P - Boa tarde, eu queria que o senhor falasse seu nome completo, o local e data de nascimento.
R - O meu nome é Abram Szajman, eu nasci em São Paulo no dia 20 de julho de 1939.
P - E o nome dos pais do senhor e o local de nascimento.
R - O meu pai era Szaja Szajman, minha mãe Chaja Mindla Szajman, nascidos na Polônia em pequenos lugarejos, cidades que talvez até não existam mais no mapa.
P - E o nome dos avós do senhor?
R - Bom, o avô por parte do meu pai é um pedaço do meu nome, o Abe; eu não tenho as origens de avós nem maternos nem paternos. É uma coisa um pouco complicada de explicar, mas há de se entender que da época da imigração, o pessoal que saiu quase que fugido da Europa, da Polônia, e depois com o Holocausto, que, as famílias todas foram, desapareceram, não é?, e pouco se tinha de informação. Então em casa mesmo a família evitava comentar a respeito de antepassados etc., então a gente não tinha informação de avós etc., então, até onde eu sei, por causa do meu nome, que o avô por parte do meu pai, o pai do meu pai, era Abusz, né, e até, é onde eu sei, depois eu não sei mais nada de família, de outros lugares, perdeu-se o contato, né?
P - Certo senhor Abram, e qual a atividade do seu pai? O seu pai imigrou para o Brasil em que data e o que ele fazia?
R - Meu pai era um, como todo esses imigrantes, eu achava que eles eram um pouco loucos, né, porque imagina, em 1931, 32, ele casou, meu pai nasceu em 1904, então ele teria 27 anos, para 28, casou, pegou minha mãe e veio para o Brasil. Imagine, vir para o Brasil em mil novecentos e trinta e pouco, quando todo o mundo sabia que a capital latino-americana era Buenos Aires, né. E eu fico surpreso porque, eles devem ter ouvido falar de algum parente que tinha vindo para cá, alguma coisa, que existia um lugar no mundo que era São Paulo. Desembarcaram no porto de Santos, sem falar língua, né, sem ter qualquer possibilidade de contato, e acabaram vindo para...
Continuar leituraP - Boa tarde, eu queria que o senhor falasse seu nome completo, o local e data de nascimento.
R - O meu nome é Abram Szajman, eu nasci em São Paulo no dia 20 de julho de 1939.
P - E o nome dos pais do senhor e o local de nascimento.
R - O meu pai era Szaja Szajman, minha mãe Chaja Mindla Szajman, nascidos na Polônia em pequenos lugarejos, cidades que talvez até não existam mais no mapa.
P - E o nome dos avós do senhor?
R - Bom, o avô por parte do meu pai é um pedaço do meu nome, o Abe; eu não tenho as origens de avós nem maternos nem paternos. É uma coisa um pouco complicada de explicar, mas há de se entender que da época da imigração, o pessoal que saiu quase que fugido da Europa, da Polônia, e depois com o Holocausto, que, as famílias todas foram, desapareceram, não é?, e pouco se tinha de informação. Então em casa mesmo a família evitava comentar a respeito de antepassados etc., então a gente não tinha informação de avós etc., então, até onde eu sei, por causa do meu nome, que o avô por parte do meu pai, o pai do meu pai, era Abusz, né, e até, é onde eu sei, depois eu não sei mais nada de família, de outros lugares, perdeu-se o contato, né?
P - Certo senhor Abram, e qual a atividade do seu pai? O seu pai imigrou para o Brasil em que data e o que ele fazia?
R - Meu pai era um, como todo esses imigrantes, eu achava que eles eram um pouco loucos, né, porque imagina, em 1931, 32, ele casou, meu pai nasceu em 1904, então ele teria 27 anos, para 28, casou, pegou minha mãe e veio para o Brasil. Imagine, vir para o Brasil em mil novecentos e trinta e pouco, quando todo o mundo sabia que a capital latino-americana era Buenos Aires, né. E eu fico surpreso porque, eles devem ter ouvido falar de algum parente que tinha vindo para cá, alguma coisa, que existia um lugar no mundo que era São Paulo. Desembarcaram no porto de Santos, sem falar língua, né, sem ter qualquer possibilidade de contato, e acabaram vindo para cá, então, eu acho que é uma coisa interessante essa de, também de, da gente analisar. Porque em 1931, 32, ainda não existiria o perigo da subida ao poder do nacional-socialismo, né, mas os meus pais acharam que deviam procurar uma vida nova, né, é a mesma coisa que hoje, talvez, a gente aqui no Brasil falar em eu me mudar para Zimbábue (riso), ou para algum lugar da África Setentrional. Qualquer coisa assim, que é uma coisa inimaginável, né, mas meu pai era um trabalhador, na Polônia, nascido num pequeno lugarejo, minha mãe também, devia ter uma distância de cem, cento e poucos quilômetros um do outro, se conheceram, e os dois por acaso tinham contato, trabalhavam com costura, eram pessoas que trabalhavam na confecção de roupas, desde casa, aprenderam isso na sua infância, juventude. E quando meu pai veio para o Brasil, quando desembarcou aqui em 1932, ele, claro, saiu de Santos sem falar a língua, sem falar nada, ele e minha mãe, eles vieram para onde? Pegaram um trem, que era o local que era o mais próximo para eles, desceram na estação da Luz e acabaram vindo para um bairro, que era o Bom Retiro, que era onde, vamos dizer, havia uma concentração de proteção, não é? Que é onde existiam aqueles outros que também imigraram e que vieram para o Bom Retiro procurar um espaço novo, e um protegendo o outro, até por um problema de língua, né, eles não falavam a língua do país, e aqui eles foram trabalhadores, foram trabalhar no início da vida, aqui no próprio bairro do Bom Retiro. Trabalhavam para outros que tinham vindo antes, já estavam mais estabelecidos, que tinham confecção, já vendiam roupa, então eles foram trabalhar como costureiros. Minha mãe como costureira, meu pai como trabalhador de máquina, também de costura, foram trabalhar para outros, e acabaram desenvolvendo durante muitos anos essa atividade, até que, depois de muitos anos, ou talvez em mil novecentos e cinqüenta... cinqüenta e três vamos dizer, eles tiveram possibilidade de comprar as máquinas e começaram a desenvolver a mesma atividade já a nível próprio, né. Eles não trabalhavam mais na fábrica da pessoa, mas tinham as máquinas em casa, mas faziam o trabalho por mão-de-obra para essas fábricas, mas em casa tinha, a gente, até onde eu me lembro, não é? Eu me lembro que nós, o primeiro local que nós moramos aqui no Bom Retiro, onde eu me lembro, seria mil novecentos, eu sou de 1939, vamos dizer que 1943, eu me lembro, devia ter quatro anos. A gente morava na Rua Ribeiro de Lima, Bom Retiro, e na frente tinha uma família que tinha ainda, naquela época existiam muitos italianos que moravam no Bom Retiro, que o Bom Retiro foi em primeiro lugar um bairro que trouxe a primeira imigração, vamos dizer, italiana do século passado, final do século passado, começo desse século, e nessa casa na Rua Ribeiro de Lima morava a família Solito, que eles trabalhavam com laticínios e tinha um negócio de queijo. Eles traziam queijo do exterior e também queijo que vinha de Minas etc. Então eles moravam na parte da frente, na parte inferior tinha o depósito de queijos etc., e lá no fundo tinha uma edícula né: era um quarto, um banheiro, uma cozinhazinha e a gente morava lá, eu, minha irmã, que a minha irmã é mais velha poucos anos, e essa é a primeira lembrança de onde a gente morava, né. Depois nós fomos morar é, na Rua da Graça, isso foi logo depois da guerra, não, no final da guerra, 45, que eu me lembro ainda que tinha, ainda, o toque de recolher e precisava entrar em fila para comprar pão, eu me lembro ainda da cena de ter que ficar na fila. Mas o meu pai, na frente da nossa casa tinha uma padaria muito grande, era Padaria Savoy, que era de uma família também de imigrantes italianos, né, e o meu pai era amigo desse senhor, o dono da padaria. Então, como o meu pai era amigo dele, não precisava ficar na fila para comprar pão, porque senão eu tinha que entrar na fila de madrugada para conseguir pão, isso foi em 1945. Então, e a gente morava lá na Rua da Graça, era uma casa um pouco maior, e nessa época é, foi aí que meu pai começou a comprar essas duas máquinas e começou a costurar dentro de casa, né. Então a gente morava num quarto, todo o mundo num quarto só, meu pai, minha mãe, minha irmã e eu, tinha a fabriquinha do meu pai, tinha uma cozinha e tinha um quintal grande, e tinha um banheiro lá embaixo. Em São Paulo naquela época fazia frio, não é?, e a gente à noite para ir no banheiro, a gente resmungava muito, e fazia, e tinha, no fundo tinha umas árvores frutíferas, tinha, tinha goiaba, ameixa, e fazia muro, com uma, era quase dando para o fundo para a Rua José Paulino, e era o fundo com que na época era a antiga Eletropaulo, né, pessoal de energia elétrica. E depois daquela fase de trabalhar para terceiros, nessa época, até mil novecentos e cinqüenta e... cinqüenta, vamos dizer, de 50 até 56, 57, aí o meu pai conseguiu fazer com que o dinheiro que ele conseguiu amealhar com essa profissão dele, de costurar para terceiro etc., ele começou a iniciar e costurava para ele mesmo, quer dizer, ele começou a comprar pano, ele costurava, fazia, e começou a fazer o negócio dele. Costurava casacos, tal, e eu me lembro bem aí, porque tinha, eu tinha 15, 12, 14 anos né. Então ajudava a vender, fazia nota fiscal, você vê que naquela época já se fazia nota fiscal, uma coisa importante, né, de mencionar, porque hoje quando se fala em nota fiscal se faz toda essa celeuma, mas é. Então aí ele começou a desenvolver um trabalho, aí nós nos mudamos para uma casa já melhorzinha, que era na Rua Silva Pinto, que era, na parte superior tinha dois quartos, uma sala, tinha uma cozinha, banheiro, tal, e na parte de baixo, que era um assobradado, então virou a fabriqueta do meu pai. Então ele tinha lá a mesa de corte, tinha as máquinas de costura e a passadeira e ele aí começou a desenvolver o trabalho dele. Mas sempre muito pequeno, era tudo muito modesto, não, talvez até não tinha tantas pretensões, né, meu pai tinha, é, mentalidade de ideologia mais de, social também, ele era meio, até pelas origens, né, porque ele era uma pessoa pobre e continuava pobre, então, na época existia muito desse, desse pessoal que veio, de imigrantes da Europa, aquela perseguição, nazismo etc., então o pessoal era um pouco esquerda, né, e o meu pai tinha essa mentalidade de esquerda, né. Ele era muito preocupado com as pessoas, com quanto ganhavam, como é que viviam. Então ele não tinha essas pretensões todas de querer ter um grande negócio. Ele queria ter uma vidinha dele, desenvolveu família, estudar etc., e foi tranqüilo, trabalhou, depois nós mudamos aqui para a Rua Três Rios, moramos em 1960 talvez, aí na Rua Três Rios, aonde ele tinha também na parte, uma parte da casa era uma pequena fabriqueta dele, e ele trabalhou até mil novecentos e setenta e pouco. Aí depois ele resolveu que não era mais hora de trabalhar, né, aí ele desacelerou de uma vez e aí minha mãe já tinha falecido, aí ele já não quis mais continuar, parou, tal, e aí os filhos já estavam caminhando, né. A minha