Entrevista de Valter Scrivano
Entrevistado por Francisco Manuel de Oliveira Filho e Luiza Gallo
Rafard, 05/10/2022
Projeto: Todo Lugar tem uma História para Contar - Rafard
Entrevista número: PCSH_HV1368
Realizado por: Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Bom dia, ‘Seu’ Valter! Eu gostaria de começar agradecendo ao senhor por nos conceder essa entrevista, certo? Qual é o nome completo do senhor?
R – Meu nome é Valter Scrivano.
P/1 – Qual é a data de nascimento?
R - Dia dez de setembro de 1947.
P/1 – E o local? O senhor lembra o local em que o senhor nasceu?
R – Que eu nasci foi aqui na Rua Maurício Allain.
P/1 – Aqui em Rafard?
R – Rafard.
P/1 – Está certo. E como foi esse nascimento?
R – A gente pode falar: a parteira que deve saber, né? A Dona Natalina, a parteira. Eu nasci ali, na Rua Maurício Allain.
P/1 – Tem alguma história nesse nascimento?
R – Que eu lembro não tem história. Como eu vou saber do nascimento?
P/2 – Te contaram como foi esse dia?
R – Naquele tempo era um respeito muito grande. Você não podia falar uma coisa, que era um regime duro. Quando eu era ‘mais pequeno’ era regime que nem militar. A gente tinha um respeito. Não é que nem hoje. Hoje uma criança de dois anos chega e fala: “Mamãe, quando você vai ter família?” Naquele tempo era um respeito, um regime duro. Naquele tempo eu não sabia nada.
P/1 – Valter Scrivano, quem escolheu esse nome?
R – Foi meu pai.
P/1 – Ele contou pra você o porquê?
R – Não. Meu pai era uma pessoa que, conosco, não tinha muito ‘papo’.
P/1 – E qual o nome do seu pai?
R – Francisco Scrivano ______.
P/2 – Chucho, por que esse apelido?
R – Foi meu pai que pôs, Chucho, foi ele que pôs o apelido. Meus três irmãos têm apelidos. Ele que pôs.
P/2 – Novinho?
R – É. Foi Chucho, Chulico e Calu. Calu porque tinha aquela música: “Calu, _______”. Meu pai que pôs nos três o nome, o apelido de Calu. Já morreu meu irmão. Chulico, você conheceu o Chulico, e eu, tudo: Chulico, Chucho e Calu. Foi ele que pôs.
P/2 – Desde sempre você tem esse apelido?
R – Sempre. Aqui em Rafard, se você chegar e perguntar quem é Valter Scrivano, ninguém conhece, mas falou Chucho, tudo conhece.
P/1 – E você sabe por que ele colocou Chucho?
R – Não sei. Eu não posso falar, que eu não lembro. Ele colocou. Só se for porque naquele tempo eu chupava aquele chupetão feio. (risos) Quando criança, ficava com o nome de Chucho. Chupeta, então. Penso eu, que via aquele chupetão ranheta e ficava com o nome.
P/1 – E sua mãe, Chucho?
R – Minha mãe chama Maria Majorana Scrivano. Já é, também, falecida. Era doceira, fazia doce. Os antigos falam que pra fazer o doce que nem minha mãe, está pra nascer. Até Chico Rebete fala, de vez em quando.
P/2 – Tem algum doce que você gostava muito que ela fazia?
R – Ela fazia uma paçoquinha, um curau, canudo. Ela era doceira, o que pensar ela fazia.
P/2 – E como era o jeito dela?
R – Ela era cabocla, meio baixa, que o pai dela era italiano. ______ Majorana. Ela era de Capivari. Coitada, deu derrame, durou pouco, foi embora. E sempre trabalhou, na vida. Não adianta trabalhar, trabalhar, não ganhava nada.
P/1 – Você sabe como eles se conheceram?
R – Meu pai conheceu minha mãe, acho que foi na festa de Santa Cruz, que antigamente tinha. Meu tio José Scrivano é de lá, meu tio Joaquim, que morreu, também era de São Paulo e foram todos na festa. Aí foi lá na festa que se conheceram. Um tal de correinho, mandar correinho na festa de Santa Cruz. Hoje não tem mais isso.
P/2 – Como era essa festa?
R – Era em Capivari, num pátio lá e a turma ia lá, a mocidade, ficavam arvorados ali, davam correinho pra um, pra outro. Acho que foi ali que conheceram.
P/2 – E o que seu pai fazia?
R – Meu pai trabalhou na usina, em Rafard e foi dez anos presidente de sindicato. Também conheceu dez países do mundo, quando ele foi presidente de sindicato. Ele foi pra Europa.
P/1 – E o sobrenome Scrivano?
R – Scrivano veio do meu avô, que veio quando teve a Segunda Guerra Mundial, então eles vieram todos da Espanha, pro Brasil. Meu vô e minha vó vieram todos aqui pra Rafard. Vieram do navio, desceram, acho que em São Paulo, em Santos, aí vieram aqui em Rafard.
P/1 – Eles te contaram como conheceram Rafard?
R – Naquele tempo eles vieram pra aqui por causa da usina, que tinha a usina dos franceses. Era pequena a usina, então eles vieram todos aqui pra Rafard.
P/1 – E junto com eles trouxeram alguma tradição familiar, de comida?
R – Não. Naquele tempo vieram quase sem nada, por causa da guerra, então vieram aqui e ficaram morando aqui em Rafard, não tinha quase mais nada, porque vieram todos ‘corridos’, por causa da guerra. Não tinha dinheiro pra trazer nada, né?
P/1 – Mas aqui no Brasil vocês comem alguma coisa especial, que ainda traz dessa cultura familiar?
R – Não tem mais nada, com o tempo acaba tudo.
P/2 – Você conheceu os seus avós?
R – Minha avó eu conheci. Meu avô, não. Eu acho que morreu, mais ou menos, porque o documento dela ela punha naquele canudo de bambu e o rato comeu o documento dela. Aí, minha avó, eu calculo, todos os antigos falam que ela morreu com 105 anos.
P/1 – Bastante tempo!
R – Não sei se até mais, porque não tinha documento. Era famosa, a mulher mais velha de Rafard. Foi até homenageada aqui em Rafard, por Turolla.
P/2 – Que recordações você tem, dela?
R – Era uma espanhola boa, trabalhadeira. Fazer o que, né?
P/1 – Você gostava de sentar e ouvir as histórias que ela contava?
R – Ela contava que, na Espanha, lá, ela trabalhava em sítio, apanhava muita azeitona, trabalhavam, acho que particular, né?
P/2 – Nessas viagens do seu pai, ele chegou a visitar a Espanha?
R – Chegou na Espanha, foi nuns pares de países lá, ele foi na Espanha, na Áustria. Só não chegou a ir à Rússia. Depois ele foi pra muitos países. Depois que morreu meu pai e minha mãe, sumiram todos os documentos. Aí um em casa, outro em casa mexeram, não achamos mais nada, mas foi, depois, conhecer um pouco a vida dele, lá.
P/1 – Você chegou a ir nessas viagens?
R – Não. Eu era criança. Quando ele foi pra Europa, nós fomos em São Paulo, na casa de um tio meu que se chamava Joaquim, na Lapa. Ficamos mais de um mês lá na casa de um tio meu, irmão do meu pai. Ficamos lá, fomos de trem, aquele trem da Sorocabana. Fomos lá na casa de um tio meu, em São Paulo. Daí meu pai veio, aí já estava aqui em Rafard.
P/1 – E você costumava pegar muito esses trens da Sorocabana?
R – Foi pouco, que muitas vezes que precisava ir pra Piracicaba, ia de trem, que não tinha ônibus. Era de trem.
P/1 – Você falou dos seus irmãos. Só tem esses dois, fora você, ou tem mais?
R – Não, só esses dois.
P/1 – E como é a relação sua com eles? Como era, né?
R – Um morava em ______, os dois foram pra ______. Assim: quando nós nos encontrávamos, conversávamos. Eu nunca fui de ir na casa de um e de outro, porque eu não tenho carro. Pra você ir lá em ________ é ‘duro’. Quando nós nos encontrávamos, conversávamos.
P/2 – E na infância, vocês brincavam muito juntos, ou não tanto? Você e seus irmãos.
R – Assim: jogava bola, conversava, morava aqui embaixo, no antigo Bate Pau. Jogava bola, conversava bastante.
P/1 – TV, música vocês ouviam, sentavam pra assistir TV?
R – TV naquele tempo não tinha, e música _____. Televisão... escutava rádio. A mulherada gostava de assistir novela, então tinha esse rádio.
P/1 – Qual é o bairro que você falou, Bate Pau?
R – É, falava antigo Bate Pau, aqui embaixo, pra baixo da usina. Falava Bate Pau, mas era Correio do Engenho, antigamente, que falava, e pra baixo tinha o Bate Pau, mas tudo falavam Bate Pau. O Bate Pau surgiu porque tinha o Barricão lá embaixo, no buraco, e as mulheres lavavam roupa. E saiu Bate Pau porque as mulheres brigavam lá, pra pegar a vasca pra lavar roupa lá e saiu Bate Pau e tem até hoje o jeito de falar. A mulherada brigava e saiu Bate Pau, por causa da mulherada que brigava lá, pegava a vasca pra lavar roupa.
