quanto mais poderoso, mais temor tinha de certa forma fazer esse tipo de coisa, esse sequestro, essa brincadeira com o santo. Não era brincadeira, mas era uma ousadia. Seria ir contra toda uma… Não é ir contra, mas uma ousadia que desafiava. E além do pessoal pedir - que as pessoas pediam "dai-nos chuva, São José, dai-nos chuva para molhar um pedacinho da terra. As pessoas cantavam, faziam, e quando o santo não dava jeito, dizia "ah, ele não está ouvindo sua voz". Essas coisas assim…
P/1 – Como é essa coisa de… Por exemplo, isso mostra que tinha uma influência católica muito forte dessa cultura do santo. O que mais que você mesmo via criança dessa presença e teve experiência na sua vida, na sua família?
R – Essa experiência católica… Esse catolicismo era uma religiosidade popular que nem mesmo a igreja reconhecia tudo isso. A igreja dizia, "não, isso é grandice, isso não existe e tal". E as crianças ficavam, sei lá, a mercê de tudo, elas só sofriam as reações de todo um sistema que manipulava tudo. Por exemplo, ora as mães tinham que estar procurando… Você via crianças com suas mães nas filas para ganhar leite, receber leite. Vinham as doações, vinha coisa de fora, da Alemanha… A gente sabia que vinha, porque dizia "ah, chegou sopas de outros países", "chegou leite de outros países". A Nestlé muitas vezes distribui - dava leite para os pades e os padres distribuíam com a população. Tinha um leite que a gente chamava de "leite do padre", porque eram os padres que distribuíam para as crianças.
P/1 – Semanalmente?
R – Era. Às vezes semanalmente, às vezes mensalmente. Dependia do tanto de gente que tinha e dependia do tanto que o cara recebia. Geralmente chegava lá e fazia aquela distribuição de leite para a população. Você via aquela fila de gente. Recebia aquela multidão se acotovelando para receber um papelzinho como se fosse uma senha com o seu número, entende? Num dia vai receber seu numerozinho, sua senha. No outro dia, vai receber seu leite. Vinha lá um pacotinho de leite, algumas coisinhas na mão e tal. Tudo a gente tinha que correr atrás. Minha primeira professora foi a minha prima, que era mais velha, filha da irmã mais velha da minha mãe, minha tia. Ela era mais velha e tinha uma escolinha. Então, quando nós chegamos em Assaré, que é a região quase limítrofe de Cariri com Inhamuns. São regiões do Ceará. O Ceará é dividido em regiões como qualquer estado do… Acho que do Brasil. Principalmente do Nordeste que você tem regiões em Cariri, que se caracteriza muito pelo… Parece uma região de mata atlântica misturado com caatinga. Então, é a região mais fértil, região de clima ameno. As serras e as chapadas são regiões também até frias, que dão outros tipos de coisa. Dão muitas frutas e os impactos são menores quando vem a seca. A caatinga nos expulsava um pouco na época de seca porque ela era mais quente, tinha maior incidência de sol e menos chuva. A chuva chegava e era pouca e não sobrava para o restante do Sertão catingueiro. A gente ficava nesses sertões, nessas regiões. Então, a gente saiu do Assaré com meus quatro anos de idade e ela tinha sua escolinha, que antes era uma escola que não era ligada a poder público nenhum. O poder público não tinha envolvimento com a parte de alfabetização de escola. Eram poucos. Eram pouquíssimos colégios, pouquíssimos grupos que tinham. Eles concentraram tudo na cidade. Olha, era mesmo para manter uma população ignorante lá no campo. Eu fiquei, fiz até a quarta série e depois… Terminei com meus 13, 14 anos… É, com 12 ou 13 anos terminei a quarta série e não tinha mais o que fazer.
P/1 – Foi aí que você conseguiu aprender a ler?
R – Sim. Consegui aprender a ler. Eu consegui aprender a ler com cinco anos de idade. Primeiro tinha uma carta de ABC, uma cartilha, um livreto de alfabetização que era feito e a gente lia quase cantando, "b-a ba, b-e be, b-i bi, b-o bo, b-u bu, b-ã-o bão", ia soletrando, soletrava-se assim. Cada nome que a gente ia ler, tinha que ler soletrando. Então, por muito tempo, não conseguia dizer a palavra, entende? "P-a-i, pai", "meu filho, que nome é esse ?", "p-a-i, pai", nunca dizia "pai" (risos). A gente lia e naturalmente tinha que dizer soletrando, "p-a-i, pai", "que nome é esse?", "d-a da d-o do, dado", "que nome é esse aqui?", "x-a xa, d-r-e-z drez, xadrez". Então, passava muito… Mas quando chegava na quarta série, estávamos lendo. Quarta série era doutor. Meu tio fez a quarta série e tinha o apelido de doutorzinho. O cara conseguiu fazer a quarta série, "poxa" (risos). E aí, alguns pais conseguiam mandar seus filhos ficar na casa de algum parente na cidade e ele continuava os estudos. Conseguia mandar algum alimento, alguma coisa. Quem não tinha parente tinha que se conformar mesmo. Alguns na minha… Já conseguiam bicicleta. Bicicleta era uma coisa muito difícil, muito cara. Eu passei a minha infância e adolescência toda sonhando com uma bicicleta. Muitos amigos com uma situação melhor que a gente… Não é nem melhor, os pais queriam e compravam. Às vezes vendiam um bicho e faziam qualquer sacrifício, mas davam uma bicicleta para o filho e ele ia, andava 12 quilômetros todo dia para ir para escola. E voltava. E eu não tinha essa condição. Trabalhando até os 17 anos, eu de cara, "vou estudar". Quando eu resolvo sair lá de onde eu moro, em 78, para estudar. Não tinha outra coisa para fazer, quer dizer, não tinha como ir para a cidade simplesmente procurar. Tinha que ter um lugar para ficar. E a sobrevivência não era fácil, o pai não tinha condição de manter. Eu comecei a me engajar junto com as pessoas que faziam as novenas locais. Rezavam, faziam as novenas em família, novena de natal, novena de padroeiro… Aquelas festas de padroeiros e as novenas. Comecei a me engajar. Aí, na medida que ia me engajando também, eu comecei a sentir necessidade de ir mais além nos estudos, porque ficava lendo as coisas e tal. Eu via algumas pessoas que tinham um pouco de sabedoria e ficava perguntando para elas como elas tinham adquirido. Tinha um cara para o qual trabalhávamos que sempre citava passagens da Bíblia, e eu "nossa, você… (na verdade, senhor. A gente não podia dizer "Você para alguém adulto"). Onde foi que o senhor aprendeu isso?", ele disse "lendo a Bíblia", "Bíblia? E onde que a gente acha essa Bíblia?", "na igreja tem". Tinha uma capelinha perto da gente e eu digo, "poxa, será que posso ler a Bíblia?", "pode", mas eu não tinha tempo. Eu trabalhava de segunda a sábado. Só tinha domingo para descanso que não era descanso. Naquele domingo, nós tínhamos que buscar lenha. Já fui crescendo e foi vindo a responsabilidade. A partir de cinco, seis, sete anos, você não sabe mais o que é criança. Não sabia. Você já tinha responsabilidade. Ia trabalhar, limpar mato ou pelo menos para o roçado. Os pais não te deixavam brincando à toa na rua muito. Você aproveitava os momentos que podia. Você escapava, mas estava brincando e de repente seu pai chegava de surpresa com um cipó de jucá. Dava na bundinha, "para casa", "ai, papai!". Você ficava se mijando todinho (risos).
P/1 – Mas doía mesmo?
R – Ora se doía. O cipó de jucá… Você pode pegar e bater que ele não tem perigo de quebrar (risos). Ele é flexível e forte, não quebra. Então, ele levou muitas… Estava brincando, correndo nas árvores com outros meninos de pega-pega. Tinha uma brincadeira que a gente chamava da brincadeira de bicheira. Se você "triscasse" no outro, o outro estava… Era o bicheira. Bicheira é uma doença que dá no animal e ele fica cheio de larvas de moscas, que a gente chama de "tapuru". Então, você ia correndo atrás do outro, aquela brincadeira infantil até triscar nele. Triscou nele, agora ele vai correr atrás dos outros. E tinha isso, que se você conseguisse chegar naquele ponto ali, pronto, estava salvo. Quando você estava fora daquele ponto, daquela árvore, daquela estaca, você estava em situação vulnerável. Se o bicheiro te pegasse, você seria o bicheiro. A gente brincava… Vamos começar.
P/1 – Vamos.
R – Ou recomeçar. Ou continuar.
P/1 – Então, você estava falando um pouco para gente como que era a sua vida de estudo, de trabalho e das brincadeiras no Sertão, de você e da sua família. Se você puder continuar… Pelo que eu lembro, você estava contando da brincadeira do bicheira. Quais brincadeiras mais vocês faziam?
R – Certo. Como a gente já estava se adiantando um pouco e recuando um pouco na história e no tempo da nossa criancice… A gente chamava "criancice", nossa infância de brincadeiras, como eu estava te falando da bicheira, brincar de roubar bandeira, por exemplo. A gente fazia um risco no chão, na estrada ou no terreiro da casa. A gente ficava nos terreiros, fazia um risco no chão e daquele risco, de um lado e de outro ficava cada time, dois grupos. Colocávamos uma bandeira lá e uma bandeira cá. Cada grupo tinha uma bandeira e os dois grupos se enfrentavam para roubar a bandeira um do outro. Então, naquela correria, quando alguém ousava entrar no espaço, no território do outro pra roubar a bandeira, quando era simplesmente triscado assim por outro, tinha que ficar ali paralisado, já saía preso. Aí, outro correria, pegaria ele pela mão. Tinha essas brincadeiras todas. Brincadeira do anel, brincadeira de passar… Várias brincadeiras que a gente tinha e muita criatividade para criar mais. Também não tinha televisão, era algo que a gente nem… Já tinha ouvido falar em televisão, mas energia sequer tinha na nossa região. E outras coisas que brincávamos… Não é brincava, mas era um fazer… Era um fazer que ao mesmo tempo era atividade produtiva e também divertimento. Era diversão. Eram as debulhas de feijão. E aí, é claro, nós tínhamos os artistas do meio, os poetas, os animadores… Cada coisa que ia fazer, tinha sempre alguém para cima, alguém poeta, alguém bem… Humoristas. Não tinha contrato, não tinha fama midiática e nem vivia daquilo, era um trabalhador comum, era uma pessoa comum, mas que tinha aquela consideração e admiração da comunidade. Onde ele estava, as pessoas queriam estar aglomeradas em torno dele e uma dessas pessoas era o meu avô, que era Misael Antônio da Silva. Esse Misael, pai da minha mãe era o poeta da região. Nessa época se produzia muito feijão de corda, que não é esse feijão de arrancar, era um feijão catador. Aqui, o pessoal chama de feijão catador. Nós lá, simplesmente chamamos de feijão, porque não temos outro feijão. Feijão carioquinha, feijão de arrancar… Lá no Sertão não tem. Antes, era debulhado a mão. Hoje, são as máquinas que debulham tanto o trigo quanto o feijão, só que antes, promovia-se grandes debulhas. Isso era um acontecimento na cidade. Geralmente alguém divulgava "na minha casa vai ter uma debulha de feijão e quero sua presença". Você ia diretamente na casa de cada pessoa e chamava para a debulha do feijão. Às vezes a pessoa perguntava, "Zaé vai estar lá?". Zaé era meu avô. Porque se Zaé fosse, aí todo mundo ía. Minha avó chamava-se Flor. Zaé dizia assim "se Flor for, eu vou. Se Flor for, eu não vou". Brincando, as pessoas já riam até com aquilo. A gente ria com as coisas simples, achava aquilo muito engraçado. "Se Flor for, eu vou. Se Flor for, eu não vou, só vou se Flor for." Isso provocava… Quando Zaé ía, Zaé contava história, anedotas, poesias… Ele fazia as poesias do improviso. Então, ele não sabia ler, não conhecia nenhuma letra do alfabeto. Ele ouvia falar que o "O" era redondo, ouvia falar que o "A" era como uma cangalha de burros. Ele falava "ouvi falar que o A parece com isso aqui, mas se eu ver, posso comparar…". Ele sabia história, como surgiram algumas cidades da região, a economia que causou a aglomeração de pessoas nas beiras dos rios, os olhos d'água… Porque tinha os olhos d'água. Lugares que as pessoas ficavam no entorno porque eram secos e tinha simplesmente um povo de água ali que não secava nunca. Num rio, num pé de serra… Geralmente as pessoas começavam a criar moradias naquela entorno e às vezes aquele lugar ficava se chamando "olho d'água". "Então, vamos no olho d'água", "vamos tomar banho no olho d'água", "vamos buscar água no olho d'água", o olho d'água servia para tudo. Isso falando do que era a sua vida, a sua produção, sua relação social de produção, como agia-se coletivamente e comunitariamente mesmo sem uma orientação. Sem que ninguém conduzisse ou dirigisse. Só que o povo se auto organizava nesse sentido. E a sua cultura. Ali vinha o Bumba meu boi as brincadeiras… As brincadeiras, assim… Tinha as brincadeiras de criança e as de adulto também, que era os reisados… Os adultos brincavam.
P/1 – Como que era um reisado?
