P/1 – Eu queria começar nossa entrevista do início. Que o senhor dissesse pra mim, de novo, o seu nome completo e o lugar que o senhor nasceu.
R – Olha dona Maria, o meu nome completo é Rubim Luis Benarroque. Eu nasci na época de seringal, numa colocação chamada São Paulo. Meu pai se chamava Afonso Rubim Benarroque, minha chamava-se Cesaltina dos Santos Benarroque.
P/1 – E essa colocação ficava onde?
R – Dentro de Ji-Paraná. Que hoje a cidade de Ji-Paraná é situada na beira do Machadão aqui, naquela época chamava-se Machado. Não era Ji-Paraná, era Machado.
P/1 – Mas Ji-Paraná é no Amazonas ou é aqui em Rondônia?
R – Não. É aqui dentro de Rondônia.
P/1 – Ah, é em Rondônia.
R – É um projeto iam... que até hoje não vigorou, queriam que fosse a capital de Rondônia. Mas não foi vigorado.
P/1 – E que época foi isso?
R – Eu nasci em 1943.
P/1 – E aí, o seus pais já eram de lá? O senhor sabe um pouco da história de seus pais?
R – Não. Meus pais eram seringueiros. Localizado em outros setores que eu não sei explicar pra vocês, porque eu não sei de onde ele veio.
P/1 – Quanto tempo o senhor morou nesse seringal?
R – Olha, minha querida, eu não sei te dizer, porque eu era inocente. Eu nasci lá. Você sabe: a gente pra procurar e se entender, a gente já tem que ter no mínimo uns seis, oito anos.
P/1 – E até seis, oito anos o senhor ficou lá?
R – Ficamos. Daí deve ter ido pra outros cantos, eu não tenho recordação.
P/1 – Qual é sua primeira recordação?
R – Minha primeira recordação é que nós já viemos aqui pra perto de Porto Velho, de um lugar que se chamava Belmonte, que hoje é a cidade. Nós convivemos lá uns três anos.
P/1 – Vocês vieram pra essa cidade?
R – Depois nós viemos pra cá, com destino de cá. 1955.
P/1 – Em 55 vocês vieram pra onde?
R – Em 55, nós viemos aqui pro Rio Madeira... cortar seringa.
P/1 – Vieram pra trabalhar?
R – Para trabalhar. Naquela época só se mexia com seringa e era só seringa mesmo.
P/1 – E você tinha quantos irmãos nessa época?
R – Nós somos oito irmãos. Seis homens e duas mulheres.
P/1 – E vocês já trabalhavam no seringal?
R – Dessa época que viemos pra cá, já começamos a trabalhar.
P/1 – Você tinha o quê? 12 anos?
R – Mais ou menos isso aí, 12...
P/1 – Como é que era, assim, fazer a seringa?
R – Naquela minha época aqui era muito “sacrificoso”. Viemos pelo trem da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, ficamos localizados num lugar bem aqui perto, chamava... o quilômetro 165. Daí, nós compramos uma casa, ficamos aí. Daí, papai subiu com um bocado de nós nesse Madeira pra cima. Chegou lá em cima, num lugar onde nós nos aclimatizamos. Chama-se Pimental.
P/1 – É no seringal também?
R – Era seringal. Daí pra frente, nós fomos mexer com borracha e com seringueiro.
P/1 – Como com borracha e com seringueiro? Conta pra mim.
R – Porque nós cortávamos seringa e fazíamos borracha. E nós tínhamos um seringueiro independente, que ia pra outra colocação e também fazia o mesmo: cortava seringa e fazia borracha. Aí trazia pra nós. E papai era o patrão.
P/1 – Ah, ele era o patrão?
R – Papai era o patrão.
P/1 – Ele tinha comprado aquele pedaço de terra?
R – Quando não se comprava, na minha época, se alugava, arrendava, era modo de dizer. Então, você passava um ano, dois anos, três anos com aquele seringal arrendado. Então, como era pouquinha colocação, parece que eram só cinco colocações, nós ficamos um bocado de tempo aí. Nós fomos crescendo, crescendo, os irmãos da gente vão ficando mais velho, aí, você sabe, vai chegando a idade do cara fazer alguma coisa e foram saindo, abandonando nós, os irmãos mais velhos, os irmãos mais novos foram ficando.
P/1 – Mas, assim, o seu dia-a-dia qual era nessa época? Vamos dizer 12 e 13 anos, o que você fazia?
R – Quando eu passei a cortar seringa era isso aí. Era de madrugada, que nós saíamos de madrugada pra cortar seringa porque...
P/1 – Acordava tava escuro ainda?
R – ... Naquela época a seringa não é que nem é hoje, porque hoje ela já é... faz só um trabalho. Naquela época eram feitos dois trabalhos, você tinha que ir cortando a seringa, voltava, fechava, aí você dava um tempo, uns dez minutos, uns 15 minutos, aí você voltava colhendo. Quando você chegava, arrumava tudo, vinha pra casa, ia defumar, que naquele tempo era defumada.
P/1 – Como é que faz para defumar?
R – Defumar é uma fornalha com a boca deste tamanho, aquele tufo de fumaça saindo, você pega a borracha que é enfiada num pau. Aí ela tá lá, você pega... Tem uma bacia, o leite tá ali dentro, você pega aquele leite e joga aqui em cima da borracha, rola e traz pra cima da fumaça. Aí fica rodando-a até ela coalhar. Só que é rápido que ela faz isso. Você voltava novamente, até você acabar aquele leite que tinha dentro daquela bacia.
P/1 – Aquele leite quando é defumado, ele vai virando borracha?
R – Exatamente. Ele vai coalhando. A fumaça faz ele coalhar e... faz ele coalhar e ele fica agarrado lá em cima.
P/1 – E aí o que você faz aquilo?
R – Não, daí já tá pronta a borracha.
P/1 – Aí está pronta?
R – Já. Aí digamos, você vai fazer uma borracha de 20 quilos, de 30 quilos, 40 quilos, de 50... Nossa borracha tudo era de 50 quilos. Tinha nego que fazíamos de 80. Dali já está pronta pra vender.
P/1 – E quem que comprava essa borracha de vocês?
R – Ia pra Porto Velho. Papai levava...
P/1 – Seu pai que levava pra Porto Velho.
R – Levava pra Porto Velho e vendia lá em Porto Velho.
P/1 – Ele tinha um carro, então?
R – No trem ainda.
P/1 – Ah, ele botava o negócio no trem...
R – No trem. No trem.
P/1 – Quanto tempo demorava...?
R – Era muito “sacrificoso”. Não, o trem saía daqui oito horas da manhã e chegava seis horas da tarde em Porto Velho.
P/1 – Um dia inteiro.
R – Ele saía de Porto Velho seis horas da manhã e chegava aqui duas horas da tarde. Daqui, dormia no Abunã, bem aqui onde eu falei ainda agora. Daí, no outro dia partia para Guajará, no outro dia vinha um, dormia em Abunã, passava aqui oito horas da manhã. Esse que passava descendo.
P/1 – Mas porque ele ia pra Guajará? Não entendi.
R – Porque era o local determinado dele. Lá vinha borracha da Bolívia, lá vinha a tartaruga da Bolívia, vinha tudo da Bolívia. E era transportado no trem.
P/1 – Então peraí, a colocação era em Guajará ou era por aqui? Deixa eu entender o seringal dele.
R – Não. Lá não tinha nada com borracha. A borracha ia daqui pra Porto Velho. A gente fabricava ela aqui, que nem eu expliquei pra senhora, e daqui ia pra Porto Velho com ela. Agora ela, de lá, pegava outro destino.
P/1 – E aí, de lá o seu pai voltava e ia até a Bolívia pra...
R – Exatamente, de lá... Não, voltava até aqui. Daqui ia pra colocação onde nós morávamos.