irmã já trabalhava como funcionária em um banco, não lembro bem, não me lembro bem, sim, ela trabalhou numa época, logo que ela começou a trabalhar, ela trabalhava na Cooperativa de Crédito Popular do Bom Retiro, ela era caixa, quando ela iniciou. Acho que começou a trabalhar com 17 anos, e trabalhou alguns anos lá, depois casou etc. Aí eu estava, como os meus pais trabalhavam fora, então desde pequeno, que eu tinha saído, eu tinha estudado no... como naquela época era muito complicado, né, na época, logo depois da guerra, família pobre, essa coisa toda, imigrantes, a gente estudava em escola pública, né, todos os que moravam no Bom Retiro, que eram filhos de imigrantes, estudavam em grupo escolar, e escola pública naquela época era uma coisa muito importante, muito limpa. As escolas não eram o que são hoje, né, vidros limpos, hoje não tem nem vidro, é janela, né, então as escolas eram uma coisa muito importante, e eu estudei, em 1946 eu freqüentava o grupo escolar que era onde o pessoal que morava no Bom Retiro ia estudar, que era na Avenida Tiradentes, na esquina lá da Estação da Luz, hoje Pinacoteca do Estado, onde era o Grupo Escolar Prudente de Morais, que depois de dois anos, mais ou menos, pegou fogo, e aí já tinham, estavam terminando a parte, um grupo novo, grupo escolar que era vizinho a esse, era os fundos do Jardim da Luz, na Avenida Tiradentes esquina da Rua Ribeiro de Lima. Então, aí eu saí do grupo escolar, meus pais trabalhavam fora, como eles não tinham, eu não tinha onde ficar e eles não queriam que eu ficasse muito na rua, eles me puseram para trabalhar com um parente meu, um tio meu que era já um imigrante anterior, e já tinha mais condições. Ele tinha uma pequena malharia. Então eu fui colocado para ficar com esse tio meu para ser uma espécie de office-boy, né, eu ficava lá trabalhando para fazer aquelas funções de um office-boy, levar papel de um lado, naquela época não tinha muito papel e as coisas eram mais calmas, né. São Paulo de 1950, mais ou menos, eu ia no banco, tinha um banco defronte lá a loja, era um banco, Cruzeiro do Sul, eu ia lá fazer pagamentos, depois eu ia lá na outra esquina, essa Cooperativa Popular do Bom Retiro, que hoje já não existe mais, que nos últimos anos de vida era na Rua da Graça, mas no começo dela na verdade ela era, em 1950, na Rua Ribeiro de Lima, na cara da Rua da Graça, né, e eu ia fazer pagamentos lá. Ficava na loja, ajudava a fazer pacote, aquela coisa que um office-boy fazia, não é, e durante muitos anos eu fiquei nessa atividade, nesse parente meu, e finalmente a gente foi trabalhando no Bom Retiro durante todo esse tempo, envolvido, estudando, né, tinha que estudar, os meus pais...
P - O senhor estudava à noite?
R - Não, eu estudava de dia, sempre estudei de dia, meus pais queriam que eu estudasse de dia, né, quer dizer, o meu trabalho era eu voltar da escola e ficar trabalhando, quer dizer, na verdade eu trabalhava meio período. Trabalhei durante todos esses anos, eu fui estudar contabilidade na Escola de Comércio Alvares Penteado, que era lá no Largo São Francisco, depois fui, em 1959 para 60, aí eu fui... resolvi fazer o exército, mas não queria fazer exército, fui fazer CPOR, aí fui fazer exame físico, exame intelectual, porque naquela época existia uma vontade de fazer, né, o CPOR, todo o mundo tinha interesse, não sei. Tinha uma vocação de querer atender a chamada de fazer o CPOR, então tinha mais candidatos do que vagas, né, e na verdade eu acabei fazendo lá, e os exames, fiz os exames físico e intelectual. Acabei entrando, então fiquei dois anos no CPOR, então eu já tinha me formado lá na Escola de Comércio, e eu fiquei dois anos, todo o final de semana eu, o CPOR era assim, durante as férias escolares todos os dias e quando não era férias escolar, era período letivo, era o final de semana, né, e a gente, durante dois anos ficamos envolvidos nisso e, mas mesmo nesse período, né, o CPOR ia até meio-dia, durante o período letivo normal, e eu saía do CPOR meio-dia, tal, e ia trabalhar. Eu tinha obrigação de, dos dez anos e pouco que eu comecei a trabalhar, depois nunca parei mais, quer dizer, nem quando... CPOR, depois eu fui fazer outros cursos etc., mas sempre com a obrigação de continuar trabalhando, era uma coisa que, acho que transmissão da família, né. Aquelas coisas que eu sempre digo: conto essas histórias para os meus filhos, porque a história dos imigrantes ela se repete, né. A história do Bom Retiro é uma história que a gente pode verificar que ela aconteceu na época da imigração italiana. Os pais eram os trabalhadores, né, cada um tinha os seus negócios, ou trabalhando no ramo de secos e molhados, importando algumas coisa da Itália etc., moravam lá dentro do estabelecimento, ou em cima na sobreloja. Lá na casa assobradada, né, embaixo era o negócio ou se fosse uma coisa baixa, no fundo moravam os pais, e os filhos tinham obrigação de estudar. Então os filhos estudavam e, é claro, depois que a obrigação era se formar doutor, todo imigrante queria que seu filho virasse doutor, não tinha jeito de não ser assim, então os filhos dos primeiros imigrantes italianos viraram realmente doutores, uma grande maioria virou doutor, e o que é que aconteceu, não havia sucessão nos negócios dos pais, aí foram abrindo espaço no próprio Bom Retiro para os imigrantes, os primeiros imigrantes da Polônia, da Rússia, da Ucrânia. Os judeus que vieram ocupando os espaços deixados no Bom Retiro pelos filhos dos primeiros imigrantes italianos que não quiseram ocupar o espaço dos pais, e a história se repetiu, quer dizer, o imigrante que veio, os meus pais e todos eles que não tinham cultura, que eram de pequenos lugarejos, não eram formados, não tinham a educação, se limitava a ter, ser recebida em casa, porque eles eram pessoas que transmitiam, recebiam instruções de, dos antepassados, fechados entre eles por causa de perseguição, dos programas etc. Então, quando chegavam aqui no Brasil, moravam nessas casas, no fundo das lojas, né, ou das pequenas fabriquetas e os filhos tinham que estudar, né, virar doutores, ou médicos, ou engenheiros. E realmente todos, todos não, vamos dizer 80%, viraram doutores, né, e doutores conceituados, até muito importantes no cenário brasileiro e mundial, mas acabaram não deixando sucessores, não é, porque os pais acabaram ficando velhos e não tinha quem tomasse conta dos negócios. Aí aconteceu a terceira leva de imigração, que é a imigração coreana, que ocupou a mesma coisa, a mesma, os judeus deixaram espaço, os pais ficaram velhos, os filhos não quiseram ocupar, os coreanos chegaram na década de 70, né, e se repetiu a história, os filhos estudando, no fim das contas, a história vai se repetir, vai alguém ocupar esse espaço de novo porque os filhos vão virar doutores e os pais não vão ter sucessores, e foi assim, né. Eu fui trabalhar com esse meu tio, trabalhei durante muitos anos, tinha a obrigação de estudar, mesmo fazendo curso, fazendo não sei o que, meio período era obrigação de estudar, mas depois de estudar e depois de trabalhar nesse negócio todo, aí fui procurando uns outros caminhos.
P - Seu Abram, vamos voltar um pouquinho para a questão da sua infância, o senhor disse que o senhor estudava, o senhor tinha que trabalhar, e como é que eram as suas brincadeiras? Onde o senhor brincava, quais eram as brincadeiras de criança que o senhor mais fazia?
R - Olha, naquela época a vida em São Paulo era muito mais tranqüila, né. Imagine, eu morava no Bom Retiro e o Bom Retiro era um lugar para nós, crianças, era um lugar tranqüilo, tinha ruas tranqüilas. A gente era moleque de rua mesmo, né, porque, até pela pobreza, a gente era muito pobre, e o bairro, era um bairro, vamos dizer, de classe média baixa, para baixo, a gente jogava bola na rua, a gente jogava bola de meia, aquelas coisas de criança, né, jogava, tinha uns campos de futebol no Bom Retiro, no final aqui da, na várzea do Bom Retiro, aliás, grandes jogadores saíram aqui do Bom Retiro, né, até da família da minha mulher, acabei claramente eu me casei, e na família da minha mulher, que era família Zaclis, que eram fabricantes de botas etc., para cavalheiros que andavam a cavalo, e na própria família da minha mulher teve o Valdemar Zaclis, que, advogado famoso na Polônia, e ele virou atleta profissional de futebol, e oriundo dos campos de futebol da várzea do Bom Retiro. Então a gente tinha os campos de futebol, o Sul Americano, tinha o outro lado de cá, tinha um descampado todo, o Bom Retiro era muito pequeno, a outra parte toda era muito, o descampado verde, era uma várzea grande, tinha os campos de futebol, a gente jogava futebol, aquelas brincadeiras de criança, né, botão, e jogava bola de mão, aquelas coisas todas, né. Tinha os clubes aqui no Bom Retiro, tinha os clubes da coletividade judaica na época, eram os movimentos, antes da fundação do Estado de Israel, eram uns movimentos partidários, de grupos partidários. Então a gente participava muito nessas brincadeiras que tinham lá, e era um pouco de parte cultural, vamos dizer, a gente jogava, no fim ping-pong, aquela coisa de jogar botão, mas era uma coisa muito, era quase que todo um esquema de família, era uma coisa muito fechada, porque as pessoas todas se conheciam, era uma coisa muito, isso foi durante a infância, não é, claro. Depois nós fomos, a gente foi crescendo, né, no Bom Retiro passava o bonde na Rua José Paulino, era o bonde que ia até o Largo São Bento, descia depois de volta à Florêncio de Abreu, voltava para o Bom Retiro, então, quando a, um pouco mais velho, já com 12, 13 anos, a gente se atrevia a ir para cidade, né, que a gente chocava os bondes, que ninguém pagava o bonde naquela idade, ninguém, os bondes eram abertos, a gente entrava no bonde e quando o cobrador vinha cobrar, que era aquele tempo que fazia assim, quando ele vinha cobrar no lado de cá a gente ia para o lado de lá, e no fim a gente não pagava. Então a gente vinha sempre para a cidade, passeava de bonde, ia até o Largo São Bento, ia comer cachorro-quente na Avenida São João, tinha o Jeca, tinha um outro alemão na Avenida São João, na descida, e era nessa brincadeira que a gente ia levando, coisas de infância e juventude bem, bem tranqüilas, vamos dizer, né. Porque era uma época absolutamente tranqüila, onde se podia ter essa condição, o Bom Retiro favorecia essa situação, acho que os outros bairros também, né, coisa que não existe hoje porque a coisa é muito difícil. Imagina os nossos filhos: tem uma vida hoje muito mais, vamos dizer, para dentro, né, antigamente a vida era para fora, né, a gente ficava na rua, a gente era, hoje seria moleque de rua mesmo, né? Ah, esse moleque de rua, seria quase o tipo do pedinte, né, desses que andam na rua aí, os moleques de rua. Mas só que naquela época não, você ficava na rua mas era uma brincadeira de rua saudável, e brincava, brigava, fazia tudo o que tinha direito, vamos dizer, né.