R – Um reisado podia ser no dia de reis por exemplo. Um grupo de pessoas se vestiam, se mascaravam e saíam pedindo de casa em casa donativos e prendas também. E eles promoviam brincadeiras e festas, como Bumba meu boi… A brincadeira do boi por exemplo, que eles faziam, tinha personagem como Catirina, Mateus… Esses reisados eram uma coisa que as pessoas levavam a sério, até faziam promessa para brincar reisados. Era exatamente no final de dezembro ao início do ano, até chegar dia de reis. As pessoas tinham aquelas brincadeiras que hoje se desenvolvem… Cada lugar tem a sua forma, a sua modalidade, o seu jeito de ser. Tinha canções, por exemplo… Hoje, você tem cantores que remontam a década de 40. Os caras falavam por exemplo da Segunda Guerra mundial, eles cantavam "44 para 50 cai se ver pai de família descer para a guerra e não voltar mais. Tantos mulheres chorando por seu marido, tanto menino perdido, "ô mamãe, cadê papai?". Isso era cantiga de reisadas. Aquele Mateus com aquele chapéu bonito, cheio de espelhos, todo enfeitado…
P/1 – Mas o reisado era só em dia de reis ou era aquelas caminhadas, assim?
R – Têm várias… Tinha os reisados nesse dia de reis, que eram grandes comemorações e tinha os reisados que tornou-se brincadeira para as pessoas fazerem campanhas. Algumas campanhas utilizam reisados. "Ô de casa, ô de fora! Ô de casa, ô de fora. Menina, vem ver quem é. Somos cantador de reis, somos cantador de reis. Quem mandou foi São José", têm músicas assim que resgatam essas brincadeiras. Então, em cada lugar… Em Minas, no Norte de Minas, você vai ver muito… Porque o Norte de Minas já é uma região que faz parte do polígono das secas. Então, essa região da caatinga, toda ela, tinha essas brincadeiras muito ligadas a religiosidade popular e muito no sentido também de pedir chuva. Fazia promessa com santo, "vou brincar de rei, vou animar as festas, vou estar"... Teve um tempo em que as mulheres não puderam brincar de reis e a gente passando pelo Norte de Minas, o pessoal dizia que as mulheres lá entraram na brincadeira de reis porque elas fizeram a promessa de entrar e não podiam, era uma brincadeira só de homens. Elas quebraram com o machismo também na brincadeira de reis. Todo mundo tinha respeito às promessas. Se alguém fez promessa para algum santo, aí pronto. "E agora, como fazer? Não tem o que fazer, as mulheres vão ter que brincar". Elas contavam essa história. "As mulheres vão ter que brincar de reis porque fizeram essa promessa brincar". Nessas coisas que vamos nos envolvendo ao ficar jovem… Os jovens querem estar perto um dos outros, querem se enturmar. As novenas de padroeiro, as renovações…
P/1 – O que são novenas?
R – As novenas são nove dias de reza que antecedem o dia culminante de uma festa religiosa, de um santo digamos. O dia de São José é dia 19 de março. Então, começam no dia 10 as novenas de São José.
P/1 – Você lembra de alguma que você participou?
R – Lembro. Novena de São José eu sempre participava. Novena de São João, novena de São José, novena de todos os santos, se você vai fazer… Rezam o Pai Nosso, rezam umas orações fazendo alusões aqueles santos. Têm uns livrinhos que orientam e são distribuídos. Ía na casa, escolhia nove família e saía percorrendo. Cada dia, a novena em uma casa diferente. No último dia, que era o dia daquele santo, seria na igreja que professava aquele santo. Aí, ali era quermesse… A gente saía pedindo também nos reisados para o dia daquela festa para ajudar a igreja. As pessoas davam galinha, ou davam ovo, ou davam… Ah, várias coisas que davam ali as pessoas levavam para um leilão, seria arrematado ali e os recursos seriam para a igreja. E eu vou começando a participar também dessas novenas. Eu fiquei… Fui aumentando, sentindo a necessidade de estudar mais. Vi meus limites e algumas pessoas aqui que estudaram pouco. E aí é quando eu manifesto a vontade de ser padre. "Eu acho que vou ser padre", mas eu já tinha uns 18 anos, 17 anos… 17 anos. Isso em 77… Não, 78.
P/1 – Vamos ficar mais um pouco na sua infância, depois voltamos para a história do padre. Eu queria saber sobre como que… Além do reisado, quais foram as manifestações de cultura popular que você teve experiência na infância?
R – A dos cantadores de viola, repentistas e poetas de cordéis. E o cordel, foi… O cordel era o que salvava as pessoas da ignorância, porque os poetas de cordel tinham como se fosse uma responsabilidade de informar as pessoas. Então, os acontecimentos que ele captava, ele transformava em literatura de cordel e vendia nas feiras. Eram tanto histórias de acontecimentos - que narravam um acontecimento digamos, que ocorreu a alguém, "soltou uma blasfêmia religiosa", "uma filha fez um gesto obsceno para a mãe e de repente se transformou em um animal, uma porca", vários acontecimentos assim. As pessoas liam aquelas histórias e não se tocavam que ao mesmo tempo estavam aprendendo a ler. Elas tinham um desejo tão grande de ler cordel, as histórias dos políticos, as histórias de secas, "suspiro de um sertanejo" de João Martins de Ataíde ... Os cordelistas quando vão… Leandro Gomes de Barro, João de Cristo Reis, Joaquim Batista de Sena… Eram pessoas que para nós, estavam no alto, eram altos, grandes artistas.
P/1 – Você lembra do primeiro contato que teve com o cordel?
R – O primeiro contato era com meu tio que era doutor. Doutor porque fez o primário. Ele andava de roupinha social, de branca e canetinha e todo mundo o tinha e respeitava como doutor. Era meu tio e padrinho, irmão da minha mãe, que chamava Kiko. Padrinho Kiko. Algumas pessoas diziam, "ah, aquele filho de Zaé é doutor". Ele era chamado para ler o cordel e ele cantava a literatura de cordel. Ele tinha um grande talento para cantar literatura de cordel. Todos se reuniam nos alpendres, debaixo de uma árvore num dia de domingo, a noite no terreiro e uma lamparina na mão. Alguém ficava ali pacientemente segurando uma lamparina ou candieiro a gás… A querosene. Não era a gás, era a querosene. Até que alguém conseguisse ler. Ora franzia a testa assim, apertava os olhos para enxergar as letras e conseguia ler… Erravam, algumas pessoas liam muito mal e ele lia várias vezes decorando o cordel e cantava. Ele era aplaudido e tal. As histórias de luta, como aquele João de Calais... Geralmente o jovem era um pobre que vencia e às vezes terminava com a filha de um grande fazendeiro que relutava contra aquela união e eles dois conseguiam, o amor conseguia vencer, entende? Sem barreiras sociais. Ela era rica, ele era pobre e os dois conseguiam vencer a opulência da riqueza. Se opunha mesmo que o cara mandasse muitos capangas e capatazes para lutar com aquele jovem que estava namorando sua filha. Então, geralmente o fraco vencia na literatura de cordel, trazia muito essa mensagem. As histórias de João Grilo… O berço da humildade e ao mesmo tempo da esperteza e sabedoria. Que enfrentou o grande poder, enfrentou o rei e saiu vitorioso. Quer dizer, sempre a literatura do cordel trazia isso, enaltecia o humilde. Agora, tinha também as suas doses, aqueles contextos históricos também que… Tinha tudo. Tinha o machismo pela forma como a mulher era tratada. Isso refletia muito na literatura e na arte da época.
P/1 – E na época você já tinha essa percepção?
R – Não, ninguém sabia o que era isso. Existir, existia, mas consciente… Aquilo era uma expressão… Parecia culturalmente natural a forma que cada um se expressava. A gente só via a vantagem de como era contada a história, mas ninguém percebia que estava sendo oprimido às vezes naquelas histórias. Mesmo que o mais fraco vencesse… Mas tinha o mais fraco dos mais fracos que tornava-se… Que era colocado como o capataz, entende? Que ia enfrentar o jovem valente, o jovem herói, entende? E o jovem enfrentava o povo, o exército grande do patrão que era uma grande fazendeiro, que era um rei… Então, isso ocorria. Se você ver a literatura de cordel, vai ver muito isso. Várias histórias que hoje ainda são consagradas que eram impecavelmente consagradas e não se podia dizer nada contra essas pessoas. Você vai se deparando com as questões que hoje estão colocadas… Muitas das chamadas minorias vêm se defendendo e lutando pelos seus direitos com muito… E aí, essa literatura vai perdendo um pouco do sentido. Ela teve sua crise. Apesar do quanto o povo ainda estava sendo bem vendado dessa consciência, ele achava que era por ali… Aplaudía aquela forma homofóbica, machista, racista… Tinha tudo (risos), às vezes nas literaturas também. Essas literaturas… Ao mesmo tempo que tinha umas que não pareciam mexer com isso.
P/1 – E você observava isso também na sociedade?
R – Na sociedade, sim. Na sociedade também tinha.
P/1 – Na família, nos seus amigos esse tipo de coisa… Você acha que existia o racismo…?
R – Existia.
P/1 – Como é que você percebia isso na época? Você pode dar um exemplo?
R – Eu achava assim… Interessante, apesar de tudo isso, nós… Uma juventude da nossa época já foi agindo diferente. Entende? Não tinha motivos… E sentiam-se todos membros de uma mesma situação. Todo mundo numa situação só. A situação social da nossa parte era tão… Meu pai era agricultor sem terra, trabalhava para o patrão… Então, a gente não tinha… A nossa realidade… Não tinha muito como fazer diferenciação social. Nós já éramos… A realidade que vivíamos era de transeunte, de nômade da situação da seca e da opressão da indústria da seca, aliás. Mas você sentia muito forte algo… A mulher era delegada à cozinha. As cozinhas eram feitas para mulher. Nos cordéis, por exemplo, na literatura da época, tinha muito… Um cara muito bom na literatura fez a história da briga do cachorro com o gato. O gato disse, "mulher, da porta do meio para lá". Nisso você já percebe uma dose muito forte do que parecia a ordem natural das coisas, entende? Está muito na literatura. E a literatura também foi sofrendo na medida que as pessoas foram se instruindo mais. Essa interatividade, essa interação com a movimentação da comunidade é que começa a despertar a necessidade de estudar.
P/1 – Agora, o cordel era lido? Por exemplo, seu tio cantava o cordel. Você sempre tinha o contato com ele dessa maneira ou você também tinha o hábito de leitura? Você comprava o cordel? Como era que… Você tinha contato com o folheto ou era aquela literatura que era toda oral?
R – A literatura de cordel era comprada. Quando alguém ia para as feiras… Quando chegava, nossa, a primeira coisa que perguntava era se tinha trazido alguma coisa e essa alguma coisa era uma história, alga novidade da literatura de cordel. Sempre tinha na feira… Alguém tinha captado algum acontecimento e tinha já publicado e estava ali na feira a história de cordel. Você tinha uma necessidade. O cordel não era uma coisa aleatória, era uma necessidade das pessoas de verem esse outro lado bem mais lúdico, entende? De brincar, de rir, de sentir-se… A menina sentia-se a princesa que estava na literatura de cordel. O jovem se sentia aquele rapaz herói que salvava. Traduzia muito a história do mocinho que salva a mocinha. Então, tinha muito isso na história. Tinha os obstáculos. Era uma realidade muito parecida com a dele. Você via o latifundiário, a sua realidade, o seu espírito. Então, você tinha necessidade. Nessa época, o jovem não ia, não comprava cordel, porque o jovem trabalhava e quem recebia o dinheiro todo era o pai, até seus 20, 22, 23, 24… Enquanto você estivesse em casa, você não tinha muita coisa. Quando você pensava em se casar é que começava a juntar alguma coisa e isso da sua iniciativa, mas tudo era coletivo, era familiar e o pai que controlava. Então, era ele que trazia.
P/1 – No caso, você trabalhava na época?
R – Trabalhava.
P/1 – Mas na sua terra ou terra dos outros?
R – Terra dos outros. A gente trabalhava. A gente limpava mato, trabalhava com hortaliças… Nós éramos… Meu pai era requisitado e eu também peguei a habilidade dele de trabalhar com hortaliça e as pessoas que produziam para vender no mercado naquela época, necessitavam do nosso trabalho. Então, a gente estava sempre ocupado, trabalhando todos os dias para para as pessoas e para produzir um pouco de hortaliça para gente também, que veríamos na feira.
P/1 – E qual era a hora que você voltava?
R – Quatro horas da manhã. Minha mãe adoeceu e faleceu quando eu tinha doze anos. Então, ficamos todos pequenos. O meu irmão que era oito anos mais novo que eu, tinha quatro anos de idade. A minha irmã, com uns dez anos de idade - essa que morreu aqui em São Paulo, a Gracinha. Só ficamos nós três e a gente já fazia muita coisa em casa, desde criança que nós trabalhávamos, porque ela não tinha… Ela passou muito tempo doente. Eu tinha assim, nove ou dez anos quando ela começou a adoecer e foi do aborto. Ela teve o aborto e esse aborto nunca… Foi um aborto involuntário. Nesse aborto, ela pegou uma depressão e teve um monte de problema em decorrência disso. Eu tinha doze anos, ela faleceu em 1973. Ficamos… A gente já aprendeu a fazer tudo em casa (eu e minha irmã), porque ela não tinha condição de trabalhar muito, de fazer muita coisa. Para comer, a gente tinha que pegar o arroz, descascar. Tinha que pegar o milho para fazer O mungunzá… Aqui em São Paulo, chama canjica. A gente chama mungunzá. Também descascava. A gente tinha que moer o milho no moinho para fazer o angu e para fazer o cuscuz, que a gente chamava de pão de milho. Então, tinha muito trabalho, desde cedo. Só que meu também já me levava. Minha avó, quando estava em casa, fazia esses trabalhos e minha irmã pequena já fazia, ajudava em alguma coisa. Só que para o roçado, eu comecei a ir desde os seis anos de idade. Cinco, seis anos de idade, já tinha que estar lá. Quando era criança, tinha pelo menos que estar lá vendo e estar junto com eles lá. Já era para começar. Então, você ia se familiarizando, já ia sabendo. Você sabia como que se pegava no ferro. Quando você estava com 10, 12 anos, você já estava sendo requisitado para trabalhar, ganhar diária.