P/1 – Tá.
R – Agora a senhora falou a respeito do trem que transportava.
P/1 – O trem fazendo.
R – Pois é. O trem é o projeto... Era todos que moravam na beira da estrada, o trem transportava.
P/1 – E ficava cheio esse trem?
R – O trem? O trem, hoje em dia... olha, você vê... hoje em dia, tá complicado pra nós. Ninguém quer trazer óleo, ninguém quer trazer gasolina, ninguém quer trazer gás, que naquele tempo não existia e ninguém nada quer trazer disso no ônibus, porque hoje é ônibus, né? E na época do trem, que era um perigo maior, que transportava... Só não o gás, que na nossa época não se mexia com gás. Se eu contar pra vocês que quando nós viemos lá de Belmonte, onde eu falei, nós trouxemos gato, nós trouxemos cachorro, trouxemos canoa, trouxemos porco, trouxemos tudo.
P/1 – Tudo dentro do trem.
R – Tudo dentro do trem. Porque tinha trem que transportava 15, 16, 18 vagões. Vagões eram uns carros, assim, quase vindo daqui até no carro de vocês, só o vagão. Então, ali dentro daquele vagão, você trazia o que você quisesse.
P/1 – E não era caro viajar nesse...
R – Não. Não. Não. Hoje, se fosse, ainda era muito melhor do que o ônibus. E era barato.
P/1 – Quando foi que terminou o trem da Madeira Mamoré?
R – Espera lá... 1969.
P/1 – O senhor lembra o porquê que terminou e o que aconteceu...?
R – Não. Ele terminou porque veio a estrada, aí ninguém queria mais andar nele, porque na estrada o transporte era mais rápido, aí ele foi se abandonando.
P/1 – E mudou muito a vida aqui depois que terminou o trem?
R – Não, facilitou melhor, porque tudo ficou rápido. Enquanto você gastava um dia de lá aqui, de carro, você gasta duas horas. Então, você vê que mudou rápido demais. Aqui, quando começou, nego ia num dia, voltava. Dava duas viagens num dia em Porto Velho.
P/1 – De trem.
R – Não, de carro.
P/1 – De estrada.
R – De carro.
P/1 – Que era de terra a estrada.
R – Que era é rápido, né? E do trem custava muito.
P/1 – Bom, aí vamos voltar lá pra colocação. Então, seu pai fazia isso, ele ganhava um bom dinheiro?
R – Mas quando no seringal. Aqui pra nós...
P/1 – É no seringal.
R – Ganhava, né? Porque a senhora sabe, ninguém nunca paga o preço que a gente ganha por um preço que o coisa vende. É tipo o ouro hoje. A senhora me perguntou o preço do ouro. O preço do ouro é o seguinte: ele lá parece que tá 75, hoje você acha aqui quem pague 65. E ele paga com razão, porque aqui é que nem eu contei, é perigoso roubarem, é perigoso querer te matar e você fazer tudo isso pra não ganhar nada, não adianta. Têm muitos que reclamam: “Ah, mas lá tá tanto e aqui tá tanto”. Mas ele não quer ir. Ele não quer ir arriscar o dele não, de jeito nenhum.
P/1 – Inclusive, porque, na questão do ouro, passar a fronteira é difícil?
R – Não. Passar não é. O difícil é ser pego daqui pra Guajará. Que digamos, a senhora vai com um quilo de ouro, diante tem uma barreira, qual é o documento que a senhora leva desse ouro? Nenhum. Aí, eles lhe tomam esse ouro e nunca mais você vê.
P/1 – Eles não prendem a pessoa não, só ficam com o ouro?
R – A pessoa não prende, mas fica com o ouro. Isso já foi muito que aconteceu. Muito e muito.
P/1 – E na Bolívia... É melhor ir pra Bolívia, porque lá não paga imposto e você vende melhor?
R – Exatamente. O preço lá é melhor. Por isso, todo mundo quer ir pra lá. Isso aí já foi muito, hoje em dia eles até pararam de mão, mas de primeiro a fiscalização era muito grande. Não tem o que tinha ouro, como eu digo pra vocês, porque quando o ouro tem direitinho aí, pra tirar um quilo, dois quilos de ouro é rápido. Então, tinha muito que tinha ouro depositado. Porque aqui tem compra de ouro em Porto Velho, tem a Ourominas. Tem bem umas três compra de ouro, mas não pagam o preço de lá.
P/1 – Porque tem que pagar a nota, pagar o imposto.
R – Exatamente. Por isso.
P/1 – Vamos voltar pra sua vida. Os irmãos mais velhos foram crescendo...
R – Foram crescendo, até que chegou o ponto que meu pai viu que ninguém mais queria estar com ele, logo tinha demais bicho pra ferrar a gente: tinha o borrachudo, tinha meruim... menino! E a gente, enquanto tá no comando dos velhos pais da gente é uma coisa, mas, depois, você vai engrossando o cangote já é outra. E nós já saímos tudo... Quando que hoje você vê um filho com 20 anos perto de pai? Você não vê. Eu já tenho meus filhos que já estão tudo com 30 anos, e ainda vive perto de mim, porque o meu regime de criação foi do tempo do meu pai.
P/1 – O seu pai era muito bravo?
R – Não.
P/1 – Nem sua mãe?
R – Não. Não. E tudo, naquela época, não tinha negócio de ser bravo, porque todo mundo, os jovens, que nem eu fui jovem, muitos foram jovens, todos obedeciam ao pai.
P/1 – Ah, era diferente.
R – Eu queria ver hoje... eu queria ver, naquela época, a senhora sentada bem ali, eu sentado bem aqui, olha essa distância que nós estamos, nós conversando aqui, pra passar um dos nossos irmãos aqui, tinha cem pra passar. Hoje o cabra chega: “Não pai, não é assim não, é assim, é assim”. Você vai dizer: “Olha ali quem ensinou. A televisão”. Pois é. E outra, naquele tempo não tinha essa lei que nós temos hoje com criança. Hoje você não pode puxar a orelha do menino, você não pode puxar o cabelo do menino, nada disso. Nós, quando começamos ir pra escola, quando a gente fazia alguma coisa errada na escola, o professor, às vezes, dava... que naquele tempo era a régua, quando não, era uma palmatória. Chegava em casa, nós apanhávamos de novo, porque o papai dizia que o professor estava lá era pra ensinar, então, se ele bateu é porque eu tava, eu ou meus irmãos, tava fazendo coisa errada. Mas hoje, tu nem faz nada com o menino, basta uma mentira do menino, a mãe vai em cima de ti, ou pai, com dez pedras na mão. Como é que filho vai aprender? Não aprende.
P/1 – É.
R – Não aprende. E naquele nosso tempo, também, tinha outra coisa que eu acho errado hoje. Naquele tempo era o professor, se era uma professora a senhora ia para o quadro, ia explicar tudo lá no quadro. Hoje, vem tudo aqui ó. Você pega, passa lá no quadro, você nem força a mente do menino, você não força nada, você só faz passar lá no quadro. Se ele fez, fez, se não fez... E ele vai quebrar a cabeça com o menino que ele não pode dizer nada?
P/1 – Mas, assim, naquele tempo o senhor foi pra escola? Aonde...
R – Fui. Eu estudei só o primeiro ano.
P/1 – Só a primeira série?
R – Nesse Belmonte que eu falei pra senhora, que nós viemos.
P/1 – Lá em Belmonte?
R – Foi.
P/1 – E aqui nada?
R – Pra cá não. Pra cá só foram umas duas irmãs que ainda estudaram. Porque...
P/1 – Aonde tinha escola aqui?
