Conte Sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Val dos Santos Chagas.
Entrevistada por Bruna Oliveira.
São Paulo, 20 de outubro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1421
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:25) P/1 - Val, para começar, eu queria que você ...Continuar leitura
Conte Sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Val dos Santos Chagas.
Entrevistada por Bruna Oliveira.
São Paulo, 20 de outubro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1421
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:25) P/1 - Val, para começar, eu queria que você dissesse seu nome completo, a data e o local de seu nascimento.
R - Tá. Eu me chamo Val dos Santos Chagas, nasci no dia dezenove de abril de 1992, na cidade de Guarulhos, no estado de São Paulo.
(0:41) P/1 - E você quer contar o nome dos seus pais?
R - Posso contar o nome dos meus pais, mas também quero falar uma coisa sobre o meu nome. Posso falar?
(0:46) P/1 - Pode.
R - Val é o nome que eu escolhi. Eu sou uma pessoa trans não-binária, então esse não é o nome que os meus pais me deram quando eu nasci, foi o nome que eu escolhi depois, já mais velha. Eu gosto de falar sobre isso, acho que é importante.
Minha mãe se chama Fabiana, nasceu aqui no estado de São Paulo, mas a família dela é do Paraná. E meu pai se chama Valfrido - minha avó [era] criativíssima em dar nomes -, tem o apelido de Frank. A família dele é de Minas Gerais, ele também nasceu lá, não nasceu aqui em São Paulo.
(01:36) P/1 - Como você descreveria eles?
R - Uau, é difícil a pergunta. Você fala fisicamente, você fala de modo geral?.
(1:45) P/1 - Da forma que você quiser.
R - Tá bom. Meus pais, a gente tem uma relação que é um pouco complicada. A gente se dá bem, enfim, se dá superbem, mas eles se separaram há uns anos atrás. Durante a infância, foi bem difícil a relação com meu pai, principalmente,
então… Quando você fala pra descrever os seus pais, me falta, sabe, às vezes um pouquinho de pensar como eu descreveria quem são os meus pais de verdade.
Minha mãe é uma pessoa maravilhosa, uma pessoa incrível. Muito jovem, ela ficou grávida de mim; ela tinha dezesseis para dezessete anos, então foi uma adolescente que cuidou de uma criança, acho que passou por esses desafios. Eu costumo falar que a gente por muito tempo foi como se fôssemos colegas que dividem a mesma casa, porque chegou um momento da vida que a gente tinha praticamente a mesma idade, seria tranquilamente uma colega mais velha. A gente tem uma relação muito nesse lugar da amizade.
Já com o meu pai, eu sinto que é um pouco mais distante a nossa relação. Acho que a gente não conseguiu, de fato, construir um vínculo muito bacana, como acho que eu gostaria, mas ele também é uma pessoa incrível, uma pessoa maravilhosa.
(03:15) P/1 - Eu queria, se você quiser contar, saber o que eles faziam.
R - Bom, minha mãe, como ficou grávida muito jovem, não entrou para o mercado de trabalho novinha. Ela trabalhava com uns freelas, então foi babá, trabalhou em oficina de costura, vendia alguma coisa, enfim. E o meu pai, desde que eu nasci,
tinha mais ou menos um ano, mais ou menos, ele trabalha como metalúrgico e é uma profissão que ele exerce até hoje. Ele trabalha numa metalúrgica, na mesma empresa, todos esses anos. Eu tenho 31 anos, então tem pelo menos 27 [anos] que ele está trabalhando no mesmo local.
Minha mãe ficou mais cuidando de mim na minha infância. Ea foi entrar mesmo no mercado de trabalho depois que ela se separou do meu pai,
já mais velha. Hoje ela é confeiteira, ela trabalha numa padaria; sempre foi uma coisa que ela gostou de fazer. Eu lembro que quando a gente era mais jovem, ela sempre cozinhava em casa e adorava cozinhar. Fazia os nossos bolos de aniversário, bolos maravilhosos, com decoração. Ela sempre curtiu isso, hoje ela trabalha numa padaria, como confeiteira.
(4:43) P/1 - E você tem irmãos?
R - Tenho duas irmãs, Letícia e Gabrielle. Letícia é a irmã mais nova, Gabrielle é do meio, e eu sou a pessoa mais velha das três irmãs.
A mais velha, a Gabrielle, não está morando mais aqui em São Paulo. Ela mora no Paraná. Foi fazer faculdade lá, ela faz Pedagogia, foi embora esse ano. E a mais nova, a Letícia, mora com a minha mãe em Guarulhos.
(5:20) P/1 - E como era a relação de vocês na infância?
R - Sempre foi muito boa a minha relação com as minhas irmãs. A gente sempre se deu muito bem, sempre se ajudou muito, sempre foi muito… Da escuta, uma em relação à outra, de se ajudar. A gente sempre foi uma rede de apoio.
Acho muito interessante, é uma coisa que se estendeu, inclusive, até os dias de hoje. De cinco em cinco anos a gente nasceu, então eu tenho 31, a Gabrielly vai ter 25, 26, e a Letícia tem 21 anos, mais ou menos. e a gente tem uma relação super boa, se apoia muito, se incentiva muito nos sonhos, nas conquistas, divide conquistas. A gente se dá superbem.
(06:16) P/1 - Você chegou a conhecer os seus avós?
R - Eu tenho minhas duas avós, tanto de pai quanto de mãe, mas os avôs não, eu não conheci. Tenho minha avó paterna, que se chama Odila, e tenho minha avó materna, que se chama Ivone.
Minhas avós foram muito independentes, elas foram mãe solo, por isso que eu não conheço quem são os meus avôs. Elas que criaram os filhos delas, de maneira muito independente.
(06:57) P/1 - E tem alguma história da infância com elas, você via elas com frequência?
R - Tem, sim. Minha avó paterna, a gente morava no mesmo quintal. Eu nasci e
meus pais alugaram uma casa; acabou que não deu certo e a gente foi morar no mesmo quintal que a minha avó paterna. A gente construiu lá uma casinha bem simples, um barraco de madeira, e era no mesmo quintal, então eu cresci muito próxima à minha avó paterna nesse sentido. A gente morou nesse terreno, acho que até os meus 23 anos, mais ou menos, 24 anos, então ela sempre foi muito presente na minha vida.
A minha avó materna… A gente não morava no mesmo lugar, mas ela passava longas temporadas na minha casa. Ela não tem casa própria, então ela morava de favor com a irmã dela, e às vezes, para dar um tempo, ela ia passar uma temporada na minha casa. Era uma superdiversão para mim na época. “A minha avó vai vir para cá, vai ficar aqui, que legal! Vai ter outro ritmo de rotina do dia, horário de comer diferente, horário de acordar diferente.” Tinha as manias dela, que entravam na nossa rotina, então também era um acontecimento quando ela vinha pra cá.
(08:25) P/1 - Tem algum cheiro ou alguma comida que lembre a sua infância?
R - Nossa, um cheiro, uma comida que lembra a infância em casa… A gente comia muito frango com batata. Eu cresci comendo muito frango com batata, acho que essa é uma comida que remete pra mim a sabor de infância; um frango cozido, ensopado com batata.
Um cheiro? Acho que é cheiro de terra porque a gente morava numa casa que o quintal era de terra, então quando chovia ou quando estava muito calor subia a poeira. Era um cheiro de terra que era muito marcante. Eu também brincava muito na terra, então acho que esse é um cheiro para mim que lembra muito a infância.
(9:12) P/1 - Contaram para você como foi o dia do seu nascimento?
R - Contaram várias histórias sobre o meu dia de nascimento. Uma coisa que é muito curiosa é que eu nasci num domingo de Páscoa. Eu nasci no dia dezenove de abril, em 92; foi o ano que a Páscoa caiu no dia do meu... Era Páscoa quando eu nasci.
A minha mãe conta que estava em casa, comendo chocolate, toda aquela coisa, quando então ela percebe que chegou a hora de eu nascer. Na verdade, foi tarde, porque ela já tinha completado os nove meses, só que eu ainda não tinha nascido. Eu fui uma criança ali bem preguiçosa, já na hora de nascer. Dei uma boa atrasada.
(10:05) P/1 - Você quer contar por que você se chama Val, como você escolheu?
R - Val vai ser uma abreviação do nome que os meus pais me deram. Foi um nome que, na verdade, outras pessoas já me chamavam, como uma espécie de apelido, da adolescência para o começo da vida adulta. Fui me identificando muito, reconheci o nome. Quando então eu transicionei para ser uma pessoa não-binária, eu vi que fazia muito mais sentido, combinava muito comigo, com a performance que eu exercia. Como as pessoas já me reconheciam por esse nome, então resolvi ficar com ele, resolvi adotar ele para mim.
(10:47) P/1 - Val, me conta como era a casa quando você morava, quando você era pequena.
R - Eu consigo dividir a casa em dois momentos. Acho que tem o primeiro momento da minha casa, que é esse momento em que a gente morava nesse barraco de madeira. Eu morei até os sete, oito anos, mais ou menos ,nesse lugar. Era supersimples, era um cômodo, basicamente; era um cômodo grande, que tinha a cozinha, o quarto e o banheiro.
As memórias que eu tenho são sensoriais do espaço, elas não são tão visuais. Eu tenho a sensação de que era escuro, de que era úmido, de que tinha rato, porque tinha rato que entrava em casa. Eu tenho mais sensações de como era essa casa.