P/1 – E você fazia o roçado de que?
R – Roçado? De milho, feijão, algodão, principalmente, abóbora, arroz, melancia… Fazia as hortaliças também nas terras de vazantes na beira do açude
P/1 – Eu ia perguntar se a semente era natural?
R ‐ Ah, não tenha dúvida. Tem um episódio que eu lembro que nossos tomates eram diversificados. Tinha tomate cajá, tinha tomate maçã, tinha tomate papo d'água e para cada um, a gente dava um nome. Tinha vários tomates, a gente vendia e todo mundo gostava. E eu lembro que em 76, 77, a coisa muda. Nós chegamos na feira, expomos nosso tomate, e ninguém quis. Só que a gente chegou e já percebeu que na banca da feira da vizinha, tinha um tomate todo igualzinho. Isso foi uma surpresa, quando olhamos… Todo mundo comprava aquele tomate lá e não comprava mais o nosso. E a gente vai conversar com o cara lá da banca para saber onde ele está arranjando aquele tomate tão bonito. "Não, vocês estão atrasados, todo mundo está plantando agora desse tomate que é distribuído pela ANCAR" - a ANCAR era uma empresa… Acho que também desses programas do governo. Eles distribuíam gratuitamente as sementes para os agricultores. Você chegava lá, pedia as sementes e eles te davam. Até que nós começamos a pegar dessa semente também e aí fomos descartando os tomates que tínhamos. Todo mundo usou as sementes deles, só que elas já eram híbridas, já não tinha mais como reproduzir. A gente nunca se dava conta, só agradecia de ter a semente daquele tomate. Tanto o tomate parecido com uma maçã grande, como o tomate comprido. A gente tinha muitas variedades e ficou apenas com dois tipos de tomate. Trocamos a semente. A gente começou a produzir aquele tomate e começou a ser mais aceito também. Nós passamos muito tempo sofrendo, tendo que sair de casa em casa distribuindo e vendendo no rateio, no varejo, porque ninguém queria mais comprar o nosso tomate ali perto daquele outro.
P/1 – Isso foi com todas os legumes ou foi só com o tomate?
R – Com todos. A semente… A revolução verde veio com essa intenção de se apropriar das sementes também. Tirar as sementes naturais… Era chamado de melhoramento. As empresas, como a EMBRAPA, que é a empresa brasileira de pesquisa agropecuária, entende? Eles começam a fazer essa modificação chamando de melhoramento e todo mundo começa a optar por isso. Antes, tinha o programa de distribuição de sementes do governo. Tinha o banco de sementes do governo. A gente pegava a semente do governo e pagava com a própria semente. Digamos que pegamos dez quilos de semente. Para cada dez quilos de semente, devolvíamos onze quilos. Pegava dez quilos de milho e devolvia onze quilos de milho. Dez quilos de semente de algodão, onze quilos de semente de algodão. Quando o governo começa a modificar essas sementes, ele não quer mais as sementes de volta, porque sabe que elas não têm mais valor. Então, nós tínhamos que pagar em dinheiro, agora nós compramos a semente para o próprio governo. A gente recebe as sementes e ao final da colheita, vai, paga ao governo e recebe outra. Então, tem que pagar. Hoje, o governo não quer a semente, porque eles sabem que são modificadas geneticamente e não têm mais valor para a reprodução.
P/1 – Mas aí nessa época ainda quando… Você estava contando sua jornada de trabalho ainda na adolescência, 12, 13 anos. Você acordava quatro horas da manhã e aí já ia trabalhar na casa de outra pessoa, ou trabalhava no roçado, ou trabalhava no roçado no fim de semana? Como que era sua… Você tinha alguma rotina?
R – Dependia da época. A época do verão… Nós chamamos de época do verão porque não temos umas estações bem definidas. Lá no Nordeste, ou na caatinga no Sertão, nós temos um período que chama de inverno de janeiro até junho ou julho. De julho até dezembro, é verão. Então, a gente define assim. Essas estações nós estudamos no primário e hoje a gente nem sabe mais as datas, de quando começa isso e aquilo nas quatro estações do ano. Nós não sabemos. A gente vê que o pessoal daqui diz, "ah, estamos começando o outono", "estamos começando a primavera"... Em outras regiões você vê isso e lá você não vê. "Está começando o inverno", pronto. Estamos em julho, "vai começar o verão". Então, no verão (de julho adiante), a gente estava trabalhando nos vazantes plantando hortaliças e apanhando algodão - a gente se dividia em duas coisas. Quando era para gente… Também tinha que acordar cedo, porque muito cedo a gente tinha que cuidar um pouco dos afazeres, colocar água, colocar lenha… Quando ía apanhar algodão também, a gente ía muito cedo, "vamos aproveitar o peso". Se fosse muito tarde, o algodão tinha perdido o peso, secado. Ele estava úmido ainda pela manhã e o algodão tinha peso. Fosse para qualquer coisa, não tinha como, tinha que estar acordado quatro horas da manhã, mas dormir, a gente ia dormir cinco horas da tarde, seis horas… Se passasse seis e meia ou sete horas numa vila, você não encontrava nenhuma casa aberta, todo mundo estava dormindo já. Chegava sete horas ou oito horas e alguém batia na porta de uma casa, a pessoa perguntava o que estava acontecendo, "o que foi que houve? Me diga logo. Você chegar e bater essa hora na minha porta". Era algo assombroso. Então, também quando era a partir de quatro horas da manhã, ninguém queria mais dormir, ninguém precisava mais dormir.
P/1 ‐ E as cantadas de cordel aconteciam a noite ou de dia?
R – Aconteciam às vezes a noite… Com exceção dos cordéis e das debulhas de feijão. O cordel era cantado na debulha de feijão, quando antecedia uma novena… Tinha o ano que tinha as novenas… Mas isso ia até no máximo oito horas da noite. Era uma exceção quando alguém ultrapassava oito horas da noite. Os jovens, quando iam namorar, era permitido ficar até no máximo nove horas da noite na casa. Ali, o pai já cochilando. Os dois namorados ali e o pai de olho, tinha que ficar perto. Ele estava guardando a sua filha ou o seu…
P/1 – Já que você falou nisso, eu também ia perguntar como é que era o namoro. Qual foi a primeira namorada que você teve?
R – Pois é, foi mais ou menos desse jeito. Ia lá, ficava conversando… A namorada colocava a cadeira aqui, você aqui e ficava os dois conversando assim. E quando alguém dava um descuido e dava um cochilo, os dois aproveitavam para dar um abraçozinho assim e soltava, senão… (risos). Se de repente alguém flagrasse, já iria casar.
P/1 – Sexo mesmo não podia…
R – Não. Podia acontecer, mas não… Acontecia mas não era uma coisa normal. De repente a menina aparecia e o buchinho já começava a crescer. Aí pronto, não tinha como. Ou ela às vezes confessava logo, "olha, fui bolinada" e o pai ia obrigar o cara a casar.
P/1 – E no período que você cresceu, todo mundo que você viu acontecer isso casou ou teve gente que…
R ‐ Ou casou ou ele teve que sumir no mundo, porque o cara amolava a peixeira e saía correndo procurando ele para lhe tirar os grãos se não casasse com a filha (risos). Não tinha como, a não ser que alguém fosse muito… Superasse o seu tempo. E existiam exceções, claro que existiam. Essas pessoas… Até a vizinhança, ninguém queria chegar na casa e ter convivência ou relacionamento com um pessoal desse. "Essa é a casa"... Não sei nem… As classificações eram as mais baixas, mas apesar de tanto sofrimento que se passava, mas era um… A gente buscava também ter prazer, viver bem, estar alegre, se divertir para espairecer um pouco daquela situação que se passava. Tinha as tertúlias. As tertúlias eram aquelas festas que se fazia com discos vinis e aquelas radiolas de plástico. Um jovem aparecia com aquela radiola embaixo do braço e um monte de disco, esperando as pessoas contribuírem para comprar as pilhas. Tinha que botar dez pilhas para ficar até onze horas da noite brincando, dançando. Tinha as músicas de forró da época que eram realmente as músicas de forró. Os forrós que você chamava… Hoje as pessoas falam "forró pé de serra", não, era forró de todos os lugares e todas as pessoas. Era o único forró. Essa alcunha é uma alcunha de resistência. O forró, por exemplo, é um outro forró e aqueles se chamam "pé de serra". Não precisava desse alcunha, porque o forró que se conhecia era aquele que a gente brincava sob animação daquele tipo de forró da década de 60, 70… Era o baião, xaxado… Muitas vezes aqui no Ceará chamava de samba. "Ah, vamos para o samba?", "vamos", embora não se escutasse uma música em samba. Era forró, mas o pessoal chamava samba. "Vamos sambar?", "vamos" (risos). Não importava para ele, ele chama samba.
P/1 – E por que?
R – Samba era apenas o nome que dava para a brincadeira. "Vamos dançar?", "vamos", entende? E samba era simplesmente para designar a festa dançante. E o cordel também, era cantado. Isso era intercalado. Era o cordel, as tertúlias e continuavam as animações… Eram as fogueiras animadas, era… O tempo ruim das secas era principalmente o período que se chama o período chuvoso. No período chuvoso vai ter tudo. Vai ter muitas diárias de serviço para quem vai trabalhar (chamava trabalhar alugado, alugar a força de trabalho), vai ter… Quem planta, passa janeiro, fevereiro, março e em abril já vai começar a comer feijão verde. Começa a comer abóbora, jerimum, melancia, milho verde, canjica, pamonha, milho assado, milho cozido… Então, é um tempo de fartura. Nesse período, as chuvas vêm certas, bem distribuídas. A cultura é comer daquilo. O industrializado ainda não chegou nessas épocas. Eu falo da década de 60, década de 80… Ainda se vive. Quando chega na época de julho, agosto e setembro, vem melhorar um pouquinho a situação, porque é a época do algodão. O algodão atravessa… Apesar de seco, ainda chove alguma coisa, não é seco de tudo. Quando chama-se seca, é porque chove muito numa época e fica um tempão sem chover. Aí, perde aquela planta. Durante aquele período, não dá mais para você plantar. Ou então, quando estava granando, parava de chover também e dava prejuízo. Então ali chama-se seca, mesmo que faça água. Pode até fazer algumas represas encherem mas não foi um bom inverno. Chama-se seca verde. A mata toda está verde, tem folha, a babuge nasceu. Babuge é o matinho rasteiro… São as ervas que cobrem o chão.
P/1 – E essas ervas que crescia, você já conhecia também o lado medicinal delas?
R – Sim, isso era uma coisa que a gente tinha. A gente nasceu e se criou sabendo para o que serve cada coisa. Uma chama-se pé de galinha, a outra é manjerioba… As nossas mães e avós colocavam a manjerioba para torrar e às vezes misturavam com café para fazer para fazer render mais. O café era caro. Ela comprava o café em caroço, aí tornava caroço, semente de jucá, semente de manjerioba e… Tinha gente que botava milho, torrava milho, misturava com o café… De meio quilo de café, ela fazia três quilos. Aí dava, ela ficava tomando mesmo que um café totalmente adulterado. E vai lá, vai ver que era até um café mais sadio. Aquele café era feito de manjerioba e manjerioba é remédio para o sangue.
P/1 – E todo mundo sabia disso?
R – Sabia. Isso era uma coisa que não tinha especialista. Engraçado, nessas épocas todo mundo era doutor de si mesmo. Se tinha alguma coisa, já sabia como se livrar. Se levasse um corte na perna como me aconteceu, nossa… A pessoa corria no mufungo, rasgava e jogava em cima. Outros tiravam um pouco de cabelo e colocavam em cima para coagular sangue.
P/1 – Cabelo…
R – Cabelo de gente (risos). O que estivesse mais perto.e que estivesse com o cabelão assim, "por favor, desculpa". A pessoa lá sangrando e um cortava o cabelo do outro com a foice mesmo, uma faca. Com o que tivesse, tirava um punhado de cabelo e jogava em cima daquele corte. E ele acreditava que era desse jeito que iria estancar. Se estancava… O meu estancou. Eu levei um corte roçando algodão. Tem um período de roçagem do algodão, que apesar de seco, ainda se ganha alguma coisa. O algodão e resistente, é o algodão arbóreo. Antes, era o algodão arbóreo. Algodão arbóreo é o que? É o algodão de árvore. Tinha o algodão herbáceo, que era o algodão branco, de caroço "lanzudo", caroço coberto. Tinha o verdão. Tinha o branco de caroço coberto e tinha o outro que era verdão, caroço verde. Tinha um algodão que era bem limpinho, algodão pretinho, esse algodão era arbóreo. Algodão preto cresce muito, vira quase uma árvore. As pessoas inclusive usavam ela para lenha (a madeira do algodão). A gente se virava então, quando terminava o inverno - de julho até o final do ano - apanhando algodão. Nessa época fazia um pouco de dinheiro quem tinha plantação de algodão. E quem não tinha, ía pegar algodão do outro ganhando na produção por quilo, por arroba. O arroba é quinze quilos em alguns lugares e vinte quilos em outros. No Ceará, tinha alguns lugares que um arroba de algodão era 15 quilos. Na Paraíba, 20 quilos. Então, você apanhava vinte quilos de algodão… "Estou pagando R$30,00 o arroba de algodão". Muitas vezes o cara não consegue pegar muito mais do que um arroba de algodão. Só que tinha gente… Tinha os campeões. O normal era 30 quilos… Mas tinha gente que fazia 60 quilos de algodão. A fama maior era pegar 60, 62, 65 quilos de algodão. Essas eram as pessoas afamadas. Tinha os campeões do algodão na época. Tinha pessoas conhecidas. Fulano de tal, quando chegava, "nossa, esse cara"... Outro só apanhava 20 quilos, outro só apanhava 30, outro só apanhava 40. Tinha os médios e os mais fracos em apanhar algodão. Você vai no capucho de algodão e de uma vez só você vai tirando. Tem que ser o mais rápido possível e dar menos "botada" errada. Esses eram os campeões, que pegavam muito. Tinha outros que se distraíam e não pegavam muito. E o algodão era uma coisa que salvava o Nordeste. Significava para o Nordeste 70% da sua economia. Da economia do Nordeste 70% era algodão. Grande parte, acho que quase 20% era a criação de gado. Por que o gado era menos? Porque o gado sofria muito com a seca. Não tinha pastagem, era seco e aí o gado emagrecia e morria muito. Não tinha água, morria de sede e de fome.