P - O senhor lembra, por exemplo, do Rio Tietê, o senhor chegou a nadar no Rio Tietê?
R - Ah, claro, mas eu não nadei porque eu não sei nadar até hoje (risos) senão eu ia morrer afogado, uma coisa que eu nunca aprendi, gozado, eu, por essa coisa toda de trabalhar tal, eu não freqüentava clube, nada. Mas eu me lembro bem, quando 1945, 46, eu tinha uns sete, oito anos, quando eu descia para ir nesse campo de futebol para jogar bola nos campos, logo atrás já era, na continuação, não existia marginal, nada, e você batia nas costas do Clube Tietê. E o Clube Tietê tinha, na parte de, beirando o rio, eles tinham lá um deck aonde eram colocados os barcos, onde eram os remadores, e naquela época o Rio Tietê era um rio limpo, em 1946, 47, a gente ia lá para catar peixe, tinha uns lambari, e a gente ia pescar mesmo, em beirada do Rio Tietê, ali embaixo, onde tinha os barcos. A gente ficava lá vendo o pessoal remar, aquela coisa toda, e aproveitava para ficar pegando peixe, e na várzea do Bom Retiro a gente pegava rã, a gente pegava rã depois de chuva, tal, quando ficava bem encharcado a gente ia brincar de pegar rã.
P - Vocês pegavam como as rãs?
R - Tinha umas varetinhas, a gente fazia umas varetas de brincadeira, né, colocava umas linhas com umas minhocas e tentava pegar, e no fim pegava, e pegava até com a mão, tinha uma quantidade muito grande de peixe nas beiradas. O rio era muito limpo, muito bonito, né, tinha gente que nadava, eu não nadava porque não sabia nadar, mas o pessoal nadava mesmo, iam remando até, tinha regatas longas, né, que iam até lá no, onde seria um lugar distante na época, sair do Tietê e ir até o Corinthians, lá no lado de lá da Penha. Porque falar na Penha naquela época era uma coisa meia complicada, né, "Onde você mora?" "Moro na Penha." Penha era outro mundo, era outra cidade, né, como Santo Amaro, não é? O sujeito falava: "Onde você mora?" "Em Santo Amaro." "Mas Santo Amaro é outra cidade, né." Mas, essa época, é, a gente tinha que atravessar o rio para ir no, na época chamava Floresta, né, por causa da guerra, tal, não podia chamar Espéria, eles trocaram o nome. O Espéria hoje era o Floresta naquela época, e a gente atravessava, aquela ponte tinha acabado de ser construída, que ali era uma ponte até de madeira, a ponte da Casa Verde também era uma ponte de madeira, mas a gente tinha uns limites para passar. A gente tinha um certo medo porque tinham turmas, né, então você tinha o problema de, passou daqui pega a turma lá não sei do que, eles brigam com a gente. Então a gente não ia brigar, tinham certos limites de você poder operar a tua brincadeira, né? Então a turma do Bom Retiro não avançava muito aqui para baixo do Bom Retiro, porque tinha a turma do Bom Retiro lá de baixo, que era quase na Casa Verde, e quase pegando lá na, o pessoal da Barra Funda, e era uma turma mais brava, e a gente tinha medo deles, né, eles brigavam muito, como também a gente não atravessava o Rio Tietê era um limite, né, então a gente, não ia atravessar o rio para ir no Floresta, tal, a gente se mantinha ali, no lado do Tietê. E brincava até no Tietê, a gente entrava por trás, tinha o portão lá dos barcos, a gente entrava, brincava lá dentro etc., mas era uma época muito interessante, bonita, porque, acho que todas as épocas de infância, de juventude, né, as pessoas acabam, acabam gostando dessa época, mas aquela época talvez fosse um São Paulo diferente, né, um São Paulo, um São Paulo mais tranqüilo, um São Paulo (fim da fita 037/ 01-A) sem violência, né, uma coisa diferente, que acabou se transformando, mas, eu acho que toda a época é época, né?
P - Quando o senhor começou a trabalhar, o que é que o impressionou mais na sua atividade, quando o senhor foi trabalhar para esse parente, o que é que chamou mais a atenção no senhor do trabalho em si, o que é que criou dificuldades?
R - Ah, eu não tinha dificuldades, era tudo uma curiosidade, né, eu acho que uma pessoa começa a trabalhar, há toda uma curiosidade que fica envolvida, né. Depois é sempre, é muito melhor trabalhar do que estudar, né, há sempre essa tese, né, acho que até hoje vale isso, né. Então eu não sei, eu gostava de coisas, de fazer coisas, de movimento, de bater papo, de saber de novidades, e, eu tinha muita curiosidade de aprender, né, de saber como é que as coisas aconteciam. Então, era uma pessoa muito atenta a tudo, e isso muito, eu gostava de participar da coisa, do fazer e entender o que estava acontecendo, apesar da pouca idade, né, mas com o passar dos anos eu estava exatamente dentro desse princípio, de ter a curiosidade, de ser aguçado pelo que pode acontecer se você fizer isso, fizer aquilo, porque é que as pessoas se comportam dessa maneira ou de outra, e, eu acho que foi mais no sentido de me interessar por fazer aquilo que eu estava fazendo, que aquilo para mim era uma novidade, e que eu precisava, né, que tinha que trabalhar, porque os meus pais eram muito pobres. Eu tinha que fazer alguma coisa, e que eu estava aprendendo alguma coisa, quer dizer, esse tio meu estava até me fazendo um favor, de me deixar lá e de me deixar aprender, então eu era uma pessoa muito respeitosa a ele, pela condição de ele estar me deixando aprender alguma coisa, de poder participar de alguma coisa nova para mim, eu acho que foi exatamente essa a visão que eu tive, né, a visão de respeito à pessoa que estava me deixando aprender uma coisa, e de eu poder ver outras coisas que eu não conhecia, né. Eu era moleque, tinha acabado de sair do grupo escolar, claro, não sabia nada, então eu, como é que era o jeito de poder ir num banco, poder ajudar em qualquer coisa, mesmo que banal, que fosse, lá, para mim era toda uma novidade, então eu estava envolvido numa coisa nova.
P - Do que era a loja, senhor Abram?
R - A loja era uma pequena fabriqueta, era uma pequena malharia, né, ele tinha umas máquinas de fazer malharia, confeccionava malha etc. E naquela época, o pessoal vinha muito do interior para comprar na capital, não é? O pessoal descia na Estação da Luz, vinham das cidades do interior todo e compravam no Bom Retiro, que era o lugar próximo à Estação da Luz, e ele fabricava exatamente isso. Então tinha que separar essa mercadoria é, então as malhas, tinham tamanhos, tinha as cores, tinha todo um trabalho assim de empacotar, e realmente era tudo uma novidade, porque as coisas aconteciam com pessoas que vinham de fora, que traziam papo diferente, né, quer dizer, sempre tinha uma história, né, uma história da cidade de onde ela vinha, o que é que fazia, era toda uma curiosidade envolvendo aquele dia-a-dia, né. E a atividade começava cedo, né, era uma coisa que, o pessoal vinha muito cedo do interior, isso depois que eu já tinha me formado, eu ainda continuei trabalhando lá, mesmo depois de ter me formado na Escola de Comércio. E a gente começava a trabalhar cedo, sete horas da manhã o pessoal do interior já estava há tempos esperando para a loja abrir, porque eles pegavam o trem no interior, de madrugada, ou à noite, viajavam à noite toda, chegavam cedo, comprava o que tinham que comprar. Sete horas da manhã, oito horas e iam embora de novo para o interior, né, voltavam para origem para poder trabalhar e vender. Então era uma vidinha, uma vidinha dessas interessante que a gente foi aprendendo, né, como é que era o negócio de atender um freguês, né. Eu acho que aí que começou a me aguçar, talvez, um sentido de comércio, como é que as pessoas se conhecem, se negociam, se entrelaçam e tem a possibilidade de se aguçar fazendo negócio, né, procurar caminhos, etc. Eu acho que, como eu comecei muito cedo, né, dez anos, dez anos e meio, eu acho que isso foi me formando, toda essa curiosidade, né, de saber como é que vai melhorando isso, como é que vai aprimorando. Eu acho que foi por aí, foi importante esse início de coisas, né. Talvez tenha sido aí a visão dos pais da gente, que mesmo, como eu digo ser, eles não eram preparados, não tinham informações, não tinham cultura, não tinham conhecimento, tal, mas sabiam que tinham que, até porque aconteceu com eles também, que eles tinham que formar os filhos para terem, pensando para frente, né. Então, eu acho que você tem que aprender alguma coisa, você vai estudar, tal, mas tem que aprender como é que a vida funciona, e foi o caminho aí, eu acho que isso é um mérito muito grande dos pais de imigrantes que sabiam das dificuldades, não é, porque sofreram tudo isso na carne, e queriam que os filhos tivesse condição melhores, né. Uns foram doutores, outros não foram doutores, né. O meu caso, eu não virei doutor, virei comerciante.
P - Nessa atividade do senhor, como é que era feita as formas de pagamento, o senhor falou que o pessoal do interior vinha, era vendido à crédito, tinha caderneta na época?