Depois meu pai conseguiu construir nossa casa de alvenaria, que foi onde eu morei dos oito anos até os vinte e poucos, quando eles se separaram. Ele demorou muito tempo para construir essa casa.
A gente se muda para morar nesse quintal junto com a minha avó, ele constrói um barraco de madeira, a gente fica morando lá por sete anos e durante esse período, durante esses sete anos, ele vai construindo no mesmo quintal, ao lado, essa casa de alvenaria; ele ergue tudo com as próprias mãos. Ele consegue construir dois cômodos, uma cozinha e um quarto - aquela bagunça, um quarto para todo mundo dormir dentro, uma cozinha só; não tinha muito espaço, não tinha esse espaço de sociabilidade dentro de casa, o que é muito curioso porque moldou muito minha...
Parte das minhas características como uma pessoa adulta.
Por exemplo, hoje, para mim, espaço é uma coisa imprescindível. Eu preciso muito ter um espaço e aí fico associando e lembrando que é muito pelo fato de, na infância, não ter esse espaço. Era isso, você acorda, aí você está lá, no mesmo cômodo que todo mundo, no mesmo lugar onde todo mundo dorme. Você dá dois passos, está na cozinha e acabou, era isso a casa.
Tem muito mais recordações, porque foi a casa onde eu morei mais tempo.
Quando eu estou perto dos meus vinte anos, meu pai consegue mais um fôlego pra aumentar um pouco a casa, aí ele consegue transformar ela em um sobrado, só que logo depois meus pais se separam.
(13:52) P/1 - Eu queria que você contasse em qual bairro era e como era o bairro.
R -
Ah, é legal. Quando eu nasci, meus pais eram de um bairro chamado Vila Flórida, lá em Guarulhos. Meu pai, especificamente, morava numa favela próxima ao Ginásio Thomeuzão. Minha mãe morava numa casa de alvenaria, de favor, junto com a mãe dela, na casa da tia dela.
Com mais ou menos um ano, ano e meio, a gente foi para casa da minha avó paterna, para morar no mesmo quintal. Esse bairro se chamava Mikail II. Eu costumo falar que ali é como se fossem as costas da Cantareira, mais ou menos, em Guarulhos. É um bairro supersimples, que demorou muito tempo para chegar a infraestrutura, superperiferia mesmo. A gente não tinha asfalto, não tinha energia, não tinha água, tudo no veneno mesmo, até ele ir se desenvolvendo. Transporte público também não chegava, isso acho que até os meus dez anos de idade, talvez; tudo era bastante precario onde a gente morava. Depois tudo foi desenvolvendo um pouquinho mais e foi melhorando.
Tem uma coisa que é muito curiosa. Eu lembro da minha avó contar que quando ela foi comprar o terreno pra gente se mudar pra lá, ela tinha comprado um lote na rua de cima, na verdade, da casa de onde eu moro. Por causa de uma confusão que aconteceu, outra pessoa acabou mudando pra lá e já estava construindo a casa, e aí teve que trocar de terrenos. A gente acabou morando na rua de baixo, o que depois eu fiquei pensando que foi ótimo, porque a rua de cima era uma superladeira. Eu falei: “Gente, me livrei de subir uma ladeira, pelo menos.”
(15:27) P/1 - Do que você gostava de brincar quando você era pequena?
R - Vamos ver… Eu gostava muito de andar de bicicleta lá no bairro. Meu tio me deu uma bicicleta quando eu tinha uns dez, onze anos, mais ou menos. A gente brincava muito na rua, na verdade, o brincar na rua era muito forte.
Na minha infância tinha um quintal, um quintal grandão, que já ia para a rua. Como não tinha asfalto, nem nada, então passava pouco carro, era bem tranquilo. Era muito quente dentro de casa, então a gente tinha muito esse hábito de ficar na rua também pra poder se refrescar.
Era mais brincadeira de rua com os vizinhos mesmo, então bola, pega pega, esconde-esconde. Era mais dessas coisas que a gente brincava.
(16:21) P/1 - E você preferia brincar acompanhada, né com os vizinhos ou sozinha como era?
R - Eu acho que era uma criança um pouco chata, sabe? Eu tinha uma cisma de gostar de brincadeiras que eram mais introspectivas, embora adorasse meus colegas do bairro, meus amiguinhos. Adorava brincar com eles, mas eu preferia brincadeiras que eu podia me concentrar e mergulhar no mundo imaginário que era meu. Era sempre um lugar de já tentar desenhar um futuro, então eu lembro que eu já gostava de brincar de ter uma profissão, de trabalhar, de ter uma faculdade. Eu já brincava dessas coisas, nunca foi muito de brincar de casinha, essas brincadeiras mais tradicionais de criança; gostava mais dessa pegada de profissão.
A gente tinha uma brincadeira que era de escritório. A gente tinha uma máquina de escrever velha que a gente ficava brincando. Brincava muito com as minhas primas também.
Agora me vem inclusive essa memória: tinha esse momento de brincar com os colegas do bairro, mas tinha esse momento que eu gostava muito, que era de brincar com a minha prima, que tinha a mesma idade que eu. A gente se dava muito bem nesse sentido, [tinha] as mesmas ideias. A gente estava nesse lugar mais... Da criança que estava na mesma fase, pensando as mesmas coisas, entrando na escola junto e por aí vai.
(17:57) P/1 - Nessa época que você brincava de profissões, você sonhava em ter alguma profissão específica ou isso não passava pela sua cabeça?
R - Eu queria ser bióloga, esse era o meu sonho de criança. Eu queria crescer e me tornar uma bióloga muito famosa, que viajasse o mundo descobrindo os animais exóticos. Eu pensava e viajava [em] tudo isso. Vai ver se eu tenho coragem de enfrentar uma barata hoje? Não tenho, mas eu queria ser bióloga.
Morro de medo de vários bichos, mas eu tinha essa pira com natureza. Acho que tem muito a ver com essa coisa de querer ser livre, de querer se expandir pelo mundo - a coisa que eu te falei do espaço, mesmo, preciso mais do que isso. Então
para mim essa ideia de ser bióloga acho que surgiu muito assistindo esses programas que tinha os biólogos que viajavam, acho que isso me fascinava bastante e aí eu botei na minha cabeça que queria ser bióloga.
(18:55) P/1 - Nessa época você assistia TV? Você assistia a algum tipo de programa específico? Que músicas vocês ouviam em casa?
R - Em casa a gente tinha televisão. Eu gostava muito de assistir filmes de sessão da tarde. Eu gostava de coisa de adulto, não era muito de desenho, não. Eu gostava de assistir filme, novela, essas coisas.
A gente tinha também rádio e eu era fascinada numa fita cassete que eu tinha da Eliana. Sabia de cor, de trás para frente, se possível, as músicas da Eliana, porque era o que eu mais gostava.
Televisão era uma coisa também… Enfim, acabamos vendo essa memória e ainda vontade de compartilhar, mas TV era uma coisa que pegava bastante em casa, porque, como eu falei, éramos uma família grande com uma única TV, num único ambiente da casa, então imagina a briga. Meu pai que queria assistir futebol, minha mãe que queria assistir novela, aí tem a criança pequena, minha irmã que queria assistir desenho.
Sempre foi um espaço muito de disputa, a televisão em casa. Foi uma coisa que eu fui até pegando um desgosto; não cresci viciada em querer assistir TV, sempre foi bem ok, porque era muita disputa. Tinha muitas opções pra se assistir, mas eu gostava mais de assistir os programas adultos.
(20:26) P/1 - E me conta, se você quiser, qual foi a sua primeira lembrança da escola.
R - Eu fiz o que na época chamava de prezinho. É um ano antes do primeiro ano da escola, que é onde você entra mais para poder aprender a se socializar com as outras crianças. Não tem necessariamente ali esse papel de ensinar já a ler, escrever.
Era uma escola da prefeitura, uma escola maravilhosa, fofíssima. Eu lembro que essa escola tinha um palco de apresentações que... Ele deveria ser pequeno, mas como eu era muito pequena, é como se ele fosse gigantesco. Era uma das partes da escola que eu mais gostava, tipo “vou ficar no palco”. Sentava lá no palco para esperar a hora de entrar para a sala de aula.
Fui para a escola muito pequenininha, um ano antes do primeiro ano. Eu deveria ter uns seis aninhos, mais ou menos. Adorava a escola, acho que era o momento que eu tinha de respiro, de sair um pouco de dentro de casa, de estar também acompanhada de outras pessoas,
então era uma coisa que eu adorava. É o que me fez depois também descobrir um fascínio por leitura. Por mais que o prezinho não fosse esse lugar de alfabetizar, quando eu cheguei no primeiro ano aprendi a ler muito rápido, fui a primeira da turma a aprender a ler. Eu
tenho essa memória de já saber ler muito rápido na escola.
(22:10) P/1 - Tinha alguma matéria ou algum professor que marcou a sua vida nessa época?
R - Não precisa ser de maneira positiva, né?
Tem
uma história que é bem curiosa, que aconteceu quando eu estava na segunda série do ensino fundamental. Tinha uma professora que era uma pessoa muito violenta; violenta em que sentido? Ela gritava muito dentro da sala de aula. Aquilo me incomodava demais, me assustava muito. Fui reclamar para minha mãe, falei assim: “Nossa, a professora grita muito. Não gosto, eu me assusto, não quero.” Não que ela estivesse gritando comigo; o jeito que ela fazia dentro da sala de aula me deixava muito atravessada, muito mal.