P/1 – E por que algodão d'água?
R – Porque o algodão é a água que sustenta. Então, não importa se ele passar um mês sem chuva, toda vez que chover ele absorve bem aquela chuva. É uma cultura de curto ciclo. Para uma cultura de curto ciclo, que vai dar em três ou quatro meses, um mês sem chuva já é prejuízo, porque passou o tempo dele. O algodão, não. O algodão arbóreo dura dez anos. Então, em um mês sem chuva para ele… Ele vai ficar anos e anos. Se ele ficar seis meses sem chuva, ele resiste ali, e as folhas dele o gado come. O gado faz a poda. Você pega o algodão e ficam as capinhas dele, as casquinhas de fora que protegem ele. Você tira o algodão de dentro e aquelas casquinhas que ficam ali o gado vai comer. Então, o gado e o algodão eram duas coisas que casavam bem. Quando o cara tirava o algodão, jogava o gado lá dentro e ele ia comer. Madeira mole... Comia grande parte de algodão e um pedaço da madeira ainda.
P/1 – Então, ele comia o algodão que o pessoal pegava?
R – Ele não comia algodão, porque as pessoas não deixavam o gado fazer isso. Só quando o preço não valia a pena. Digamos, a fábrica está comprando algodão a R$20,00 o arroba (20 quilos). O cara não vai pegar algodão por menos de R$20,00 o arroba. Então, quem tinha o algodão, ia pagar por arroba - R$20,00 o arroba para uma pessoa que ia vender o algodão por R$20,00. Não compensava. O que ele fazia? "Não vou pegar algodão". "Quem quiser ir apanhar algodão lá e me dar a metade, pode ir, se não vou jogar o gado". E às vezes colocava o gado e ele comia algodão e tudo. Quem tinha gado e algodão, saía ganhando sempre, porque era comida para o gado. O algodão tinha um caroço e o caroço é muito proteico. Fazia o que chamava "torta de algodão". O gado comia e sobrevivia, engordava. Então, o povo que não tinha terra, não tinha algodão… Esse sim passava mal. Muitas vezes o gado atravessava. Às vezes acontecia do algodão atravessar e do gado atravessar. O algodão estava bom, o preço estava bom e o cara ía apanhar o algodão. E o algodão, assim… Eu, por exemplo, vivi assim até 70, final de 78.
P/1 – Pegando algodão?
R – Nessa realidade. Tudo. Plantando nas vazantes do açude, hortaliças, colhendo algodão, trabalhando no roçado, trabalhando na diária e ao mesmo tempo com um pouco de hortaliça vendendo tomate, pimentão, repolho… A gente levava um pouco para as feiras.
P/1 – Você me contou uma história onde você disse que para aguentar o trabalho pesado, você ficava fazendo peleja de versos.
R – Uhum. Isso era nas épocas do apanho do algodão. Eu nunca fui um cara apanhador de algodão, porque eu ia trabalhar e eu e mais outros jovens começávamos a brincar e cantar versos dentro do roçado. Então, com o fato de estar cantando a gente se distraía. E a gente olhava os outros levando o algodão e ficava morrendo de vergonha. Quase não chegava com algodão em casa. E aí, ia pesar, todo mundo pesando. Imagine as pessoas pesando dez, quinze, vinte, trinta quilos num expediente só e a gente chegar e não pesar nem cinco quilos de algodão. "O que vocês estavam fazendo?". Tinha vezes que um fugia, "tu vai, diz que eu não fui e leva o teu algodão junto com o meu para ver se pelo menos um de nós não passa muita vergonha", porque não tinha coragem de ir para a balança. Quer dizer, isso porque a gente se distraía muito.
P/1 – E você fazia um repente?
R – Fazia repente.
P/1 – Você lembra qual foi o primeiro repente que você fez? A primeira vez que você improvisou um repente.
R – É… Eu lembro de alguns que a gente fazia assim, na minha época, que são piegas para caramba. São coisas que hoje eu nem gosto muito de cantar, mas como nós estamos aqui fazendo essa história… Eu lembro que eu fazia um repente… Por exemplo, para as meninas que você pretendia conversar com elas, passar nas casas delas e tal, entende? Quando tinha começado uma paquera e tal… "Uma noite eu procurei você. Procurei e não lhe vi...", não, "Uma noite eu queria bater papo e por isso procurei você. Procurei e não lhe vi, não sei porquê, certamente pensou que eu fosse um sapo. Eu não sou, mas me transformei em trapo e ali fico bolando pela rua. Vem um vento e me leva à casa sua. "Ela foi passear", diz sua prima. Então, volta o estranho a fazer rima com os olhos chorando para a lua. Quando penso que estou lhe atraindo, estou sendo enxerido e atrapalhando, porque você não me dá nem atenção e eu fico por ali me enxerindo. Para os outros, você está sorrindo e penso até que está rindo para mim. Desconfio que não é e acho ruim. Mas não dou a ninguém demonstração, meu domingo perdido na ilusão, só a velha cachaça que me dá fim. Certa vez inventei uma viagem só para ver se na volta conquistava. Só sofri nos lugares onde andava e descobri que fiz mais uma bobagem. Nas rondas que eu dei, não fiz vantagem, pois para mim foi foi uma dose sem efeito. Quando eu a vi, senti gelar o peito. E com a mão fria, apertei a sua quente. Só eu indo embora novamente sem voltar aqui e que dou jeito". Era uma forma que a gente fazia de repentes e martelo agalopado, essa modalidade de rima.
P/1 – E aí, vocês faziam quanto… Como é que era? Você pode contar como é que se dava o feitio de verso?
R – Ah, os versos você cantava nos repentes, cantava na… Por exemplo, um com o outro, né?
P/1 – Mas enquanto trabalhava? Como é que era?
R – Enquanto trabalhava. Você estava trabalhando, estava cantando. Um cantava de lá, outro de cá. Um dizia um insulto ao outro, um pegava a deixa… Eram repetentes que a gente cantava e treinava. Eu cantava, mas o meu negócio era mais escrever. Os pensamentos… Às vezes ficava parado, meio introspectivo, naqueles momentos pensando nos acontecimentos. Quando você está trabalhando, você está pensando, "nossa, quanta ideia". Muitas vezes eu levava e às vezes acontecia isso também. Eu ia para o trabalho e já levava um caderninho e uma caneta, que era quando você estava no trabalho que começava a chegar as ideias e as histórias começavam a aparecer. Eu começava a escrever as várias histórias. E aquelas histórias daquele tempo você vai passando e você vai… Eu perdi um caderno de mais ou menos 300 folhas todinhas de poesias que eu fazia. Era das viagens, deixei em determinado lugar e pronto, ficou. Eu não faço ideia mais… Todas as poesias que ia fazendo, eu levava e por isso eu muitas vezes não trabalhava no algodão, principalmente porque o algodão necessita de atenção total a ele. Você não pode se distrair. Se você se distrair, erra a botada. Começa ali pensando, começa a ficar… Então, quem está apanhando contigo, enquanto você está pegando um, já pegou cinco. Quando você tira dois, ele já apanhou dez. Quando você tira quatro, ele já está longe. Você não vai acompanhar. Quando vai chegar na balança, que vai pesar o algodão e ver quem apanhou mais… Era uma competição de quem… Se repente o de um é 30 quilos e o seu é 6 ou 7, 8… (risos). E as pessoas ficavam perguntando, "o que você estava fazendo?", e eram as viagens (risos), "eu estava pegando algodão", "mas por que ele pegou…?", "algodão melhor, local melhor… O meu tinha muita pedra, muito toco". Você tentava ficar criando um pretexto sem saber que não colava. Esse pretexto não estava sendo aceito nem por você mesmo, imagina pelos outros.
P/1 – E aí, o que que você disse que aconteceu em 78 que você ?
R ‐ Em 78… É isso, em 1978 eu já estava moço, já estava com 17 anos. Assim, eu comecei a trabalhar muito cedo, e como eu estava dizendo terminando os estudos (quarta série, primário). Você fica sempre com vontade de estudar ao ver os outros estudando. "Nossa, tenho que fazer isso". Você ia se engajando com as coisas, até interessado em estar naquela… Sociabilidade com o povo ali, a galera, os jovens. Você começa a entrar para as atividades mesmo que sejam religiosas, mas você já vai se enturmando com o pessoal, vai se engajando, vai começando a ver outras coisas…
P/1 – E eram atividades religiosas?
R – Eram religiosas. Tinha também as novenas, as festas de padroeiro (que antecedem as novenas que são nove dias de reza de casa em casa). Você começa se engajando naquilo e depois, você começa a sonhar também e começa a ver que pode ir mais além. Manifestei para as pessoas que estavam ali a vontade de ser padre, por exemplo.
P/1 – E por quê veio essa vontade de ser padre?
R – Ah, porque chegou o espírito mesmo religioso, chegou à vontade. As pessoas depositavam aquela confiança, aquela credibilidade, "nossa, nossa que bom", e você tinha vontade de ir estudando mais a Bíblia. Por exemplo, eu tinha muita vontade de estudar a Bíblia. Quando eu levo um corte um certo dia na perna, ao invés de ficar preocupado com aquele corte, eu fiquei, "nossa, que coisa boa, pelo menos agora eu vou ter a chance de passar dias só lendo", porque eu tinha que trabalhar e era cobrado de segunda a sábado.
P/1 – Domingo não?
R – Domingo era para botar lenha e botar água em casa. A semana todinha você podia trabalhar. Você trabalhava, não parava. E eu com um corte na perna, sem poder andar… Quanto mais tempo eu passasse sem andar, para mim seria melhor, digo, "posso até perder uma perna, mas vou me empenhar em outras coisas". Aí passo a estudar e vou estudar a Bíblia na igreja. Quando eu estudo a Bíblia, pronto, eu vou tendo conhecimento, bagagem e vai sendo melhor a minha participação mas novenas. Eu vou começando a explicar leituras, leituras da Bíblia com conhecimento… E isso que me levou a… O pessoal ficava "nossa, mas você deveria ser padre", "nossa, você leva jeito para ser padre", "ah, você podia ser padre". "Mas será que eu posso mesmo, porque estou nessa idade e só fiz o primário?!". As pessoas ficavam, "você tem condição se continuar estudando e chegar lá". Eu ficava fazendo as contas de que ano… Talvez com uns 25 ou 30 anos eu chegaria a isso estudando. Aí, coloco isso para o vigário que vem celebrar a missa (o vigário da paróquia), que eu queria ser padre. E o padre, "Você quer mesmo?", digo "quero", pronto, "então você vai para a igreja fazer uns testes e se você passar, vai ficar trabalhando na secretaria comigo". Era o padre Albino, um italiano. Era o pároco que celebrava a missa lá na minha região. Aí, em 1978, no final do ano (em outubro mais ou menos), ele disse "já pode pegar suas coisas e vamos lá". E eu já vou embora para a cidade. Vou treinando, passo no teste. "Está bom", eu faço uma redação e passo. Fico lá, começo a trabalhar. Chego na cidade, claro, bem sem noção. Eu sou um cara do interior, né? Quando chego lá, estou sem noção nenhuma na cidade. Vejo os movimentos surgindo, época da ditadura, a cidade era mediana… Uma cidade pobre da região de Cajazeiras. Eu começo a perceber as pessoas me cortando como, "opa, chegou um novo aí na igreja". Tinha os movimentos e os movimentos religiosos, né? A teologia da libertação, os Focolarinos, o pessoal dos Carismáticos, o pessoal que se reúne também, os movimentos sociais, a CPT (comissão pastoral da terra), o pessoal dos partidos clandestinos… E eu começo a ser bombardeado com um monte dessas coisas. De repente eu vou para um que é totalmente o contrário de outro. Vou chegar num, com um discurso revolucionário para os Focolarinos e Carismáticos. Os Carismáticos, "nossa, que…". E vou lá para uma reunião dos caras políticos revolucionários com um discurso religioso. Eu sempre trocava as coisas assim e não percebia, "acho que não estou me encontrando, onde é o meu lugar? Será onde? O que eu quero mesmo?". Mas nessas definições surgem as perguntas e aa definições e respostas, vou encontrando dentro da própria situação, me identificando com algumas situações. Uma das coisas com as quais me identifiquei com a experiência de Dom José Maria Pires, padres do campo… Padres para a roça, para o trabalho, para acompanhar assim… Os filhos dos camponeses que não tiveram chance de estudar ou completar seus estudos serem padres. Ficaram adultos e não conseguiram. Estavam começando os estudos… Seis anos, então já seria padre. E aí, eu vou fazer estágio, eu passo o ano de 78 e 79 e está a efervescência política, a luta pela chamada democracia, pelas eleições… Em 80, você ainda tem cinco anos de ditadura, ela ainda está… Mas já está enfraquecida e Lula surge aí, o PT surge aí nesse enfraquecimento e na consolidação mesmo das lutas e das reivindicações...