P/1 – E era um bairro agitado, na época?
R – Bairro grande, tinha muitas casas, tinha Correio de baixo, Correio de cima, aqui perto do campo, que eu morei, tudo cheio de casa. Hoje não tem mais nada. Hoje você desce lá, não tem mais nada, você não vê mais nada, derrubou tudo.
P/2 – Como era essa casa?
R – A casa que eu morava lá embaixo, no Bate Pau, era uma casinha simples: dois quartos, uma sala, uma cozinha e tinha um quintal pequeno.
P/2 – Você lembra de alguma história marcante, nessa casa?
R – A história que tinha é que era simples. Não tinha coisa bonita, não tinha nada de boniteza. Casa simples.
P/2 – Como era a rotina do senhor?
R – A rotina nossa era ir na escola, voltava, tinha que trabalhar, já que minha mãe era doceira, tinha que desembrulhar amendoim, fazer o preparo pra torrar e depois tinha que ir vender, depois nós íamos vender amendoim no cinema, paçoquinha. Vida simples.
P/1 – O senhor chegava assistir filmes, nesse cinema?
R – Só de segunda-feira, que tinha o seriado. Aí assistia o seriado. Filme do Zorro, que passava, então você ia assistir o seriado. Você foi, acabou. Só na segunda-feira que entrava no cinema. Naquele tempo a vida era mais difícil.
P/1 – E as brincadeiras de infância?
R – Brincadeiras que nós brincávamos muito: bate-barracão, batia assim e ia se esconder, negócio de criança.
P/1 – Como era essa brincadeira, bate-barracão?
R – Pegava cinco ou seis colegas: “Você vai ficar aqui”. Ficava, virava de costas e batia barracão e corria para se esconder. Aquele que você achava, voltava e batia no lugar lá: “Barracão”, que você achava aquela pessoa que corria. Você tinha que achar todos eles. E outro ficava no seu lugar e você ia se esconder também. Era assim.
P/1 – E quem ganhava?
R – Ninguém ganhava, porque era só pra ‘passar hora’, brincadeira de criança.
P/1 – Tinha outras brincadeiras?
R – Que eu lembro, não.
P/1 – Era essa a mais importante?
R – Era.
P/1 – E na escola?
R – Eu fui no primeiro ano, depois eu repeti uns pares de anos, depois fui no segundo, repeti, depois fui pro terceiro, aí repeti, minha mãe me tirou da escola. Que Matemática eu era meio ruim da cabeça, né? Não ia, mesmo.
P/1 – E como era, na escola, as brincadeiras?
R – Na escola não tinha muita brincadeira, era pouca. Saía ali no recreio, já batia o sino, você tinha que voltar.
P/1 – Você fazia muita bagunça na escola?
R – Fazia um pouco de bagunça, sim. Gostava de fazer bagunça, brigar muito. Criançada, já viu! Mas é tudo fase de criança.
P/2 – Você lembra de alguma briga marcante, algum apronto?
R - O que eu aprontava lá na escola, chegava em casa, não precisava falar mais nada, a velhinha ‘metia o couro’ na gente. Eu brigava lá e apanhava em casa. Depois que eu falei: “Não adianta brigar”, porque chegava em casa e apanhava e minha mãe batia. Meu pai, não. Minha mãe já bate, que a velha não era fácil, não.
P/1 – Tinha muitos amigos?
R – Tinha bastante. Nossa Senhora! Como tenho até hoje.
P/1 – Lembra de algum deles, que aprontou com você?
R – Os amigos não aprontavam comigo. Todos eram legais pra mim e muitos já morreram.
P/1 – Você tinha algum sonho de criança, quando crescesse?
R – Olha, o sonho que eu tenho até hoje é: eu sou uma pessoa que, quando eu vou deitar, eu vejo perfeitamente quem já morreu, eu vejo. Isso direto. Eu não gosto de comentar, porque vai comentar, falam: “Você está querendo aparecer”. Eu vejo pessoa que morreu, perfeitamente.
P/1 – E essas pessoas, foi alguém conhecido?
R – Tem. Hoje mesmo eu vi um colega meu que morreu, chama Geraldo _________, falava Gerinha. Eu o vi perfeitamente.
P/2 – Desde novo você vê?
R – Não. Quando eu era mais novo, não. Depois que eu comecei a entrar no espiritismo, aí eu vejo.
P/1 – Quando você entrou no espiritismo?
R – Falar pra você: faz muitos anos. Mas que eu frequento já tem mais ou menos uns dezoito, dezenove anos. Depois eu dei uma parada, voltei. Uns quarenta, cinquenta anos.
P/1 – Bastante tempo! E como foi sua juventude?
R – Foi uma juventude meio ‘corrida’, sempre trabalhando. Chegava sábado pra trabalhar na usina, trabalhei na usina, então colega ia tudo pra _______ e você ia trabalhar na usina de noite. De domingo trabalhava também, na usina. Juventude ‘corrida’. Não foi uma juventude que você podia falar: “Vou passear”. Tinha que trabalhar.
P/1 – Foi seu primeiro emprego, na usina?
R – O primeiro emprego que eu fui trabalhar na usina eu tinha dezesseis anos, menor. Trabalhei como servente. Depois, quando eu peguei mais idade, eu fui trabalhar na _____, na ponte rolante ali, uns pares de lugares na usina, na safra, trabalhava a safra, mandava embora.
P/2 - E quais foram seus trabalhos?
R – Na usina tudo era serviço geral, você tem que fazer tudo. Trabalhei __________ saco de açúcar de um quilo. Então, vinha saquinho, colava e _______. Trabalhava ali. Punha, depois chegava caminhão, tinha que carregar no caminhão aquele açúcar de um quilo, também na destilaria também trabalhei. Trabalhei no tumbador que falava, antigo tumbador, engatava cabo de aço, desliga, guardava a cana no depósito e de noite outra turma tirava pra moer.
P/2 – Tinha... qual atividade você mais gostava de fazer? Tinha alguma que _______?
R – Eu gostava de tudo. Tudo era divertido. Trabalhar tudo era divertido.
P/1 – Além da usina, você trabalhou em outro lugar?
R – Trabalhei, depois da usina, na prefeitura de ____ (21:00), um tempo, depois saí, aí depois eu trabalhei nessa prefeitura aqui de Rafard sete anos, aí saí, trabalhei mais um ano na usina, saí da usina, depois eu fui mandado embora, por causa de política. Aí saí da prefeitura, trabalhei um ano na usina, saí, fui trabalhar na Brasilit, trabalhei lá a vida inteira, 25 anos.
P/2 – O que você fazia na Brasilit?
R – Eu era conferente, conferia carga. Entrei como carregador, mas depois me passaram como conferente. Eu conferia carga de telha, de caixa d' água.
P/2 - Tem alguma história marcante dessa época na empresa?
R – Tinha.
P/2 – Conta pra gente.
R – Pra nós, quando chegava fim de ano, era a coisa mais linda do mundo ali, podia levar a família e tinha uma festa “medonha”, churrasco à vontade, cervejinha à vontade. No fim do ano. Era tempo bom na Brasilit. Uma firma boa de trabalhar.
P/1 – E as paqueras da juventude?
R – Tudo é passageiro, na vida.
P/1 – Tem alguém que te marcou? Hoje o senhor é casado?
R – Não. É como se fosse casado, mais de quarenta anos.
P/2 – Mas como vocês paqueravam, na juventude?
R – Antigamente aqui em Rafard tinha a rua principal aí, de sábado e domingo. Então a mulherada ia e voltava e você ficava parado. Aquela que olhava, você ia e conversava. Dava certo, não dava, tchau, tchau. Depois aquele dia do cinema, ia no cinema. Boa parte falava: “Vamos lá”, descia lá embaixo, na linha, vinha trem das oito horas, o trem ia embora, o pessoal subia, ficava ali conversando, tchau, tchau, vamos embora dormir. Aquele dia do cinema, tinha, ia no cinema; quem não tinha ia pra lá também todos e iam embora.
P/1 – Na época tinha bailes?
R – No meu tempo teve um baile bom, o Baile da Cana. Eu já morava pra baixo, lá no antigo Bate Pau, tinha o baile da cana. Foi um dos mais famosos que teve até hoje, em Rafard. Não tem igual. Na usina tinha um tio meu que chamava Cido, morreu, Cido Dias e a turmazinha dele mais meu primo, eles economizavam o ano inteiro dinheiro, aí fazia o Baile da Cana. Vinha ‘nego’ do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Campinas, de Piracicaba, tudo no baile, pra dançar. Então, Rafard, naquele dia, é pequeno, mas lotava de gente, fazia o Baile da Cana. Era famoso. Como teve aqui o carnaval, em Rafard, no refeitório que tem pra baixo da usina, lá, no campo da RCA o baile de carnaval era bonito. Como o antigo festival de Rafard, você ouviu falar. O festival era a coisa mais linda. Vinha de Piracicaba, de Tatuí, de Capivari, Indaiatuba, de Campinas, vinha ‘nego’ aí no festival. Até Jair Rodrigues veio aqui no festival de Rafard, tudo. Coisa linda! Eu gosto de ir ao cinema, mas hoje não tem mais.