Minha mãe mandou um bilhete para conversar com a professora, para contar como eu estava me sentindo. A professora ficou indignada, aí ela começou a me usar de deboche, fazendo barulho na sala. Ela ficava: “Pessoal, não faz barulho porque a filhinha da Fabiana não gosta de barulho na sala de aula”, como se ela não fizesse barulho num lugar muito absurdo, sabe?
Isso me deixou muito mal. Cheguei em casa e falei pra minha mãe: “Eu não vou mais estudar.” Decidi que eu não ia mais estudar e parei a escola no segundo ano do ensino fundamental. Aí vai conselho tutelar, direção, tudo atrás da minha mãe pra ver o que estava acontecendo. Minha mãe explica, a professora nega que fazia essas coisas dentro de sala de aula.
Deu uma superconfusão na época. Eu lembro até que a diretora me convenceu a ir pra escola pra ficar dentro da sala da diretora, brincando com a filha dela. A diretora levou a filha dela pra escola.
Hoje, quando eu sou adulta, fico pensando que sensibilidade é interessante. Lembro da diretora ter levado a filha para a escola e que fui brincar com a filha dela. Aceitei e fiquei lá o dia inteiro, brincando. No outro dia: “Vamos, você fica na sala de não sei quem, você ajuda a outra sala, que tem alunos que ainda não sabem ler.” Eles foram usando algumas estratégias para eu não pegar esse trauma do que era o espaço da escola, até que chegou o dia que essa professora veio me pedir desculpa por ter gritado, enfim, reconheceu o que tinha acontecido. Foi quando eu falei: “Ok, eu volto a estudar.”
Eu lembro que isso me marcou muito. Hoje, que eu trabalho com educação, faço milhares de reflexões em cima do que foi esse episódio. Poderia muito bem ter sido uma criança que nunca estudou, poderia ter ali barrado, bloqueado e não ter estudado mais, porque a professora estava sendo violenta dentro da sala de aula. Isso é uma memória que eu trago dessa primeira infância com a escola, que é uma lembrança ruim, mas que de certo modo também me ajuda a refletir sobre minha prática como educadora.
(25:31) P/1 - E como que você ia para a escola?
R- Ai, essa história é muito boa. Ir pra escola era muito bom. Somos três filhas que ela teve de cinco em cinco anos. Quando eu estava entrando na escola, estava nascendo a minha irmã do meio. Para a minha mãe era muito ruim ter que me levar na escola carregando um bebê; como era uma escola da prefeitura, tinha um programa que levava os estudantes que moravam mais longe de ônibus para casa. Os ônibus velhos, caindo aos pedaços, janela quebrada, banco solto… Um absurdo, mas eu me divertia horrores, era o momento.
Eu ia e voltava da escola nesse ônibus escolar, aí você encontra também que tinha uma certa brincadeira por trás, que era ver nos filmes americanos as crianças indo para a escola de ônibus. Para mim, eu estava fazendo igual, era a mesma coisa, estava indo para a escola de ônibus.
Tinha esse ônibus da prefeitura que levava a gente, mas quando não acontecia de... Ou porque o ônibus quebrava, ou porque acontecia alguma coisa, eram os vizinhos que se mobilizavam e a cada dia um [deles nos] levava, porque eram várias crianças ali, com mais ou menos a mesma idade. Rolava esse revezamento. Mas a história do ônibus é muito marcante para mim.
(27:05) P/1 - Você lembra de algum dia especial do ônibus?
R - Lembro. Lembro de um dia que o ônibus quebrou, acho que umas três vezes até chegar em casa. A gente estava na fila da escola, aí o ônibus quebrou e não saía de jeito nenhum, atrasou pra caramba. Depois a gente entrou no ônibus e a gente foi por um tempo, aí o ônibus quebrou de novo. A gente teve que ficar lá, dentro do ônibus, esperando chegar outro ônibus pra pegar. A gente foi de novo, aí quebrou de novo, quebrou três vezes o ônibus. E eu, criança, me divertia um absurdo.
Eu estudava num horário que a gente chamava de intermediário, que era das onze da manhã até as três da tarde. Fui chegar em casa, sei lá, às cinco da tarde, isso porque eu morava a quinze minutos da escola, só por causa dessa coisa do ônibus ficar quebrando. Era o dia em que eu mais me divertia! (risos) Coitada da minha mãe em casa, desesperada; não dava pra saber o que tinha acontecido, porque não chegava. Era o ônibus, que estava quebrando pra lá e pra cá, e eu me divertindo.
(28:20) P/1 - Não tinha celular, né?
R - Não tinha, não tinha celular, não tinha como avisar nem nada. Era mais os pais, sabendo que os ônibus eram velhos,
deduzindo: “Bom, deve estar quebrado em algum lugar. Daqui a pouco chega.”
(28:27) P/1 - Mudou alguma coisa quando você chegou na adolescência, na sua vida?
R - Muitas, muitas mudanças. Pensando na vida escolar, eu mudo de escola. Começo a trabalhar na adolescência também, então fui estudar de noite, muda completamente a lógica. Já não vou mais de ônibus para a escola, infelizmente; tenho que ir a pé, que é cansativo. Muda bastante coisa.
(28:57) P/1 - Na escola você tinha alguma...ou algum amigo especial que você gostava bastante?
R - Na escola acho que eu sempre fui uma criança mais tímida, mais reservada, na minha. O que acontecia era de temporadas em temporadas eu me apegar mais a um coleguinha, uma coleguinha, de ter mais amizade, mas sempre fui uma criança mais introspectiva. Acho que isso muda bastante na adolescência.
Acho que essa é uma boa chave. Posso já engatar?
(29:35) P/1 - Pode.
R - Na adolescência, acho que o… Agora, pensando melhor, uma das coisas que mais muda é a maneira com que eu passo a interagir com as pessoas. Acho que eu fui uma criança muito introspectiva, muito quieta, muito na minha, e quando eu vou
entrando na adolescência isso muda bastante, acho que pela necessidade do mercado de trabalho, de trabalhar. Eu comecei a trabalhar [quando] tinha quinze, dezesseis anos, mais ou menos, então acabei desenvolvendo mais isso.
Na escola, então, tenho outro tipo de maneira de me comunicar com os colegas, tenho mais amigos do que eu tinha na infância. Isso é uma coisa que muda bastante.
(30:28) P/1 - O que você fazia para se divertir nessa época?
R - Lan house, na adolescência. Lan house era o que a gente mais amava. Minha mãe que não escute, mãe que não assista essa entrevista! Brincadeira…
A gente, às vezes, matava aula pra ir pra lan house pra ficar no Orkut, MSN. Adorava fazer isso.
O primeiro ano do ensino médio foi muito difícil. Tinha acabado de mudar de escola, era uma escola que eu não estava me adaptando de jeito nenhum. Eu tinha muitas amizades, conversava muito com os meninos da escola, mas com as meninas eu tinha muita dificuldade de criar qualquer tipo de relação. Tinha uma certa perseguição da parte delas, porque eu era a única menina da sala. Aconteceu de me colocarem em uma sala que era para ter só meninos e aí chego lá, no primeiro dia de aula, [e tem] só eu de menina. Surgiu todo um burburinho na escola, até a direção refazer a sala e trazer umas meninas de outros turnos. Até isso acontecer, acabou que eu era a única menina da sala.
Enfim, adolescente, [era] outro período da vida, a cabeça ainda [estava] muito fechada, então acho que rolou um certo ciúme daqui e dali. Acabei não me dando muito bem com as meninas da escola, me dava mais com os meninos, o que depois muda, quando eu vou para o segundo e para o terceiro ano, mas no primeiro ano aconteceu isso, logo de cara.
(32:02) P/1 - Como foi essa mudança para o noturno e conciliar a rotina de estudos com a rotina de trabalho?
R - Desde que eu saí da oitava série, que fui para o ensino médio, eu queria trabalhar. Minha mãe tinha um pouco de resistência em relação a isso. ela sabia que para a gente era importante por questões financeiras. Pra mim era importante por uma questão de independência mesmo, mas ela ainda tinha muito receio, ela achava que eu era muito nova. Fiquei insistindo que eu queria trabalhar, aí ela falou assim… Acho que ela falou que eu só ia trabalhar se na escola tivesse noturno, se tivesse vaga, alguma coisa assim.
Fui lá na escola, fiz que me colocassem no noturno. Pedi, implorei, falei que eu ia trabalhar, inventei uma história. Acabou que me colocaram para estudar de noite.
Minha mãe odiou quando soube que isso ia acontecer, mas não tinha mais o que fazer, eu estava no noturno. Uma amiga que trabalhava com o pai numa loja de produtos de limpeza falou assim: “Meu pai precisa de mais uma pessoa para trabalhar lá comigo e com ele. Você não quer ir?” Foi onde eu comecei a trabalhar, com ela fora.
Minha mãe não suportava a ideia, mas teve que ir aceitando. Era mais interessante mesmo para a gente, na época, principalmente por questões financeiras.
(33:38) P/1 - E o que você fez com seu primeiro salário, você lembra?
R - Lembro. Eu coloquei um piercing no dente. Era quarenta reais o meu primeiro salário, porque eu ganhava por semana; era uma coisa assim, um valor muito pequeno.
Tinha combinado com a minha mãe que eu ia ajudar com o salário depois que eu tivesse pego o meu primeiro salário para fazer o que eu quisesse, aí eu ia começar a ajudar ela.