R – Aqui. E nós vínhamos desse lugar, acampamento que eu tô falando pra senhora aqui atrás, parece que são seis quilômetros, naquele tempo chamava 165. Esses acampamentos eram assim, não sei se era de 15, se era de 20 quilômetros... cada 20 quilômetros, que fosse 15, tinha um acampamento, tinha um capataz com, não sei eram dez ou se eram 12 pessoas que trabalhavam na estrada de ferro.
P/1 – Ah, isso é do tempo de fazer a estrada de ferro?
R – Exatamente. Então, meus irmãos vinham estudar aqui. Nós estávamos lá trabalhando, os maiores pra sustentar os menores aqui.
P/1 – O senhor é irmão maior, então?
R – Não. Eu sou quase o... De mim, vai outro e outro é o mais velho.
P/1 – Como é que é o nome deles?
R – Olha, eu vou dizer logo do começo dos meus irmãos. O meu nome é esse que eu já disse pra senhora, é Rubim Luis Benarroque, o outro meu irmão que é gêmeo comigo é Rubem Carlos Benarroque. Vem a minha irmã, que é Valdeci Santos Benarroque, que é o nome da avó. Vem a outra, Odaci dos Santos Benarroque. Veio o irmão Moacir José Benarroque, o outro Idelfonso dos Santos Benarroque. Eu acho que já acabou. Não, ainda falta um, Pedro Rubim Benarroque.
P/1 – Esse nome Rubim vem de onde? Que é um nome muito original.
R – Casa do meu pai.
P/1 – Ele chamava Rubim?
R – Os irmãos do meu pai... O papai não chamava Rubim, mas eu tinha um tio que chamava o nome do meu irmão: Pedro Rubim Benarroque, tem outro que chamava... todos já morreram... chamava Jacó Rubim Benarroque, é um irmão que eu tenho que mora bem aqui, é Jacó Rubim Benarroque. Então tudo... Esse nome já veio do nome do...
P/1 – Jacó Rubim Benarroque...
R – Benarroque. Esse negócio de Benarroque, o pai do meu pai era turco, aí tudo vem esses nomes enrolados.
P/1 – Deixa eu fazer uma pergunta, essa estrela que o senhor tem no peito aí é por conta... Só um minutinho... Deixa eu perguntar uma coisa para o senhor, essa sua estrela que o senhor tem aqui, é por quê?
R – Não, você fala essa aqui do...
P/1 – Esse ouro aí de estrela.
R – Esse aqui a gente manda fazer.
P/1 – Mas por que o senhor fez uma estrela?
R – Não, eu fiz pra acompanhar o cordão.
P/1 – Mas o símbolo uma estrela, tem algum motivo?
R – Não. Eu não tenho motivo nenhum. Que eu achei bonito, que sempre a gente vê as coisas nos outros, você fica calado, mas você acha bonito e sabe de uma coisa? “Vou mandar aqui fazer pra mim”. Esse, que nem a senhora tá falando aí, são muitos e muitos que me perguntam: “Como é que foi feito esse aqui?”. Quando eu comprei já foi feito com isso.
P/1 – É bonito.
R – É. Pois é, o motivo é só isso.
P/1 – Agora, o seu pai, então, era filho de turco?
R – Era.
P/1 – Não era marroquino o pai dele, não?
R – Não. Turco. E a mãe do meu pai, cearense.
P/1 – Então espera aí, o pai era turco e a mãe cearense. O pai era turco?
R – É. E o meu pai legítimo é amazonense.
P/1 – Ah, porque esse aí não era o seu pai legítimo?
R – Não. Eu tô falando o pai do meu pai.
P/1 – O avô, lógico, desculpa.
R – A senhora tá confundindo.
P/1 – Eu já to confundindo tudo. Entendi. Por isso esse nome Benarroque, né?
R – É. Exatamente.
P/1 – Agora eu vou voltar. Os seus pais eram católicos?
R – Eram.
P/1 – Eram muito católicos?
R – Não. Não era muito porque, naquele tempo, igreja, tudo era dificultoso. Pra onde tinha igreja, pra gente ir. Nós só vivíamos, como eu acabei de explicar pra senhora, só de seringal.
P/1 – Certo.
R – Depois que a gente cresceu, que tomou de conta das ventas, empregado em firma, vai pra um canto... Eu fui, acho que dos irmãos, que parou mais fui eu. Porque eu, depois que me casei, nunca mais saí, eu fui mexer com comércio, até hoje eu vivo dentro do comércio. Eu já tenho base de... Esse ano, se Deus quiser, julho, dez de julho eu faço 34 anos de casado.
P/1 – Nossa.
R – E daí foi só desse jeito.
P/1 – Mas antes disso o senhor largou o seringal e foi pra onde?
R – Não. Aí a gente abandonou... Andar pra garimpo, empregado em firma, vai pra um canto, vai pra outro, só isso mesmo.
P/1 – Então, me conta a sua história. O senhor saiu do seringal e foi pra onde?
R – Eu saí pra firma.
P/1 – Que firma?
R – Ah, peraí, deixa eu ver, já não existe mais, nem... Essa é uma que tem aqui o nome, tinha uma firma com esse nome quando eu trabalhei. Depois, eu saí daqui e fui para Igarapé Preto comprar minério para a própria firma.
P/1 – Era uma firma de ouro?
R – Não. De cassiterita. Nesse tempo não tinha ouro aqui.
P/1 – Tá.
R – Aí fui, tive uns tempos lá, saí. Eu me casei em 77.
P/1 – Aí o senhor saiu e voltou pra cá?
R – Depois que eu me casei...
P/1 – Então, me conta sobre como o senhor conheceu a sua esposa. Ela é de onde?
R – Ela era daqui. Ela veio do Amazonas e morava aqui. Aí, nessa época que eu saí, que nem eu to falando, que eu fui pra firma, aí ela começou correr atrás de mim. Não fui eu que corri atrás dela não, ela que correu... (risos).
P/1 – Ela era bonita?
R – Mas é. Aí deu sorte, porque eu fui todinho esses anos que eu tive aí pelo mato trabalhando, quando voltei ainda tava, aí veio aquela história.
P/1 – Ela continuava ainda firme?
R – Ainda continuava. Hoje em dia, coitada, é trabalhadeira, mas só vive doente, só vive doente, que eu vou te falar, faz é dó. Tá lá pra igreja, tão limpando a igreja lá.
P/1 – Mas aí ela tava aí?
R – Tava. Tava. Naquela época isso aqui... Foi aqui mesmo, aqui no Mutum mesmo. Naquela época, tinha muita gente aqui.
P/1 – Tinha muita gente?
R – Tinha muita gente, todos mexiam... Naquela época era só seringal. Daí, depois do seringal, a estrada de ferro que era o trem. Só.
P/1 – Quer dizer, o dinheiro vinha da borracha e o trem era o...
R – E pra cá o do trem, porque tinha os cassacos que trabalhavam, e os cassacos que faziam compra nos comércios e era pago com o dinheiro que se via da estrada de ferro.
P/1 – E o seringal era o que dava o dinheiro para o pessoal do mato?
R – Exatamente.
P/1 – Entendi.
R – Isso aí era pra todo canto. Isso que eu falei pra senhora, que eu nasci lá em Ji-Paraná. Ji-Paraná era um seringal muito grande de muitas e muitas colocações.
P/1 – E quando foi que terminou toda essa coisa de seringal?
R – Depois que veio surgindo o garimpo.
P/1 – Então me conta como foi surgindo o garimpo. Que época que veio surgindo o garimpo?
R – Olha, eu não sei bem te explicar o garimpo, porque é que nem eu expliquei, eu nunca trabalhei em garimpo. Mas a famosa, deixa eu ver, não sei se foi 68, por aí, que teve o garimpo daqui de Rondônia, que foi o garimpo mais rico que teve, foi o garimpo de cassiterita.
P/1 – O garimpo rico foi de cassiterita?