P/2 – Teve algum Baile da Cana muito marcante pro senhor?
R – Era bacana, porque criançada nos íamos ver lá na diretoria e então eles nos deixavam ver. Era bonito o baile, viu?
P/2 – Vocês não podiam dançar?
R – Não. Nós não podíamos, porque éramos crianças. Mas era bonito o Baile da Cana, viu?
P/1 – E como era Santa Rita? O senhor tinha falado sobre Santa Rita.
R – Santa Rita tinha o Pacheco. O Pacheco ficou que nem uma praia, uma prainha e de domingo, nós íamos lá nadar, porque era água limpa, não tinha esgoto no rio, enchia de gente, mulherada, criançada, ia tudo pra lá de domingo, porque era a coisa mais linda do mundo. Hoje acabou tudo, não tem mais ponte, não tem mais casa, devoraram tudo, acabou tudo lá, mas era bonito. Você ia lá no meio, nadava, água limpa, coisa mais linda do mundo. Hoje não tem mais, acabou tudo.
P/1 – Tem alguma história marcante de Santa Rita?
R – Tinha. Que ia lá tarrafear. Pescava lá, tarrafeava, água tudo limpa. Hoje não tem mais isso lá. Hoje é esgotaiada. Antigamente você ia lá, nadava, tarrafeava, pegava peixe, tudo limpo. Hoje não tem mais nada. Hoje você vai lá, não tem mais. Caiu a ponte, não tem mais casa, não tem mais nada. Coisa mais triste do mundo ver aquilo lá. Quem conheceu lá e vai lá hoje, chora.
P/2 – O senhor lembra quando acabou essa diversão?
R – A diversão foi acabando ali, porque depois começou... por exemplo: o que acabou com tudo ali na Santa Rita foi a enchente de 1970. A enchente levou tudo, acabou com tudo. Levou tudo embora, derrubou casa. Foi a enchente maior que eu vi até hoje. Aí acabou a Santa Rita. Derrubou as casas, o povo foi embora pra Indaiatuba, outros pra Jundiaí, acabou tudo.Derrubou todas as casas, não tem mais nada lá.
P/1 – O senhor sofreu com essa enchente?
R – Eu não sofri, porque eu já morava aqui em cima, na Coreia, na antiga, fala Coreia, morava aqui, mas quem morava aqui pra baixo da linha, a enchente foi feia, viu? Até hoje nunca mais vista ali. Não tinha jeito, tudo cobriu de água. A Pio XII cobriu a ponte. O trem também não passava aqui embaixo, também cobriu, a linha do trem não passava. Coisa mais medonha do mundo, a enchente de 1970.
P/2 – E, Chucho, nessa enchente a população se ajudou muito? Como que foi?
R – A população ficou neutra, porque a usina que pagou caminhão e a mudança lá de baixo, tirou todo o pessoal de lá, vieram tudo pra cima, socorreu a turma, caminhão tirou a pessoa lá, fez a mudança. Encheu tudo de água! Foi a coisa mais triste do mundo!
P/1 – Além da enchente, houve alguma tragédia?
R – Não, naquele tempo não teve morte, tragédia não teve. A tragédia da turma perder tudo, porque na Santa Rita a turma perdeu tudo. Deu tempo só de sair, tirar o corpo e, quando saíram de lá, até um tal de Josias falou: “Eu vou embora”, porque ergueram o negócio da represa lá, ergueu tudo, aí Josias falou: “Vou embora”, porque ergueu o último de tudo, aí saiu correndo, chamou a turma do Pacheco, vieram tudo pra cima, porque era na sede antiga do Saltinho, fiava ali. Quando a turma voltou, cobriu tudo. Ali é uns quinze metros de altura, cobriu tudo de água. Sorte que a turma escapou, senão morriam todos ali. Foi enchente feia.
P/1 – Ela foi devagar ou veio rápido?
R – Subiu rápido. Quando menos esperou, deu tempo da turma sair, aí cobriu tudo de água.
P/1 – E, nisso, Santa Rita também...
R - ... acabou. Não tem mais nada.
P/1 – Tem outro tanque que vocês costumavam ir?
R – Ia muito só lá na Santa Rita. Em tanque eu não ia muito, mais na Santa Rita.
P/1 – Sobre o São José, que o senhor...
R – O São José era um tanque preservado dos franceses. De domingo tinha a canoa lá, os franceses iam lá de jipe, aquele tempo, e faziam o piquenique deles lá, saíam naqueles barcos deles, passeavam ali os franceses com as francesas, mas ninguém podia ir lá, tinha guarda, era preservado deles. Só eles que iam lá.
P/1 – E quem eram esses franceses?
R – Tinha a ____________, mas iam lá também. Era reservado deles.
P/1 – Eles eram moradores, ou eram...
R - Eles moravam aqui, na vila, mas iam lá passar o domingo. Então eles tinham o jipe deles, de domingo eles iam lá, faziam o churrasco deles. Conservado pra eles. Tinha as canoas de passear no tanque.
P/2 – Chucho, você pode contar um pouco melhor pra gente como eram os festivais aqui de Rafard?
R – O festival era assim: aqui em Rafard tinha a turma dos _____, que gostava de cantar, que o ______, essa turma aí fazia ___ de música. Era assim, que nem vinha de Tatuí, de Piracicaba, de Capivari, de sábado e de domingo. Dois dias. E era bonito os festivais. Vinha, cada cidade trazia seu representante, três, quatro, pra cantar. E quando era final vinha de domingo o campeão, dava uma medalha.
P/2 – E você assistia os festivais?
R – Ia ver lá.
P/2 – Você lembra de algum cantor muito bom?
R – O que eu vi cantar bonito chamava - vinha de Tatuí - Roberto Resende, não sei se é vivo. Ele ganhou o festival aqui em Rafard. Ganhava sempre o festival, porque ele cantava e compunha música.
P/1 – Algum rafardense chegou a ganhar esse concurso?
R – Teve bastante. Por exemplo: o Carlos Biasi também cantava. Chegava a ganhar também.
P/1 – Qual era sua participação no evento?
R – Meu?
P/1 – É.
R – Ia assistir. Cantar, eu não sei cantar nada. Então, eu ia assistir lá.
P/2 – E os carnavais?
R – O carnaval é bonito aqui em Rafard. Hoje não tem mais. Gostava do carnaval, porque nós fazíamos uma roda assim, todo mundo entrava ali pra dançar, a mulherada, então você entrava pra dançar, chamava a mulher e ela vinha, ali, você saía, ela ficava no seu lugar, aí ela chamava outra. Era assim, o maior respeito, coisa mais linda do mundo o carnaval.
P/2 – Onde que era, em que rua?
R – O carnaval?
P/2 – É.
R – Era no refeitório.
P/2 – Lugar fechado?
R – Fechado. Hoje é escritório da usina. O carnaval era ali.
P/1 – Tinha carnaval de rua?
R - Naquele tempo quase não tinha. Era mais no refeitório e na usina, lá embaixo, no campo antigo da RCA que tinha o carnaval.
P/2 – E, Chucho, como você conheceu a sua esposa, mãe dos seus filhos?
R – Foi assim: eu estava um dia no clube, aí e tinha um tal de Miltinho, que hoje é dentista, então falei: “Iiih, _______, assim, assim”. Ele falou: “Pode deixar, eu vou conversar com ela”. Eu falei: “Quer conversar, conversa”. Eu não estava nem aí. Falou: “Vai em Capivari, de noite”. Eu fui em Capivari, quando eu voltei, desci aqui, ficamos conversando, aí fomos conversando, conversando, conversando, aí depois: “Vamos trocar”. Comecei a conversar com ela, naquele tempo eu trabalhava na Brasilit, quando eu vinha nove, porque pegava das seis horas e ia até nove horas trabalhando, chegava, ela estava lá em casa, aí conversava, tudo, foi, foi. Aí teve um sábado aí que ________ aí ‘acertamos os passos’. Demorou uns três meses, depois, num sábado ela foi na casa de uma comadre minha, conversei, ‘acertamos os passos’.
P/2 - Quantos anos você tinha?
R – Já tinha uns 34 anos. 35. Já estava meio madurão.
P/2 – E aí vocês foram morar juntos?
R – Morar juntos, até hoje.
P/1 – Quantos filhos vocês tiveram?
R – Dois, um casal. O primeiro perdemos. Aí temos um casal. Você conhece meu filho, chama Rafael Assalin Scrivano, professor de Física. Minha menina chama Natália Assalin. Você conhece ela. Alta, que nem... (risos) não é por ser filha minha, mas uma das mais bonitas por aí que tem é ela, viu?
P/1 – E eles davam trabalho pro senhor, quando eram crianças?
R – Quem?
P/1 - Os seus filhos.
R – Não davam, porque eu saía seis horas, levantava quatro horas pra trabalhar, cinco e dez já pegava o ônibus, chegava lá, trabalhava até sete, oito, nove horas e vinha embora. Naquele tempo eu chegava em casa, tomava banho, um ______ e cama. Quando era quatro horas estava levantando. Era assim, a vida ‘corrida’.