[Com] esse primeiro salário que eu peguei, fui no dentista que tinha lá perto de onde eu trabalhava, porque eu botei na minha cabeça que queria ter um piercing no dente. Na época era uma moda absurda, eles colavam um brilhinho assim, no canino, e eu queria ter esse raio desse piercing, aí foi a primeira coisa que eu fiz com o meu primeiro salário.
(34:26) P/1 - Como seguiu a sua vida profissional e a sua vida pessoal também, depois dessa primeira experiência de trabalho?
R - A vida profissional foi uma loucura. Essa minha amiga, o pai dela tinha uma lojinha de produtos de limpeza. Fui trabalhar, então, junto com eles. Depois ela saiu e eu continuei trabalhando com ele. Ela saiu e foi para uma clínica médica, trabalhar como secretária; depois de um tempo, ela também me chamou para ir junto com ela para essa clínica.
Isso foi um divisor, de moldar o que seriam os próximos cinco, seis anos, mais ou menos, da minha vida. Por quê? Comecei a trabalhar como telefonista nessa clínica médica. Ela saiu, depois foi para outras áreas, outras coisas, e eu continuei lá. Fiquei na área da saúde por quase seis anos, então trabalhei como telefonista, recepcionista, arquivista, trabalhava no faturamento administrativo, era secretária; trabalhei em várias coisas dentro da área da saúde.
Foi muito bacana, primeiro porque eu tinha lá atrás, na infância, aquele sonho de ser bióloga. Eu sempre gostei muito de Ciências, por exemplo, e quando comecei a trabalhar na área da medicina comecei até a cogitar se um dia eu, de repente, prestaria Medicina, porque não?
Começando ali, com os meus primeiros sonhos de profissão, eu adorava, era encantada pela área da saúde. É uma coisa que eu ainda hoje sou muito fascinada, embora seja de muito sofrimento, você está lidando com vida e morte o tempo inteiro, então você precisa ser muito forte. Mas a experiência de ter começado no mercado de trabalho, tão jovem e tão cedo, indo para área da saúde, nossa, mudou completamente a pessoa que eu sou hoje. O fato de você na área da saúde precisar trabalhar com muita responsabilidade, com muita atenção, com muita rapidez, muita velocidade, é uma dedicação quase sobre-humana, porque você está lidando com vidas. Acho que tudo isso me moldou, para eu ser a profissional que eu sou hoje.
(36:46) P/1 - E onde era essa clínica?
R - Lá em Guarulhos mesmo, eu trabalhava em Guarulhos. Era uma clínica de urologia. Pensando que eu estava ali na adolescência, era motivo de piada entre os amigos, claro. Eu trabalhava numa clínica urológica em Guarulhos, depois eu venho para São Paulo, e aí é onde eu começo então esse deslocamento de Guarulhos - São Paulo, que é um dos maiores deslocamentos do mundo em relação a trabalho, a ligação entre as duas cidades.
Comecei a fazer entrevistas de emprego pra cá, a maioria na área da saúde também. Consegui emprego num convênio da GreenLine, um convênio que tem aqui em São Paulo, e comecei a trabalhar no hospital próprio deles. Foi [por] um tempão, até eu abandonar tudo por estafa de trabalho. Como eu falei, é muito pesado trabalhar na saúde.
Sofri uma ameaça de um paciente, uma ameaça de morte, e desenvolvi síndrome do pânico por causa disso. O médico me afastou e falou assim: “Olha, você é muito nova para estar passando por isso. Reveja a sua vida, veja se você realmente quer trabalhar nessa área, já que não é ainda sua profissão.”
Eu estava na época de estudar pro vestibular. Foi uma coisa que eu botei na minha cabeça, que eu queria estudar numa universidade pública. Não tinha referência nenhuma, porque na minha família… Até esse momento, eu só tinha uma tia que tinha feito faculdade, que estava, na verdade, terminando a faculdade. Como eu não tinha referência de nada, eu pensei: “Não vou ter dinheiro, logo vou estudar numa universidade pública”, jurando que era fácil.
Entro no processo de pré-vestibular, vejo que é desesperador de difícil o negócio,
tanto que… Eu lembro da primeira vez que fui prestar vestibular, a FUVEST. Lembro que eu lia a prova, a pergunta e eu falava: “Gente, eu não sou alfabetizada. Não sei ler o que está escrito aqui.”
Era essa sensação que dava, de tão absurdo e longe da minha realidade, isso porque eu era uma das melhores alunas da escola, [com] as melhores notas. Era CDF, era nerd, sabe? [Pensei:] “Agora eu vou prestar vestibular, vou arrasar.” Abri assim e falei: “Gente, que palavra é essa escrita aqui, não consigo ler.”
De verdade, não conseguia ler o que estava escrito na prova, aí chorava. Tinham me mandado levar chocolate, porque falavam que era bom levar chocolate na prova. Fiquei comendo chocolate, chorando e melando a prova. Uma confusão absurda. Essa é boa.
(39:43) P/1 - E que idade você tinha quando teve a estafa?
R - Eu tinha mais ou menos uns vinte anos. Foi logo quando eu resolvi parar tudo. Eu falei: “Vai ser muito difícil, mas eu vou direcionar os meus esforços para tentar fazer o cursinho pré-vestibular, passar logo na faculdade e poder mudar então de área, poder rever logo minha vida.”
Fiquei um ano sem trabalhar, me recuperando dessa estafa, das crises de pânico que eu desenvolvi nesse período. Foi assim.
(40:25) P/1 - Nessa época que você vinha para São Paulo para trabalhar, além do trabalho, você acessava o lazer aqui em São Paulo, ou era mais em Guarulhos? Como era?
R - A primeira vez que eu venho aqui pra São Paulo sozinha é pra fazer entrevista de emprego, não é buscando o lazer da cidade. Não conhecia absolutamente nada, então aprendi a andar em São Paulo nos lugares onde eu tinha que fazer entrevista. Até hoje eu passo e falo: “Ah, já fiz entrevista naquele prédio, já fiz entrevista naquela rua.” Conheci São Paulo dessa forma.
Quando estou, um pouquinho depois, fazendo o cursinho pré-vestibular, aconteceu de a gente estar estudando literatura e a professora indicar uma exposição que estava tendo no MASP, uma exposição do Caravaggio. Ela falou assim: “Seria incrível se vocês pudessem ver.” Eu fiquei: “Nossa, nunca fui no MASP, não sei que museu é esse. Quero experimentar.”
Uma amiga minha falou assim: “Vamos, eu vou junto. Eu já fui uma vez, eu te levo.”
Foi a primeira vez que eu vim atrás de lazer, por causa da indicação dos professores do cursinho. Depois é muito mais natural, quando eu entro na faculdade, mas as primeiras vindas para São Paulo não foram para buscar lazer, foram para fazer entrevista de emprego e arrumar um lugar de trabalho. Meu lazer acontecia todo em Guarulhos mesmo, quando tinha tempo, porque trabalhando e fazendo um cursinho pré-vestibular, eu não tinha tempo pra nada, na verdade.
(42:08) P/1 - E quando tinha esse tempo, onde você ia, lá em Guarulhos?
R - Em Guarulhos tem um parque chamado... Um bosque chamado Bosque Maia. Era um dos lugares que eu mais gostava de ir. É tão grande o bosque que eu me embrulhava lá pelo meio do mato, ficava ouvindo música, meditando, pensando sobre a minha vida, chorando um pouquinho, me recuperando. Era o lugar que eu mais frequentava.
Ele ficava perto de uma sorveteria que minha mãe me levava muito quando eu era criança, a sorveteria Babalu. Era a sorveteria e o bosque, os lugares que eu mais frequentava.
(42:51) P/1 - E que música você gostava de ouvir?
R - Nossa, gosto musical… É muito louco falar sobre isso porque, como eu falei, dentro de casa era uma disputa de quem vai ouvir o que, quem vai colocar o que vai ser ouvido, então cresci com um gosto muito eclético. Tanto as músicas que minha mãe colocava [quanto] o que meu pai colocava… Enfim, o que estivesse ali eu parava para ouvir. Meu pai gostava muito de samba, gostava de MPB; minha mãe já gostava de músicas de teor religioso, não só… Música evangélica, enfim, editora religiosa, ela gostava bastante.
Eu cresci ouvindo de tudo, mas quando chego na minha adolescência fico mesmo fascinada em pagode. Acho que em 2000 eu estou fascinada em pagode, então frequento, inclusive, alguns pagodes em Guarulhos - tudo sem minha mãe saber, minha mãe vai saber agora.
(43:52) P/1 - Queria que você me contasse como foi a experiência do cursinho.
R - Nossa, essa é uma boa história. O cursinho acontece muito sem querer. Como eu falei, eu saí do ensino médio achando que era simples prestar um vestibular, aí me deparo nessa situação de não conseguir nem ler a prova. Fui colocar nos correios algum documento, não lembro se foi para a inscrição do ENEM, não lembro o que era, mas era uma época que a gente ainda usava o correio para fazer a inscrição, não era pela internet. Eu estava na fila e tinha uma moça, aí ela olhou assim, viu o meu pacote e falou: “Você vai prestar vestibular? Minha filha também vai.”
A gente começou a conversar e ela falou assim: “Você faz cursinho onde?” Eu falei: “Cursinho de quê?” “O cursinho que prepara para vestibular, você não sabe o que é?” Eu falei: “Não, não fiz nada. Eu estudo em casa.” Eu estudava por conta. Aí ela [disse:] “Nossa, não, aí você não vai ter nenhuma chance. Você precisa fazer um cursinho.”