R – De cassiterita. Aonde vieram milhares e milhares de garimpeiros do Maranhão. Nessa época, eu falei pra você, que eu comprava minério. Nessa época o garimpo tava no auge. Nessa época, eu comprava para o meu patrão e andava com o patrão, com ele. Andava com ele. Aí quando acabou o garimpo, que também muitas pessoas se fizeram tipo Rio Madeira, muitas pessoas se fizeram no garimpo de pedra preta que é a cassiterita...
P/1 – A cassiterita é diferente do ouro, então?
R – Antes do ouro que veio a cassiterita. Também foi um garimpo muito bom e muito grande, durou muitos anos, mas eu não fui pra garimpo.
P/1 – Tá. O senhor comprava...
R – Eu comprava mais meu patrão, que era o dono dessa firma que eu tô falando, do seringal.
P/1 – E aí chegou um mundo de gente do Maranhão?
R – Muita, muita, muita. Quando a gente ia pra comprar o minério, já tinha a grota no mato que se chamava a Grota dos Maranhenses, porque aquele pessoal que tinha dentro daquela grota só era maranhense.
P/1 – Uma grota o quê? Eles moravam dentro do mato?
R – Não. Não. Exatamente. Porque dentro da grota é onde é o garimpo, aí cada um fazia seu barraquinho, digamos maior do que aquilo ali, só que em vez dele dormir, ele fazia o bagerê dele pra cedo, no outro dia, ele ir trabalhar. Então, eram muitos e muitos ali dentro, que era onde estava o minério. Só que não fazia dentro da grota, fazia em cima, porque dentro da grota não trabalhava. E, antes da grota, fazia uma currutela aonde o povo vinha, tinha bordel, onde vendiam as coisas tudo e o garimpeiro trabalhava lá, mas dia de domingo ele vinha pra vila.
P/1 – Pra gastar o dinheiro.
R – Exatamente. Pra isso mesmo. Porque, em todo canto, a paixão do garimpeiro era isso. Aí vinham umas mulheres, aí a perdição era essa.
P/1 – O quê era? Domingo era mulher e bebida?
R – Exatamente. Sábado e domingo. E segunda-feira trabalho.
P/1 – E aí rodava muito dinheiro?
R – Rodava. Rodavam muitos e muitos e muitos. Foi quando eu peguei dinheiro que eu nunca vi na minha vida.
P/1 – Sério?
R – É. Porque a firma dava dinheiro pra gente comprar a cassiterita e era muito dinheiro. E carregava era nessas sacolas.
P/1 – Como é que era negociar a cassiterita? Como é que é? Você ia de um em um...
R – De um em um. Eu chegava no seu acampamento, na sua casa de morada, onde você trabalhava, as pilhas de minérios estavam aí. Aí chegava: “Você vai vender?”, “Vou”. Aí já andava com a balança mesmo, era só pesar.
P/1 – Já era tabelado o preço?
R – Já.
P/1 – Era tabelado.
R – É tipo o ouro aqui. Quando é um preço, é um preço só. Quem quiser já mais... você quer pagar menos, se eu pagar mais, aí só eu que compro, porque o meu tá um preço, tá melhor, o outro tá mais baixo. O ouro aqui no Madeira é do mesmo jeito: quem comprar com o preço mais alto, compra mais, quem comprar com o preço baixo, compra menos.
P/1 – O senhor comprava isso...
R – Comprava, daí arrumava e tinha mais essa: era transportado de avião.
P/1 – Ah é?
R – Aqueles teco-tecos, porque não tinha... Hoje em dia tem estrada até onde era o garimpo, hoje tudo tem...
P/1 – Esse teco-teco ia pra onde?
R – Um aviãozinho pequeno...
P/1 – Mas ia pra onde, pra Belém?
R – Pro garimpo mesmo. Tinha era muito, só pra isso mesmo, pra transportar tudo.
P/1 – Mas levava qual cidade?
R – Porto Velho.
P/1 – Pra Porto Velho. Tirava daqui e ia pra Porto Velho.
R – Não. Tirava dos garimpos e trazia pra Porto Velho. Agora, de Porto Velho ia pra Manaus, São Paulo e nesse mundo de meu Deus.
P/1 – Isso foi a cassiterita. Depois quando chegou o ouro?
R – O ouro deve ter chegado em 74.
P/1 – Foi aí, encontraram ouro em algum lugar.
R – Aí já foi aqui, no Madeira. O ouro é do Madeira.
P/1 – É do rio mesmo.
R – É do rio.
P/1 – E vieram os maranhenses que começaram a chegar também.
R – Não. Aí já deu muito. Já veio de todo canto. De onde chegou mais gente quando o garimpo de ouro começou foi do Pará.
P/1 – Encheu de gente do Pará?
R – Muita gente. Porque lá já eram acostumados no garimpo. Primeiro surgiu de Serra Pelada pra lá, depois que veio pra cá. Então, o povo já mexia muito com garimpo pra lá. Aqui ninguém nem conhecia o que era isso. Só se descobriu porque sempre garimpeiro roda pra todo canto. E apareceu um por aí e disse: “Não, isso aqui é ouro”. Eu morava aqui dentro da vila e minha casa hoje ainda tá... O que descobriu esse garimpo era vizinho da nossa casa.
P/1 – Ele olhou a pedra e...
R – Não. Não era pedra. Nesse tempo, foi... que não era com a azougue, era só pó. A gente não conhecia nada não. Como ele conhecia, ele foi, olhou para o meu pai, porque meu pai mexia com comércio, dizia: “Seu Afonso, pra muito não, mas pra pagar a sua mercadoria que ele comprar, isso aqui dá”. Dá porque ele tinha aquele pozinho dentro do vidro, aqui a senhora viu a pepita. Porque esse aí já tá fundido e, nessa época, ele não tava fundido, só tava em pó. Quando ele fica fundido, ele se une aí ficam as pepitas, fica do jeito maior.
P/1 – O fundido que precisa do mercúrio, né?
R – Exatamente. É isso aí.
P/1 – Aí ele trazia num vidrinho?
R – Então, trazia num vidrinho lá. Aí o papai olhou, que ninguém conhecia, papai disse... Papai tinha um jeito de dizer assim: “É, não é?”. Essas coisas assim, ele disse: “É, não é? Mas eu não vou comer isso aqui não”: “Mas seu Afonso, isso aqui é ouro, isso aqui...”. O nome do meu pai era Afonso. “Isso aqui dá de pagar o seu rancho”. E daí surgiu, daí começou um, começou dois, começou três e, comadre, e de hoje tá aí esse mundo de coisa. E começaram tudo manual, tirando aquelas de pedra. Depois, veio aquele jato já pra jogar, depois veio a balsinha, depois veio a draguinha e hoje é draga de 12... como é que se diz, meu Deus? Os tubos de 12...
P/1 – Hoje, quer dizer, pra você fazer o garimpo você tem que ser dono dessa draga.
R – Dono. Exatamente. E é caro, hoje é caro. Hoje é 150, 200 mil pra você comprar uma draga dessa.
P/1 – Então, quem são os donos da draga hoje?
R – Tem muitos. Se eu tô falando pra senhora, naquela época da vaca gorda, todo bichinho tinha uma draga e eu não tinha, porque eu nunca fui pra garimpo. Eu morava aqui e tava pingando todo dia, porque a fofoca do garimpo era grande, corria muito dinheiro. Você não se lembra de garimpo?
P/1 – Me conta, na cidade, o que mudou quando foi chegando esse ouro e toda essa gente? O que mudou aqui em Mutum?
R – Olha, Mutum foi um dos lugares que mais saiu ouro, mais saiu ouro e em Mutum não tem recordação nenhuma do garimpo que foi usado aqui. Mutum não tem uma casa feita e bonita, qualquer coisa feita por garimpeiro. Mutum não tem uma igreja feita por garimpeiro. Mutum não tem nada.