P/2 – Como foi se tornar pai? Foi importante pro senhor?
R – Foi a maior alegria da minha vida. É a coisa mais linda do mundo se tornar pai, né?
P/1 – Você que escolheu os nomes, ou sua esposa?
R – Fui eu que escolhi o nome dos dois. Rafael, porque eu sou corintiano, tinha um jogador no Corinthians que chamava Rafael e a Natália foi da novela. Ela chamava Natália, e falei: “Vai chamar Natália”.
P/1 – O senhor lembra dessa novela?
R – Faz muitos anos, viu?
P/2 – Queria te perguntar quais foram as mudanças da vida quando você foi morar junto com a sua esposa. O que muda?
R – Muda tudo.
P/2 – Por quê?
R – Porque quando se é solteiro, você é bagunceiro. Não tem hora pra dormir. Tinha dia que eu chegava em casa três horas da madrugada, deitava, tinha que levantar, pra ir trabalhar. E depois que você junta (risos) os ‘trapos’ muda tudo, né? Você tem que ‘andar na linha’, trabalhar, chegar em casa certinho. Quando você é solteiro, você não ‘esquenta a cabeça’. É verdade, ou não é?
P/1 – Chucho, e sua religião?
R - Minha religião eu assumo que sou umbandista. Gosto de umbanda. Respeito todas as religiões, não discuto religião, futebol e política com ninguém, mas eu gosto mais da umbanda, porque umbanda, pra mim, é um fundamento sério, mas desde que trabalhe certinho, porque não adianta você falar: “Eu sou umbandista” e depois fazer macumba pra outro. É verdade, ou não é? Eu assumo que eu gosto é da umbanda.
P/1 – Como surgiu o interesse pela umbanda?
R – O meu interesse na umbanda foi pra fazer… eu sempre frequentava, eu gostava de fazer caridade, pra pegar carga, lá no Centro. Então a pessoa que estava com ‘encosto’, me chamava e um colega meu, que já morreu, que chamava _______, então falava: “Cavalo gordo, vem aqui pegar essa descarga”. Eu gostava. Tirava que estava com ela lá. Pegar a descarga. O cambone me chamava: “Vamos lá” e eu ia tirar a descarga, porque eu gostava de servir e ajudar os outros.
P/1 – Com quantos anos você entrou na umbanda?
R – Quando eu ia na antiga _______. A umbanda, naquela época, começou lá na Doca. Eu ia lá quando era criança. Depois, com o tempo começou fazendo casa, frequentei isso aí quase cinquenta anos.
P/1 – Sua família fazia parte?
R – Não, só eu. Quem frequentou muitos anos também foi o meu irmão. Meu irmão gostava de Centro. O mais novo, o Calu. Depois ele morreu, depois meu pai frequentou muitos anos, também. Aí meu pai, depois, ficou velho, aí abandonou.
P/1 – Vocês iam em algum lugar em Rafard, em Capivari?
R – Não. Só Rafard. Nós íamos nas casas. Depois, com o tempo, o meu tio foi pra... Jairo Sampaio, compraram um terreno, fizeram a ____ (40:42) de tijolo, a turma foi pegando ajuda de um, ajuda de outro, fizeram o terreiro. Quem fez o terreiro foi meu tio, que tem até hoje, chamava Irmão Jorge, hoje chama não sei o que lá Joana, mas meu tio que levantou o terreiro.
P/1 – Tinha bastante gente que frequentava?
R – Ia. No tempo meu ia muita gente. Era de quarta-feira para desenvolver e de sexta-feira pro povo, né? Chegava tinha setenta, oitenta pessoas lá. Lotava, que dava até medo. Que naquele tempo tinha gente boa pra trabalhar. Tinha um colega meu chamava Oscar Sabatini, ‘seu’ Virgílio, tinha gente firme que trabalhava lá, gente que você queria, gente de confiança.
P/1 – Conta pra gente um pouco da sua história na umbanda.
R – Umbanda é uma coisa firme, bonita, que você tem que trabalhar certinho. Até eu tive sorte, que depois da umbanda eu só pegava carga, carga, carga, aí um belo dia recebi o Tranca Rua das Almas. Eu o recebi. Aí gostava também de encruzilhada, que é coisa bonita. Mas não é… porque uma vez eu fui numa encruza, fomos em cinco ou seis, eu lembro até hoje, rapaz. Lá tinha _____ e cana e nós estávamos na roda. Entrou na roda, você não pode, se você vai fazer uma entrega lá, você escutava lá o mato: blablabla, corria lá no mato, o cara ia, batia ali, o _______ chacoalhava, esse Oscar, que já morreu, falou: “Firma a cabeça, que aquele que não firmar a cabeça, vai ficar. Um vai ficar pra ele”. Ahhhhh, falar ‘procê’: “Olha, foi feio aquele dia”. Você olhava a cana, assim, rapaz, chacoalhava a cana, escutava bater um negócio no meio do mato. Aí, quando acabou o trabalho, falou: “Não olhe pra trás. Aquele que olhar, fica”. Fomos eu, Oscar, ________, Nenão, _____, meu tio, Navarro e o _______, Cardoso, uma turminha boa, ‘da pesada’. Falar ‘procê’: “Aquele dia marcou a minha vida, viu?”, porque você sabe que encruzilhada não é qualquer um que pode ir, você sabe disso. Que você tem que entrar, pedir licença e sair e pedir licença. É que nem se vai entrar na calunga - você sabe o que é calunga, né? Você sabe o que é calunga? Cemitério - eu tenho que pedir licença e no sair também. É que nem se eu vou entrar no mato: “Dá licença, caboclo do mato”. Se eu não pedir, fala: “Aqui tem dono”. Tudo tem dono, você sabe. No rio tem dono, no cemitério tem dono e você tem que pedir licença. Ela não precisa pedir, pra entrar no mar. Se eu for entrar no mar: “Dá licença, Iemanjá”. Se eu entrar de supetão, ela pode dar um susto em mim. Às vezes tem um pouquinho de raiva, fala: “Aqui tem dono, burro velho”. (risos) É tudo mistério, na vida. Tudo, nessa terra, tem dono. É verdade, ou não é?
P/1 – O senhor falou que recebia ‘seu’ Tranca Rua. Qual é a intimidade do senhor com o Tranca Rua?
R – O Tranca Rua é assim: o tempo que eu servia ele vem no terreiro, no corpo e vem pegar tudo o ruim e leva embora. Vamos supor: ele vem no terreiro, pega tudo as coisas de ruim e leva embora, pra quebrar uma demanda. Você sabe que ele, pra quebrar uma demanda, é ele. E não é todo mundo que tem o poder pra recebê-lo, você sabe disso, não é todo mundo que recebe o Tranca Rua. Fala: “Eu recebo o Tranca Rua”. Não duvido, mas precisa saber, né? Porque uma vez o ‘seu’ Virgílio falou: “Quando a pessoa você percebe que ele não está concentrado, você pega uma vela, acende a vela e põe no braço dele. Se ele pular, não está concentrado”. Você sabe disso, que tem muitas pessoas que mistificam. Você já percebe, que não é todo mundo que tem o dom, né? Que nem eu, lá em casa, de vez em quando, telefona gente ____ (45:45): “Benza eu”. Eu benzo meus netos, muitas pessoas pedem. Sabe por que eu não aceito, não faço mais? Porque antigamente eu fazia, trabalhando em casa. Eu chegava do serviço entre sete e oito horas, tinha três, quatro pessoas em casa, aí ‘seu’ Virgílio falou: “Não faça mais isso, porque você está benzendo na sua casa, a carga vai ficar pra sua casa. Vai pegar na sua filha, na sua mulher, no seu filho. Então você pega e mande no Centro. E outra: não reze para as almas”. Quanto faz? Mais ou menos uns dois meses, não está mais um machucado aqui? Porque eu rezava para as almas todo dia. Um dia eu estava deitado, bluuu no chão, da cama, quase me matei, daí eu escutei, que ele falou: “Vai rezar pras almas, você tem que pegar e rezar no cemitério, na calunga. Acender vela lá no cemitério, mas não em casa, porque se acende uma vela na casa sua, pras almas, o que acontece? Todas as almas ruins, que estão precisando de prece, vêm em cima de você”. Eu aprendi isso aí, que você nunca pode rezar pras almas na sua casa, leva pro cemitério. Leva lá, reza lá, fica lá. Que quantas pessoas ruins que estão nesse mundo, que estão precisando de uma prece, vêm em você.
P/1 – E algo que te marcou com o Tranca Rua?