Foi ela que me contou o que era, uma pessoa totalmente desconhecida, na fila da agência de correios. Em cima dela tinha um cursinho pré-vestibular que era um cursinho comunitário. Ele não era gratuito, só era mais barato. Ela falou assim: “Aqui em cima, por exemplo, tem um cursinho. De repente, depois que você passar aqui no correio, você podia passar lá para dar uma olhada.” Aí eu falei: “Vou ver o que é isso de cursinho.”
Subi para o cursinho, peguei lá os preços, entendi como era. Falei assim: “Vamos ver. Se eu não passar em nada no ano que vem, quem sabe eu invisto nisso aqui.” Eu trabalhava na época, falei: “Vou investir nisso aqui.”
Óbvio, não passei em nada. Chegou o ano que vem, falei assim: “Vou fazer o tal do cursinho.” Fui lá, me matriculei, era mais baratinho, beleza.
Nesse cursinho eu conheci uma outra garota que estava precisando vestibular também, só que ela estava ainda… Acho que no primeiro ou segundo ano do ensino médio. Eu falei: “Gente, você já está fazendo o cursinho? Então eu estou muito atrasada, né?”
Ela falou assim: “Não, já estou fazendo o cursinho, mas como meus pais não vão pagar um cursinho melhor pra mim, isso dá, por enquanto.” Eu [falei:] “Como assim, cursinho melhor? Ainda tem essa, umaé melhor que o outro?” Aí ela
me abriu tudo, me mostrou todo o caminho do que era ser um estudante de pré-vestibular.
Na época, ela estudava em uma escola particular, que era o sistema Anglo de ensino, e ela falou assim: “Quando eu terminar aqui o primeiro ano do ensino médio” - acho que era o primeiro ano - “aí meus pais vão me deixar entrar no Anglo, aí eles vão pagar, porque eu vou estar mais velha,
mais perto do vestibular. Se você quiser, eu posso te levar, para você assistir umas aulas, porque eu tenho direito quando tem aula de literatura, alguma coisa assim.’ Aí eu falei: “Quero ir, sim.”
Fui no Anglo. Gente, fiquei chocada. Falei: Gente, é com essas pessoas ainda que eu tenho que competir, sem nem saber ler a prova. Nossa, eu tô lascada.” Não tinha referência nenhuma, não tinha... Mãe, me ajuda! Não tinha nada, não tinha ninguém, era uma parada que eu tinha… Eu mesma [tinha] cavado para mim que queria aquilo, porque não tinha uma referência de outra pessoa que tinha passado por aquilo. Depois eu vi o tamanho da armadilha que era e a dificuldade.
Enfim, fiz esse ano de cursinho comunitário, não passei de novo, mas aí eu já sabia que existia, por exemplo, o Anglo, aí eu falei: ‘Ok, então agora eu vou trabalhar, vou pegar todo o meu dinheiro suado e vou investir no meu cursinho.”
Era uma confusão dentro de casa. Para os meus pais, era muito difícil entender isso, menos para a minha mãe, acho que ela tinha mais sensibilidade de entender aquilo, mas para o meu pai era: ‘Nossa, mas você vai ficar gastando dinheiro para estudar, para estudar, para talvez fazer uma faculdade?” Para ele não fazia o menor sentido - e ele não está errado, não faz sentido mesmo isso. O ideal é que todo mundo tivesse um ensino de qualidade já na escola, para poder ter acesso ao ensino superior.
Comecei a fazer o Anglo. Gente, eu precisei fazer mais três anos de Anglo, então eu sou pós-graduada em cursinho pré-vestibular. Não me falta conhecimento em cursinho pré-vestibular. Precisei fazer três anos de Anglo para conseguir passar no vestibular, um ano mais difícil e mais insuportável do que o outro. Primeiro que, de cara, a coisa mais gritante era a diferença de classe com os outros estudantes. Imagina eu, lá da periferia, que conseguia nem ler a prova do vestibular, de repente estava sentada com pessoas que estavam desde o primeiro ano do ensino médio estudando para entrar numa USP, que já sabiam o que era USP, que os pais tinham frequentado USP, Unicamp, UNESP, seja lá o que for. E eu assim, gente... Minha mãe, que não terminou a escola, parou de estudar ali, na oitava série, quando engravidou de mim; meu pai não tem ensino superior, então também não tinha como me ajudar em relação à faculdade. Eu era uma realidade muito diferente dos outros estudantes do cursinho, então tinha essa questão de classe, que era gritante.
Eu lembro, por exemplo, de um dia eu estar com fome, trabalhar o dia inteiro e falar: “Nossa, estou com fome. Não vejo a hora de chegar em casa para comer.” A mina do meu lado pega o celular e pede para um táxi buscar um McLanche feliz pra ela, sabe? E você fala: “Meu, que mundo é esse?” Isso foi bem pesado, tanto que eu não me envolvia com as pessoas do cursinho. Fiz algumas amizades lá, [com] pessoas que estavam mais próximas da minha realidade, mas foi bem difícil, porque além do desafio de você ter que aprender o que a escola não deu conta de te passar, de te ensinar, ainda tinha que conviver com essas outras realidades, muito distantes do que eu estava acostumada, do que eu entendia, o que também foi importante para eu ver que tenho mais consciência de classe. Falei: “Agora eu entendi que eu não sou uma pessoa rica, entendi que eu sou pobre. Não adianta ter um trabalho e conseguir pagar meu cursinho, porque eu não sou classe média, eu sou realmente pobre.”
(50:48) P/1 - E nessa época você já sabia que curso você queria fazer?
R - Tinha lá no fundo essa coisa da medicina. Eu falava que era uma alucinação, que eu não ia passar nunca, mas ainda tinha essa esperança. O que eu prestava era Comunicação, eu prestava para Publicidade, Rádio e TV. Eu ia para esses lugares, o que acabou não sendo a minha formação, porque quando eu passo no vestibular… Comecei a passar nos vestibulares. Passei na UNESP, consegui [passar em] algumas universidades federais em outros estados, mas eu não tinha como ir até esses lugares, não tinha como me mudar, e tinha investido tanto dinheiro para conseguir passar que eu não tinha percebido. “E agora, o que eu vou fazer para me mudar? Como é que eu vou ir até lá para estudar?” Eu tive que recusar todas essas vagas.
Acabei entrando então no ENEM [pra] História da Arte, na cidade em que eu nasci, em Guarulhos. Falei: “Gente, eu fiz toda essa palhaçada, dei toda essa volta e eu vou estudar em Guarulhos, na cidade que eu nasci? É brincadeira. Se soubesse que era isso já tinha feito isso no começo, que era mais fácil, né?”
(52:08) P/1 - E o cursinho era aqui em São Paulo, ou não?
R - Não, o cursinho era em Guarulhos. Na época eu já trabalhava em São Paulo, mas eu estudava e morava em Guarulhos, então tinha esse deslocamento de São Paulo pra Guarulhos para estudar, [no horário de] pico, atravessando a cidade, literalmente, para chegar a tempo do cursinho. Eu estudava à noite e de final de semana nesse cursinho.
(52:33) P/1 - Como foi esse momento de ter passado e ter decidido entrar na faculdade de fato em História da Arte? O que você sentiu?
R - No começo eu confesso que foi um pouco frustrante, porque eu falava assim: “Nossa, eu fiquei tantos anos estudando o pré-vestibular para fazer Comunicação Social, ou Publicidade e Propaganda”, e não era aquilo que eu ia estudar. No começo foi frustrante, até eu entender que, na verdade, eu estava criando, idealizando ali uma parada que não combinava comigo, não fazia sentido. Eu estava ali muito mais pela necessidade de entrar numa universidade pública, do que de fato poder escolher um sonho de ter uma carreira, uma profissão. Não era o que eu precisava, era conseguir ter ensino superior, no final era isso.
No começo foi bem frustrante, mas a minha sorte é que o curso é maravilhoso, é incrível. Tem várias linguagens de coisas que eu já gostava, a arte em publicidade dentro do curso também, tem design e propaganda, então fez muito sentido quando eu entrei, quando comecei, de fato, a frequentar o curso. Mas no começo foi frustrante, eu tive que trabalhar bastante a minha calma. “Vamos experimentar para ver o que significam agora que você entrou na História da Arte.”
(54:03) P/1 - Quantos anos você tinha e o que você estava fazendo de profissão nesse momento? No que você estava trabalhando?
R - Quantos anos eu tinha mesmo, quando mesmo quando eu tive a estafa?
(54:14) P/1 - Não, quando você entrou na faculdade.
R - Na faculdade? Entrei na faculdade... Eu tinha ficado um ano me recuperando, sem trabalhar, só nessa função de fazer o pré-vestibular, aí passei entrei na faculdade e comecei a trabalhar com um tio meu. Ele tinha... Ele tem uma mecânica de consertar motos, aí fui trabalhar um tempo com ele, fazer um freela para levantar também um dinheirinho. Tabalhava ajudando na parte do atendimento. Isso foi em 2014, então vamos para as contas: quantos anos eu tinha em 2014? Eu tinha 22 anos em 2014.
(55:05) P/1 - E quais momentos, pensando nessa faculdade, você acha que foram marcantes? Teve momentos marcantes na sua graduação?
R - Nossa,
[era] escola pública, universidade pública, então [foram] muitos momentos marcantes.