P/1 – Por quê?
R – Porque pegava e... Tô dizendo pra senhora que o garimpo mais fácil que nós tivemos na face da Terra foi esse daqui. A senhora chegava agorinha, vai dar dez horas, a senhora chegava aqui dez horas, quando dava 12 horas, 12 e meia a senhora tava na rua. A senhora ia aplicar aqui em nada? O motivo daqui foi esse. Porque era fácil demais, era fácil. Quando é difícil, que nem tem muitos garimpos aí do alto, que tudo é difícil, você chegar dentro da cidade, ainda era uma coisa, mas aqui é fácil demais.
P/1 – Pegava o ouro e tchum
R – Pegava o ouro e sumia embora.
P/1 – Mas tinha muito bar, por exemplo?
R – Comadre, bar grande de nome, não tinha nada. Tinha muito, mas tudo pequenininho. Porque não adiantava o cara fazer nada bom, bom. Pra quê? Porque quando acabava daqui, eles iam pra acolá, o teu aqui já não prestava, já queria ir pra lá. E era assim. Olha, ali naquela embaúba onde você passa, que tem um posto, lá o avião descia na pista, porque lá tinha... Pegou o nome de Praia da Embaúba, que tinha muito ouro, o avião descia na pista, depois passou a descer na praça... na praia. De lá mesmo o cara pegava um avião e tirava pra rua. Ali, naquela Embaúba, era gente que era assim.
P/1 – E tinha muita prostituição também? Porque quando tem garimpo tem muita prostituição, muita bebida...
R – Tinha, tinha. Tudo, tudo, tudo. Olha comadre, daqui a 200 metros tinha... Aqui se usou esse nome até hoje, tá? De brega, até na beira do rio. Brega é onde se junta mulher e a bebida.
P/1 – Se chama brega?
R – Se chamava brega. Então, isso aí tudo... Também todo dia matavam gente, todo dia. Não tinha um santo dia pra não amanhecer morto.
P/1 – Mas matavam por quê?
R – Comadre, matavam porque o dinheiro, o ouro, parece que ele não é da parte de Deus, ele parece que é da parte do Satanás, porque dá pressão. Você tendo o ouro, você acha que aquele ouro é o seu Deus. Eu... nunca aconteceu comigo, nem com irmão meu, com nada meu, porque ninguém nunca se dedicou em garimpo, mas eu cansei de ver, menina, ele muda, ele muda. Uma vez... Eu não tinha comércio aqui, eu tinha comércio aí dentro, eu tenho uma casona grande lá dentro e eu tinha meu comércio era lá. O cara chegou lá, assim, por volta de umas sete horas da noite, pediu uma cerveja, aí primeiro: “Pesa isso aqui pra mim”. Na balança de pesar chá, que eu pesei dois quilos de ouro. Bebeu aquela cerveja, pegou um carro, foi aqui para o Palmeiral onde passa lá na beira do rio, que era currutela naquele tempo, chegou lá, matou o cara, sem quê nem pra quê. E isso foi muito, não foi só esse não, muitos e muitos e muitos. Porque sabia que com dinheiro o advogado tirava. E assim ficou.
P/1 – E a maior parte da briga era pelo próprio ouro ou era por mulher?
R – Nada. Comadre, o ser humano quando ele tá com dinheiro, quando ele tá com ouro, parece que é outro mundo pra ele. Tanto faz ele matar como ele morrer, como tudo. E mais também a mulher, né? Quando ele tá liso é triste, humilde, pra lhe pedir um prato de comida é com a cara feia, com medo de você não dar, mas quando tá com dinheiro ou com ouro é outra coisa.
P/1 – Nessa época o seu comércio, o senhor vendia o quê?
R – Estiva.
P/1 – O que é estiva? Desculpa.
R – Mercadoria, farinha, café, arroz, feijão, óleo, essas coisas.
P/1 – Então o senhor ganhava dinheiro também.
R – Eu não ganhava muito, porque eu nunca fui acostumado a mexer com muito dinheiro, dava pra sobreviver, que nem eu criei meus filhos tudo. Hoje tá tudo criado, ainda todos continuam. Só tem meu filho que está estudando, que está na cidade, que agora no final do ano, a Deus querer, ele se forma em advogado. Só isso. Também nunca briguei, nunca fui preso, nunca matei, nunca fiz nada na minha vida, graças a Deus. Se eu jovem não fiz, imagina a idade que eu tô. Aí que eu não faço mesmo.
P/1 – Mas aí quer dizer, então sua vida era o comércio. Tinha muito comércio aí em Mutum?
R – Tinha.
P/1 – Tinha?
R – Tinha porque era fácil, não tô dizendo, corria dinheiro pra todo canto. Todo mundo que botava qualquer dava de ir sobrevivendo.
P/1 – Era bar, era comércio e que mais que tinha de negócio?
R – Restaurante.
P/1 – Restaurante? Muito restaurante?
R – É. Quem mais ganhava era restaurante, a senhora sabe que todo dia a gente tem que comer, né? Então muita gente... Toda hora vendia tudo.
P/1 – E nessa época, assim, o pessoal pescava pra vender?
R – Pescava. Olha, anterior, antes de garimpo, aqui nada tinha valor, depois de garimpo começou desde um cacho de banana se ele custava um real, o cara queria, vendia por cinco, o cabra nem fazia cara feia. Caça aqui tinha demais, principalmente a paca.
P/1 – Então você caçava pra vender a paca?
R – O cabra... Tinha nego, tinha nego só pra caçar pra vender, por quê? Não queria ir trabalhar, que é pesado. A paca, o peixe, tudo. Foi muito bom. Galinha. Galinha subia o preço sem ninguém querer, porque o cara dava... Comadre, a força do garimpo era tão bom, se a senhora chegasse aqui e tivesse comendo, o cabra fazia questão de pagar sua comida. Ele não queria... Se tivesse dez ali e quisesse comer, ele pagava para aqueles dez. Porque eu tinha muito amigo: “companheiro, pára um pouco nisso aí. Guarda. Vê o dia de amanhã.”, “Não, acabou é só buscar outro”.
P/1 – É assim que pensavam?
R – É assim que faziam. E era verdade.
P/1 – E eles tinham família, casavam? Os garimpeiros mesmo.
R – Comadre, o garimpo é outro desmantelo de família. Todo esse povo que veio de fora, de outros Estados, hoje eu falo à senhora, se ainda tiver algum desses rico, vivo, não tem um que tenha a família dele que trouxe de lá ou que tinha lá. Quando cheio batia aqui dentro era uma, duas.
P/1 – Caía na vida.
R – Exatamente. Porque tinha dinheiro. E aquele... E era muito, era muito, não era pouco não.
P/1 – Quer dizer que o garimpo não é um negócio que constrói assim?
R – Não. Pra quem a cabeça funciona, é. Porque se a senhora ou ele, aqui um rapaz, ele é um que pensa no futuro, tem muitos podres de rico que veio aqui, buscou daqui e levou lá, aplicou lá e até hoje ele tá convivendo. Mas aquele que conviveu aqui, tem muitos deles que não tem uma casa pra morar. Tem muitos e muitos e muitos. E que ganhou, se ele hoje for fazer conta do ouro que ele ganhou quando ele começou a trabalhar até hoje, Ave Maria. Mas a questão é que a cabeça não funciona. A cabeça não funciona.
P/1 – E desses garimpeiros todos, quando o ouro foi escasseando o que aconteceu? Eles foram embora ou ficaram muitos aí mesmo?
R – Não. Pra outros garimpos já.
P/1 – Já vai pra outro garimpo?
R – Já vai pra outro garimpo.
P/1 – Não ficou ninguém em Mutum?