R - Ah, naquela época tinha muito de confiança, era uma coisa, quase, vamos dizer, uma caderneta, né. Como aquela história da caderneta da mercearia, da quitanda etc., que naquela época existia muito, né? O sujeito ia comprar, o Brasil não tinha inflação, era uma coisa mínima, mesmo depois da guerra, inflação no Brasil a gente conhece muito forte depois de 1960, né, mas antes disso, o sujeito ia na quitanda, comprava, anotava, né. Então na loja era a mesma coisa, se vendia para lojas maiores, então fazia a duplicata, chamava duplicata, né. Fazia uma fatura, direitinho, tal, e fazia a duplicata, punha em cobrança no banco ou ia lá no vencimento cobrar da loja, quando era no interior, eram pessoas que já tinham um certo contato. No começo a pessoa tem que pagar, né, depois ia criando aquela autoconfiança, e a pessoa ia tendo um crédito aberto, e fazia, como se fosse um tipo de uma caderneta de pagamento, né, levava a mercadoria, quando voltava trazia dinheiro, aí levava mais mercadoria, depois voltava, trazia dinheiro e levava mais mercadoria. Era uma coisa contínua, né, a confiança era um fator primordial nesse tipo de atividade por causa da proximidade, era um negócio muito pequeno, e era o dono com o comprador. Então, a coisa que o sujeito comprou durante um ano, sempre pagou, sempre teve condições, sabe onde mora, sabe de onde é etc., que não era só gente do interior, tinha na capital também, tinha os bairros, aqui, mesmo que distantes naquela época, Penha, Lapa etc., coisa longe, né. Esse pessoal eram todos pessoas conhecidas, depois de um ano se conheciam, então sabiam que eram pessoas respeitosas, que cumpriam com a obrigação, criavam aquela confiança que é o primordial na atividade empresarial, o pessoal começa a merecer crédito, como é hoje, né: o sujeito merece crédito por, pelo seu passado de pagar, o seu passado de bom comportamento na atividade. E foi assim que a atividade foi prosperando, porque a partir dos pagamentos certos, no dia combinado, voltava, pagava de novo, e assim a pessoa ia comprando, né?
P - O senhor começou como office-boy, depois o senhor começou a aprender outras atividades, aí depois...
R - É, fui acompanhando, vamos dizer, um progresso natural da própria atividade da pequena coisinha que era a lojinha, foi crescendo, as ambições, também, desse tio meu tinham que crescer, né. Ele não podia ficar fechadinho só naquela atividade, ele foi se envolvendo em outras coisas, ele começou a fazer umas importações. Eu me lembro que numa época ele importava geladeiras dos Estados Unidos. Aí ele começou a vender, numa época ele vendia geladeiras, era GE, então trazia cem geladeiras de cada vez, 200 geladeiras, vendia geladeira. Então eu vendia geladeira na época, depois uma outra época, além de geladeira ele começou a trazer cristal da Boêmia. Então ele era importador de cristal, e vendia cristal para, na época tinha grandes lojas aí, era o Gabriel Gonçalves, vendia presentes, e outros mais que tinham lojas de presentes, ele era atacadista, né, no caso, ele vendia, era importador e, porque naquela época para importar precisava, dependia muito. Agora está melhorando um pouco, mas, você precisava de autorização de importação, né, precisava abrir importação, o Brasil tinha pouca reserva, então você, para arrumar uma guia de importação era uma coisa muito complicada, tinha que ter tradição, e ele foi criando tradição, tal, que uns certos anos depois ele virou um grande importador. O negócio cresceu mais e aí ele foi, partiu para, eu estava lá, nessa época ainda, depois ele começou a construir imóveis, apartamentos, era o início de uma fase de condomínio. No próprio Bom Retiro construiu uns dois, três prédios, depois na Avenida Angélica. Aí eu me envolvi também nesse tipo de atividade, quer dizer, eu me desenvolvi, cresci dentro da estrutura dele que foi crescendo, né, os filhos dele não trabalhavam, ele tinha três filhos, dois homens e uma mulher, mas eles, como ele queria que os filhos se tornassem doutores, né, os filhos acabaram ficando estudando, e eu trabalhava com ele. Eu fui crescendo junto com a atividade que ele desenvolvia, e eu acabei virando um importante na estrutura dele, até, mesmo jovem, era uma coisa que, como eu fui aprendendo os truques, né, que ele ensinava porque ele era meu professor. Então eu acabei sendo um aluno exemplar dele, nunca consegui ultrapassar o mestre, mas, (riso) mas acabei aprendendo muito daquilo que ele pôde me transmitir, e eu trabalhei muitos anos com ele, até que os filhos se formaram etc.
P - Mesmo depois do exército, o senhor continuou?
R - Continuei, até 24 anos, 25, por aí.
P - Que outros negócios, o senhor falou da importação de geladeiras, cristais...
R - Imóveis.
P - Imóveis?
R - Imóveis, e continuou com o negócio de fios, né? Ele era um grande atacadista de fios de, para malharia, ele era o, era uma pessoa...
P - Como era o nome do negócio dele?
R - O negócio tinha o nome dele, era Kupfer, Kupfer e Companhia, uma coisa assim, mas ele tinha até uma atividade grande para época, era importante. Ele tinha uma visão bastante boa dessa atividade, mas aí os filhos começaram a... cresceram, né, um era mais novo que eu, um era um pouco mais velho, mas eles, um estudou arquitetura, outro está estudando direito e a terceira era uma moça, tal. Mas aí os filhos se formaram, aí ele quis que os filhos entrassem na coisa, então, meu espaço ficou, vamos dizer, um pouco ocupado, né? Eu não tinha mais espaço, eu precisava, eu tinha muito, eu precisava crescer mais, eu não podia parar, né, eu tinha que me desenvolver, e eu estava precisando, estava começando a namorar, e eu estava pensando: "Bom, como é que eu faço, vou ficar aqui, tal, eu não tenho espaço, amanhã vou casar e, como é que faz?" Aí eu abri espaço, né, eu saí, deixei os filhos ocuparem o espaço e fui procurar outros caminhos. Foi aí que, aí eu casei, na hora que eu saí de lá eu fui...
P- Em que ano que o senhor casou?
R - Eu casei em 68, então eu saí de lá em 66, 65, 66. Aí fui trabalhar nessa sociedade, uma corretora de valores, aí eu casei, casei com a Cecília, Cecília Zaclis, família do Bom Retiro, também de imigrantes, né. O avô do lado da mãe era o, um lugar que talvez até meu pai tivesse trabalhado, não lembro bem, mas o avô dela era o Henrique Golonbek, eu era um fabricante já de roupas, de uma imigração antes, né, deve ter vindo em 1920, 1918. Então ele já tinha, na Rua Ribeiro de Lima, bem na cara da Rua da Graça, ele já tinha um prédio, talvez ele fosse a pessoa que construiu o primeiro prédio no Bom Retiro de dois andares, era o predinho lá na Rua Ribeiro de Lima, o Henrique Golonbek. E no lado do pai da minha mulher era a família Zaclis, não é, que eram, eram fabricantes de calçados, de botas, só que eles já tinha saído do Bom Retiro, eles tinham ido procurar fazer as botas defronte ao quartel do exército, que era na Rua Conselheiro Crispiniano. Porque a clientela toda era muito grande, era o pessoal que andava a cavalo no exército, então tinha muitos militares que faziam botas e o pessoal que montava a cavalo na Hípica etc. Então eles se estabeleceram na Rua Conselheiro Crispiniano. Mas aí eu casei e acabei me envolvendo em outras coisas, não é, e também nessa hora já estava fora do Bom Retiro, aí eu me desliguei do Bom Retiro sem nunca, eu sempre me lembro das minhas origens...
P - Só uma pergunta.
R - ...nunca deixei de lembrar que eu sou um filho do Bom Retiro.
P - O senhor nunca pensou em trabalhar com o seu pai?
R - Não, porque o meu pai ele trabalhava fora não é? Ele com o negócio dele ele era um, vamos dizer, um operário de costura, ele trabalhava fora, depois é que ele comprou duas, três máquinas e aí ele, ele costurava numa máquina, minha mãe numa outra ajudava, e tinha mais uma funcionária. Então eu não tinha o espaço para fazer qualquer coisa lá. O que eu fazia era aquilo que eu aprendi a fazer lá com o meu tio, né, eu era o, vamos dizer, o escriba dele. Eu controlava o talonário de nota fiscal quando ele precisava vender, ele vendia para as loja maiores etc., e eu me lembro, um grande cliente dele até, que virou um grande amigo meu depois, era o Bernardo Goldfarb, da loja Marisa, né. É, mas eu me lembro do Bernardo em 1959, cinqüenta e pouco, ele vindo comprar e tal, eu era molecão, o Bernardo era mais velho que eu uns 15 anos, e eu era o que fazia as notas. Quando vinha para fora de São Paulo, naquela época tinha, o meu pai fazia casacos, né, era uma época que fazia frio em São Paulo e no Brasil, coisa que não existe mais, mas vendia muito para fora de São Paulo e tinha uma clientela muito grande em Curitiba, em Ponta Grossa e tinha o pessoal em Santa Catarina, (Piaçaba?), Chapecó. Então tinha que fazer transportadora, tinha caixas, e precisava escrever nas caixas para transportar, então eu fazia tudo isso depois do meu trabalho, né? Então na parte assim: eu ia almoçar em casa, que eu almoçava todo o, tinha que almoçar em casa, ia lá, almoçava, na hora do almoço já fazia nota, tal, quando não dava, eu vinha à noite, jantava, tinha que fazer esse trabalho. Então, mas era uma atividade muito, vamos dizer, pequena, né, não dava o espaço para, e depois eu fiquei envolvido desde os dez anos lá com esse tio meu, acabei talvez me interessando mais naquilo que eu estava fazendo lá, eu via mais potencial de atividade lá, né, está crescendo, e está se desenvolvendo, importação, imóveis, e outras coisas fazia. Na época, eu me lembro que nós construímos alguns armazéns grandes para locação, quer dizer, tinha uma perspectiva diferente do que eu poderia ter, trabalhar com o meu pai. Meu pai tinha um negócio muito pequeno, muito limitado dentro das ambições dele, ele era pouco ambicioso, ele era uma pessoa que tinha uns conceitos de vida diferente, não estava muito interessado em ser o maior rico do mundo. Queria viver a vida dele, então eu não tinha espaço lá, a minha ambição era um pouco maior que essa, e sou um pouco ambicioso, fui ambicioso uma época.
P - O que é que o senhor imaginava na época, para o futuro?
R - Não sei! Eu imaginava que eu precisava crescer! Eu tinha, eu tinha vontade de, porque eu via os outros, né, aquela coisa de jovem: "Pô, o cara tem isso, tem aquilo." E o sujeito tinha carro, né, naquela época era muito complicado, mas eu me lembro que eu trabalhava com esse meu tio, eu juntava, eu não gastava nada, né? Você imagina, eu comia em casa, a comida era de graça, roupa também era de graça, eles me davam roupa de graça em casa, então, e roupa era mínimo, a gente não tinha todo o luxo, que era pobre, e eu juntava aquele dinheirinho que eu ganhava lá com esse tio meu e fui juntando. Então eu abri uma caderneta de poupança que não era poupança, mas caderneta de conta corrente lá que, nessa Cooperativa de Crédito Popular do Bom Retiro, eu fui juntando dinheiro. Eu me lembro que em 1969, esse negócio de que é que eu achava, né, eu achava: "Bom, eu trabalho e tal, mas não tenho nada, tal." Eu via o pessoal andando de carro, em mil novecentos e... em 1959, minto, não é 1969, é 1959, 1960, 59 para 60, eu já estava no CPOR, eu me lembro que quando eu ia para o CPOR, eu morava na Rua Três Rios e eu ia a pé até a
Avenida Tiradentes, e eu ficava parado ali na Avenida Tiradentes e o pessoal que fazia CPOR, tal, já era um pessoal mais abonado, eles vinham do Jardins, Pacaembu etc. É um pessoal mais, mais rico, não é?, e eles iam de carro, e a gente, e eu pedia carona lá, era uma coisa até simpática, estava fardado, tal, então...