R – Ah, ele me ajudou muito, porque quando eu entrei na Brasilit era assim: eu entrei lá, ‘seu’ Virgílio falou: “Filho, o lugar lá é perigoso, lugar de ‘cobra criada’. Lugar que ‘lobo come lobo’ e urubu não deixa a carniça pra outro”. Aí eu peguei um prego, assim, amarrei com uma fita vermelha e preta ________. Entrei cinco horas, ‘pegava’ às seis e lá tinha um ___ (47:58) que até hoje preguei o prego e enfiei lá no chão, joguei a _______ (48:05) e cobri. Falei: “Ali ____ (48:06) ninguém vai mexer”. Aí, quando eu já estava lá, iam mandar embora, não me mandaram embora. Aí quando passou o tempo, eu aposentei, ‘seu’ Virgílio falou: “Não falei ‘procê’? Você conseguiu ganhar aquilo” “Aposentei”. Ele falou: “Graças ao ‘seu’ Tranca, que o segurou lá, mas vão mandar você embora, que vai entrar uma pessoa aí que não gosta de você e vai mandar você embora”. Foi dito e feito. Aí trabalhei mais um ano lá, trabalhei 25 anos, aí entrou esse encarregado lá e eu fui mandado embora. Mas o Tranca me avisou. Ele é muito bom pra trabalhar, eu gosto muito dele. Como também não desprezo outros exus, porque sabe que tem muitos exus, né? Exu Cargueiro, Exu Porteiro, Exu do Vento, Exu do Lodo, Exu Sete Catacumbas. Tem diversos. Todos eles têm sua missão. Como tem missão o Preto Velho, o Baiano, o Boiadeiro, Iansã e Nanã.
P/1 – Além do ‘seu’ Tranca Rua, você recebia outra entidade?
R – Não, só ele. Até pensei, falei: “Eu gostaria de receber um Baiano, um Preto Velho”, mas não recebo, que ele falou, já entrou na frente e ele não dá passagem. Você sabe disso, né? Que ele fala: “Aqui quem manda sou eu e acabou”.
P/2 – O que te encanta na umbanda?
R – Encanta eu?
P/2 – Hum-hum.
R – Encanta que ali você vê a coisa tudo perfeitamente, coisa que você acha que é uma realidade, não tem mentira, não tem exploração. Quando é bonito, né? Preto Velho trabalha, como eu já cheguei a ver, um tal do colega meu que chamava Oscar _____, já morreu, uma vez estava lá, apareceu um homem que ___ (50:31) com um molequinho de acho que uns oito, nove anos. Você olhava na perninha, duas feridas no pé dele, saía um pus e um sangue. E eu perguntei pro pai: “Você não levou...” “Já levei no Ronei, do Zato, em Piracicaba, fui pra Campinas e não tem jeito”. Aí eu falei: “Até em Campinas já _____, que isso aí, se não cuidar, vai cortar a perninha dele, do moleque, os dois pezinhos dele”. Aí esse colega meu, que chamava Oscar _______, trabalhava ______ Boiadeiro, aí levaram lá. Naquele tempo o terreiro era terra, areia. Aí pegou, pusemos um jornal, o moleque pisou, o _____ (51:19) estava junto com ele. Ele chamou: “Vem aqui, cavalo gordo”. Aí ele benzeu o moleque, deu um pulo pra cima, caiu de pé, falou: “Vocês _____ (51:28) na próxima lua tiver uma cicatriz aqui, eu não me chamo _____ (51:33) Boiadeiro”. Olha como arrepiou! Nossa Senhora, rapaz! Tinha umas trinta, quarenta pessoas. Na outra sexta-feira o terreiro acho que tinha mais que cem. O moleque entrou lá, pegou e mostrou assim. Teve gente que ficou bobo, não tinha uma cicatriz no pé. Aí ele levou no médico, o médico falou: “Quem salvou?” Aí contou que tinha levado no Centro.
P/1 – E tem outros testemunhos, fora esse?
R – Ah, a gente tem. Eu vou falar ‘procê’: se a gente for ficando contando, é a noite e o dia, né?
P/1 – Ou outra que marcou bastante.
R – O que marcou outro dia: eu saí de casa, fui andar lá no _______, fui andando, perdi a chave. Falei: “Uai, cadê a chave, vou entrar em casa de que jeito?” Chegar sem chave lá em casa, a ‘dona onça velha’ fica brava, né?” Aí eu bati o pé no chão, chamei o Preto Velho, falei: “Preto Velho, Pai Joaquim, quero a chave”. Virei as costas, falei: “Pai Joaquim, quero a chave” e comecei a andar. Depois veio um cara gritando: “Ei! Para aí!” Falei: “O que foi?” “A chave sua aqui. Você não perdeu uma chave?” Falei: “Perdi’. Olhei, o agradeci, cheguei em casa, eu tenho a imagem dele, falei: “Obrigado, Pai Joaquim!” E caiu a chave. Se é outro que passa ali, joga a chave embora. Isso marcou bem pra mim também.
P/1 – O senhor falou que viu espíritos, pessoas que já morreram.
R – Vejo, diretamente.
P/1 – Teve algo que te marcou, algum deles?
R – Não, marca tudo, né? Que nem hoje eu vi um colega meu. Tem dia que eu já vi meu irmão, cheguei a ver meu pai. A gente, que tem menos idade, tem facilidade pra ver. Não sou eu que quero. Quando você vai deitar, você deita, o corpo seu descansa, a matéria, mas os espíritos não, saem pra andar. Você sabia disso, né? O espírito sai, vagar. E vai saber o que o meu faz, às vezes? Tem um colega de umbanda falou: “Não é você quem quer, a sua missão é essa aí, ajudar. Veio procurar você. Que nem agora, logo, logo precisa subir lá em cima, entregar uma vela lá, porque você tem obrigação, de vez em quando, ir lá na calunga. Pede licença pra entregar pra ele”.
P/1 – Você já se assustou com alguma delas?
R – Uma vez deu um susto em mim, quando eu era mais novo. Eu estava lá em casa, no quintal, acendendo a vela, acendi _______ (54:49) aquele negócio de exame, PM, polícia militar, fui pedir ajuda. Quando assustei, tinha uns vultos em cima de mim. Dei um pulo. Moleque novo. Sumi. Os vultos todos em cima de mim. Porque você vai acender uma vela, não vem uma só, vem tudo atrás de prece. Quantas pessoas que roubam, matam, criminosos, depois se arrependem e não ganharam o Reino de Deus ainda, aí está padecendo aqui. Então ele vem procurar quem está fazendo uma prece. Você sabe disso, né? Vêm procurar oração, prece. Se você _____ as almas não vêm. Eu falei pra você. Você fica muito perseguido.
P/1 – Além de ver, o senhor conversa com eles?
R – Tem vezes que a gente conversa, mas tem vez que não. Às vezes você vê a pessoa, só vê, a pessoa que vem e conversa com você.
P/1 – Em alguma das vezes teve algum recado pra alguém?
R – Tem, a gente pega pra oração, né? Você tem que fazer uma oração. Tem que sair da sua casa, vai num canto aí, por exemplo, na estrada e faz a oração, receba e volta pro seu lugar, né?
P/1 – Nunca o senhor se sentiu incomodado com isso?
R – Não. Pra mim tanto faz, né? Eu não tenho medo, não tenho nada.
P/1 – E o seu dom ajudou bastante pessoas, aqui em Rafard?
R - Muitas pessoas pedem pra eu fazer oração e eu faço, né? Muitas agradecem.
P/2 – E seus filhos, te acompanham?
R – Quando eram crianças eles vinham na festa de Cosme e Damião. Eles iam lá comigo. Mas depois eu ‘deixei na mão’ deles, né? Eles iam se eles quiserem, eu não destaco em nada.
P/1 – Hoje o senhor só faz na casa do senhor, não vai em lugar nenhum?
R – Não. Que nem em casa lá tem o altarzinho do ‘seu’ Tranca, do Zé Pelintra lá, eu trato deles e eu parei um pouco lá, porque é de domingo. Eu acho que terreiro de umbanda tem que ser de quarta-feira e sexta-feira. Agora eles estão pegando o domingo ali. Então, estou aqui, né? Eu faço a minha obrigação em casa, porque eu acho que o certo é de quarta-feira pra desenvolver e de sexta-feira pro trabalho em geral, né? Ali, do jeito que eles tocam ali, num tem... outro dia saí de lá meia-noite, Cristo do céu! É errado, porque terreiro de umbanda é até onze horas. Depois das onze horas, se passa, vira candomblé. E no tempo meu, quando eu ia lá, a esquerda eu chegava e falava: “Vamos”, catava o ponto pro Cosme e Damião. Acabava: “Acabou, criançada. Acabou o _____, acabou. Não entra mais criança”. Aí virava a esquerda - você sabe o que é esquerda, você conhece – acabou, aí baixava o Exu Caveira, Exu Tranca Rua, Exu Calunga, tudo de Exu. _____, depois vinham a madame, aí conversava o que eles queriam. Aí quando dava dez e quinze, _____ (58:37) falava: “Encerrou, vamos embora”. Aí você estava trabalhando, subia, limpava o ponto, não deixava passar. Aí tinha dia que Exu estava passando com criança, é errado. Exu não dá passe, Exu conversa. Exu vai dar passe? Quem dá passe é Preto Velho, Baiano, Caboclo. É verdade, ou não é? Aí no terreiro Exu dá passe.
P/1 – E na época do covid, como foi o convívio do senhor com as pessoas? Principalmente nessa área de atendimento.
R – Lá no Centro?
P/1 – É, no Centro, na casa do senhor...
R – Em casa ia pessoa lá e eu benzia a pessoa, conversava e deu certo pra muita gente.
P/1 – Na época do covid.