Acho que a primeira semana foi muito marcante, porque é isso, eu fiquei com muito medo, por causa do cursinho, de não ter curtido muito as pessoas, como era aquele ambiente. [Tinha medo] de eles ser reproduzidos exatamente daquela forma na faculdade, mas como era universidade de humanas, na periferia de Guarulhos, porque Guarulhos… O curso de História da Arte fica no bairro dos Pimentas, então [foi] maravilhoso, completamente diferente do que era o universo do cursinho. Foi
um alívio absurdo. Pude achar os meus iguais ali dentro, pessoas que questionavam coisas que eu já questionava então. Por exemplo, nessa época, eu estava indo para a igreja evangélica, bem nessa entrada minha para a faculdade, só que era uma coisa que vinha me incomodando. Eu estava tentando, estava questionando, mas não estava entendendo como. Quando eu entro na faculdade e vejo outras pessoas com as mesmas experiências que a minha, passando pelo mesmo que eu, consigo criar ali então uma rede de apoio para poder debater sobre isso. Foi muito importante para eu conseguir inclusive passar a questionar coisas que eu fazia e que já não tinham mais tanto sentido em relação a várias coisas - a minha sexualidade, a maneira com que eu me apresentava na sociedade, religião, várias coisas.
(56:52) P/1 - E como foi esse momento desses questionamentos, o que mudou pra você nessa hora?
R - Os principais questionamentos foram em relação à sexualidade e religião. Acho que eu tinha passado por um momento de muita fragilidade antes disso, tive alguns problemas pessoais que aqui eu não me sinto confortável de compartilhar, mas que fizeram com que eu procurasse a igreja, pra poder ter alguém para procurar. Eu precisava procurar alguém para me ajudar e o que eu tinha ali, disponível, era a igreja.
Quando eu entro na faculdade, começo a entrar em contato com o movimento social, com as lutas antirracistas, com as lutas feministas, e aí eu consigo perceber que essa ajuda que eu precisava, na verdade, eu conseguia encontrar nesses espaços, e não necessariamente dentro da igreja; a igreja, inclusive, me violentava em muitos aspectos. Eu saio, então, da igreja, abandono isso com muita leveza, com muita tranquilidade, e consigo então, a partir do meu contato com as lutas sociais, dar conta de coisas que eu antes não dava, sabe?
(58:15) P/1 - Você estava contando que lá foi importante para você se organizar como pessoa na faculdade. Como foi esse momento, o que você sentia dentro da faculdade?
R - Acho que a faculdade foi esse lugar mesmo de me encontrar com os meus iguais e não me sentir mais tão sozinha, o que acontece é isso. Fui uma criança muito introspectiva, que com muita luta na adolescência conseguiu se inteirar mais com outras pessoas. Só que, na verdade, o que estava por trás de tudo isso era a maneira com que eu enxergava o mundo, e na faculdade eu conseguia encontrar outras pessoas que enxergavam o mundo da mesma maneira que eu que, de uma maneira mais crítica, trazendo questionamentos de coisas que não faziam sentido.
Eu lembro que tinha uma amiga que ela falava que eu era uma pessoa muito chata, porque tudo eu questionava. “Ah, mas você questiona tudo, tudo te incomoda, tudo você quer saber o porquê.” E aí eu me sentia só.
Eu falava: “Poxa, mas você não posso questionar? Então eu tenho que aceitar tudo calada?” E na faculdade não, era um espaço que a gente era motivado a questionar - questionar o sistema, questionar como é o ensino, como é o mercado de trabalho, como a sociedade se organiza, como o gênero é construído na sociedade, questionar tudo isso.
Foi o momento que eu falei assim: “Uau, não sou aquela pessoa que eu achava que eu era, chata e estranha e sozinha. Não, na verdade eu só não tinha ainda encontrado com quem trocar [ideias], sabe?
(59:55) P/1 - E nessa época você já se identificava com uma pessoa não binária ou não?
R - Não, ainda não me identificava quando entrei na faculdade. Eu já tinha tido a experiência de ter beijado uma menina; tinha ficado muito assustada com aquilo, não sabia ainda o que pensar sobre isso. Na faculdade, mais uma vez, encontrei os mesmos iguais, várias pessoas da comunidade LGBT. Comecei a participar do coletivo LGBT da universidade e na época comecei a me entender como lésbica,
u me entendia como uma mulher cis lésbica. Isso foi por muito tempo, até que
comecei a ter muita dificuldade de entender o que era ser mulher para mim, o que era isso. Só que ao mesmo tempo eu tinha muita certeza que não era uma pessoa trans, porque eu tinha a cabeça muito limitada, de achar que você só podia transicionar dentro da binaridade, então eu pensava: “Se eu sou uma mulher e vou transicionar, eu vou ser um homem, mas eu não quero ser um homem. Ah, então eu sou mulher e está suficiente.”
Depois, quando eu fui estudando mais e descobri a não-binaridade, fui abrindo mais o meu conhecimento. Aí eu falei: “Poxa, talvez tenha aqui uma questão de gênero, não sei.” Só fui ter muita certeza quando comecei a trabalhar no Museu da Diversidade Sexual. Foi lá que eu me assumi para a sociedade [como] uma pessoa trans não-binária. Antes disso, eu me via na sociedade como uma mulher cis sapatão, que até então [tinha] esses questionamentos sobre sua sexualidade.
(01:01:00) P/1 - Como era? O que se passava na sua cabeça, como você lidava [com isso]?
R - Em relação a gênero, para mim era... De modo geral, era muito difícil porque antes eu achava que a maneira com que eu via meu gênero ou minha sexualidade, as dificuldades que se apresentavam em relação a me relacionar com outras pessoas tinha a ver com o fato de eu não me sentir bonita, de ser uma pessoa gorda, não ser uma pessoa padrão. Eu achava que era por causa dessas coisas, não sou… Feminina o bastante. Mas é porque na verdade o meu corpo não me permite essa feminilidade. Eu achava que estava nesse lugar. Foi só depois de aceitar e entender o meu corpo que falei: “Ah, entendi. Na verdade, era sempre sobre gênero, era sempre esse lugar do gênero que me incomodava. Era o não querer ser mulher do jeito que é esperado na sociedade.”
(1:02:00) P/1 - E tinha, nessa época… Vamos pensar na sua adolescência, na sua infância e depois na faculdade. Você, antes, tinha referências LGBT próximas de você, ou você não tinha e só foi ter contato na faculdade?
R - Na minha adolescência, a minha melhor amiga se entendeu como lésbica. Pra mim isso foi um choque, porque [eu pensava] assim: “Não, tá errado, isso só pode estar errado.” Meu primeiro movimento foi rechaçar, falar: “Não, você não pode estar fazendo isso com você, [com] sua vida. Não, jamais.”
Comecei a sofrer perseguição, porque achavam que eu era a namorada dela. Foi a primeira vez então que eu comecei a sofrer essa violência, essa LGBTfobia, embora eu não me entendesse ainda uma pessoa LGBT, mas era como as pessoas já me liam, já me entendiam, então. Achavam que eu, por ser muito amiga dela, era o caso dela, a namorada dela e comecei a sofrer algumas violências, inclusive por parte da mãe dela. Foi quando comecei a desenvolver a empatia e aí eu falei: “Espera, tem alguma coisa aqui que não tá da hora. Não é legal, não tinha que ser dessa forma.” Comecei a pensar: “E se eu fosse a namorada dela? Qual é o problema?” Consegui, então, abrir a minha mente e descolar um pouco dessa lógica.
[Foi] ela que apareceu pra mim como essa primeira referência, essa primeira pessoa mais próxima, com a mesma idade, que se assumiu lésbica na escola pra gente. Ela sofreu muito com isso, porque os pais dela resolveram mandar ela pra outra cidade, pra ela não ficar perto da pessoa com que ela se relacionava, porque achavam que tinha a ver com... Estava sendo, como se diz… Incentivada, motivada por outra pessoa, indo pro mau caminho. Ela chegou a mudar de cidade, enfim, foi bem pesado.
A gente sofreu muito como amigas, por ter precisado ficar distantes. Eu [fiquei] com
arrependimento gigantesco por ter rechaçado ela no primeiro momento, por achar um absurdo que ela estava se aceitando como lésbica. Mas eu diria que ela foi minha primeira referência nesse sentido, da minha melhor amiga, a pessoa que bateu no peito e falou: “Sou lésbica e é isso, estou ainda no ensino médio e já entendi o que eu quero pra mim, qual é a minha identidade perante a sociedade.”
(1:05:00) P/1 - Teve algum professor ou alguma matéria que te marcou de alguma maneira, pode ser positiva ou negativa, na faculdade
R - Na faculdade? Ela teve, enfim, seus prós, seus contras, se apresentou com momentos de desafios, momentos muito deliciosos.
Teve uma professora que marcou muito a minha vida, mas não por conta da matéria que ela ensinava. O que aconteceu?
A gente perdeu um colega na faculdade, ele se suicidou, e ela foi a professora que acolheu a gente, conseguiu ajudar a gente a entender o que aquilo significava, a tirar um pouco do peso e da culpa que a gente também vinha carregando por aquilo ter acontecido. A gente se sentiu muito mal por não ter impedido, por não ter antecipado, e ela foi a pessoa que mais demonstrou empatia pelo que a gente estava passando.
Eu lembro que depois do velório ela chamou a gente para ir para casa dela. A gente foi para a casa dela - inclusive [é] aqui na Vila Madalena, aqui próximo - e ficou conversando com a gente sobre o ciclo da vida e da morte. Foi muito bonito. Ela marcou para sempre a minha vida.