P - Aonde era o quartel?
R - O quartel era na Rua Alfredo Pujol, em Santana, onde é até hoje, mas depois eu conto uma historinha dessas. Que eu, depois de 30 anos eu voltei lá, nunca tinha voltado, mas depois eu volto nessa história. Mas aí eu fui, e eu, todo mundo tinha um carrinho, todo mundo, o pessoal mais rico, né, e naquela época não tinha indústria automobilística brasileira, eram, os carros eram importados, tinha os Mércuris, os Chevrolets, essa coisa toda. Aí na época ia começar a Volkswagen em 1959 montar, trazer os primeiros carros, e montava aqui. Aí eu juntei um dinheiro, tal, eu tinha essa caderneta de poupança, eu falei: "Agora eu vou comprar um carro, não tem jeito." Aí meu pai falou: "Você está louco, não admito, como é que você vai comprar um carro, é o único dinheiro que você tem, como é que você pode pensar nisso?" Aí eu falei: "Não quero saber." Aí eu fui, na Avenida Duque de Caxias tinha uma revendedora de automóveis, chamava Sabrico, eu fui lá, eu me inscrevi para comprar um carro, que era os primeiros carros que ia sair, nacional no duro, fabricação brasileira, não era montado, era feito aqui. Aí quanto era, eu me lembro direitinho, 496 mil cruzeiros, né, eu não sei quanto era em dólar, na época, nunca pensei que eu precisava fazer conta em dólar naquela época. (riso)
P - Que carro era?
R - Era um Volkswagen.
P - Ah, um Volkswagen.
R - Volkswagen 1960, era os primeiros Volksvagen que eu vi. Bom, eu entrei na fila tal, passou um tempão, não saía o carro, eu falei: "Pô, esses caras estão me enrolando." Eu, atrevido, fui lá, sentei na ante-sala do gerente lá, eu falei: "Eu quero falar com o gerente, eu estou na fila, o meu número é tal, eu quero meu carro." E eu me lembro o nome do cara que me atendeu, chamava Ângelo Testa, porque era um nome diferente, Ângelo Testa, eu me lembro. Eu cheguei lá, sentei, falei: "Olha meu amigo, eu estou aqui há sei lá, cinco meses na fila, não sei quanto, eu quero meu carro, pô, está aqui o dinheiro, tal, é dinheiro vivo!" O cara falou: "É, mas não tem, não sei o que, e tal." Eu falei: "Olha, eu vou reclamar na Volkswagen heim." "Ah, o senhor pode ir." "Eu falei: "Então, muito bem." Peguei um ônibus e fui na Via Anchieta. (risos) Peguei um ônibus, fui na Via Anchieta, cheguei no portão da Volkswagen, eu falei: "Eu quero falar com o diretor de vendas." Aí, me levaram lá, eu me lembro, eu passei naquelas ruas largas, né, aquela fabricona, né, não é o monstrão que é hoje, mas já era um negócio, imagina, eu vi aquilo eu falei: "Para onde que vão me levar?" E me levaram, me levaram no subdiretor, não me levaram no diretor mesmo, era um subdiretor, cheguei lá e falei: "Olha, meu amigo, eu estou há cinco meses esperando o carro, acho um absurdo, não sei o que, tal." Eu tinha 20 anos, né, 20 anos, aí ele olhou, anotou, tal, passou três dias me chamaram lá na Sabrico. (risos) Cheguei lá falaram: "Olha, o seu carro vai sair semana que vem, o senhor pode pagar." Aí eu paguei 496 mil cruzeiros, comprei um Volkswagen, recebi, era um, aquele amarelinho meio esverdeado, aí eu (riso), aí eu ia para o quartel, eu estava no segundo ano do CPOR, aí eu comecei a ir no quartel de Volkswagen. Aí eu dava carona para os outros (risos), e aí, quando saía sábado à noite, tinha que ir para o quartel domingo, sábado à noite a gente saía, aquela época de juventude tal, ia dormir muito tarde, tinha dia que ia direto, né, punha a farda no carro e "ó"! (risos)
P - E nessa época, como é que foi tirar a carta, como é que era naquela época?
R - Era uma coisa igual hoje, né, só que acho que era um pouco mais exigentedo que hoje. Hoje a coisa está meio avacalhada (riso), mas era coisa de entrar na auto-escola, ficar um tempinho na auto-escola, funcionar direitinho, saber guiar e aprender as regras mínimas etc. Depois ia fazer exame lá, tinha um cara bravo, era famoso, eu não me lembro quem era, diz que: "Ah, se cair na mão desse cara você está reprovado." Era um, todo mundo tinha medo dele, né, a gente ia, mas aí fui lá, não fui reprovado, fui aprovado e sempre guiei, nunca tive problema maior.
P - E seu pai se acostumou com o carro depois?
R - Depois ele começou a aceitar, né, já comprei mesmo, o dinheiro era meu. (risos). E foi um abuso mesmo, porque comprar um carro sem ter nada, né, eu não tinha, mas logo depois eu continuei ganhando um dinheirinho tal, esse tio meu construía, então tinha os negócios dos prédios, né. Então vendia um apartamento ganhava uma comissãozinha, e fui juntando dinheiro mais, aí eu comprei um apartamento, eu me lembro, em Santos, a primeira coisa que eu comprei. Aí comprei o apartamento em Santos, aí eu ia para Santos com o carrinho, ele ia junto, tal.
P - Isso foi em que ano seu Abram?
R - Foi mil novecentos sessenta e... três, uma coisa assim, aí ficamos numa boa, tranqüilo e tal, depois esse apartamento de Santos eu acabei vendendo para minha irmã, quer dizer, quase passei para ela. E aí eu comprei um apartamento no Guarujá. Logo que eu casei, eu comprei um apartamento no Guarujá que era naquela época, saí de Santos fui para o Guarujá, era um negócio, eu estava já ficando importante, atrevido, né (riso). Aí fui para lá em 1968, quando eu já estava fora lá do negócio do meu tio, já tinha uma corretora de valores, quer dizer, já estava mais estabilizado.
P - Depois que o senhor saiu da loja do seu tio, do negócio do seu tio, o senhor foi direto para a corretora?
R - Fui para corretora de valores. Eu tinha uma certa atração pelo mercado de ações, eu consegui nessa época ganhar um pouco de dinheiro, bastante bom aliás, no mercado de ações e saí antes de 1971, quando foi uma grande queda da bolsa, não sei porque. Acho que Deus me ajudou e eu vendi tudo o que eu tinha em ações. Mas fiz uma coisa errada, vendi tudo, peguei o dinheiro e fui comprar uma fábrica. Foi quando eu entrei num ramo que eu nunca devia ter entrado, porque eu não sou industrial. Eu nasci no comércio, eu nasci atrás de um balcão, com conhecimento zero do que é fabricado, aí eu fui virar industrial, e quando eu virei industrial com aquele dinheiro que eu tinha saído da bolsa, não me dei bem, mas no fim, não foi nada que não pudesse ser superado, mas, eu sempre tive uma atração no mercado de ações. Eu acreditava sempre em ações e foi...
P- Quem operava já naquela época?
R - Não, eu tinha, você diz quem operava, ou quem, os compradores?
P - Isso.
R - Operava todo o mundo que tinha confiança em participar de outras ações. Era uma coisa muito incipiente, né. Era uma atividade ainda engatinhando no Brasil, quer dizer, naquela época eu me lembro, quando começaram a falar em fazer indústria automobilística, eles começaram a vender ações da Willys, era uma coisa assim meio folclórica, né, ninguém: "Vou comprar ações" etc. Mas já tinha, naquela, em 1968, 69, 70, você tinha a Petrobrás, você tinha a Vale do Rio Doce, você tinha algumas ações que já eram bastante importantes, né, e teve um boom, de 69 a 70. As ações valorizaram muito, porque as ações no Brasil eram muito baixas em 1968, aliás, anos difíceis, né, logo depois da revolução, 66, 67, 68, 68 começou a dar uma melhorada, uma desafogada, então 68, 69, 70. O mercado de ações foi um mercado que cresceu muito de, uma ação custava nada, nada, era papel velho, e de repente esse papel velho começou a valer, né, quem tinha um pouco desse papel velho começou a ter mais dinheiro, e eu fui comprando, devagarzinho, tal, e realmente e consegui amealhar aí, acho que foi a fase que eu mais tive sucesso a nível de, na época, de mudar, vamos dizer, de patamar, né? Quando eu saí do negócio lá do, que eu era empregado, tinha minhas reservinhas, meu dinheirinho, comparando ações, eu vou dizer, então aí eu dei um pulo.
P - E quem levou o senhor para essa coisa de investir? Porque o senhor disse que teve o tio do senhor, que ele ensinou muita coisa para o senhor.
R - É, eu tinha, quando esse meu tio começou a construir, ele tinha um sócio dele lá, que era um consultor, era um engenheiro, e nesse escritório de engenharia, tinha um outro engenheiro que era um cara muito aguçado nesse negócio de ações, negócio de investimento, era um cara, um cara que já estudava essa coisa de outras épocas, não sei daonde também. E o cara era meio craque no negócio, e ele foi me passando essa coisa, né, eu ia quase todo o dia lá naquele escritório, porque tinha construção, tal, tinha que olhar, como é que é, compra isso, compara aquilo, vende, não compra. E então, no meio da história vinha sempre conversa de investimentos, e ações etc. E foi me criando essa coisa, eu tinha um pouco de dinheiro guardado, eu falei: "Pô, eu acho que eu vou comprar um pouco disso." Aí comecei a aprender: "Como é que compra?" "Ah, você precisa comprar, precisa ter um corretor." Aí me apresentou corretor. Aí eu comecei a aprender como é que funcionava, e devagar foi me introduzindo dentro desse espírito de bolsa.
P - E o senhor tinha sócios, no começo?
R - Não, nessa época eu só estava entrando no mercado, depois que eu comprei essas ações, tal, aí esse mesmo engenheiro falou: "Pô, vamos entrar de sócio numa corretora, tal." Aí, acabamos nos envolvendo, ele ficou com !2,5%, eu com 12,5, mais outro com 12,5, mais um não sei que. Cada um tinha 12,5% aí fizemos uma, compramos uma corretora, que chamava Corretora Brasileira de São Paulo S.A. (fim da fita 037/02-A), Cobrasa, que era o assento 78 lá na, aí eu fiquei alguns anos nisso, até final quase de 71, quando eu saí fora, vendi minhas coisas, minha posição, vendi minha parte na corretora e fui para outro negócio que foi a parte da indústria, né.
P - Era indústria do que?
R - Era indústria têxtil, era uma malharia de confecção, não é, de fazer malha e era confecção mesmo de vestidos, de coisas de mulheres, e tinha tinturaria, tinha todo um conjunto muito grande, na época tinha mais de 600 funcionários.
P - Qual era o nome?