R – Não. Muito pouco tem, porque você sabe que é muita gente. Tem pouquinho? Tem. Mas não tem, a maioria foi tudo embora. Olha, o marido dessa minha menina... levou em Guiana Inglesa, trabalhar pra lá.
P/1 – Como ele levou... Levou gente de inglês?
R – Não. Lá tem garimpo e ele saiu como operador daqui pra trabalhar lá.
P/1 – Tá lá?
R – Passa cinco, seis, sete meses pra lá. E não é só ele, são muitos, muitos e muitos.
P/1 – Agora, tem muita firma estrangeira aí fazendo garimpo?
R – Não tem firma. Cada um toca por conta.
P/1 – Ah, não é uma coisa de firma?
R – Não tem firma. Não tem firma. Eu sou dono do meu maquinário, ele é dono do dele, tu é dono do teu e várias, várias e cada um é dono de si. Quem pode ter uma dragona hoje, bonita e toda enfeitada tem. Porque ele controlou o dele, ele tem. Mas tem outro, que hoje a draga velha tá tudo caindo aos pedaços, porque não tem mais como arrumar.
P/1 – Porque não dá tanto ouro mais.
R – Não dá mais ouro não. Não dá. Dá pra ele ir arrastado e passando, arrastado e passando, mas não dá que nem dava. Também é aquela história, da onde tira que não põe, aí tudo fica difícil. É que nem eu digo pra senhora, dentro do rio ninguém enxerga. Se você enxergasse, aí era outra conversa.
P/1 – Ah, porque o ouro bom é o ouro que você tira do seco, né?
R – Não. Do seco, você vai até o final dele, eu já lhe expliquei, dentro do rio ninguém enxerga, o que manda é aquele tubão que tá lá dentro. Se ele estiver em cima do ouro, você tá colhendo, mas de uma maneira que ali, aonde ele tá fuçando acabou o ouro, ele pode tá bem encostadinho do lado do outro lado lá, mas ele não enxerga.
P/1 – Não tem como saber.
R – E aqui não, se a senhora tá cavando aí, aí tá as veias, por onde as veias entram, se a veia vem pra cá, ela vem pra cá, ela pra cá e você vai acompanhando, que você está enxergando. Mas dentro do rio você não enxerga. É por isso que é difícil, tem muito ouro dentro do rio, mas você não sabe onde é.
P/1 – Agora que vão encher o rio isso vai acabar?
R – Aí vai. Vai. Porque vai ficando com mais profundidade, né? Mais profundidade já é ruim pra trabalhar, porque vai depender... Aí, já tão trabalhando com 40, 50 metros, pra você vê em 50 metros de profundidade é muito fundo. Aí cada dia vai precisando de maquinário mais sofisticado, que tenha mais potência pra pular aquilo. E o ouro está acabando.
P/1 – Então, depois do garimpo o que veio aqui de...
R – Até agora ainda tá lutando o garimpo mesmo.
P/1 – Quando que chegou essa firma daqui? Que veio... Agora estão chegando as usinas, né? Jaci tá cheia de gente.
R – Exatamente. Essa aí é destruir. Essa aí não é fazer, essa daí vai só destruir.
P/1 – Qual que é a sua visão? Como é que você acha que vai mudar tudo aqui? Vai acabar, né?
R – Não. Aqui a tendência é de acabar, acabar, acabar mesmo. Porque aqui a gente... uns ficam, que nem eu, também tem hora que penso, porque da onde estão construindo a usina pra cá é muito longe, mas vai atingir. E esse nosso lugar é muito baixo, nós não temos nenhuma parte alta, aqui tem o Rio Mutum, depende dos afluentes, os afluentes tudo é parte baixa. Então se ela subir digamos três metros d’água a prumo, muda tudo. Pode ficar aquelas cucurutas de terra pra cá, pra acolá, mas aí não dá pra você trabalhar mais. Que nem nós estamos aqui e dizemos: “Ah, essa água não vai atingir aqui”. O que não vai? Vai. Porque sem tá... ela quando enche, ela cobre essa ponte aí. Então, vamos dizer que ela pega uma cheia dessa com outra água que vem, o tanto que vai atingir.
P/1 – Por isso é que tem que ir embora todo mundo?
R – É. Agora eu só lamento essa mudança pra lá por causa da casa que é desse tamaníco. Como é que eu vou botar as minhas coisas dentro? Que não cabem?
P/1 – Esse bar aqui, quando é que o senhor fez?
R – Já tem um bocado de ano, nem me lembro mais, mas deve ter uns 12 anos já.
P/1 – E por que o senhor decidiu fazer esse bar assim, aqui? O senhor tem comércio lá dentro, né?
R – Tenho. Tinha. O motivo de lá era o seguinte, também, quando eu mexia com o comércio lá, não tinha estrada de ferro aqui ou estrada boa. Então, o povo que morava em fazenda aqui por perto, todos compravam da gente. De uma maneira que liberou a estrada, aí cada um “shiuu”. Que nem eu falei pra senhora, o cara dentro de duas horas vai lá e tá aqui.
P/1 – Compra tudo lá em Porto Velho?
R – Tudo lá. Então, ele sai de manhã, chega de tarde com tudo que quer, tranqüilo. Aí, foi fracassando pra gente lá. Aí, eu tinha comprado esse pontinho aqui, o garimpo ainda tava funcionando bem. Eu digo: “Eu vou passar pra lá”. Aí foi onde eu... Primeiro eu aluguei aquilo ali, aonde eu tirei foto lá, ó. Eu passei dois anos alugado ali.
(TROCA DE FITA)
P/1 – As mulheres do garimpo, elas vinham da onde?
R – De Guajará, vinha de Rio Branco, de Porto Velho...
P/1 – Vinha da Bolívia?
R – Da Bolívia. De todo canto. De todo canto vinha mulher.
P/1 – Mas também era mulher desgarrada?
R – Todas. E tinha mais essa, ainda tinha aquelas senhoras de idade que a cabeça não funcionava que traziam as menininhas novas pras se prostituir no garimpo. Tudo afim de ganhar dinheiro.
P/1 – Essas senhoras montavam casa?
R – É que nem eu digo pra senhora, não era casa boa, o cara fazia qualquer uma palhoça ali e já as trazia elas pra isso.
P/1 – Agora, tinha mulher garimpeira?
R – Tinha também. Tinha. Todo canto onde o homem tá a mulher tá.
P/1 – Mas tinha mulher garimpeira aqui?
R – Tinha mulher garimpeira. Hoje ainda tem, que trabalha nesse garimpo de cassiterita. Tem bem umas quatro que eu conheço.
P/1 – Mas essas aí o pessoal respeita?
R – Essas aí é de trabalho. Mas tinham aquelas que não vinham a trabalho. O ser humano é uma coisa que ninguém entende. Ele olha uma mulherzinha acolá e já vai rodear pra ela. Ah, se ela der bola ele já foi. E aí sai daquela, vê outra pra acolá e assim vai.
P/1 – Nenhum desses virou família, nada?
R – Não. Olha, já no final do garimpo, agora, tiveram deles que hoje se chamam senhora, que era mulher, era prostituta e, hoje, são senhoras de bem com caras que vive bem, tem fazenda. Tem muitas do rio que ficaram assim.
P/1 – Que ficaram por aí?
R – Ficaram desse jeito.
P/1 – E vocês sabem quem é?
R – A gente conhece é muito. Mas que nem eu te digo, as maiorias dos caras deixam a mulher por outra mais nova e assim vai. Depois não tem nada... Porque tem mulher esperta, também, passa a mão em tudo.
P/1 – Pega o ouro do cabra.
R – E as casas e fazendas tudo. Se quiser, ele vai começar nova vida.
P/1 – Me conta aí, então, quando foi 12 anos pra cá foi piorando, piorando o comércio...