R – Do covid eu fui uma vez lá, ela sempre dava a mão, que estava o covid já, todo mundo ali, eu falei: “Bom, quer saber de uma coisa? A partir de hoje eu não piso mais aqui por causa da covid”. Não pisei mais. De medo, né? Aí não fui mais lá. Nem sei como está mais lá. Eu ouvi falar que bastante de lá saiu, parou de ir lá. Não sei.
P/1 – O senhor ficou isolado, nesse período?
R – Fiquei. Fazia obrigação em casa, que nem eu faço, mas lá não voltei mais, não. Que dá medo, né?
P/1 – E as pessoas, o senhor continuou atendendo, ou só...
R – As pessoas, sim. Vamos supor: telefona: “Benza eu, que eu estou com uma dor de costas, dor de cabeça”, eu benzo. Mas pegar criança, chegar lá em casa, aí não. Eu benzo assim, mas pessoa em casa eu não aceito mais, porque não adianta, a pessoa vai carregada na sua casa, você tira tudo dele. E depois? Você tem que pegar e fazer um despacho, pra aquela carga negativa ir embora. Agora, se você pega e faz na sua casa, fica na sua casa.
P/1 – Esse período de covid pro senhor foi muito difícil?
R – Não. Eu ‘toquei’ a vida, normal.
P/2 – Como que é? Eu não sei o termo correto, mas é obrigação? Como era sua obrigação em casa?
R – Obrigação é assim: eu vou lá, pego um malaco, esse é pro ‘seu’ Tranca, esse é pro ‘seu’ Zé Pelintra, esse é pro Baiano. Baiano já tinha misturado, ponho lá a vela amarela; vermelha e preta pro Tranca; vela preta pro Zé Pelintra e depois, pra cá, tem o Bento Teixeira, a pinga dele lá também, a vela roxa. Trato deles assim, peço proteção pra mim, pra minha família.
P/2 – É toda semana, mês? Qual é a frequência que você faz isso? Toda semana?
R - Não é toda semana. Cada quinze dias, por aí, faço, trato deles, né? Tem que tratar, né?
P/2 – E na pandemia era muito frequente?
R – Na pandemia seguia, tratava deles e acabou.
P/1 – As pessoas que te procuravam eram só de umbanda?
R – Tinha católico. É assim: a pessoa, quando está necessitada, pode ser católica, espírita, evangelista, protestante, ela quer saber de melhorar. A gente procura ajudar. Que religião, pra mim, é comércio. É verdade ou não é? Que Deus é um só. No final é caixão e acabou. É verdade ou não é?
P/1 – Como eram essas reuniões?
R – Reuniões?
P/1 – No terreiro, não é isso?
R – É. No tempo meu já não tinha reunião. O que fazia? Chegava de quarta-feira, desenvolvimento, e de sexta-feira trabalho. Não fazia, assim, reunião.
P/1 – Como era? Chegava lá, já sentava, incorporava?
R – Chegava lá, naquele tempo, de quarta-feira, atendia, fazia, baixava hoje o Preto Velho. Aí o pessoal que entrava lá já sabia, chamava a pessoa, fazia descarrego, pra pessoa desenvolver, pra pessoa dar passagem. Aquele que tinha mediunidade, dava passagem. Quem não tinha, vai servir pra cambone, porque tem muitos que não desenvolvem. Ele vai ser cambone. O cambone vai pegar a sua carga.
P/1 – O que é cambone?
R – É pessoa que fica no terreiro, pra pegar carga. Tem cambone que é responsável pelo terreiro, então ele fica ___ , que nem meu tio ficava, de cambone. Ele ficava de dia, as pessoas que estavam mistificadas, que não estavam no trabalho, de acordo, ele ficava olhando tudo. E o cambone é o chefe do terreiro. Ele fica ali e vê tudo: a pessoa que está trabalhando na cura, quem não está, que está mistificando, porque tem muitos que mistificam. Que nem você vai, tem benzedor que você vai aí e ele olha em você, fala que você está com isso, isso e isso, ‘joga o verde, pra colher maduro’, você ‘cai na dele’ e você dá até dinheiro pra ele. Eu tenho esse pensamento: quem faz caridade, não pode cobrar. O único, no terreiro, que não trabalha de graça você sabe quem é. Você sabe, né?
P/1 – Quem é?
R – O Exu. O Exu não trabalha de graça. Ele acabou de resolver, fala: “Eu quero o meu”. Você sabe o que ele quer, né? É o malaco. Agora, Preto Velho, Baiano, Boiadeiro, Iansã, Nanã não pedem, mas ele fala: “Eu quero o meu. Eu vou trabalhar, mas depois eu quero o meu”. Aí você põe um malaco pra ele, no canto lá e ‘toca’ a vida.
P/1 – E pra pessoa ser atendida, o que ela precisava fazer?
R – Como?
P/1 – Eu vou lá e eu precisava passar por um guia seu. O que eu precisava levar, ou...
R - Não. ______ com meu guia, ia estar trabalhando, você ia lá, o saudava, aí ele já via o que você tinha e já falava. Ele fala o que você tem e o que você não tem, o que deve fazer, o que não deve fazer.
P/2 – Qual é a importância do seu tio na umbanda, aqui na cidade de Rafard?
R - Ele? Foi um dos fundadores, ele com a Dona Doca Amaral, que o Centro começou na Doca. Era lá pra baixo, no porão. Mas ela tinha farmácia, depois de um tempo ela pegou, precisou, vendeu a farmácia, foi pra Sorocaba, mas de Sorocaba ela vinha aqui em Rafard. Naquele tempo já não tinha mais barracão, aí ela vinha na casa de um tio, na casa de um, de outro, até foi que depois eles conseguiram dinheiro e fizeram o barracão lá, o terreiro. E a umbanda tem um mistério muito grande, você sabe disso.
P/1 – Qual seria esse mistério? O senhor pode contar sobre ele?
R – O mistério é significante: a Pomba Gira. Você sabe a Pomba Gira, Maria Padilha. Ela é bonita, elegante, mas ela tem que trabalhar perfeitamente só numa coisa, só na mulher. Em homem não pode. Você sabe disso, né?
P/1 – Entendi.
P/2 – Eu não entendi. Conta melhor?
R – Ele sabe.
P/1 – Sim. A gente precisa que o senhor conte pra nós como funciona.
P/2 – Como que é?
R – A Pomba Gira é assim: ela é a companheira do ‘seu’ Tranca. Agora ela baixa em mulher, tudo bem, em homem ela não pode baixar.
P/1 – A Padilha?
R – É.
P/1 – Por quê?
R – Porque uma vez eu estava no terreiro e uma quase mãe de santo falou pra mim: “Cavalo gordo, fala pro ‘fio’ lá, chama ele”. Fui lá e o chamei. Falei: “A Baiana quer conversar com você” “Por quê?” Falei: “Vai conversar com ela”. Ela falou: “Cria vergonha, para com essa... não precisa falar mais nada” “Por quê?” “Homem não pode ‘pegar’ a Pomba Gira”. Você sabe disso, que homem não pode ‘pegar’ Pomba Gira. Você entendeu a ‘jogada’, né?
P/1 – Corre algum risco do homem ser gay?
R – É, homem ‘vira’.
P/1 – Eles têm essa força de mudar a pessoa?
R - Muda perfeitamente, porque ele vai mudando. Ela o domina, o homem.
P/1 – Ela é forte, poderosa?
R – É. (risos) Pomba Gira é bicho feio. Maria Padilha. Tem muitas ______. Ela é a companheira do compadre.
P/1 – Entendi.
P/2 – Chucho, você comentou que com dezoito, dezenove anos você foi espírita. Como foi essa transição pra umbanda?
R – Quando eu era mais novo, eu sempre gostei, porque é descendência. Meu tio que morreu também, outro tio que casou com uma tia minha era de umbanda, sempre trabalhou, gostava de vê-lo trabalhar. Trabalhava na casa dele. Eu sempre me interessei pela umbanda. Gosto da católica, como até hoje eu pago o dízimo da Aparecida e pago de Rafard. Graças a Deus dá para mim. Não ‘meto a boca’, assisto missa na televisão, gosto, mas pra mim eu não vou mais na igreja. Eu pus na minha cabeça que a hóstia sagrada, no meu tempo, quem tinha o direito era só o padre, que o padre estuda vinte, trinta anos. Hoje qualquer vagabundo pega a hóstia e vai dar pra você. É o meu pensamento, ______ de ninguém. Eu acho o seguinte: a hóstia o padre está... agora, que nem eu vou lá e dou a hóstia? Um pecador, ‘nó cego’ vai dar hóstia? Você tinha que pegar a hóstia e fazer um curso. Estuda três, quatro, cinco anos, aí depois vê se você tem condições. Também não vou discutir religião.
P/1 – Antes do senhor ser umbandista, o senhor era de qual religião?
R – Católica. Fui batizado na católica. Que naquele tempo batizava tudo na católica, né?
P/1 – O senhor sofreu algum preconceito?
R – Não.
P/1 – Não existia isso, na época?
R – Não.
P/1 – Quando falava que o senhor era umbandista, as pessoas...
R – Não, podia falar. Na Brasilit: “Macumbeiro”, eu dava risada e estava na vida. “Macumbeiro”. Não ‘esquenta a cabeça’, vai embora. Se você for ligar, não adianta.