(1:06:56) P/1 - E me conta, como começou essa trajetória no Museu da Diversidade Sexual?
R - Que legal. Eu cheguei no Museu da Diversidade Sexual em fevereiro de 2022. Fiz processo seletivo para ser pesquisadora lá, passei. Comecei a trabalhar com pesquisa e trabalhei até o museu fechar. O museu passou pelo fechamento, que muitos de nós acompanhamos com muita tristeza. Ficamos uns meses fechados por ataques da sociedade, LGBTfobia.
Nesse período de reestruturar a equipe internamente, até a gente reabrir o museu, eu preenchi a vaga de coordenação do núcleo educativo. Tenho dez anos de carreira na área de educação. Depois que eu saio, lá atrás, da área da saúde, passo pela faculdade, começo a trabalhar com arte-educação e dentro do museu, por mais que eu estivesse na pesquisa e estivesse superfeliz e satisfeita, a coceirinha da educação ainda estava me pegando. Nessa reestruturação que a gente faz no ano passado, eu passo pra coordenação do núcleo educativo.
Eu queria voltar um pouco, então.
(1:08:00) P/1 - Eu queria saber como foi essa trajetória na arte-educação a partir de quando você sai da faculdade. Quais foram as experiências mais marcantes? Tem alguma história legal que você queria compartilhar?
R - Eu entrei na faculdade em 2014. Em 2015 já consigo meu primeiro estágio, que foi no Sesc Belenzinho, como educadora. [Foi] maravilhoso, um sonho. Todo mundo precisa passar pela experiência que é viver um estágio no Sesc, é sempre uma delícia.
Fiquei um ano no Sesc e quando eu saio de lá rapidamente consigo outro estágio, também na área de arte-educação, sempre cercada de pessoas [de] referência,
incríveis, e isso desperta em mim um desejo absurdo de trabalhar com educação museal. Aí eu nunca mais paro.
De 2015 para cá, eu venho direto de educativo em educativo. Passei por várias instituições. Passei pelo SESC Belenzinho, pelo Museu Lasar Segall, pela UNIBES Cultural; fiz alguns projetos pontuais na Pinacoteca, na Sala São Paulo, trabalhei no museu da Imigração por três anos - foi o museu que eu fiquei mais tempo como educadora. Passo pelo CCBB, até que eu chego então no Museu da Diversidade Sexual.
(01:09:45) P/1 - Em alguma dessas experiências, tem alguma história que foi muito marcante para você?
R - Tenho. Tem uma história que eu carrego com muito carinho, que aconteceu no Sesc Belenzinho. A gente estava trabalhando numa exposição e tinha uma obra que falava sobre dignidade. Atendi um grupo de crianças de uns dez, onze anos, mais ou menos, e fiquei pensando: “Nossa, como é que eu vou mediar com elas para explicar o que é dignidade?”
Fiquei pensando algumas estratégias. Deu certo, fiz lá o que eu tinha planejado. Como exercício final, eu tinha proposto que cada um escrevesse num pedaço de papel o que tinha ficado pra elas como um significado de dignidade. As crianças foram escrevendo várias coisas: direito à comida, não passar por situações de violência e tal. Uma criança escreveu o próprio nome; era uma criança trans e ela falou que dignidade, pra ela, é que as pessoas respeitassem o nome dela. Isso ficou muito atravessado por mim. Eu, na época, ainda não me identificava como uma pessoa trans, mas aquilo já tinha um peso enorme. Ver aquela menininha tão pequenininha, sacando que para ela a dignidade era ter o seu nome respeitado, isso foi muito marcante.
(1:11:00) P/1 - E quando você se entendeu como uma pessoa trans não-binária dentro do museu, queria saber se houve acolhimento, se você foi acolhida. Como foi esse processo e internamente pra você também, o que você sentiu?
R - Esse processo de me entender uma pessoa trans, internamente, demorou mais tempo. Acho que desde quando comecei a ter os primeiros desconfortos e começar a questionar meu gênero até eu de fato me assumir deve ter demorado coisa de mais ou menos um ano e meio. Como eu falei, eu já vinha pensando sobre isso antes do museu, mas foi no museu que eu tive uma bagagem assim que eu falei: “Tá, agora eu entendi como minha identidade está sendo construída.”
No museu eu fui superacolhida, foi a principal rede de apoio, com certeza, que eu tive. As amizades que eu fiz ali dentro… Inclusive, na época, a pessoa que fazia a minha coordenação era uma pessoa trans não-binária. [Foi] a pessoa que trouxe, inclusive, coisas maravilhosas, uma bagagem enriquecedora para mim e para as outras pessoas fora do museu.
Eu tentei usar uma lógica muito de naturalidade, então não fui me colocando para fora do armário. Eu simplesmente… Fui vivendo e dizendo: “É isso, gente, eu sou uma pessoa trans não-binária.” Não quis passar por um processo maçante de saída de armário de novo, igual aconteceu quando lá atrás eu me identifiquei como uma mulher cis lésbica, né?
(1:13:00) P/1 - E uma coisa que eu queria saber é em que momento, e se houve um momento, eu sei que houve, mas em que momento você veio pra São Paulo?
R - Quando eu começo a trabalhar aqui em São Paulo, morando em Guarulhos, tem esse deslocamento que é muito difícil de ser feito e começa a ficar cada vez mais cansativo. Venho, no primeiro momento, morar em São Paulo por necessidade mesmo de estar perto do trabalho. Só que depois acabei me encantando pela cidade; [ela] tem suas dores, mas tem suas delícias também.
Eu me mudo para cá em 2017. Trabalhava no Museu da Imigração. Começo morando aqui em São Paulo, dividindo apartamento [com] uma pessoa que eu amo muito, um amigo queridíssimo, no Tatuapé. Moro lá um tempão e depois não paro mais, fico só aqui em São Paulo, até que chego ao Largo do Arouche, o berço das LGBTs do centro.
(01:14:09) P/1 - E você sente que tem diferença entre o Tatuapé e Guarulhos, entre o Tatuapé e o Arouche?
R- Sim, total. Guarulhos é uma cidade que eu ainda mantenho vínculos. Mesmo quando eu morava no Tatuapé eu tinha um projeto em Guarulhos, junto com outras amizades a gente tinha um cursinho pré-vestibular, um cursinho comunitário. Aí sim [é] um cursinho gratuito, o que pra mim foi, inclusive, muito marcante, principalmente na minha trajetória, os meus traumas com o cursinho.
Morar lá era uma coisa… A gente tem vários problemas de acesso que a cidade acaba apresentando. Em São Paulo fica um pouco mais fácil o jeito que as coisas se encaminham, acabam fluindo de uma maneira muito mais rápida.
Em relação a morar no Tatuapé e morar hoje no centro, no Arouche, eu confesso que não vejo tanta diferença. Eu tinha muito medo de morar no centro, por ser mais agitado, só que o apartamento que eu moro é supercalmo, supersilencioso. Tranquilamente eu fecho os olhos e até esqueço que eu estou no centro, no fervo de São Paulo.
É uma delícia quando eu preciso sair e tudo está muito perto, é muito acessível, eu vou a pé, mas a sensação de estar no centro quase não chega quando estou dentro de casa.
(01:15:35) P/1 - E sendo uma pessoa LGBT, essa diferença... Queria saber se você acha que tem uma diferença de acesso à cultura sendo uma pessoa LGBT, tanto em Guarulhos quanto em Tatuapé e no Arouche.
R - A cena cultural em Guarulhos é muito independente, a gente teve bastante dificuldade de ter programas e incentivos públicos. Em Guarulhos eu participava de alguns coletivos que tinham muitas pessoas LGBTs; isso ajudava bastante a estar ali, ainda mais inteirada. Mas com certeza, quando eu vim aqui para São Paulo isso explodiu muito: muito mais acesso, muito mais referências, muito mais lugares para você ir e se sentir confortável, se sentir seguro. Isso acontece bem mais aqui em São Paulo, pelo menos, do que em Guarulhos, na época que eu morava lá.
(01:16:36) P/1 - Tem algum lugar que você goste de ir? Eu não sei se você gosta de ir em balada, mas se gostar, tem alguma balada que você goste de frequentar aqui em São Paulo?
R - Olha, eu costumo falar que eu não tenho mais saúde pra ir em balada. Já foi meu tempo de ser uma pessoa baladeira, mas eu gosto muito de tudo que é ao ar livre. Eu gosto de ir a parques. Gosto de ir ao Parque da Água Branca, adoro ir pra lá, ficar vendo as galinhas andando pra lá e pra cá.
Gosto muito de shows na rua, gosto muito das programações de rua, de modo geral. Acho que quando é Virada Cultural, essas coisas, eu fico alucinada, não perco. Aí sim, [é] a época do ano em que eu tenho saúde até para encarar uma coisa mais agitada. E o carnaval, porque o carnaval de rua de São Paulo, nossa, é um vício para mim. Desde antes de eu morar aqui em São Paulo, morando em Guarulhos, com os meus vinte e poucos anos, eu já frequentava de vez em quando São Paulo para as festas de carnaval.
(01:17:47) P/1 - Tem algum carnaval que tenha sido muito marcante por alguma história?