R - Era Eneiri S.A. Indústria Têxtil. Era uma fábrica importante, o prédio tinha 6.500 metros quadrados, era uma coisa bastante grande para a época, mas a época também foi uma época dura, porque a gente precisava de capital. O capital andava meio difícil, era época que precisava exportar. Nós não tínhamos condição de exportar porque o mercado interno estava deprimido, e precisava exportar, mas exportar coisa têxtil, manufaturado, não era fácil. O mercado internacional é muito concorrido, e as coisas começaram a ficar muito difíceis, né. E o ramo de confecção é uma coisa muito complicada, porque joga com tamanho, com cores, com números, com não sei o que, botão aqui, botão ali, o conjunto. Hoje seria mais fácil porque o computador talvez pudesse até fazer isso, mas naquela época para combinar todas essas coisas era uma coisa extremamente complicada, e a falta de experiência fez com que eu também saísse fora disso e voltei. Continuei no negócio, voltei para a bolsa, e negócio de bolsa, atividade que a gente, que eu conhecia um pouco e fui tendo sucesso, né, devagar fui crescendo nisso, fui juntando mais dinheiro etc., até chegar em 1977, quando eu constituí um outro negócio meu, novo, que não tinha no Brasil, que foi uma empresa de refeição-convênio que a gente conhece como Vale-Refeição.
P - E como é que o senhor entrou em contato com essa nova atividade, vamos dizer, comercial?
R - Bom, aconteceu por acaso, porque tinha uma pessoa, que é francesa, que veio para o Brasil e queria introduzir essa coisa nova. Então conheci essa pessoa, através de alguns amigos e ele se interessava em fazer o negócio, queria ser sócio. Tudo bem, vamos trabalhar junto, não tem problema. Mas era uma coisa que ninguém conhecia, era uma novidade, era uma coisa que tinha na Europa, na França principalmente, onde você vende um papel, vale, e a pessoa vende para a empresa, a empresa dá para o funcionário, o funcionário vai no restaurante comer. Uma coisa que aqui no Brasil ninguém sabia o que era, então era uma coisa que para começar era complicada, e nós começamos juntos, né, esse francês, eu, numa saleta na Avenida Paulista. Para explicar para o restaurante que ele ia receber um papelzinho, que ele deveria receber, depois de tantos dias ele ia receber o pagamento, ele tinha que confiar, né, e explicar na empresa que a empresa podia comprar um papelzinho, dar para o trabalhador e que esse trabalhador ia num restaurante que iam aceitar o papel para dar comida para ele, foi uma coisa desafiadora, não é? Porque começar do zero, é um negócio começar do zero e uma atividade que não existia, também zero, quer dizer, talvez seja o espírito de coisa nova, não é?, de querer empreender uma novidade, de fazer uma coisa nova, então, mas acabei tendo sucesso, né. A atividade era novidade, tinha só um concorrente que era uma multinacional francesa que veio com dez meses antes, então nós começamos a caminhar junto, o francês que já tinha experiência internacional, que era dele a invenção, e nós, e ele abriu um pouco de caminho, essa que é a verdade, porque, como ele era, ele tinha conhecimento de tudo, ele ia na frente e a gente ia atrás, não é, para pegar os restaurantes e tal. O cara já tinha passado já sabia, então ficava mais fácil de falar para o restaurante, ou ia num cliente também, ele já tinha passado, também ficava mais fácil, mas depois a idéia começou a ser muito difundida, né. Houve uma legislação toda que envolveu isso, uma participação do governo para incentivar isso, para dar para o trabalhador etc., e a atividade se desenvolveu muito.
P - E como é que houve esse envolvimento do governo com relação a essa legislação? Foi feito um trabalho da parte de vocês para que o governo se envolvesse com isso?
R - É, houve informações, nós levamos, o Ministério do Trabalho começou a se interessar, queria saber o que é que era isso, e aí eles começaram a obter informações da gente etc. Mas para o negócio se ampliar de uma maneira bastante importante precisaria ter algum incentivo para dar para o trabalhador uma alimentação, aí criaram uma legislação para dar para o trabalhador, para dar para a empresa o direito dela poder lançar duas vezes o custo da comida, né. Então, vamos dizer, dá para o trabalhador um vale-refeição de cinco reais, pode lançar cinco reais duas vezes, até um limite de 5% do imposto de renda a pagar etc., tem uma legislação toda. Mas o governo se interessou nisso, fez uma lei própria e essa lei própria foi aprovada no Congresso Nacional, e com isso houve um incremento maior, então começou a crescer a atividade, as empresas começaram a receber essa informação, podiam dar para o trabalhador comida, podiam lançar isso em dobro no imposto de renda, desde que tivesse imposto de renda a pagar, e a coisa foi crescendo, crescendo, e foi se ampliando. A empresa hoje tem 18 anos, vai fazer 18 anos, não é? Nós começamos de uma refeição, mas hoje estamos aí vendendo por dia um milhão e seiscentas, um milhão e setecentas mil refeições por dia, não é?
P - E quantos estabelecimentos credenciados?
R - Nós temos hoje por volta de 245 mil estabelecimentos credenciados em todos os estados do Brasil, e lugarejos, cidades pequenas, lugares do Pará, no interior do Pará, ou no interior do Amazonas, onde tem que ir de barco para buscar o retorno do vale, para reembolsar o restaurante, é toda uma engenharia de locomoção, de atendimento. É uma coisa bastante grande porque o Brasil é muito grande, né. Quando eu falei da Europa, que a empresa é européia, e tal, opera na França; operar na França, operar na Inglaterra, ali, é tudo muito pertinho, não é? Aqui no Brasil quando se opera a nível do Brasil é uma coisa muito grande, né, então a empresa nossa, realmente ela cresceu muito, se desenvolveu para chegar nesse número, um milhão e seiscentas, um milhão e setecentas mil refeições por dia. Mas é uma coisa que representa hoje a nível do trabalhador um ganho muito importante, porque afinal ele se alimenta, apesar que pode ter coisa desvirtuada etc., e para o próprio estabelecimento não é, porque sem esse sistema hoje, que envolve aí uns sete, oito milhões de refeições por dia, e muito concentrado na hora do almoço, esses estabelecimentos iam ter muito problema de sobrevivência. Então, é uma atividade que nós começamos, praticamente, desenvolveu muito, e em cima dessa atividade central, do vale-refeição, da empresa Vale-Refeição Ltda. Aconteceu de a gente ir se desenvolvendo em outras ramificações, em outros ramos de atividade dentro daquilo que é, talvez, o que impulsiona a humanidade, né, a ambição do homem, né. A ambição minha de querer crescer, de querer se desenvolver, de querer fazer com que os filhos, né, além de se formarem doutores, voltando às origens, que eu estava falando no início, de não serem só doutores, porque o mundo hoje é um mundo muito perto, muito próximo com o sistema de informações de hoje. Não adianta ser só doutor e não ter uma participação em coisas, em outras atividades, e eu tive a sorte que os meus dois filhos se interessaram. Então efetivamente a gente está desenvolvendo as atividades, tem, vamos dizer, uma continuidade, né, de administração, tem uma participação bastante importante, um conjunto de pessoas que ajudam etc., e a gente, além desse sistema de refeição convênio, de vale-refeição, foi crescendo para outros ramos, né.
P - O senhor poderia falar um pouquinho dos outros?
R - Nós entramos em outras atividades, né, afinal quem nasceu no Bom Retiro não pode ficar parado, esperando vender só alguma coisinha, né, foi crescendo. É como eu sempre digo: eu não posso reclamar da vida porque afinal eu saí da Rua José Paulino, eu cheguei no espigão da Avenida Paulista, né. Então eu preciso fazer com que isso seja uma coisa que vá evoluindo, e essa evolução foi partindo do Vale-Refeição. A gente entrou no ramo do, fizemos um grupo, nós hoje somos um grupo, Grupo VR, que atua nesse ramo de refeição-convênio, nós atuamos na atividade de alimentação, no sistema de vale-alimentação. Nós atuamos no sistema de vale-transporte, nós atuamos no turismo, nós temos um banco múltiplo, nós temos participações em outras grandes empresas brasileiras, nós participamos de grandes conglomerados financeiros. Nós temos uma participação muito importante no ramo comercial. Temos uma participação muito importante numa grande cadeia de lojas brasileiras, não é?, e temos também, no ramo de imobiliário, nós temos uma empresa e realmente nós temos uma distribuidora de valores. Estamos entrando na área de seguros, seguro-saúde, quer dizer, nós diversificamos bastante os nossos, as nossas empresas e geramos muito emprego também, né. A verdade é que nós, hoje, temos aí 1.100, 1.200 funcionários diretos né, fora tudo o que gira em torno disso, e temos hoje, dentro do contexto de atuação do nosso grupo, é um grupo que, a nível de faturamento, a nível de participação em atividade, é uma coisa muito importante.
P - Fora essas atividades que o senhor tem da própria VR, que ela se diversificou, que ela ampliou, o senhor tem um outro tipo de atividade?
R - Bom, claro, eu desde jovem eu procurei, eu procurei fazer alguma coisa sempre pensando, talvez seja herança mesmo do meu pai. Aquela história que eu estava falando do meu pai, meu pai é um homem muito preocupado, sempre foi preocupado com essa parte social, coisa de esquerda, né, ele era esquerda mesmo. Então, ele não ia em sinagoga, ele não acreditava, eu acho que ele acreditava em Deus, mas não ia em sinagoga (risos), não freqüentava sinagoga.
P - Ele chegou a ter atuação política mais concreta?