P/1 – E você já estava ligado nos movimentos sociais?
R – Aí, é. Quando vai chegando 78, 79… 78 é o meu começo, fraco. Em 79 eu estou na fase de definição. Em 1980, eu já estou entendendo um pouquinho, me discernindo daquela realidade.
P/1 ‐ Mas aí rolou um afastamento de ser padre ou você estava querendo ser padre…
R – Não, ainda estava querendo ser padre. Mesmo religioso, atuando nas práticas sociais da igreja, principalmente a CPT, as comunidades eclesiásticas de base. E nessas épocas, a gente vai para as manifestações já. Por exemplo, tinha um trabalho com os padres na Diocese que é da minha terra de Cajazeiras. Os padres começam a entrar em conflito com os outros, conservadores. Os padres com os quais eu vivia, eram padres que tinham um pensamento mais progressista, uma atuação progressista. O pessoal chamava os padres de progressistas, eram os da teologia da libertação. Essa teologia estava em toda a América Latina, nas ondas também de ditadura em toda América Latina e ao mesmo tempo luta de libertação nacional. Muitos países da América Central que ainda eram praticamente colônias, tinham implementado sua luta de libertação e eles avançavam, apesar de… Já tinham rompido com seus países colonizadores e avançavam numa luta pelo socialismo. Você tinha El Salvador, Guatemala, Nicarágua, Honduras… Então, cada país… Você tinha a realidade dura do Chile, tinha a realidade dura da Argentina, tinha a realidade dura do Brasil, tinha a realidade dura do Paraguai, do Uruguai… Cada país da América Latina tinha a sua realidade dura. Então, nisso surgiu um movimento muito mais ligado à igreja. A igreja era a melhor opção para as pessoas, porque no mundo o próprio poder era religioso. Então, a religião era um pouquinho mais respeitada, apesar de que muitos religiosos tombaram também. Você tinha a morte de Dom Oscar Romero em El Salvador e ele já sabia que ia morrer, "si me matan resucitaré en el pueblo". Isso era, para gente, palavras de ânimo, motivo de força, de fortalecimento daquelas pessoas que tinham coragem de dizer "eu estou sendo ameaçado de morte, mas não vou desistir e pedem para que eu desista", como Margarida Alves, que lutando pela defesa dos trabalhadores da cana de açúcar na Paraíba foi assassinada, e muita gente que sabíamos, "fulano foi preso". Como tinha um, chamado Cajá...
P/1 – E como é que vocês lutavam na prática, assim, como é que se dava a organização? Tinha organização social, né?
R – Uhum. Essas organizações sociais se davam assim, a gente ía para as realidades, fazia reuniões com o povo, fazia sindicatos, ía para as manifestações… Fazia muita coisa. Tinha o trabalho diário da pastoral, se reunia CPT, discutia a problemática, trabalhava-se muito no… A igreja sempre trabalhou muito dentro da legalidade. Era democratizar as instituições. Fazer valer o estatuto da terra. Nós entramos na realidade do campo, na CPT (Comissão pastoral da Terra). A gente saía nos campos fazendo reuniões com os trabalhadores, mostrando como que era de forma bem didática elaborada em apostilas as leis de arrendamento. "Olha gente, um arrendamento não pode ser menos de cinco anos", "olha, o estatuto da terra diz que você só precisa pagar 10% e você está pagando a meia, 30, 40, quase 50%", "a própria lei diz isso assim e assim". A lei de 1964 da época militar já dava toda a visão de como era a relação de trabalhador e patrão.
P/1 – E você teve algum mentor ou você… Nessa questão uma pessoa que te ensinou e mostrou as coisas das leis ou você foi descobrindo?
R – Quando eu percebo que dentro de Cajazeiras já tinha, por exemplo a CPT… Tinha uma mulher chamada Laíde, tinha o Pebinha, Zé Marreta… Eu comecei a ver que eles se reuniam e fui perguntar para quê eles estavam reunidos, o que eles estavam fazendo. Eu já estava querendo participar de todas as reuniões possíveis. Onde eu via duas ou três pessoas, eu já começava a escutar para ver "será que aqui é o meu lugar?", entende? Eu estava buscando me encontrar. Então eu participava de várias coisas e fazia trapalhadas, trocava uma coisa com outra, chegava num e fazia um discurso que não tinha nada a ver, levava o discurso de um para o outro, entende? Trocava os políticos pelos carismáticos e os carismáticos pelos políticos. O pessoal me chamava, "olha, vem cá, não é nada, mas francamente você está totalmente fora desse negócio aqui, não dá para você participar disso não" (risos). Então, eu terminava ficando solto. Naquela situação, ninguém me queria em canto nenhum, porque eu chegava só dando fora mesmo. Mas quando eu começo a perceber, isso é realmente na década de 80. Em 79 eu já começo a perceber, porque o Lula está em um auge muito grande, está percorrendo o Brasil todo, foi a Cajazeiras. E aí, a gente já começa, "Nossa! O negócio agora vai mudar".
P/1 – Você viu o Lula discursar?
R – Vi. Ele foi lá na minha terra em 79.
P/1 – E aí o que você achou?
R – Nossa, achei o máximo. Eu achava que todos os discursos que eram contra a ordem eram o máximo. Uma pessoa que tinha coragem de subir… Você dizia, "nossa, o cara tem coragem, tem muita coragem".
P/1 – E quando foi que rolou essa coisa dessa enfrentamento seu com a ordem? Quando foi que você olhou e falou, "opa, tem alguma coisa"?
R – É exatamente isso. Quando os padres que eu trabalhava e que trabalhava com a pastoral social tinham críticas. Eu começava a observar que as pessoas que estavam ao redor dele tinham um posicionamento crítico em relação à ordem vigente. Eu começava, "olha, tem alguma coisa por aí!". Eu comecei a perceber que nós estávamos vivendo uma ordem política e social muito injusta. Eu pensei exatamente na discussão do meio em que eu estava vivendo mesmo. Eu começo a perceber e começo a ver o pessoal se reunindo… Da CPT, vou me aproximando. É quando começa a entrar um pouquinho, me definir e perceber o que estava rolando. Os caras vieram dizer, "isso aqui é uma pastoral", digo "é?", (risos) "uma pastoral social. A gente trabalha com os agricultores explicando sobre as injustiças que eles estão sofrendo, a luta pelos direitos, nossos cantos…", e aí começavam a cantar. Os cantos eram o que mais conscientizava. Por exemplo, tinha um canto que dizia, "nosso direito vem, nosso direito vem. Se não vir nosso direito, o Brasil perde também. Nosso direito vem, nosso direito vem. Se não vir nosso direito, o Brasil perde também". A gente começava a cantar esses cantos e animava muito cada reunião em que nós íamos. Levava um violão, fazia uma animação e depois… Eu comecei a participar daquelas reuniões, e aí, bom, "agora o bicho vai pegar". Você começa a perceber, você começa a olhar quem é quem, começa a pensar sua base formação. Quando eu percebo e fico sabendo que tem uma experiência de Dom José Maria Pires que era o arcebispo da Paraíba… Chamavam Dom Pelé, ele era bispo negro, um arcebispo negro, um cara que tinha uma experiência incrível. O primeiro bispo que eu vi trabalhar junto com as religiões de origem africana. As religiões do candomblé, pessoal da umbanda, os terreiros… Ele ia aos terreiros e se dizia daquele movimento. Dava palestras sobre Palmares. Então, eu como seminarista tive o privilégio de participar de algumas palestras dele. Ele estava organizando um seminário em um centro de formação lá na Paraíba, na região perto de Bananeiras, de Areia, a região do brejo paraibano. Lá tinha um seminário no centro de formação que era para formar filhos de agricultores que não tinham terminado os estudos e podiam estudar lá. E eu vou fazer a primeira experiência, a primeira visita. Depois, volto empolgado e continuo nas pastorais. Quando chegam as pastorais sociais e estão avançando em Cajazeiras… O bispo muito conservador e começa a entrar em atrito com os padres que estão convivendo com eles. Termina os bispos expulsando os padres. Uns quatro ou cinco padres da paróquia são expulsos de Cajazeiras, lá na Paraíba. Eles são recebidos, são convidados para ir para a diocese de Iguatu, lá no Ceará. Eles vão embora com muita tensão. O povo promoveu um abaixo assinado para os padres ficarem, por não querer que eles saíssem, porque eles eram bem populares. O bispo lá… Tinha os padres coronéis, padre fazendeiro, como o padre Levi. O bispo era Dom Zacarias Rolim Moura era também fazendeiro. Tinha muita gente trabalhando para eles. Esses fazendeiros, muitas vezes religiosos também, ou não, tinham muito poder econômico porque tinha muita gente trabalhando para eles. Trabalhando pagando a metade da produção e eles só tinham a terra. Davam a terra para as pessoas trabalharem, elas trabalhavam e pagavam para eles a produção.
P/1 – Mas você já fazia essa leitura na época?
R – A gente já começou a perceber isso na CPT, por a CPT faz exatamente esses estudos, esses levantamentos.
P/1 – Entendi.
R – É por isso… Nesse conflito com os patrões, a gente apoiava os trabalhadores. Nem todos os trabalhadores queriam… "Não, eu não quero confusão com ninguém, eu pago. Não precisa cobrar. Se ele quiser metade, eu pago. Trabalho e dou a minha metade para ele". Outros resolviam resistir e com essas pessoas que resistiam, se formava a comissão pastoral da terra. Era dos trabalhadores, de pessoas que resistia e diziam que não iam pagar. Às vezes, grupos de trabalhadores numa fazenda… Tinha muita gente morando numa fazenda, muita gente. A população estava… 80% da população estava no campo. Então, ela tinha motivos pra estar ali, porque tinha produção. A produção tinha raiz, e o estatuto da terra dizia que ele não podia sair se tivesse raiz. Como que é raiz? Algodão. Algodão é uma lavoura que você tem para durar dez anos. Eu tenho quatro, cinco, dez hectares na terra de um certo fazendeiro, de um certo coronel… Se eu tenho dez hectares de algodão, eu tenho raiz. Então, para sair dali, o patrão não pode me colocar para fora da terra dele. Ele vai ter que me pagar uma indenização. Se ele não estiver disposto a me pagar, ele vai me dar um pedaço de terra. Ele pode negociar e eu ficar com um pedaço da terra, porque tem gente que está com 10, 15, 20, 30 anos numa terra e de repente o patrão manda embora… E o cara vai resistir. Então, essas pessoas injustiçadas que tinham que ir embora… A igreja criava também o CDDH (Centro de Defesa dos Direitos Humanos), financiava as lutas, ajudava a pagar advogado, e ajudava os sindicatos. A CPT entrava com chapa de oposição aos presidentes pelegos. Tinha os presidentes pelegos que transformavam o sindicato em uma agência da previdência social.
P/1 – Como assim?
R – Porque o governo vinculava… Para se aposentar ou um benefício qualquer que os governadores tinham, eram os sindicatos que organizavam tudo - o sindicato dos trabalhadores rurais. O sindicato colocava dentista lá dentro, fazia atendimento médico… Então, o papel do hospital era dos sindicatos. Então, desviavam totalmente a atenção da luta e o povo se confundia, "para quê serve sindicato?", "ah, sindicato é bom, porque de repente você tem um atendimento". Eles diziam o seguinte, "sindicato não é para ser assistencialista. Ele vai lutar perante os órgãos públicos para o trabalhador ter direitos, ter o direito de ser atendido. Ele não tem que colocar médico lá dentro do sindicato. O sindicato tem que ter advogado para ajudar os trabalhadores, têm que apoiar a luta deles e não dar assistência e fazer o papel do Estado. O Estado que tem que fazer isso. Eles têm que defender os trabalhadores em qualquer ponto". Era a posição da CPT… A estrutura do sindicato que era pelega e as pessoas sempre estavam… Nunca querendo sair da diretoria. Quem pegava uma vez… A pessoa que pegava a diretoria do sindicato, não queria deixar nunca. Muitas vezes tinha gente com 15, 20, 30 anos que era presidente do sindicato ali. Não era mais presidente, já era dono. Então, a CPT dizia "vamos revezar. O presidente assume em uma semana. Vamos dividir o dinheiro entre os diretores. Vai ganhar quem ficar naquele dia lá respondendo". Tinha uma proposta diferente de descentralizar o sindicato, tirar o assistencialismo do sindicato e tornar o sindicato de luta em defesa daqueles direitos, não de luta assim, mas em defesa dos direitos. Essa defesa dos direitos que movimenta, vai fazendo crescer a CPT e vai conscientizando muita gente. E eu fui sendo conscientizado com isso, porque o advogado ía para as comunidades e levava alguém da CPT. O advogado ía esclarecer, às vezes dar uma palestra da CPT. A CPT se reunia, chamava pessoas, tinha cartas do CDDH que apoiavam as lutas, chamavam pessoas dar formação, promover formação… Eu participo, por exemplo, da formação de seis meses de educação política sindical e cooperativismo. Tinha três coisas: a política para você estar dentro dos assuntos delas, ter condições de fazer uma avaliação de conjuntura, você também estar pronto para atuar no sindicato com aquela condição de avaliar e fazer essa análise e você ao mesmo tempo tempo ter conteúdo do cooperativismo, que era uma das coisas muito incentivadas na época. A pastoral trabalhava nele. A pastoral que cuidava de formar seus membros.
P/1 – Entendi.