P/2 – E, Chucho, como foi se tornar avô?
R – Foi a maior alegria da minha vida! Quando nasceu minha filha, foi a maior alegria da minha vida! O ‘velho coruja’, quando vê a neta, fala: “A maior alegria do mundo!” A coisa mais linda que Deus dá pra gente.
P/2 – O que você gosta de fazer com ela?
R – Hoje ela está moça, mulher, tudo, casada, mas quando era criança, eu ia para a rua com ela. Daí passeava junto, como eu faço com meu neto: saio pra cá, vou pra lá. Isso é coisa, a maior alegria que Deus dá pra gente é isso aí, o neto. Que você pega mais amor no neto do que na filha. É verdade.
P/1 – O que mais emocionou você, na sua família?
R – Como?
P/1 – Um fato marcante.
R – Família da gente, vou falar ‘procê’: é uma coisa que vai e não volta mais. Teve momento bom e momento chato.
P/2 - E como é a sua rotina hoje em dia? Você é aposentado?
R – ‘Encostado’. Aposentado é rico.
P/2 – Quando o senhor se aposentou?
R – Em 1998.
P/2 – E como é o seu dia a dia?
R – É levantar cedo, tomar meu café, ponho meus passarinhos lá, desço lá pra baixo, vou na lotérica, quando é de tarde eu vou lá pro _______ andar. Quando meu neto está em casa, eu saio com ele. De tarde, de vez em quando, eu gosto de sentar um pouco, eu leio a Bíblia, mas você entende, né? Eu me entreguei, mas não entendo nada. Aquele negócio: burro velho pode comer capim, mas nunca olha o gosto. Tem muita pessoa que vê duas, três palavras e decora. Eu já não decoro mais nada.
P/2 – E o que você gosta de fazer com seu neto?
R – Eu saio por aí, pra rua, vou dar volta, vou lá no parquinho. Lá perto de casa, vou no parque, ali e ele fica brincando, saio com ele. Maravilha da minha vida é ele! Passeio, que é a coisa mais linda do mundo, meu neto. “Ai, que neto lindo!” Eu falo: “O vô também” “Falei do neto, burro velho”. Fala: “Que neto lindo!” “E o vô?” Depois ele fala: “Vó, o vô falou pras mulheradas lá que ele é bonito”. (risos) E passa a hora, é divertido, porque amanhã ou depois ele cresce, fica moço, homem, você não vai querer. Está com onze anos. Logo está com doze, treze, se Deus ajudar, começa a namorar e não vai lembrar mais de você, nunca mais (risos). ________ “Vô, estou precisando”. E a vida é isso aí.
P/1 – E sua mulher é ciumenta?
R – Não.
P/1 – Nunca foi?
R – Velho, feio ______.
P/1 – Mas quando era novo.
R - Nem novo, ela nunca foi ciumenta.
P/2 – E, Chucho, quais são seus sonhos?
R - Meu sonho é sempre pedir saúde pra Deus pra dar uns anos de vida, mais, pra gente ver os netos crescerem, casarem. Porque vai pegando uma idade, o sonho vai acabando. Que a vida é uma ilusão. Tudo vai passando. É verdade ou não é? Quando você é novo, tudo é bonito. Mas depois vai entrando uma idade, aí... você não pode perder a esperança. O sonho vai se acabando. A esperança sempre tem de Deus dar saúde, me ajude. A vida é isso aqui e nada você leva dessa Terra. Hoje nós estamos aqui, amanhã… não se sabe o dia de amanhã. Amanhã pode falar: “Vamos embora comigo”. Pode pular, cair, vai embora. Por isso que tem que aproveitar a vida. Nós estamos aqui de passagem. Por isso que eu falo pra minha filha: “Aproveite a vida. Está com vontade de passear? Vá, porque tudo se acaba”.
P/1 – Se fosse pra resgatar algo do passado, trazer pros dias de hoje, o que o senhor resgataria?
R – Voltar ao que eu era antes?
P/1 – É. Buscar algo do passado pra trazer pra hoje, o que o senhor traria pra hoje?
R – Do jeito que está, está bom. Não gostaria de resgatar mais nada.
P/1 – O que foi...
R – O que foi, já foi. ‘Águas passadas’ não voltam mais.
P/1 – O que é bom nos dias atuais?
R – ‘Tocar’ a vida, não olhar pra trás e não desejar mal pra ninguém.
P/1 – Pra cidade.
R – O que eu posso falar? Graças a Deus fui nascido e criado aqui. Tenho amizade com todo mundo, quase. Tem algum que não gosta da gente, mas você vai ‘tocando’. Perfeito só foi Jesus Cristo, que o resto, ninguém é perfeito. E assim mesmo o mataram. Bom dia, boa noite e vai ‘tocando’. A cidade a gente espera que sempre melhore. Melhoria pra cidade. Mas do jeito que está indo o mundo, eu vou falar ‘procê’: está difícil.
P/2 – Chucho, a cidade de Rafard tem alguma lenda?
R – Como você quer dizer?
P/2 – Alguma história da cidade. Você sabe? Tem?
R – Em que sentido, você quer dizer?
P/2 – Uma lenda urbana.
P/1 – O senhor contou sobre os canaviais, que houve aquela história lá. Tem alguma outra história na cidade, meio macabra, aterrorizante, que as pessoas contam?
R – A ‘negada’ conta do Padre Franchini, que atacou fogo na cabra. A cabra ia comer a roseira lá na igreja e ele atacou fogo na cabra. ______ fala: “O Padre Franchini atacou fogo na cabra”. Isso há mais de cinquenta anos.
P/1 – Sabe por que ele atacou?
R – Porque ia comer a rosa na igreja, ele atacou fogo. Jogou álcool e atacou fogo na cabra.
P/1 – E depois?
R – Depois ficou o padre aí, acho que o bispo o tirou daí, não sei pra onde ele foi.
P/1 – Foi daí que surgiu a história de Rafard ter sido amaldiçoada pelo padre?
R – Falaram que ele amaldiçoou a cidade e todos sabem a história. Amaldiçoou a cidade. Falaram que Rafard não ia pra frente, mas graças a Deus está crescendo, está indo pra frente. “Negada’ fala que praga de padre é perigosa. (risos)
P/1 – Tem alguma outra história?
R – Tem história, né, mas...
P/1 – Você sempre morou aqui dentro, na cidade, não nas fazendas?
R – Não, sempre aqui.
P/1 – Mas chegou a visitar as fazendas?
R – Cheguei. Jogar bola, quando era mais novo. Jogava em Itapeva. Futebol. Em São Bernardo, Taquaral. Passava o caminhão: “Vamos jogar bola? Tem tudo aqui”, “Vamos embora”. Não podia _______.
P/1 – E nessas fazendas, existia alguma lenda lá? Alguma história que o povo contava?
R - Ah, _____ puxava, jogava aqui, jogava lá.
P/1 – Você viu alguma coisa assombrosa nesses lugares?
R – Acho que esse negócio de assombração é imaginação da gente. Eu acho que não tem isso aí. Na minha opinião eu acho que não tem.
P/1 – O senhor, na época, não tinha carro?
R – Não. Bem pouco.
P/1 – O senhor costumava andar a pé pelo meio dos canaviais?
R – Quando eu ia em Capivari ia a pé e voltava a pé. Não tinha condição de pagar ônibus.
P/1 – Na época era canavial, ainda?
R – Não. Aqui ______ a ponte de madeira pra ir pra Capivari, em estrada de terra, ficava um pouquinho lá, perdia o ônibus... quer dizer: não tinha condições de vir de ônibus, vinha a pé. Encontrava um cachorro, de noite, meia-noite, uma hora, bêbado, mas passava: “Oi, vem”.
P/1 – Já passou algum susto?
R – A gente punha a imaginação, porque na ponte velha lá da avenida morreram quatro, cinco crianças, que o rapaz caiu com o carro lá, morreram todos afogados e falaram que de noite a criançada aparecia na ponte. Só ali que eu passava, eu imaginava, porque vinha a pé, tudo escuro, aquelas lâmpadas ‘gato de lebre’ falava. A ponte você passava ali no escuro, passava meio ressabiado, mas do contrário...
P/1 – Chegou a ver essas crianças?
R – Eu nunca vi. Mas eu acho que quem morreu não volta mais. ‘Nego’ fala que vê e não vê nada, fala que volta e não volta. Quem morreu já foi e não volta mais.
P/1 – E esses espíritos que o senhor vê?
R – Esses eu não sei por que aparece pra mim, que eu já falei pra você: a gente vê a pessoa, tem algumas que conversam, mas isso aí é porque a gente tem a mediunidade, não são todos que têm esse poder de ver, da mediunidade, mas esses aí, amanhã ou depois que eu falecer, eu não vou ver mais. Só se, por exemplo, meu guia baixar em outra criança, em outra pessoa.
P/2 – Chucho, antes de finalizar, eu queria te perguntar quais são as coisas mais importantes pra você, hoje.
R – As coisas mais importantes na minha vida?
P/2 – É.
R – É meu neto e minha neta. A coisa mais importante da minha vida.