R - Não. Ele ia ouvir palestra, conferência, tal, mas ele não era um envolvido. Porque no Bom Retiro, naquela época, tinha o grupo mesmo que eles fundaram até a Casa do Povo, aliás, no Bom Retiro, na Rua Três Rios, existe até hoje, onde é o Teatro Taib, e era um grupo de judeus todos de esquerda, e eram judeus ricos, né. O presidente do grupo todo era o maior fabricante de malas na época, eram malas da Casa (Casoy?) ele era o avô da minha mulher, que era o Henrique (Golombeck?) era também um dos mais importantes, e tinha o outro, que eu me lembro, era o pai, falecido há pouco tempo, do pessoal Diâmetro Imóveis, o (Cohn?). Então tinha uma turma toda de esquerda, mas o meu pai não era um, não era muito, ele não era uma pessoa de querer aparecer, ele era mais de bastidor, né, de ouvir, de querer falar, então é, talvez até por uma herança desse comportamento dele, eu sempre tive uma participação assim para ajudar os outros, não é?, e colaborar de uma maneira mais aberta. Então, desde a escola, né, grêmio estudantil, a gente participava dos grêmios todos, desde o grupo escolar até sair da escola, depois na vida comunitária. Cheguei a ser até, diria de 61 até 68, eu trabalhei na Hebraica, uma associação muito importante, um clube importante, eu cheguei até secretário, depois eu fiquei envolvido no sindicalismo, né, o sindicalismo comercial, por causa das minhas origens, de comércio, essa coisa, acabei indo parar na Federação do Comércio em 1968, e aí comecei uma vidinha de diretor adjunto lá, do Centro do Comércio. Eu ia lá de vez em quando, tal, aí logo no primeiro ano, no segundo ano eu comecei a ir todo o dia, então eu estou há 26 anos na Federação do Comércio e poucas vezes eu me lembro que eu não tenha ido lá. Quer dizer, eu freqüento a Federação do Comércio há 26 anos, praticamente diariamente, desde essa época de diretor adjunto do Centro do Comércio, até chegar no posto de presidente. Eu fui diretor adjunto, depois virei tesoureiro da Federação do Comércio, fui conselheiro do Senac, Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial, que é formação de mão-de-obra para o comércio, depois eu tenho, eu fui conselheiro do Sesc, Serviço Social do Comércio, que é a entidade do comércio para o lazer do trabalhador, a parte que ele se diverte, né, de trabalhar, né, mas tem que se divertir também, receber informação cultural etc. E depois, em 1984 acabei virando presidente, né. Então eu fiquei envolvido desde 1968 nessa atividade toda, nesse complexo que é a Federação do Comércio, que é um conjunto de coisas muito grande, né. A Federação do Comércio, quando eu assumi, por exemplo, tinha 80 sindicatos, não é, de, atacadista, varejista, comércio armazenador, turismo e especialidades e agentes autônomos, são cinco categorias do comércio. A Federação do Comércio é uma coisa única, em São Paulo, é uma entidade só que agrupa todo o comércio, e hoje na Federação nós temos 137 sindicatos. Então você tem um trabalho imenso, né, nessa atividade toda, com toda essa complexidade que é a vida brasileira, depois tem toda a complexidade dessas outras entidades que a gente administra, o Centro do Comércio, o Senac na formação profissional. Nós formamos 250 mil, 280 mil alunos por ano, qualificando melhor essas pessoas, nós atendemos no Sesc, durante o ano, milhões de pessoas que nos procuram, né, que estão aí as coisas, colônias de férias, os teatros, os cinemas, que todo o mundo conhece em São Paulo, então é um trabalho de ampliação da rede, envolve um esforço muito grande. Depois, nos últimos anos eu fui eleito também presidente do Sebrae, que é o Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa no Estado de São Paulo, que é uma entidade voltada para apoiar o desenvolvimento da microempresa, que é uma coisa muito complicada no Brasil, nessas legislações complexas, nessa burocracia que é o sistema brasileiro de poder, é, trabalhar, né. Quem trabalha no Brasil é muito difícil para ele poder se desenvolver, então ele precisa de ajuda, então criaram o Sebrae exatamente para desenvolver esse pequeno, para ele não morrer no primeiro ano, porque 80% das microempresas no Brasil, 80% morre no primeiro ano. Então, na verdade, todo esse trabalho ocupa demais, não é? Mas isso não quer dizer, essa é uma ocupação que é muito importante porque trás esse espírito do meu pai de querer ajudar, né, o Sesc, o Senac, e a participação não direta que a gente tem numa série de entidades e instituições, que a gente ajuda mas não na executiva, no dia-a-dia, a gente ajuda de outra maneira.
P - Senhor Abram, qual que é a importância desse cargo de presidente da Federação do Comércio na vida do país e qual que é o perfil que a pessoa tem que ter para ocupar esse cargo?
R - Olha, eu acho que é, é muito importante poder ter essa oportunidade que eu tive, de poder ser presidente, e sou presidente há dez anos. Meus companheiros, tenho tido o prazer e a confiança deles, deles me reelegerem, não sei, devem estar até analisando que está sendo feito um trabalho bom, senão, não estaria lá esses anos todos, mas eu acho que é um trabalho duro, um trabalho árduo, exige uma, quase um sacerdócio, vou dizer, porque é um envolvimento 24 horas por dia. A pessoa tem que se dedicar mesmo, tem um envolvimento emocional muito grande, tem um envolvimento de negócios, que você acaba deixando de lado os teus para poder atender compromissos e obrigações do envolvimento nessas entidades todas. Eu acho que para ser presidente dessas entidades, primeiro a pessoa precisa ser despojada de, sei lá, eu não vou dizer de vaidade porque todo o mundo tem vaidade, né. Eu acho que eu tenho minha vaidade, né, mas não pode ter, tem que ter um limite de vaidade, né, porque senão a coisa começa a ficar complicada. Segundo, eu acho que a pessoa tem que ter essa função como, vamos dizer, uma obrigação, gostosa de ser feita, porque se levar para o sentido de ser uma obrigação, obrigação mesmo é muito complicado, porque é um trabalho grande, desgastante, e só pode ser feito como eu faço, e os outros que passaram lá devem ter feito, no sentido de saber que está fazendo alguma coisa em, ajudando o outro, né. Está fazendo alguma coisa para melhorar o comércio, está fazendo alguma coisa para melhorar a formação profissional do trabalhador, está fazendo alguma coisa para melhorar o trabalhador na parte esportiva, na parte cultural, na parte social dele, e está fazendo alguma coisa no Sebrae para melhorar o problema do microempresário. E eu acho que em terceiro lugar, para ter essa função, a pessoa precisa ser, vamos dizer, muito forte no sentido de poder falar aquilo que realmente tem que ser dito, não pode sofrer coerção psicológica, não é? Medo de enfrentar determinadas autoridades, porque este é um país que ainda as autoridades acham que podem, por meio da violência verbal ou da violência de querer te pressionar, de poder te assustar, de você não ter independência de poder falar o que deve ser falado, dentro de coerência, dentro de princípios, dentro de coisas sérias, de poder ter independência econômica, dependência, independência financeira, né, moral, de ser duro quando precisa ser duro, e não ter medo de enfrentar essa situação. Porque senão não será uma coisa boa, não é?, para instituição, e não vai ser uma coisa boa para a sua própria liderança, porque a liderança exige um comportamento ético, um comportamento duro, um comportamento que seja aquilo que esteja dentro dos padrões da confiança que você tem por parte dos teus colegas, né.
P - Seu Abram, tem uma pergunta ainda que a gente gostaria de estar fazendo. Qual é seu maior sonho hoje, porque o senhor mesmo disse que o senhor saiu do Bom Retiro e conseguiu chegar no espigão da Paulista. Aonde o senhor quer chegar mais?
R - Eu não tenho. Olha, eu acho que eu não tenho, eu não tenho, eu nunca forcei para chegar onde eu cheguei, eu acho que Deus me ajudou, Deus me ajudou e eu ajudei Deus, acho que Deus sozinho não ajuda, não é? (risos) É verdade, eu sempre digo também que, Deus, aquela, né, do "Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga", ou é o contrário? (risos) Mas é, mas eu acho que tem que, tem que ter um dedo de Deus, né, de estar te ajudando, de estar te cuidando, de você poder crescer, você, você é um privilegiado. No meio de tanta coisa que a gente vê no mundo, a gente acaba achando que é um privilégio tudo o que aconteceu para a gente, né, que eu saí do Bom Retiro, menino pobre, de família pobre. Meus pais morreram pobres, minha mãe e meu pai, meu pai deixou um apartamentinho, que dei agora em doação para minha irmã que deu para uma filha, uma coisinha pequena.
P - Em que ano que seu pai faleceu?
R - Meu pai faleceu há exatos nove anos, em 1985.
P - Como ele acompanhou a sua trajetória profissional?
R - Meu pai era muito reservado nessas coisas, né. Mas ele gostava, ele não falava para mim mas eu sei pelos amigos dele que me contavam como ele se sentia, o orgulho, saía no jornal, então ele levava o jornal para os amigos lerem, tal, porque eu tive um diretor que me viu nascer, praticamente, que era aqui do Bom Retiro, que era uma pessoa muito interessante também, que era o Isaac Naspitz, que tinha uma loja aqui na Rua da Graça, esquina da Correia de Melo, esquina da, lá naquela esquininha toda, chamava Esquina dos Presentes. E o Isaac era um daqueles homens que fundaram a tal Casa do Povo, ele era uma pessoa, que ele veio para o Brasil, ele era até passador, tal, ele era uma pessoa bem modesta, mas ele se aperfeiçoou, se formou culturalmente, é, ainda, há 20 anos atrás ele até criou uma editora, acho que era Editora Perspectiva. Quer dizer, ele teve uma participação cultural muito importante, ele cresceu, ele era amigo do meu pai desde quando vieram, apesar de ser um pouco mais novo que o meu pai, e ele, ele era do Sindicato dos Lojistas, né, e ele acabou, quando eu virei presidente da Federação eu falei: "Pô, o cara do Bom Retiro, me conhece de criança, eu queria que o senhor viesse aqui para a Federação também." Eu acho que até foi também uma homenagem que eu prestava para uma pessoa que tinha sido, me viu nascer, praticamente, aí ele veio para a Federação e depois, além de diretor na Federação, ele foi eleito conselheiro no Sesc, né. Então ele era o meu contato assim, com o meu pai, né, ele contava as histórias do meu pai: "Não, eu encontrei o teu pai hoje, ele falou, que disse, tal" Mas meu pai nunca me falava, ele era muito reservado, né, ele era muito severo nas coisas, ele, talvez ele achasse que eu estava fazendo nada mais que a obrigação, né? Que eu tinha que fazer isso mesmo que eu estava fazendo, e tinha que cumprir os meus objetivos. Mas os meus objetivos, é como eu digo, eu acho que eu os cumpria dentro de uma rotina, uma coisa muito, na minha vida, eu tenho uma vida muito regular, né, mesmo porque eu tenho uma família bem constituída, então ajuda muito. Eu acho que você ter as origens, uma família boa e ter na seqüência encontrado a mulher certa. Eu sou casado há 26 anos e meio com a mesma mulher e ela com o mesmo homem (riso). Então você forma a família boa, você tem filhos que estudam e trabalham, não dão problemas etc. Então você tem uma certa tranqüilidade de poder ir fazendo coisas, né, você não tem uma complicação familiar que te ocupa, que te cria problemas etc., então, quer dizer, tudo isso, vai empurrando, mesmo que você não queira, você vai, no primeiro degrau você, te empurram para o segundo, do segundo vai para o terceiro. Claro, tem a vaidade envolvida, tem tudo, mas você, então é que eu digo, por isso que tem o dedo de Deus junto, né, uma família, antes, uma família boa depois, você trabalha tranqüilo, você vai se envolvendo nas coisas com tranqüilidade e vai criando toda uma situação que vai acontecendo. Meu limite, qual é o meu limite? Eu não tenho limite, não é meu limite, é o limite daonde as coisas devem acontecer, as coisas vão acontecendo, chega num ponto na vida, que as coisas vão acontecendo. Quer dizer, mas eu sou sempre um explorador, eu sempre, eu, nas entidades, onde eu ando, eu quero sempre criar alguma coisa nova, introduzir um conceito novo, reformular, esse negócio de que essa história de reengenharia que está muito na moda, eu já fazia isso antes. Antes de falar em reengenharia a gente sempre está fazendo coisa nova. Ou no Sesc, a gente cria todo o dia novidade, eu tenho um grupo de colaboradores muito grande, que ajudam muito, né, eu acho que, além da vontade da gente ter família bem constituída etc., você também tem todo um contexto onde você funciona e opera, depois de uma certa, um certo patamar que você tem na vida empresarial. Você tem que ter gente que te ajuda, não é? Então é importante você ter gente de confiança que te ajuda, que tem idéias também, porque ninguém, eu acho que todo o mundo tem um certo limite, né. Um limite da sabedoria, de conhecer, então aí você começa a explorar o outro, né, que sabe mais que você, então eu acho que eu tenho uma coisa que é muito importante, eu acho que eu sei onde é o meu limite de saber as coisas e onde eu começo a usar o outro para me ajudar. Então é, esse é o, então eu acho que eu não tenho limite, porque eu acho que não tem limite do conhecimento do outro, enquanto eu achar alguém que pode me ajudar, eu vou andando, quer dizer, e onde até eu tiver saúde, né, eu vou caminhando, pô! Eu acho que a minha obrigação é criar coisas novas até, exatamente do ponto de vista social, né? Eu estou criando alguma coisa que vai ajudar a fazer alguma coisa no campo social, porque a partir da hora que eu crio um emprego, eu estou dando um emprego para uma pessoa que está precisando trabalhar, essa pessoa está produzindo, ela vai produzir alguma coisa que vai ser vendida por uma outra, que é um bem, um serviço, o que for, vai gerar um outro emprego, quer dizer, eu estou fazendo alguma coisa que vai ajudar a constituir um país diferente, né. Uma coisa que vai mudando esse perfil social que está aí embutido que, como eu estava contando das origens, né, que eu brincava na rua, coisa que a gente não pode fazer hoje por causa desse problema social todo que está aí, claro, tem bandido, tem não sei o que, claro, tem muito, e tem muito problema social que precisa ser resolvido com investimento. Quer dizer, eu sou uma pessoa que eu invisto naquilo que eu acredito, né, que é o trabalho. Eu estou investindo, eu não deixo todo o dia de criar alguma coisa, de fazer um investimento, de acreditar no desenvolvimento, e com isso eu estou criando uma situação para um futuro melhor, né. Então eu quero que o pessoal que não pode jogar bola na rua, não é?, não pode empinar papagaio, não é? Que possa ter essa oportunidade, de um dia, de não ter medo de sair na rua à noite, eu saía na rua à noite, eu ia à pé para cidade, não tinha problema. Coisa que hoje, você não pode sair na porta da tua casa, então eu, enquanto puder ter a colaboração dos outros para cada vez ir aperfeiçoando tudo. A minha atividade empresarial, e as atividades não empresariais, onde a gente depende muito de idéias novas, eu acho que eu estou criando uma coisa diferente que é para melhorar a situação social do Brasil, e é isso que eu quero fazer, então, não tem limite, o limite é o céu.