R – Ela chamava e não soltava, não deixava a pessoa solta. Uma vez que eu fazia parte da pastoral, eu já ia fazer parte também dos encontros de formação.
P/1 – O que eram esses…
R – Encontro de formação.
P/1 – De formação do que?
R – Por exemplo, nós vamos realizar um encontro e vai ter lá uma pessoa entendida nos assuntos da lei de renda, digamos. Que vai dar um curso nessa área para algumas pessoas das comunidades. Em cada comunidade, vamos trazer duas pessoas, digamos assim. Formavam aquelas pessoas e elas voltavam para sua realidade sabendo o que era lei de renda. Ela já ia começar a conversar com os outros, ela já era multiplicadora. "Olha, passei no curso em que diz que a renda não pode ser assim, está aqui" e apresentava. E os patrões começavam a ficar com medo começavam a estremecer. Então, a base que ficou toda assim, entendida, bem politizada, entende? "Vamos fazer um curso de cooperativismo", vinha aquele povo de 50 ou 100 pessoas, de município, fazendo curso de cooperativismo, com tudo pago, comida e tudo. Fazia um curso daquele e todo mundo queria vir, até porque não comia muito bem, comia mal na sua realidade. Eles vinham para um curso daquele. Três, quatro, cinco dias num curso daquele… Valia a pena. Por um lado ou por outro, eles eram atraídos (risos), saíam um pouco da sua realidade. Quando chegavam lá, nossa, já se destacavam. Tinha gente que trabalhava muito com a liderança. Essas pessoas eram preparadas para serem líderes, e os outros, liderados. A gente vai… É dessa forma, nesse método de trabalho que os italianos trabalhavam e é por isso que entra em conflito com quem não queria que as pessoas se esclarecessem. A própria igreja que era latifundiária - tanto a igreja, quanto alguns padres - esses caras vão embora, vão para Senador Pompeu. O padre me pergunta, "você que sabe, você quer ficar aqui?", e eu já estava trabalhando mesmo lá e ele sai em 81. Eu fico em 79 e 80 em Cajazeiras trabalhando com o padre. Em 81 eles vêm embora. Eu ainda fico lá esperando que as coisas se normalizem, outras questões, eu estava estudando ainda… Mas quando é no final de 81, eu saio e venho para o centro do Centro do Sertão, Senador Pompeu.
P/1 – Para quê?
R – Eu venho trabalhar… Já não venho mais trabalhar como secretário. Eu venho acompanhando o padre ainda na qualidade de seminarista.
P/1 – Seminarista?
R – É, na qualidade de seminarista. Me transfiro da igreja de Cajazeiras… Da diocese de Cajazeiras para a Diocese de Iguatu e fico frequentando as reuniões bimestrais da diocese. As reuniões de formação dos missionários seminaristas.
P/1 – Deixa eu só entender uma coisa. Você está falando que estava seminarista, mas só que toda essa coisa que estava te formando também tinha um lado de ação social?!
R – Tinha. As pastorais… Porque eu fazia parte das pastorais mesmo sendo seminarista. Você pode ser seminarista mesmo sem fazer parte dessas pastorais, mas era uma questão minha estar buscando formação, estar buscando entender esse processo, entende? Eu cheguei necessitando disso. Eu era seminarista, participava das reuniões de formação da própria igreja… O seminarista não fica solto, ele fica sendo acompanhado. Eu sou seminarista e quem é a pessoa que me acompanha, responsável por mim? Seminarista, aquele da pastoral vocacional. É outra pastoral, pastoral vocacional. Já promove também suas atividades de formação. Transforma sua oração, sua relação com as divindades/com o divino que você professa, os sacramentos, as coisas… Você tem que estar cuidando da espiritualidade também. Então, a vocacional vai cuidar da espiritualidade do padre, esse é o papel dela. E têm os encontros de formação, onde vou ficar conhecendo a Bíblia, vou estudá-la, estudar Teologia nesta formação… Você não vai ser um seminarista, ah… Não, você não vai estar solto, vai estar sendo acompanhado. Você é alguém que tem que estar sabendo transitar nesse meio religioso.
P/1 – E era assim que você se sentia?
R – É, eu… Mas eu estava e era convicto. Eu tinha minha cultura de fé… Dúvidas? Sim, tinha dúvidas.
P/1 – Você acreditava em Deus?
R – Eu acreditava até eu chegar na igreja. Depois, eu fiquei num drama. A primeira vez que vi alguém dizer que não acreditava em Deus, para mim, foi um escândalo assim, ele bateu em mim uma coisa tão "por que ele desacredita?", aquela insatisfação, entende? "Nossa, mas será…", e aí começa a duvidar. A fé não tolera, não quer, não aceita. Se você é religioso, você não se aceita na religião com dúvida, você vive perturbado, a não ser que você seja desonesto. Você é padre e tem salário garantido, um bom salário. Você pode fazer carreira, tem possibilidade de crescer. Você vai ganhar alegria, vai ganhar… Entende? De vários lugares. Você pode ser rico, pode seguir uma carreira, sei lá, cantar. Podia ser um padre artista (risos). De repente… Tinha padre Zezinho já na época que se despontava. Rapaz, eu posso ser um padre Zézinho.
P/1 – Era essa o pensamento, né?
R – Ah… Muita gente, não era meu. Eu entrei… Quando eu percebi das injustiças sociais e políticas, eu esqueci esse lado de querer crescer. Por isso, eu não perturbava, "eu quero saber se isso existe ou não existe? Se existe Deus ou não existe Deus?". Mas você sabe da palavra, você tem o conteúdo, sabe das instruções, conhece a Bíblia dos evangelhos. O que você disser, o povo vai acreditar. Reze e terás dinheiro, pronto.
P/1 – Alguém falou isso para você?
R – A realidade falava. Você conhecia, você sabia de quem fazia injustiça, que maltratava trabalhadores e que rezavam e estavam na missa. Você lia isso, apesar de ninguém falar. E você ficava angustiado querendo ser padre, mas com um monte de dúvidas por dentro te corroendo.
P/1 – Quais que eram as dúvidas?
R – "Será que Deus existe mesmo?", se você tem certeza, você não sofre. Ou que sim ou que não… "Não, não existe", pronto. Como um cara que eu conheci lá que trabalhava na pastoral, advogado, ele dizia "eu não creio nessa história de Deus, não existe não". "Não? Mas esse cara trabalha na igreja… Tem que ser expulso, não se admite uma coisa dessa. É a primeira vez que eu escuto alguém dizer que não acredita em Deus". Isso me perturba e eu vou encontrar com um pessoal também que diz que é comunista, que é materialista e que diziam que não acreditavam em Deus. "Tu também acha que Deus não existe?". Então, é esse momento político de conflitos, de crises existenciais, eu vivi essa crise e chorava sozinho. "O que é que eu vou fazer?", entende? "Com as minhas dúvidas. Eu vou ser padre assim? Eu vou estar levantando e dizendo que aqui está o corpo de Cristo, está isso e aquilo assim? Olhando para aquele povo e ele todo me olhando fazer aquele gesto". Foi essa crise minha e eu digo, "não, pode ser que eu me encontre e que eu resolva essa crise no centro de formação missionária". Mesmo estando em Senador… Porque eu comecei a estudar. Estudei dois anos só em Cajazeiras - 79 e 80. Chega o final de 78, começa 79 e em 1980…
P/1 – Nossa, era quanto tempo de formação?
R – Ah, depende. Te exige você fazer o ensino médio. Você faz três ou quatro anos de Filosofia e faz mais três ou quatro anos de Teologia.
P/1 – Mas você tinha ensino médio?
R – Não, tinha não. Eu estava fazendo colégio. Quando eu cheguei, olha só a minha situação, eu só tinha feito o primário. Tinha essas dificuldades. Pessoas que estavam naquelas pastorais, eram pessoas que tinham o ensino médio ou até, quem sabe estavam fazendo a faculdade. Então, o seu linguajar me conturbava ainda mais, porque eu não conhecia aquela linguagem. Eu ainda… Eu sou popular, eu sou do povo, tenho uma linguagem do povo. Então, eu tinha muito mais ainda naquela época. Quando eu me deparava com os caras falando palavras desconhecidas, nossa… Me atrapalhei várias vezes, me confundia com os significados. Quer dizer, era muita perturbação. Um cara simples, chegando do campo, quase 18 anos, só se esforçando para entender as coisas num meio em que caiu quase paraquedas. Depois disso tudo, fiz a quinta e a sexta série no colégio… Um dos melhores colégios - o colégio Diocesano, colégio da diocese. Era um colégio particular, não era público. Eu não pagava porque eu era da igreja e recebia uma bolsa. Tanto que nesse colégio, eu me recordo que por dois anos, eu fiquei muito bem. Nossa, além de conviver com a formação da igreja no momento que chego e com o colégio daquele que ensinava bem…
P/1 – Mas eu só não estou entendendo como estava a sua vida assim, no sentido de… Em outro momento você estava na plantação de algodão, totalmente outra realidade com a sua família…
R – Estava.
P/1 – Seus irmãos passando fome. Como é que rolou isso do nada de você estar só estudando, por exemplo?
R – Pronto. Então, como é que isso acontece? (Faz um canto) "A classe roceira e a classe operária ansiosas esperam a reforma agrária. Sabendo que ela trará solução para a situação que está precária. O projeto do chão brasileiro, para cada roceiro plantar sua área. Sei que na miséria, ninguém viveria e a produção já aumentaria 500% até na pecuária. Essa grande crise que há tempos surgiu, maltrata o caboclo ferido e seu brio. Dentro de um país rico e altaneiro, morrem brasileiros de fome e de frio. Nossas manchetes de casas e imóveis, milhões de automóveis já se construiu. Por que há riqueza…". Essas são músicas que nós cantávamos na época, naqueles movimentos, no início da industrialização, do êxodo rural… E as pastorais trabalhavam toda essa questão, essa formação. E eram as músicas que nos ajudavam também a se instruir sobre a situação. Poetas escreviam seus poemas, compositores faziam suas músicas e animavam o movimento. Nisso, o espírito da gente ia crescendo. Existiam as dúvidas de fé de algumas pessoas, de muitos que estavam dentro daqueles grupos sociais, mas ao mesmo tempo, uma certeza: de que estávamos batalhando juntos contra uma injustiça. Havia uma injustiça. Pelo menos um ponto comum existia. Nesse caso, a gente parte pelas pastorais por aí afora, como eu estava falando de Senador Pompeu. Chega em 1982, sou novamente chamado, convidado a participar do Centro de formação missionária, dessa vez já… Eu ainda como seminarista sendo acompanhado pela diocese, agora de Iguatu, não mais de Cajazeiras. E vou participar de um estágio que é a porta de entrada - é como se fosse um vestibular para entrar no centro de formação missionária, que é uma experiência… É a experiência que falei de Dom José Maria Pires de formar padres para o campo e principalmente padres jovens, camponeses, filhos de camponeses com a cultura ainda… O cara bravo ainda do campo. Eu passei 20, 25 dias, quase um mês nesse estágio e ao final você era avaliado pelas comunidades, por aquelas pessoas com quem você conviveu. Então, vinha gente de todos os estados do Brasil. Depois de 20 dias, você vai trabalhar com as pessoas em construção de casas populares junto ao povo, trabalhar no campo com os agricultores, você se reveza. Você passa uma semana ali, passa uma semana acolá, vai para uma realidade diferente e vai com as pessoas também naquela rotatividade. Nisso que consistia esse estágio. No fim de tudo, aqueles grupos que receberam as pessoas para trabalhar com eles, vão avaliar. A minha avaliação no final foi que eu já tinha perdido a identidade de camponês, por esse tempo que eu passei na cidade, ainda mais que pelos italianos. Até o italiano eu aprendi, então, até o meu sotaque… Eu era uma pessoa que praticamente não sabia falar muito. O linguajar e as coisas novas que fui aprendendo, foram lá com os italianos, entende? Meu vocábulo foi ficando meio com sotaques e as pessoas perceberam isso e disseram, "você foi aprovado", mas as pessoas colocavam… Isso secretamente. Vinha uma pessoa e dizia, "você foi aprovado, mas você tem que voltar para o campo para readquirir a sua personalidade camponesa que você perdeu, essa é a nossa avaliação. Você está parecendo um menino da rua. Você nem é da rua, da cidade, e nem é do campo. Você está misturado, está perdido" (risos). Eu voltei pensativo assim e meio triste, porque eu estava tão ansioso e com tanta vontade de ficar ali. Eu já tinha minhas dúvidas, meus grilos, entende? Com relação a religião, com relação a Deus… E vou me encontrar e me empolgo naquele meio. "Não, você não vai ficar, porque você perdeu sua identidade", isso é um empurrão, um coice. "Você vai passar um ano no campo. Saia da cidade, saia da casa de italiano. Você é nordestino, você é paraibanos do Sertão. Você vai procurar a sua identidade, saber onde você perdeu". E eu me convenci, "realmente, faz sentido", aí eu volto e vou para onde? Saio de Senador Pompeu e vou para Juazeiro do Norte, porque lá eu tenho familiares, tenho meu pai que saiu da Paraíba… Minha mãe havia falecido. Eu nem coloquei isso na história, eu posso de repente fazer uma parte sobre isso. Ele se casa de novo. Vai morar lá e casa com uma mulher em Juazeiro. Eu tinha familiares, tias que foram morar em Juazeiro do Norte. Juazeiro do Norte era um lugar que sempre atraía muita gente. Cajazeiras na Paraíba (onde eu nasci e fui criado, a minha terra) fica a cento e poucos quilômetros de Juazeiro do Norte. Lá era um ponto que atraía muita gente. Eu vou para as redondezas do interior do Juazeiro do Norte… Acho que já foi em 83.