R – Foi. Depois que foi fracassando o garimpo, aí foi piorando tudo.
P/1 – E a estrada...
R – O povo, muitos foram seguindo pra outros garimpos.
P/1 – Mas aí me conta, aí você tinha comprado aquilo ali, aberto...
R – Exatamente. Eu não comprei aquilo, eu aluguei aquilo lá.
P/1 – O que era aquilo ali?
R – Restaurante.
P/1 – Onde que fica?
R – É onde aquela tapera velha que você tá vendo, era uma casa construída em cima daquilo.
P/1 – Ah! Lá é que tinha o restaurante?
R – Tipo essa minha aqui.
P/1 – Sei.
R – Daí, eu aluguei aquilo ali. Aí, trabalhei dois anos, eu já tinha comprado isso aqui. O cara que eu aluguei era prefeito aqui. Foi o tempo que o mandato dele acabou, aí ele veio em cima de mim, eu não tinha nada. Eu pedi pra ele deixar eu ficar ao menos mais um ano, que era enquanto eu construía esse aqui. Aí ele viu que eu já tinha colhido a freguesia, já tinha muito garimpeiro, ele não aceitou. Aí, eu entreguei pra ele e fiquei aqui sem nada. Mas Deus é bom, eu construí isso aqui tudo com uma madeira velha, tudo podre.
P/1 – Ah, a madeira tava solta aí?
R – Tudo podre. E Deus ajudou que quando eu aprontei isso aqui, deu uma cheia grande aí alagou aquilo lá. E o meu aqui não alagou. Graças ao bom Deus, eu paguei tudo que eu devia que eu fiz e reformei. Você vê hoje aí como é que tá. Hoje aí é pro resto da minha vida, mas eles não querem, o que eu posso fazer?
P/1 – Ficou bonito. Aí o hotel o senhor começou a fazer quando?
R – Não. Depois que eu fiz aqui, aí eu já fui mexer com hotel. A mulher queria porque queria e eu fui mexer...
P/1 – Ela queria um hotel aqui?
R – É. E depois foi mexer com esse dormitório...
P/1 – E quem que dorme aí? Quem que fica aí?
R – Quem quer. É só chegar de rio, de fazenda que não tem lugar pra dormir. Principalmente em dia de sábado é que dá mais, porque aí tem nego que vem pros forrós. E tem muito desse. Desse não, tem mais bonito que os meus dentro da vila aí. Tem de concreto, de alvenaria, ar condicionado, televisão. Tem tudo.
P/1 – O pessoal vem das fazendas pra forró, pra passar fim de semana?
R – Fazenda, algum garimpeiro que ainda tem no rio, porque o rio não falta não. Aí é como eu expliquei, quem pode mexer com mais, mexe com mais, senão vai aquele que não tem nada, com um biquinho jato, de qualquer maneira ele fazendo um grama, dois gramas pra ele tá numa vantagem. Porque não tem emprego mesmo, não tem serviço. É muito melhor. Aí vem um final de semana, não tem onde dormir, dorme aqui. Dorme e come, no outro dia vai embora.
P/1 – Tem muita festa aqui no fim de semana?
R – Tem. Quase todo final de semana tem.
P/1 – Baile, forró...
R – É. Aí pra dentro, tudo aí pra dentro da vila.
P/1 – É animada a vila então, né? Seu Rubim, o que tá acontecendo, aqui, com o seu restaurante? O que o senhor vai fazer com a chegada da...
R – Não. Aí eu tô pensando em parar com o restaurante, porque minha mulher, que nem eu falei, só vive doente. Outra coisa, não se acha as pessoas pra trabalhar, porque evoluiu tanto e ninguém é mais que nem na época que a gente foi criado, que todo mundo queria saber de trabalho. Hoje, ninguém quer saber de trabalho. Hoje é que nem eu expliquei pra senhora, pode ir dentro da vila dizer assim: “Eu vou procurar um canto pra comer”, você não acha. Porque cada um tá pros seus cantos aí ou tá pra banho, pra todo canto que tem. Outra, você põe a pessoa pra trabalhar, trabalha um mês, dois meses, quando pensa que não, lhe bota na justiça, que é o que mais tem hoje é isso. E tudo vai ficando difícil. Ela não agüenta mais trabalhar, já tá velha, até eu. Essa aqui que é a minha esposa. E, assim, eu não sei se eu ainda vou mexer com isso ou não. Meus filhos não querem que a gente mexa.
P/1 – Mas aqui vai ter que vender, então?
R – Esse aqui é aquela maneira, ou eu ganho a casa lá e esse ponto, ou eles me dão o dinheiro.
P/1 – E o senhor não decidiu ainda?
R – Não. Não decidi, porque até agora não acertaram nada comigo.
P/1 – Eles vieram fazer uma proposta, o senhor não aceitou?
R – Pois é. Tá desse jeito aí.
P/1 – Me explica. Não aceitou por quê? Pouco?
R – Porque era pouco. Isso aqui eu deixei de vender por cem mil muitas vezes, porque o ponto é bom. Um ponto desse aqui eu vou lhe falar... Eles querem me dar só cem mil.
P/1 – Aí o senhor não aceitou.
R – Não aceitei, aí vai pra lá. Aquilo ali é assim: eles vêem com você, você não aceita, aquela carta volta, aí debate lá, aí vem de novo e assim vai.
P/1 – O senhor tá nessa história há quanto tempo?
R – Já deram uns três meses. Já foi muita gente daqui, mas foi aqueles que não têm nada, que a muda deles vai dentro de uma caminhonete. Aí uma casinha daquelas é uma tranqüilidade. Outra, pra inquilina aqui foi uma boa, um cara que nunca gastou um parafuso, nunca gastou um prego pra fazer uma casa ganhou uma casa nova lá. E eu que sou dono da casa, que eles vão me dar me dão 45 mil.
P/1 – A casa que eles vão dar pro senhor é de 45 mil?
R – Não. A casa lá tava valendo 65 mil, agora já aumentou. Agora a da gente é que não tem valor.
P/1 – Tem que acertar o valor?
R – Tem... não. É o que eles querem dar, só que dão uma casa lá.
P/1 – E se o senhor não aceita o que é que acontece?
R – Vai-se brigar. Vai pra justiça... aí vai aquela história.
P/1 – E é isso que o senhor vai fazer?
R – Eu vou ver. Se não concordar tem que fazer isso.
P/1 – Mas a sua ideia é ir pra lá?
R – Não. Eu não quero lá. Lá é muito quente e a casa não cabe minhas coisas.
P/1 – O que o senhor pensa em fazer?
R – Comprar outra pra outro canto ou fazer outra, comprar um terreno por aí e fazer outra.
P/1 – Tio beira do rio?
R – Só que eu também não queria terreno, porque aí eu vou ter que construir e eu já tô velho pra tá construindo casa.
P/1 – O senhor queria comprar uma...
R – Queria comprar uma feita.
P/1 – Agora, aqui na região que vai encher tudo aqui, até aonde que vai...
R – Não. Aqui por perto de onde nós estamos morando vai ter que levantar muito o aterro, mas mais pra frente não vai atingir.
P/1 – Mais pra Jaci ou mais pra...
R – Sim, sim, sim.
P/1 – E lá pra Bolívia, vai atingir?
R – Pra lá eu não sei.
P/1 – Se o senhor for, o senhor vai pra lá? Pra perto de Porto Velho?
R – É.
P/1 – Mas o senhor acha que tá errado ou tá certo essa coisa de encher aqui? Como é que foi essa chegada de...
R – Não. Eles estão certos, a gente tá errado, porque eles tão dando o limite que vai acontecer e nós não estamos querendo acreditar. Então, eles estão certos, nós estamos errados. Eles sabem, nós não sabemos de nada.