P - Senhor Abram, antes que a gente esqueça, o senhor ia contar a história do quartel.
R - Não, eu estava querendo lembrar aquela história do quartel porque, e quando a gente vai no quartel, é uma vida meio severa, dura, né, tal, depois você sai, você fica lembrando, tal, mas não quer nem passar perto, né. (riso) Eu nunca mais passei perto do quartel.
P - O que é que o senhor fez na época que o senhor serviu exército?
R - Eu servi o CPOR, Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, e eu era do serviço de intendência, porque tinha artilharia, tinha cavalaria, tinha infantaria, tinha serviço de engenharia e serviço de intendência. Eu, como estava na área de comércio, tal, eu falei: "Não, vou fazer intendência porque eu não quero saber negócio de cavalo, não sei o que." (riso) E foi uma besteira, porque no primeiro dia de aula no quartel, chegou um coronel bravo lá, e falou: "Eu sou o coronel fulano de tal..." Picanço era o nome dele "...e eu, amanhã então vocês podem vir preparados porque a partir de amanhã, todo o dia nós vamos ter aula de equitação." (riso) Eu falei: "Mas eu vim aqui para, eu não vim para andar a cavalo, eu vim aqui para fazer serviço, tal." Passaram três dias, o homem sumiu três dias, no terceiro dia ele apareceu, eu falei: "Ih, agora ele vai me pagar para andar a cavalo." (riso) Aí ele falou: "Então, eu queria comunicar os senhores que eu fui transferido e a partir de amanhã vai assumir aqui o curso o Major não sei o que, tal." Eu falei: "Graças a Deus!" Deus, você viu como Deus me ajuda? (riso) Nunca andei a cavalo na minha vida, aí eu fiquei dois anos lá, eu saí (fim da fita 037/ 01-B) e nunca mais voltei. Passaram trinta anos, aí eu estava, eu tenho, eu tinha um general aqui muito amigo meu, General Lee, que hoje está comandando, é comandante da Primeira Divisão do Exército no Rio de Janeiro, na Vila Militar, mas aí ele ainda estava no comando do Estado-Maior aqui do exército, aqui em São Paulo. E aí ele me liga um dia e disse: "O que é que você está fazendo?" Eu estava lá no escritório, na Avenida Paulista, lá na Vale-Refeição, e aí eu disse, foi em meados de 89, 90, uma coisa assim: "Eu estou aqui, estou vendo minhas coisas, tal." "Olha, eu vou passar com o meu carro, aí com chofer, você desce na garagem, que eu vou entrar na garagem, e depois a gente sai." Eu falei: "Está bom." Aí eu desci na garagem, ele chegou, aí eu: "Onde nós vamos?" "Não, manda teu chofer vir atrás." Eu peguei e fui, eu falei: "Vou atrás." Aí fui atrás, fomos, começamos, fomos para Santana, na Rua Alfredo Pujol, aonde? Parou na bica do quartel, no CPOR, nunca mais, 30 anos depois, voltei lá, olhei, é tudo igual, não tinha mudado nada, estava a mesma coisa. Mesmo porque o exército não tem dinheiro nem para reformar o prédio. Cheguei lá, todo o exército, todo formado os alunos, 500 alunos, todos oficiais, professores, tudo formado, e o meu chofer atrás, né, eu e meu, o chofer, só, ninguém ficou sabendo, me fizeram uma homenagem de aluno, né. Puxaram lá meu curriculum, leram o curriculum. Todos os alunos formados cantaram o Hino Nacional, depois cantaram o hino do CPOR, e os tanques todos, não sei o que e tal. Então tive que fazer discurso para os jovens, e não sei o que, e tal. (riso) Então a homenagem que acabaram me fazendo, uma coisa que é, depois quando cheguei em casa eu falei: "Pô, sabe que eu fui parar no quartel do CPOR." Falei para minha mulher e para os meus filhos, e falaram: "Mas como é que você não avisou?" Eu falei: "Nem eu sabia, só meu chofer que foi junto." (riso) Então foi um negócio interessante porque, depois de 30 anos, acabei voltando no quartel, e ser homenageado, né, pelo comandante, pelo general, pelos alunos todos, né, tinham 500 alunos e mais os 60, 80 oficiais, e foi uma coisa. Depois fizeram um almoço, foi uma coisa bonita também porque afinal você sai de um lugar que você passou lá como estudante, né, e voltar depois, o pessoal lá, eu me senti, quando eu estava falando, eu me senti como se eu estivesse lá, no lugar daqueles jovens, era a mesma coisa. Aí depois fui visitar a sala de aula onde eu tinha aula, subi as escadas, estava tudo igualzinho, não mudou nada. "Então está bom, até logo, então." Quero voltar daqui a 30 anos.
P - Senhor Abram, eu queria, para finalizar uma última pergunta, que seria, como é que o senhor viu dar esse depoimento da sua história de vida para o Museu da Pessoa?
R - Olha, eu acho, eu acho bom as pessoas poderem deixar armazenadas algumas coisas que aconteceram na vida da pessoa. Eu acho que transmitir essas informações, e transmitir para os outros, principalmente para os mais jovens coisas que aconteceram, que todo o mundo acha que foi tudo muito fácil, né, não foi fácil nada, as coisas foram duras. Aconteceram com trabalho, com esforço, com perseverança, e as pessoas precisam saber que a gente trabalhando consegue as coisas, mesmo sendo pobre, num, não perde a oportunidade, né. Os pobres têm a mesma oportunidade, talvez mais do que os ricos, né? A história mostra, aí, que os pais ricos, filhos nobres, e netos pobres, não é? Então é bom a gente poder transmitir essas informações de como começamos, de como a coisa foi acontecendo, de como as coisas evoluem, para que as pessoas analisem e vejam, né, que o esforço, o trabalho é que constrói, e poder transmitir para os outros um pouco de história, um pouco de informação, né. Eu acho que o mundo tem que preservar histórias e preservar, é, conhecimentos, eu acho que a gente, quando começa contar história, quando começa a falar do Bom Retiro, tal, a gente está deixando um pouco de história, né. Apesar de não ser muito tempo, né, o que é que é 40 anos ou 50 anos de história de um país. Para uma coisa é muito pouco, né, mas é que vai armazenando coisas, uma hora vai valer para alguma coisa. Não sei se tudo o que a gente contou aqui tem muito valor, eu não sei se, se no futuro quando alguém verificar e analisar essa história podem até dar risada, vão achar que foi alguma coisa assim meio surrealista, o cara que: "Saiu do Bom Retiro, trabalhou muito, começou a trabalhar com dez anos, o cara era meio pancada, trabalhar com dez anos, cara louco, tal". É, mas era assim mesmo, então essas pessoas podem até achar gozado, mas outros vão achar que tem alguma coisa. E a gente poder, poder transmitir alguma coisa para deixar guardado, armazenado para o futuro é muito bom, eu acho que não pode se perder. Eu, agora mesmo eu, a Vale-Refeição está patrocinando pela Lei Mendonça, que é a Lei do Incentivo do Município de São Paulo, está patrocinando um livro, para deixar escrito, né, os judeus de São Paulo, que é uma história pequena ainda porque tem pouco, né, não é uma coisa que tem uma história tão grande, afinal a grande imigração começou um pouquinho antes da Segunda Guerra, então é coisa de 50 anos, 60 anos, né. Então tem uma história, mas eu acho que a preservação da identidade, preservação da cultura é uma coisa muito importante para ser transmitida e para ser guardada, então, até nesse aspecto a gente tem procurado fazer isso, e para mim foi muito bom, muito importante eu poder estar aqui, porque para mim é muito bom poder falar dessa experiência que eu tive não é? Deixar marcado que as coisas aconteceram, as coisas foram feitas, as coisas estão sendo feitas e as coisas ainda vão acontecer porque todos nós estamos envolvidos em alguma coisa para frente e o mundo só caminha por causa disso, né. Essa combustão do mundo, né, essa vontade de fazer alguma coisa, e a vontade de perseverança, essa vontade de deixar para, para o futuro, marcada alguma coisa, então, fica aí marcado isso.
P - A gente queria agradecer a sua presença e muito obrigado.
R - Muito obrigado, eu que agradeço.
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