P/1 – Então, pode voltar. O que aconteceu?
R – Acontece que eu aceito o desafio de voltar para a terra, passar um ano na terra trabalhando, sair da cidade, deixar a diocese, deixar a formação que eu receberia bem urbanizada, para entrar nessa busca da minha identidade de camponês que perdi durante o tempo que passei na cidade - em pouco tempo que a minha formação da cidade levou e consumiu essa minha identidade de camponês. Chegando em Juazeiro do Norte, vou para o Arraial, que é um município de Missão Velha, perto de Juazeiro - a uns 20 quilômetros - e lá vou para o plantio de arroz. Perco todinho, um hectare de arroz vendia pelo menos 50 sacos ou mais. Aí vou por ali, pensativo, já com as poesias… em Juazeiro do Norte, eu sempre estava com a poesia, os cordelistas, encontrando muita gente do cordel e fui ficando animado ali com aquela realidade de poetas. Porque ali era o centro de tudo. Tem muita gente… E aí, por conta da religião do padre Cícero, atraído por toda aquela realidade de fé e religiosidade mesmo… Os poetas também estão ali reproduzindo em versos, em repentes, em canções, a realidade que passa os trabalhadores, o êxodo rural e muita coisa que acontece de reflexo ali… Eu não estava em pastoral e nem engajado em nada lá em Juazeiro, só ía para a terra trabalhar. Um dia, estou apanhando feijão e começo a me lembrar das coisas, da política que já tinha visto, de ideias definidas… Pensei no presidente, na época de João Figueiredo… Lembro de algumas vezes da gente assistindo as fitas cassete. "Upa, upa, upa, cavalinho sem medo leva para Brasília o presidente Figueiredo". E a história do cavalo era uma coisa contínua nos programas de humor. "Ah, o cavalo de Figueiredo…", por exemplo, dizia que João Figueiredo estava na Argentina e ofereceu, dedicou à sua mãe uma foto dos cavalos e dizia, "mãe, o do meio sou eu". E dessa coisa, eu digo "nossa, vou ver se escrevo alguma coisa". A gente não chamava cordel, chamava verso. Cordel é um termo intelectualizado que as pessoas de pesquisas acadêmicas usaram. E um dia eu fui pegar feijão, mas já fui mal intencionado. Eu não ia pegar feijão coisa nenhuma. Levei um caderno e um lápis, fiquei embaixo de uma árvore e fui escrever O cavalo de Figueiredo. Aí, escrevi um cordel de oito páginas. Nossa, eu voltei para casa e cheguei com todo mundo me questionando, "cadê o feijão que você foi apanhar?". Saí de manhãzinha para pegar esse feijão e cheguei meio dia, feliz com o cordel escrito, mas nossa, tenso, sem saber o que fazia, aflito, sem saber como eu iria explicar não ter levado o feijão para casa. Fui para o roçado e não consegui catar o feijão. Tinha o cordel… Ia tentar explicar, mas quem iria me compreender? "Cara, tu saiu daqui para uma coisa, saiu daqui para pegar feijão para o almoço. Já está na hora do almoço. Se não tivesse um quilo de feijão, ninguém iria almoçar hoje". E eu "que se dane o almoço, mas olha o cordel que eu fiz aqui". Eu não fui compreendido. "Tudo bem, tem razão, brigue comigo. Mas não tem como desfazer, fiz o cordel". Ora, fui batalhar para publicar esse cordel. Chega, mostra a um, mostra a outro. Uns acham interessante, outros ficam indiferentes. "Será que não está bom? Eu achei que estava tão bom". Porque o cordel… Uma literatura dessa, o pessoal ria, gostava e queria, entende? Mas cordel… Mas assim mesmo eu saí, a procura de tentar publicar. Saio para os comércios, porque os cordelistas vão para o comércio e apresentam seu cordel na intenção de publicar. Atrás do cordel, sempre tem a propaganda, o comercial. O mercado e o comércio vão e pagam a publicação do seu cordel por uma propaganda deles atrás do cordel. Eu vou… Por incrível que pareça, quem me patrocina é Casa Monarque. O meu primo tinha uma fábrica de bolo, fazia bolo. Para publicar o cordel, era dez reais, dez mil cruzeiros. E o meu primo disso, "Inácio, eu dou cinco mil". Nossa, quando ele disse que dava cinco mil cruzeiros, caramba! Eu saio correndo, percorrendo rua por rua em Juazeiro do Norte atrás de alguém que me patrocinasse com o resto e chego na Casa Monarque. Eu apresento o cordel para ele e ele diz "eu dou a metade, dou cinco mil". Digo "pronto, já tenho os dez mil cruzeiros" e volto para casa feliz da vida. Era outra felicidade, outra vitória. A primeira vitória foi conseguir fazer o cordel, e a segunda foi conseguir o patrocinador. Meu primo me ofertou cinco mil cruzeiros, "não, Inácio, eu quero que você faça, eu quero que você siga alguma coisa que você é capaz de fazer, gosta de fazer e está bem feito, está bom", "está bom mesmo?", "está bom, esse está bom". Eu fui e o cara lá da Casa Monarque, "rapaz, isso aqui é um clássico", digo "o que? É mesmo, você acha isso?", "acho, é muita ousadia sua, é muita coragem. O presidente agora é o João Figueiredo, você fazer esse cordel aí comparando…", esse cordel comparava o cavalo de Figueiredo com o Brasil. "Brasil é um animal que João Figueiredo tem. Alguém discorda desse nome? Não é da conta de ninguém. Figueiredo é quem botou, da onde foi tirar não convém. Segundo o depoimento que ele deu em um jornal, em um discurso falou para todo o pessoal que ama tanto o Brasil, que pôs o nome de animal. Esse é o maior cavalo que ele tem de estimação. Para registrar o cavalo, deu a maior confusão. E a confusão foi parar nos pés de Hélio Beltrão. Sem burocratização, pegou o cavalo, colocou num carretão, aproveitou o embalo e foi procurar a mãe do tal animal que falo Chegou em São Paulo, quando foi visto descendo do carro, perguntaram "o que é isso? Quero a mãe desse cavalo para fazer o registro. Quando viram ali o ministro numa fazenda bem cedo, "ai meu Deus, o que será isso?", alguém exclamou com medo. "Quero fazer o registro do cavalo de Figueiredo". Uma égua largou ele, foi chegando nessa hora, eu vinha correndo com medo, todo rasgado de espora. Ele pegou a égua, pôs no carro e foi embora. Figueiredo com o cavalo que fazia "rimm", disse "vou entregar o cavalo ao ministro Delfim para amansar o meu Brasil, para ele gostar de mim". Se ele quiser ser ruim, e se for bravo demais, se for muito revoltoso e querer nos passar para trás, têm aí os militares para tornar bom capataz". Mais ou menos desse conteúdo saiu o cordel. Isso é uma introdução. Depois, eu faço a divisão política como é a do Brasil e era também a do cavalo. O começo do espinhaço é Maranhão e Ceará. Piauí também no meio a garupa é o Amapá, mas eu vou deixar para lá". Quer dizer, faço a divisão política do cavalo, faço uma baita crítica… O Hélio Beltrão era o ministro da desburocratização, porque era muita burocracia e Figueiredo dizia que iria desburocratizar tudo. O ministro Delfim era o ministro da economia, que sempre dizia que o Brasil estava 100%. Mas 100% era inflação, foi o momento de mais inflação que o Brasil viveu, essa época de João Figueiredo e principalmente a do ministro Delfim. Ele era o que dizia "vamos crescer o bolo para depois dividir" - o bolo econômico, a riqueza. Então, O cavalo de Figueiredo fazia uma crítica séria ao mesmo tempo que brincando. Tudo que eu queria jogar de força política… Eu fiz esse cordel. Dei a minha tacada. Alguns diziam "você vai ser preso", "realmente, nossa eu não tinha pensado nisso. Vai acabar a minha… A minha euforia vai terminar atrás das grades" (risos). Mas aí era o presidente do Brasil, presidente João Baptista Figueiredo. Isso era em 83 e ele só veio a sair em 85, tinha dois anos ainda de presidência, mas estava enfraquecido. E Figueiredo era o presidente que tinha feito a tal da abertura democrática, abertura política. Ali, ele já estava liberando a… Já tinha liberado a legalização dos partidos que estavam todos na ilegalidade. Agora, pode legalizar. Agora, sai do bipartidarismo, que era Arena e MDB e entra um multipartidarismo.
P/1 – E aí você imprimiu e foi vender, como é que foi?
R – É, eu imprimi e fui vender. Cheguei nas oficinas gráficas, nas oficinas gráficas de José Bernardo… Filho de José Bernardo. Foi o cara que herdou… Comprou aliás a primeira gráfica do primeiro cordelista, o segundo maior cordelista chamado Leandro Gomes Barros. E essa gráfica era herança ainda dele. Ele era de 1800 e pouco. O cordel praticamente nasceu da gráfica dele, a publicação do cordel. E nessa mesma gráfica eu publiquei. Eu publico essa história e vou encontrar lá um cara que se torna meu amigo, Expedito Sebastião da Silva e ele era o cara responsável pela edição dos cordéis ali. Aí tem muita gente que conheci também, StÊnio Diniz, [03:01:48], um dos maiores xilógrafos do Brasil. Assim, eu digo do Brasil, porque é o maior que eu conheci. Filho da dona Maria de Jesus, tudo pessoas que eram da década de 50, de 60… Hoje, essa gráfica é do ABC, está lá no museu do cordel. As pessoas conhecem como museu lá em Juazeiro do Norte. E tem uma apêndice da história que eu já havia falado do trabalho escravo. Que eu saltei esse cordel, saltei essa realidade e deixei para trás quando eu estava em Juazeiro ainda, que eu saio e passo uns dias trabalhando de escravo.
P/1 – Mas vamos fechar a parte do cordel antes.
R – Ah, a o cordel é grande a parte que vai… por isso estou dizendo que…
P/1 – A que fez o cordel.
R – Fez o cordel, pronto. "Agora que a gente fez o cordel, vamos iniciar a divulgação dele". Eu queria parar aqui, dar continuidade depois e colocar uma partezinha que ficou para trás.
P/1 – Tá, então pode falar.
R – Essa parte que ficou para trás foi antes de fazer esse cordel, antes de eu ir pegar feijão e esse cordel sair… Eu estava em Juazeiro do Norte uma certa vez e vejo um carro. Isso quando eu volto do seminário e vou passar um ano na roça trabalhando. Eu vejo um carro se enchendo de gente, um caminhão. O povo subindo, "nós vamos para Alagoas, para São Miguel dos Campos. Lá em Alagoas, perto de Maceió, trabalhar na cana de açúcar, porque o corte de cana aqui está muito explorador. Lá eles estão pagando 12 contos, 12 cruzeiros o metro de cana para cortar. E em Juazeiro, na usina de Barbalha estava 6 reais o metro". E aí, estava todo mundo subindo no carro, ouvindo a propaganda. Muita gente indo, porque lá se pagaria 12 contos, o dobro. Pensei, "nossa, acho que vou mais esse povo". Entrei no carro com esse pessoal e fui para a Serra. Um dia e meio de viagem e chegamos lá. Chegamos lá e começou a descer todo mundo assim, aquela animação toda do pessoal… E para começar, na porta, estavam recebendo todos os documentos. "Todo mundo que tem documento, começa a entregar", disse "ih, esse negócio de entregar documento, será que tá certo?". Foi entrando todo mundo feito carneirinho, um atrás do outro (risos). "Ainda de noite, será que vai ter quarto para gente dormir aqui?". A gente adentrou numa vereda, pisando na lama aqui e acolá e o cara guiando a gente com a lanterna na mão, digo "ah, negócio doido". Chegamos assim numa barraca. A barraca era só de folha em cima, toda aberta. Um vento… Já estava todo mundo de braço cruzado. "Vocês vão ficar aqui, viu? Esse aqui é o alojamento de vocês". Olhamos um para o outro sem entender. "Isso aqui é osso, né?', "é, mas a gente vai". Cinco horas da manhã era a hora de levantar e começar o serviço. A gente ia se ajeitando ali… Eu sou daquele tipo que chega e já vai pronto. Levava minha panela, um quilinho de feijão, de arroz, as coisinhas… Me abaixei lá e fui procurar um cantinho para amarrar a minha rede. Fiz um foguinho, já coloquei minha panela acolá e comecei a cozinhar. Cinco e meia da manhã o carro encosta, o pessoal tudo em cima… E começamos a trabalhar. Aí foi um dia, dois, três, quatro… Chegou o final de semana e não podia sair. O cara falou "olha, vocês vieram aqui para trabalhar. Vão ganhar…", mas o trabalho era duro, era difícil de você fazer, difícil para caramba. E a gente comprava tudo de comer no fornecimento dos próprios caras. Eles vendiam no preço que queriam, e no final quando ia prestar conta, não sobrava nada de dinheiro. Aí todo mundo assim, querendo ir embora… Mas todo mundo sentia… No entorno da gente, os caras estavam todos armados, eram seguranças. Mas ocorreu que depois de uns 25 dias trabalhando acolá, sabe quando você vai… Claro, você entra num carro e começa ali a sua amizade com as pessoas, todo mundo se relacionando, sabendo que está indo feito gado enjaulado para o abate. Então, você começa a fazer amizade e acaba ficando mais amigo de alguém por ali, como eu e outra pessoa ficamos amigos. Esse meu amigo brigou e se desentendeu com o filho que anotava as metragens que cada um fazia. Brigou, se desentendeu e o filho desse feitor passou a cana na cara desse meu amigo, deu uma pancada nele que ele parou no chão (e com a foice na mão).