P/1 – De tudo que você viveu até hoje, você faria tudo de novo?
R – Uma parte sim, uma parte não.
P/1 – Tem como explicar o que seria bom que não e o que seria bom que sim?
R – O bom meu, que eu queria, era ter um pouco mais de inteligência e ‘ser alguém’ na vida. Que Deus desse um pouco mais de inteligência e sabedoria pra mim. Se eu voltasse antigamente. E do resto eu estou com a vida normal. Um pouco mais de inteligência, porque antigamente, na escola, eu era muito burro. Pronto, é verdade. Não entrava a matéria na cabeça. Minha mãe pagava professora particular pra mim, mas não ia. Você vai falar o quê? Tem que ficar quieto e agradecer a Deus.
P/2 – Chucho, você gostaria de acrescentar algo mais, que a gente não tenha perguntado? Algum momento, alguma história da sua vida? Uma passagem.
R – Não. O que eu tinha de falar, acho que falei quase tudo.
P/2 – É? Você acha que foi?
R – Eu penso.
P/2 – Você tem mais alguma? Você gostaria de deixar alguma mensagem, pra quem vai te assistir?
R – A mensagem que até podia deixar é que o povo fosse um pouco mais sincero e agradecesse a Deus todo dia, que hoje o mundo está muito perdido: malandragem, droga, prostituições. O povo não acredita mais em Deus. Se o povo acreditasse um pouco mais em Deus, não tinha tanto roubo, crime, maldade. O povo, hoje, está todo maldade, só maldade. Você não pode confiar mais em ninguém. Antigamente, no meu tempo não tinha tanto roubo, sequestro. Hoje está perdido o mundo, porque falta um pouco de Deus.
P/1 – Pro pessoal que profere a mesma fé que você, para os umbandistas, o que o senhor falaria, hoje?
R – O que eu falei agora.
P/1 – A mesma coisa.
R – Que o povo acredite um pouco mais em Deus. Amar ao próximo como a si mesmo. Se o povo fosse um pouco humilde, não tinha tantos roubos, crimes, sequestros. Hoje o povo pensa muito na maldade: matar, roubar. Não pensa no dia de amanhã.
P/2 – Chucho, pra gente finalizar eu queria te perguntar qual é a sua primeira lembrança da sua vida.
R – Lembrança?
P/2 – A primeira memória de vida.
R – Gostaria que voltasse o tempo, pra jogar um futebol, brincar. (risos) Que hoje tudo que passa não volta mais. Gostava de jogar bola. Hoje não aguenta mais nada. Que levanta cedo, dói aqui, dói aqui, dói aqui e acabou.
P/2 – Vou encerrar. Tudo bem, ou tem mais alguma?
P/1 – Não. Vamos encerrar.
P/2 – Como foi pra você passar essa manhã aqui com a gente, relembrando de alguns momentos da sua vida?
R – Momentos meio felizes da vida. Foi a primeira. Nunca fui entrevistado. Espero que dê certo alguma coisa. Se a gente tivesse um pouco mais de capacidade, podia prolongar muito mais, mas nós somos até meio fracos, não tenho preparo mais, que nem vocês. O preparo meu é mais fraco do que a senhora.
P/2 – Nada disso. Eu quero te agradecer demais por estar aqui com a gente, estar dividindo um pouco da sua história. É sempre um presente e muitos aprendizados.
R – Comigo você não aprendeu quase nada. (risos)
P/2 – Ah! Claro que não! A vida é feita das histórias e a gente aprende muito com as histórias dos outros, então eu te agradeço demais.
R – Que nem a história, você vê como Rafard sofreu antigamente. Hoje não sofre mais. Você não chegou a pegar quando Rafard... a emancipação. ________ (risos) Rafard. Depois Rafard passou a município.
P/1 – Foi difícil, né?
R – E um que lutou pela emancipação foi meu pai. Meu pai lutou. Deu a vida por Rafard. Francisco Scrivano. Ele lutava por Rafard.
P/2 – Como ele lutava?
R - Se precisasse conversar com um deputado em São Paulo, ele ia. Ele com Genaro [Vigorito], eu lembro até hoje __________, foi o maior revendedor da Chevrolet do Brasil. E até uma Copa do Mundo ele comandou, da Chevrolet. ________ de Rafard. De Capivari. Tita falou: “Genaro, eu queria ver Rafard livre de Capivari”. Eu era moleque, acho que tinha uns quatorze, quinze anos. Estava com meu pai lá e com Genaro, Genaro falou: “Tita, antes de eu morrer eu vou dar Rafard na sua mão” e ele deu, foi 7 X 3, ele ganhou e foi trabalhar na prefeitura, lá ______, mas foi me buscar: “Vamos, monta aí no caminhão, Rafard passou a município”. Três horas da tarde, não lembro que dia, acho que foi dia 21, Rafard passou a município, ganhou, Genaro fez ganhar. Naquele tempo Genaro, dinheiro pra ele era ‘que nem capim’. Comprou sete ______ e Rafard fez 7 X 3 e município.
P/2 – Foi um dia importante?
R – Ô, porque senão aqui em Rafard não tinha nada. Depois Genaro deu município pra Rafard. Genaro Vigorito. Eu lembro até hoje. Foi 7 X 3. Que antigamente ____. (risos) Mas tudo passa.
P/1 – Teve briga nisso?
R – Ah, teve.
P/1 – Como foi a briga?
R – A turma vinha aqui, saía briga no campo da RCA. Eu não vou contar passagem, que é chato.
P/1 e P/2 – Pode contar.
P/1 – Eu sei. Pode contar, a história é interessante.
R – Uma vez a turma de Capivari, isso faz muitos anos, Rafard estava passando o passe, mas pegamos ______ em São Paulo e a turma de Capivari... (risos) aqui embaixo seguia pra avenida e já na entrada de Capivari, ali, tinha um barranco muito alto e a turma de Araraquara: Marta Ferré, que era do Centro _______ (risos) não sei se está viva. Naquele tempo não tinha banheiro, era fossa e ia pegando ali, enchendo o saquinho e quando a turma de Capivari veio tocando e cantando, a turma jogou...
P/1 - ... as fezes...
R - ... na turma de Capivari. Aí Rafard tinha o nome de Bostolândia. Isso há muitos anos. Você ouviu falar disso aí, não ouviu?
P/1 – Uma guerra de fezes?
R – Jogou tudo na turma de Capivari. Aí a turma de Capivari entrou aqui em Rafard, chegou na sede, saiu uma briga aí que deu até medo. Aí tinha um preto que trabalhava na usina, esqueci o nome do preto. Quando chegamos já falou: “Eu sei _____ provocar Rafard”. Tudo cheio lá. Aí fomos lá ____ tudo na ponte. (risos)
P/1 – (risos) Aí acabou a guerra?
R – Acabou, porque _____ Rafard tinha perdido a causa e a turma veio tirar sarro, ‘quebraram o pau’ na rua. Lembro até hoje a história.
P/2 – É isso aí!
P/1 – Foi bom, né?
P/2 – Foi muito bom.
P/1 – Foi bom?
P/2 – Muito obrigada!
P/1 – Valeu a experiência?
R – Valeu!
P/2 – Lembrou? Vai passando as imagens na cabeça, não vai?
R – Vai. Cabeça de velho é assim. O que eu sabia antigamente, hoje não volta mais.
P/1 – Muita coisa pra lembrar! Chucho, gratidão!
R - Eu que agradeço.
P/1 – Obrigado por ter aceitado o convite! E acrescentou muito. Você falou de burro, mas não. Na verdade, a sabedoria é trazida com você. E graças a isso, à sua sabedoria, hoje nós podemos nos alimentar dela. Então você é uma pessoa muito inteligente, além de simpática, uma pessoa muito simpática, uma pessoa muito agradável de se conversar também e tem, sim, muito que nos ensinar ainda. Gratidão.
R – Enquanto ‘alguém lá em cima’ der saúde e felicidade, ______. Agora, depende do ‘homem lá em cima’.
P/1 – Está certo.
R – Porque sabe que nós não mandamos nada.
P/2 – É.
R – Que nem o caso de um colega meu chamado Geraldo, trabalhava pro ______ Dias, fazendeiro que tem da usina, ele falou: “Geraldo, está vendo todo esse canavial aqui? É meu. Todo esse gado é meu. Todos esses empregados que estão cortando cana, são meus”. Geraldo falou: “Pode ser, na escritura, mas tem um dono viu?” “Quem é?” “Lá em cima, lá. Se Aquele te chamar, você larga tudo aí e só vai ter briga pra filharada”. Não deu outra: o velho morreu, perderam tudo.
P/1 – Nossa!
R – A turma do Dias. Você lembra do dia que estavam aí?
P/1 – Hum-hum.
R – Venderam a usina, hoje trabalham todos de empregados. Venderam tudo que eles tinham. Eram milionários, perderam tudo. O dinheiro é bom, mas é amaldiçoado, sabe? Ele vem e volta.
P/2 – Hum-hum.
P/1 – Queria agradecer ao Museu da Pessoa; a você, Luiza; e a você, Alisson. Gratidão!
P/3 – Obrigado!
P/2 – Obrigada você, que conduziu tão bem!
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