P/1 – Agora, a comunidade aqui não se juntou?
R – Não. A comunidade aqui é o seguinte: eu quero de um jeito, você quer de outro, outro quer de outro, aí fica naquela confusão, ninguém discute nada.
P/1 – Vocês chegaram a fazer reunião?
R – Um bocado já fez. Eu nunca fui pra nenhuma reunião, porque eu já fui assistir: um combate de um jeito, outro combate de outro, aí fica difícil.
P/1 – E aí não...
R – Porque aqui, os mais prejudicados são os que têm comércio. Só eles. Os outros que não têm nada, minha filha, tá feliz de vida.
P/1 – Por quê? O comércio lá, o senhor acha que não vai vingar, né?
R – Não. Primeiro, o comércio lá não tem ninguém. Pode ter, mas é, você sabe, ali a maioria é tudo pessoal solteiro. O pessoal solteiro, se ele faz uma despesa com você aqui, você vai ter que ir na firma pra quando sair o pagamento você já avisar pra descontarem aquilo pra você. Porque têm muitos que recebem e vai-se embora. Eles não querem saber de quanto que eles devem lá pra trás, né? Tudo isso você tem que ver. Se você tem um pouquinho, aplicou naquilo ali e depois vai sair e não entra outro, como é que você vai se manter?
P/1- Agora, no seu coração? O senhor sente tristeza, fora o problema com...?
R – Vixi. Demais, demais, demais. Mulher, 50 anos que você mora num canto, não é 50 dias, não. Eu tenho 50 anos que moro aqui. Fiz isso aqui pensando que aqui fosse terminar meus dias de vida. Agora preciso eu mudar, aí eu fico perdido. Não tenho orientação de nada, nada, nada. Eu acharia que nunca mais fosse preciso eu me bater e fazer casa, fazer novo lar, fazer novas amizades, porque aqui a gente tem demais. Você vai pra um lugar estranho, você não conhece ninguém, pra você só se virar, pra fazer você não tem uma pessoa pra você ir com ele: “Fulano, vem me ajudar aqui. Fulano...”. E aqui, tudo isso aqui eu tenho e lá eu não tenho nada disso. É duro, é duro. Quem ainda tá jovem é uma coisa, né?
P/1 – Mas pro senhor tá doído, né?
R – Pra mim tá doído. Se eu tô dizendo pra vocês que quando eu recebo esse sol da tarde, a boca da noite eu tô ruim. Olha, já tá me atingindo, já tá chegando, quanto mais vem, olha, o sol tá vindo. A quentura vai batendo, o corpo da gente não se dá mais com essa quentura assim, já tem que procurar uma sombra. O jovem não. O jovem não tá nem aí, ele tá na flor da idade dele. Eu não. O meu é 67 que eu vou fazer agora sete de setembro.
P/1 – E aí o senhor sente que...
R – Eu operei do coração, o médico falou que eu não posso pegar peso. Isso aqui foi uma operação que tiraram daqui pra colocar no coração.
P/1 – Nossa mãe!
R – É. Eu tô velho, a mulher tá velha, a mulher ainda tá pior do que eu, só vive doente. Não tem uma semana que ela não vai ao médico.
P/1 – Agora, os seus filhos o que vão fazer? Eles vão pra lá?
R – Não, meus filhos cada um já toca por conta, né? Essa daí já tá com as coisas arrumadas pra viajar já pra lá.
P/1 – Vai pra lá?
R – É que ela é funcionária pública, trabalha no governo, aí já ganhou uma casa lá e o emprego dela lá. Pra ela tá tranqüilo.
P/1 – É. O senhor ainda tem, assim, se eu falasse pro senhor “Qual que é o seu sonho?”, qual que seria?
R – Não, eu agora não tenho mais sonho. Agora é começar nova vida pra ver como é que é. Eu sei dizer, eu não tô explicando que eu não sei como é que eu começo mais?
P/1 – O senhor fica na sua cabeça procurando “Por onde é que eu vou?”?
R – É. Exatamente. Porque é que nem eu expliquei e explico de novo, a força que não dá mais. Eu não tenho mais, minha mulher é pior do que eu. Nós já somos dois, como é que vamos fazer? A idéia aí que eu tô pensando, assim, é ganhar esse dinheirinho, aplicar em alguma coisa, pra arrumar uma tapera por aí, pra ir vivendo com o juros disso aí.
P/1 – Mas aí também tem que morar perto do pessoal que o senhor conhece, né?
R – Pois é, isso que eu digo. E pra ali um mora pra um canto, outro mora pra outro. Você vê aqui, aqui tudo é pertinho, né? Tudo é pertinho, tudo é conhecido, os que vem de fora são conhecidos, que vem da estrada são conhecidos, tudo é conhecido. Nós não conhecemos ninguém. Estão criando um obstáculo, também, muito grande pra lá: o cara não pode levar o que ele tem, não pode levar cachorro, não pode levar gato, não pode levar nada. Você já pensou? Eles estão tirando nós daqui e não querem que leve pra lá.
P/1 – Mas por quê?
R – Porque não pode.
P/1 – Não pode ter bicho lá?
R – Não.
P/1 – Isso é uma loucura, né? Porque todo mundo aqui cria galinha...
R – Diz que não pode ter bicho, não pode ter bar. Realmente, no bar eu não tiro a razão dele não, porque aonde tem muita gente, bebida é um problemático. Tem muito nego de coração ruim. Tem uns de coração bom, mas tem uns de coração ruim. O ser humano... a derradeira coisa que tem na face da terra de se mexer é o ser humano. Tem a senhora, tem ele, que é belíssimo, mas tem dois, três ali que num... E você vê que, hoje em dia, qualquer coisa tão matando os outros de graça. De graça, de graça.
P/1 – Aqui tem muita droga agora em Mutum?
R – Tem.
P/1 – Em Mutum?
R – Mutum. É um negócio que invadiu...
P/1 – A droga chegou com o garimpo?
R – Oi?
P/1 – A droga chegou com o garimpo? Veio depois?
R – Não. Antes de garimpo droga já rodava, só que não era muito que nem é agora. Porque, agora, ninguém quer trabalhar e só se dedica com aquilo. Essa mineração é infestada. Já morreu muita gente por causa disso aí e continua. Daqui pra ali, matam um. Por causa de quê? A droga. A droga dá dinheiro e ninguém quer trabalhar. E de todo jeito a droga é complicada. Se a senhora vende droga, eu uso ela, eu sou dominado por ela, eu vou lhe comprar, você não quer me vender porque eu, às vezes, não tenho o dinheiro, eu vou lá e lhe mato.
P/1 – E agora então...
R – E aconteceu muito aí.
P/1 – Muito? Acaba morrendo muita gente.
R – Na mineração já aconteceu muito isso aí. E tudo é complicado.
P/1 – Quer dizer, hoje no garimpo, aí na mineração o pessoal é mais a droga ou mais do álcool?
R – Mais a droga. É mais a droga. A droga é mais movimentada do que a própria bebida. A própria bebida é só pra tirar aquela coisa de dizer: “Não. É da bebida”. Mas não é. Mais é a droga. Aqui dentro tem muito e é porque dão batida, dão batida, pegam, levam, mas não tem jeito. Já pensou a imundice, é uma porcariínha bem desse tamanhozinho, é 20 conto. Ninguém quer trabalhar e a juventude é principal. Quando eu digo pra você que a juventude de hoje ninguém quer trabalhar, se conta nos dedos os jovens que gostam de trabalhar.
P/1 – É. Tá bom seu Rubim.
R – Pois é...
P/1 – O senhor quer dizer mais alguma coisa?
R – Não. Já tô com a goela seca.
P/1 – (risos)
R – Brincadeira não leve a mal não, tá?
P/1 – Tá bom.
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