P/1 – Você viu?
R – Vi. Eu digo "nossa, agora vai acontecer um negócio feio". Mas logo que aconteceu isso, e o cara deu com a cana na cara do meu amigo, meu amigo se viu cercado imediatamente, com os caras todos armados. Eles já imaginaram que ele podia revidar. Mas o meu amigo, não sei o que e tal… "Toma a foice dele, manda ele embora", "o que?", "bota ele junto", "me coloca também que eu vim junto", "bota ele também"... Eu sei que se formou um grupo de cinco pessoas para ir embora. A gente volta para a barraca… Aliás, fica ali até o fim do dia e quando o carro volta… Porque era longe. Da barraca, você andava 12 quilômetros subindo serra para ir para o trabalho. Subindo serra, subindo serra e trabalha lá na Chapada, em cima da serra. Aí você vai para ali, fica lá uns três dias e os caras vão fazer a conta e não deu praticamente nada. Nosso saldo deu só para chegar em Maceió. As cinco pessoas foram expulsas. Eles entregaram os documentos, nós fomos embora e o restante do pessoal ficou lá. Nós demos umas voltas em busca de Juazeiro do Norte de novo, quase mil quilômetros de distância. Cinco caras mal encarados, barba… Na época também, essa barba e meu cabelo… Eu tenho esse estereótipo desde que começou a sair barba e cabelo. Eu nunca mudei, então as pessoas que me conhecem não acham estranho. Quem acha estranho é alguma pessoa que não me conhece. Mas eles sabem que eu nunca penteei o cabelo, minha barba é sempre assim. Imagina, a gente pedia carona e não parava ninguém. Nós tivemos que ir de pés, fizemos de pés quase todo o trajeto. Aí, atravessa Alagoas todinha e chega em Pernambuco. Quando chega em Pernambuco, em Ibimirim, perto de Arcoverde, a gente se depara com.. Antes de chegar em Ibimirim, a gente se separa. A gente vinha em cinco e três decidem pegar uma via e eu e outro decidimos pegar por outra. E por onde eu e o outro passamos, chegamos em Ibimirim. E lá, estava chegando um caminhão pegando mais gente para trabalhar. "A gente não tem sorte com esses caminhões para trabalhar, não" (risos). A gente tava doido para trabalhar mesmo para pegar uns trocados porque estávamos sem nada. "Vamos entrar de novo, vamos ver no que vai dar. Se a gente sobreviver, é mais história para contar". Nós dois vamos e qualquer coisa a gente foge. E aí chegamos para catar tomate. "Esse é o projeto poço da cruz, que é uma colônia criada pelo governo para atender o mercado do extrato de tomate da CICA". Dois monopolistas bem sucedidos no ramo. Aí, tinha uma cooperativa… Olha só a realidade desse pessoal. Tinha uma cooperativa que liberava parcelas em dinheiro para eles pagarem a preparação da terra para pagar a o extrato, e as pessoas eram obrigada a vender para a cooperativa. As pessoas vendiam, na época por 500 cruzeiros a caixa de 15 quilos de tomate. O preço de mercado era 3.000, olha só a diferença, seis vezes menos. Então, nesse caso nós fomos trabalhar e a realidade era inversa de certa forma. O escravo era o dono da plantação. O cara tinha um lote e recebia a visita de assistência técnica, à água e insumos agrícolas. E era muito tomate. As parcelas só pagavam o trabalho, a mão de obra. Nós fomos atrás dessa conversa. Eu já tinha um amadurecimento a respeito disso e queria saber qual era a daqueles caras, "gente, esses caras devem ser muito ricos. Um monte de tomate desse…", as carroças saíam carregadas de tomate, lá da plantação deles. Eu me interessei muito mais do que em pegar tomate, em conversar. E eles, "não a situação aqui é essa. Eu termino o ano devendo, nunca sobra". Nós ficamos lá trabalhando com esse cara por 20 e poucos dias e ele quase que não nos pagava. Para ele nos pagar, nós tivemos que roubar tomate dele. Tinha uma estrada e a gente saía de noite atravessando o matagal com tomate na cabeça para vender para um carro que passava na carroça por 3.000 cruzeiros. Isso de madrugada, porque se alguém visse, podia denunciar. Todo tomate era passado por uma guarita que tinha sempre um vigia tomando nota do que saía daquele lote. A gente saía para vender, combinava com o cara da carroça que passava mais tarde, e atravessava a mata com aquele tomateiro para ir vender pra gente receber. Entendeu? O cara, dono do plantio, roubando a sua própria produção. Já pensou? Digo, "nossa, cara, nós estávamos lá naquela situação. E a gente chega aqui, e é o dono que tá nessa situação. Parecia o patrão, e no fim, o cara estava lascado igual a gente".
P/1 – Ainda não entendi. Por que ele estava sempre com dívida?
R – Porque a cooperativa de técnicos organizada pelo governo lhe oferecia tudo e você tinha que plantar dentro da orientação rigorosa dos técnicos. Ele tinha que fazer o suco com trator, tinha que adubar, tinha que plantar, tinha que aguar, tinha que ter acompanhamento técnico… E tudo isso para a conta dele, entende? Tudo isso ia para a conta dele. E ele mandava as carradas para as cooperativas, que elas já iam direto para a CICA Norte. Ela já vendia e a cooperativa saía lucrando. A cooperativa não era dos trabalhadores, eles eram associados, mas… Ela fornecia o adubo químico, fornecia veneno, fornecia o dinheiro para o trato cultural, e tudo indo para a conta. Ao final, o tomate que ela pegou dali, ela ia comparar ao preço que pagava com o material que ela forneceu para o cara. Então, o cara estava sempre devendo. Dificilmente alguém ganhava alguma coisa. Imagina, ao final de um ciclo, ela deu o dinheiro. Está calculado e ela sabe que já está naquele cálculo quantos dias, quantas horas de trator… Então, ela faz aquele cálculo, fornece e dá aquela parcela para ele, porque já sabe quanto ele vai pagar, quantas diárias… Era um serviço do povo, mas no final vai olhar as contas e… O cara comia o que? Xerém de milho no feijão. Moía o milho no moinho… Nossa, era uma vida desgraçada. Quem olhasse assim pra o movimento dentro do plantio dele, dizia que a condição dele seria de classe média alta. Saía três ou quatro carradas de tomate por semana. Você dizia "nossa, esse cara é rico". E a situação cara era desgraçada igual a dos caras que estavam trabalhando.
P/1 – E você trabalhou sem receber?
R – A gente trabalhou, trabalhou, trabalhou esperando receber para ir embora. E o cara, "não tenho dinheiro para vocês, não sobrou nada". "Nós trabalhamos, trabalhamos e vamos de pés, né?", e aí ele disse, "olha, eu vou combinar com o cara que passa na estrada depois de uns 200 metros de mata. Vamos fazer uma vereda, ele vai passar por lá e nós vamos levar umas carradas de tomate na cabeça até chegar lá. Ele me paga e ele paga vocês", digo "vamos fazer, o importante é a gente receber o dinheiro". Nós pegamos os tomates de noite com o cara de lanterna. À luz de lanterna apanhando tomate, enchendo as caixas e levando para o cara que estava esperando lá do outro lado, aí o cara pagava. Se ele queria ter dinheiro alguma vez ele tinha que fazer isso, mas se ele fosse flagrado nisso, podia perder o lote.
P/1 – Vocês roubavam o tomate, devolviam e pegavam o mesmo tomate?
R – Não. O cara roubava de si mesmo, nós ajudávamos ele a roubar de si mesmo, porque assim, ele era obrigado a vender só para a cooperativa, ele não podia mais vender para ninguém. O tomate estava ali, era produção dele, mas ninguém podia comprar, era vigiado. Passava uma guarita e ela tinha um vigia para selar e carimbar cada nota e cada tomate que saía. Ele não podia vender aquele tomate ali para ninguém. Aí, ele vendia escondido. Pegava uma estrada por dentro e a gente ia vender - eu e a família dele, os três filhos dele, o João que era o meu companheiro que estava junto comigo nessa caminhada, a companheira dele, a filhas… Todo mundo pegava tomate no meio da noite e levava três horas da manhã para entregar e vender para o cara da carroça. Foi assim até que fizemos o dinheiro para ir embora. E aí, quando acabamos de chegar em Juazeiro do Norte, veio a acontecer tudo isso. Vou plantar arroz me acontece aquilo que vou plantar feijão, escrevo e publico o cordel com a ajuda do meu primo e da Casa Monar, que eu encontro o Expedito Sebastião da Silva, Stênio Diniz… Um monte de gente ligado à literatura do cordel. Conheço esse monte de gente e começo a entrar em contato. Quer dizer, é a partir daí que me sinto cordelista. Publico esse cordel e agora falta fazer o que? Distribuir. Mas aquela parte ali…
P/1 – Foi um parênteses.
R – É, um parênteses para dizer o que aconteceu antes.
P/1 – Agora a distribuição.
R – Nessa distribuição, eu saio… Eu estou em casa, pensando na vida, "o que vou fazer para vender?". Eu tinha um cordel… Tinha cordéis populares, mas o meu não era popular, era um cordel politizado. Eu tentava fazer com que as pessoas se empolgassem, levei para feira e não vendi nada, vi um movimento em que as pessoas estavam expondo cordel e não vendi nada…
P/1 – Nenhum?
R – Nenhum (risos). E eu, "nossa, do que vale ser cordelista se não consigo vender cordel nenhum?", mas ao mesmo tempo, eu me conformava porque achava bonito deixar registrada aquela poesia que fiz com tanta inspiração em protesto. Era o primeiro, não tinha problema. As pessoas colocam a história pela história, eu não… Eu fiz uma sátira e ficava feliz quando as pessoas entendiam, "nossa, que sátira, que irônico". Eu ficava, "nossa, até que enfim alguém entendeu o sentido dessa coisa". Um dia, pego os meus cordéis, coloco num saco, pego o violão e digo para minha madrasta, "vou ali", "tu vai aonde?". Meu pai morava em Juazeiro com a minha madrasta, isso em 83. "Eu vou ali", "ali aonde?", "não sei", "tu volta para o almoço?", "acho que volto". Olha, isso no dia 15 de maio de 1983. Eu saio dali de Juazeiro e vou para Cajazeiras. De Cajazeiras eu vou numa universidade, "vou levar esses livros pras universidades". Ali encontro um colega, "como é, Inácio? O que foi, o que é isso?", digo "rapaz, isso é um livrinho que eu escrevi". O cara leu, leu, e "cara, nossa velho, isso vai vender na UFPB (Universidade Federal da Paraíba)". Cajazeiras é minha terra, chego lá e encontro um cara que eu já conhecia há anos e fala comigo da universidade. Na universidade, eu encontro exatamente aquele advogado que me causou dúvidas- o cara era o diretor da universidade (não era reitor, era diretor). Ele me conhecia e estava fazendo doutorado, era um advogado experiente. E aí, de repente me encontro com ele. "Opa, Inácio, o que está fazendo aqui?", "cara, eu tô querendo distribuir o meu cordel, quando ele olhou o cordel "ah rapaz, é disso aqui que estamos precisando. Olha só, é disso que estamos precisando. Culturalmente a universidade está morta, estamos precisando divulgar esse tipo de material, precisando de gente ousada. Você vai vir aqui amanhã e eu vou dar aula. Deixe comigo que eu vou passar e recomendar que todas as salas comprem o seu cordel", digo "opa, o negócio está melhorando". No dia seguinte cheguei com os cordéis na sala dele. "Vai, conta aí quantos cordéis você vai distribuir aqui que esse já é por minha conta" e já foi me pagando. Tinha umas trinta pessoas na sala, distribuí e ele já pagou.
P/1 – Você vendia a dois reais, três…?
R – Não era real nessa época. Eu acho que eram 100 cruzeiros.
P/1 – Mas hoje seria quanto?
R – Hoje seria… Talvez pudesse ser, sei lá, 2 ou 3 reais. Eram 100 cruzeiros e eu saí, "nossa, quanto dinheiro". Saí, fui para outras salas… Nossa, eu estava com um bolo de dinheiro no bolso e tava me faltando o fôlego, "ai, eu nunca vi tanto dinheiro na minha vida". Fiquei perturbado de tanto dinheiro que era. E aí, fui outro dia, fui outro dia, e tinha gente que deixava para pagar no outro dia e eu ía. A universidade era grande, várias turmas… Só sei que distribuí quase 1.000 cordéis lá pela universidade. O cara recomendou os outros professores, "ah, o doutor José Leite recomendou para mim que eu recebesse você aqui na sala. Você pode conversar com o pessoal aqui" e falava "essa cara aqui o doutor José Leite mandou que os estudantes fizessem um trabalho sobre essa literatura". Nossa, eu cheguei um dia lá e me chamaram para apresentar o trabalho, para eu ver se tinham interpretado bem o cordel. "Olha, eu coloquei isso assim, você acha que interpretei bem? Acha que vou pegar nota boa?", digo "rapaz, é o que você achar, se você acha isso, então é isso. Não tem certo nem errado". Só sei que saí e aí é quando me torno um cordelista e que esse cordel é espalhado por todos os cantos. Eu estou com um violão lá na feira e tinha um cordelista vendendo e cantando na gaita difusora. Na difusora que colocavam, funcionava a bateria, o microfone e a banca de cordel. Eu chego lá, começo a conversar com o cara, ele fazia uns cordéis também e disse "nossa…". Mas esse dinheiro que eu peguei também, em pouco tempo eu gasto. Em uns dois ou três meses que passo lá em Cajazeiras, acabo gastando o dinheiro. Não sabia nem o que fazer com ele.
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