R - Ai, tem, deixa eu ver. Peraí, que eu vou lembrar o ano. Eu sou péssima com datas. A pandemia foi em 2020… O carnaval de 2018 foi bem marcante, porque foi um ano que eu estava precisando levantar uma grana, aí resolvi trabalhar no carnaval. Eu vendia glitter e pedrinhas de colar no rosto. Era curtindo o carnaval e levantando dinheiro para curtir o próprio carnaval, então foi um ano muito engraçado, muito marcante.
Lembro que eu chegava já de meio com a minha caixinha de glitter, já ajeitava minhas coisas, e aí: “Vamos lá, levantar o primeiro dinheiro pro café da manhã”, “Agora levantar o dinheiro pra primeira cerveja do dia”. E assim ia fazendo o dinheiro pro carnaval e curtindo o carnaval, vendendo as coisas.
Foi muito legal, porque no último dia do carnaval eu recebi uma ligação. Eu estava no meio de um bloco e resolvi parar porque insistiram, acho que foi isso. Falei: “Nossa, vamos ver o que é.”
Era a resposta de uma entrevista de emprego que eu tinha feito. Eu falei: “Gente, arrumei emprego no carnaval, fechei em dez o carnaval!” Foi um ano bem gostoso, bem marcante.
(01:19:09) P/1 - Como é seu trabalho como coordenadora do educativo lá no Museu da Diversidade Sexual, quais são os desafios?
R - Bom, lá no museu eu sou coordenadora pedagógica, então cuido da organização da rotina do núcleo de educação, da rotina do trabalho dos educadores, das visitas com público espontâneo, com público agendado, da parte de prestação de contas… A parte mais burocrática tem suas delícias, tem suas dores também, então tem esses momentos de, às vezes, [ter] muito estresse para poder ajeitar cronograma, colocar os horários ali em dia. Mas de modo geral é sempre maravilhoso.
Hoje, por exemplo, antes de vir para cá participei de uma atividade, uma visita pra uma ONG nossa. Saí de lá radiante, foi incrível. O público é muito generoso.
Trabalhar com o público é bom por isso. Você vê muito rápido o seu empenho naquilo sendo devolvido a partir da maneira com que esse público reage, do quanto você consegue alcançar os objetivos que tinha traçado antes.
(01:20:33) P/1 - Assim como a história do Sesc Belenzinho, que você contou da exposição sobre dignidade, eu queria saber se tem alguma história marcante do Museu da Diversidade Sexual que você queria compartilhar.
R - Do Museu da Diversidade?
(01:20:51) P/1 - Não precisa ser necessariamente com público, mas pode ser entre funcionários também.
R - Tá, deixa eu pensar… Acho que o período que o museu ficou fechado foi muito marcante. A gente teve que se fortalecer enquanto equipe que trabalhava dentro do museu, ‘segurar o reggae’ para não desabar, porque a vontade de desistir era muito grande. Você trabalhava sem expectativa se o museu ia voltar a funcionar, não ia... Como uma pessoa LGBT, eu tinha de um lado as inseguranças de poder ficar desempregada a qualquer momento, o que era muito doloroso e, pelo outro lado, eu tinha também o desespero de ver um equipamento cultural tão importante de portas fechadas. [Era] ainda mais importante, inclusive, para mim, a subjetividade, enquanto pessoa LGBT.
Acho que nos meses que o museu passou fechado, a cada reunião que a gente tinha que fazer para pensar quais iam ser as nossas estratégias de atuação eram reuniões que a gente fazia e que nunca tinham fim, porque a gente planejava fazer uma coisa, aí na semana seguinte tinha alguma atualização e não podia fazer, tinha que voltar tudo para trás. De repente, “talvez vá abrir”, correria para todo lado, aí “não vai poder abrir ainda, volta tudo”.
Acho que foi um período muito marcante, sim, mas também que me ajudou a amadurecer muito.
(01:22:26) P/1 - Eu queria saber - essa você responde só se você quiser - se você tem um relacionamento
R - Se eu tenho um relacionamento? Eu sou uma pessoa não monogâmica, então eu me relaciono com várias pessoas, mas nesse momento não estou me relacionando com ninguém.
(01:22:43) P/1 - Você quer contar um pouco do processo da não-monogamia, do entendimento que você não era uma pessoa monogâmica?
R - Pode ser. Eu saí de um relacionamento um pouco mais longo tem aí já mais de dois anos, e foi nesse processo que eu percebi que algumas coisas não funcionavam mais para mim; a monogamia foi uma delas.
Acho que a não-monogamia veio muito junto com a não-binaridade. Acho que foi no momento que eu comecei a questionar, ao mesmo tempo, as lógicas do nosso sistema. Perceber o quanto a sociedade é violenta por impor algumas coisas em cima da gente começou a me deixar muito desconfortável e acho que a monogamia foi uma delas.
(01:23:39) P/1 - Eu queria saber… Essa pergunta a gente sempre faz e sempre tem uma resposta igual, mas é de praxe perguntar: você acha que São Paulo é uma cidade acolhedora para pessoas LGBT?
R - Olha, como eu naturalmente não sou de São Paulo, no começo, a resposta que tenta vir é a de que sim, de que acolhe, no sentido de que é mais aberta para entender. Só que na realidade, quando você está morando aqui, quando você está vivendo aqui mesmo, de fato, você vê que não é bem assim que as coisas acontecem.
Eu diria que depende muito da região da cidade. Se você vai mais para a periferia, você vai ter uma realidade; no centro, outra realidade. Por exemplo, hoje eu moro no Arouche. O Arouche é uma região LGBT, então pra mim é muito comum pegar o elevador e… Eu até brinco, no meu prédio só moram pessoas LGBTs, de todas as idades, inclusive, mas é uma realidade muito específica dali, do lugarzinho onde eu moro.
(01:24:37) P/1 - Eu queria saber o que é importante pra você hoje.
R - Nossa, pra mim é muito importante eu ter o meu cantinho, ter a minha casa, ter o momento do dia que eu posso ficar só comigo, botando tudo que aconteceu durante o dia no lugar, refletindo. O que é mais importante é isso, ter o meu tempo comigo mesma, que é uma coisa que eu neguei bastante. Ao longo da minha vida muito tempo eu fiquei colocando questões de outras pessoas como prioridade e me esqueci, sabe? Hoje, para mim, o que é mais importante é eu conseguir me ouvir, me acolher, ter um tempo comigo.
(01:25:25) P/1 - E quais são os seus sonhos?
R - Vou até me ajeitar… Olha, eu sonho muito em conseguir um dia morar perto da praia. Gosto de São Paulo, gosto dessa loucura que é a cidade, mas tenho vontade de dar uma descansada dessa loucura, então acho que um dos meus sonhos é poder morar próximo à praia.
Não sei, às vezes eu fico sonhando em ter o momento de voltar a morar com minha mãe e minhas irmãs pra ver como é, nem que seja provisório, por um tempo, porque eu acho que a gente passou por muita coisa e… As vezes que a gente se reencontra é muito potente, é muito bonito e às vezes eu fico com muita vontade de entender como seria se a gente hoje, com essa maturidade, pudesse morar junto. Tenho isso. Até me emocionei um pouco.
(01:26:29) P/1 - Val, qual é o legado que você deixa para o futuro?
R - Isso é difícil, hein? Não sei se é o que eu deixo, mas eu gostaria de deixar boas reflexões sobre o campo da educação. Acho que a educação foi muito importante pra transformar a minha vida, me colocar no lugar que eu estou, enfim. É uma área que eu pesquiso bastante, que venho atuando há bastante tempo, então é a área que eu sei que quero deixar algum legado, que eu quero deixar alguma contribuição.
(01:26:59) P/1 - Você estava falando um pouco lá no começo sobre os livros, que quando você começou na escola você gostava muito de ler. Queria saber que livros você lia, quais eram as temáticas.
R - Existem três curiosidades sobre o meu universo de leitura quando era criança. A primeira é que eu adorava ler com a minha avó a Bíblia. Não entendia nada do que estava sendo dito ali, mas gostava de sentar com ela na calçada de casa e ficar lendo a Bíblia. A segunda coisa é que eu tinha um primo que tinha uma coleção de gibis da turma da Mônica. Eu era fissurada. Ele tinha até um baú que ele guardava com chave, era uma coleção mesmo. Quando eu ia na casa dele eu ficava desesperada, me tremendo inteira porque eu queria ler aqueles livros da Mônica. Eram as coisas que eu mais lia.
Mais tarde, quando eu comecei de fato a ler, já com meus doze anos, mais ou menos, o primeiro livro que eu li foi o livro do Machado de Assis, que para a idade não fazia o menor sentido, mas que eu já adorava. Lia e já falava: “Porque eu leio Machado de Assis.” Era uma criança já... Uma esnobe, né?
(01:28:30) P/1 - A gente já tá chegando ao fim. Eu tenho só mais duas perguntas, a primeira delas é se você quer contar alguma coisa que eu não perguntei, se tem alguma coisa.
R - Não, acho que eu fui encaixando algumas coisas que eu queria contar.
(01:28:51) P/1 - E como foi contar a sua história hoje no Museu da Pessoa?
R - Nossa, foi muito divertido. Mas é interessante, porque conforme a gente vai conversando, que eu vou contando as histórias, eu rememorei partes da minha vida que eu já ou não lembrava ou não achava que ainda me tocavam tanto quanto ainda me tocam, ou que eu não sabia o tamanho da importância que tinham até a gente voltar a conversar sobre isso. De modo geral, eu me diverti muito, foi maravilhoso. Obrigada, viu?Recolher