Projeto: A Economia Solidária na Vida das Pessoas
Entrevista de Nelsa Nespolo
Entrevistado por Bruna Oliveira
Entrevista concedida via Zoom (São Paulo/Porto Alegre),18/04/2023
Realizada por Museu da Pessoa
Entrevista n.º: IPS_HV001
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Nelsa, para começar, eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Eu sou a Nelsa Inês Fabian Nespolo, nasci no dia 09 de abril de 1963, na cidade de Flores da Cunha.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – O meu pai se chama Pascoal Gabriel Fabian, e a minha mãe Angela Alesso Fabian.
P/1 – E como você os descreveria?
R – Eles acompanharam muito, assim, tem muito a ver com meu caráter, com a minha vida também, porque eles são pessoas, são pequenos agricultores, agricultores familiares, no interior do estado do Rio Grande do Sul. E nos educaram dentro dessa vida do interior, valorizando muito a terra, valorizando os produtos que vem dela, com princípios também cristãos de respeito à humanidade, as pessoas. Também foram eles que nos educaram na fé, dentro da Igreja Católica, eles são, para mim, um grande pilar, para minha vida, algo que me dá muita segurança, porque eles me acompanharam sempre em tudo, sabe? Eu poderia falar muito deles, porque sempre foram pessoas muito especiais, e quando eu para para pensar neles, as vezes eu fico pensando: “ Poxa, por que eu estou na economia solidária, da onde será que veio isso?” E eu sinto que isso vem muito deles, especialmente minha mãe assim, que sempre teve muitas iniciativas inovadoras, sabe? Mesmo estando lá, no interior, com informações que não chegam tão fáceis, sobre tudo no passado, sabe? Mas,ela sempre querendo inovar, então, eles são duas pessoas maravilhosas
P/1 – Você quer contar uma dessas iniciativas, que ela tinha assim, que você se lembre com mais carinho?
R – Olha,nós somos em 7 irmãos, então às vezes eu...
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Entrevista de Nelsa Nespolo
Entrevistado por Bruna Oliveira
Entrevista concedida via Zoom (São Paulo/Porto Alegre),18/04/2023
Realizada por Museu da Pessoa
Entrevista n.º: IPS_HV001
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Nelsa, para começar, eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Eu sou a Nelsa Inês Fabian Nespolo, nasci no dia 09 de abril de 1963, na cidade de Flores da Cunha.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – O meu pai se chama Pascoal Gabriel Fabian, e a minha mãe Angela Alesso Fabian.
P/1 – E como você os descreveria?
R – Eles acompanharam muito, assim, tem muito a ver com meu caráter, com a minha vida também, porque eles são pessoas, são pequenos agricultores, agricultores familiares, no interior do estado do Rio Grande do Sul. E nos educaram dentro dessa vida do interior, valorizando muito a terra, valorizando os produtos que vem dela, com princípios também cristãos de respeito à humanidade, as pessoas. Também foram eles que nos educaram na fé, dentro da Igreja Católica, eles são, para mim, um grande pilar, para minha vida, algo que me dá muita segurança, porque eles me acompanharam sempre em tudo, sabe? Eu poderia falar muito deles, porque sempre foram pessoas muito especiais, e quando eu para para pensar neles, as vezes eu fico pensando: “ Poxa, por que eu estou na economia solidária, da onde será que veio isso?” E eu sinto que isso vem muito deles, especialmente minha mãe assim, que sempre teve muitas iniciativas inovadoras, sabe? Mesmo estando lá, no interior, com informações que não chegam tão fáceis, sobre tudo no passado, sabe? Mas,ela sempre querendo inovar, então, eles são duas pessoas maravilhosas
P/1 – Você quer contar uma dessas iniciativas, que ela tinha assim, que você se lembre com mais carinho?
R – Olha,nós somos em 7 irmãos, então às vezes eu fico pensando, assim, é uma mágica quase, né, fazer, para poder criar nós todos, né. Tivemos muito acesso a escola, naquela época eram escolas onde tinham todas as séries dentro de uma mesma sala, e a todos, eles nos acompanharam para que a gente pudesse ter acesso ao conhecimento. Alguns seguiram né, fazendo ensino superior, e outros continuam até hoje trabalhando na roça também. Mas uma das coisas assim, que eu sempre penso assim, com muito carinho, a minha mãe ela, além de estar na roça, ela sempre quis fazer outras coisas, sabe? Então, até hoje, a minha mãe está com quase 90 anos, o pai fez 91 agora a pouco,e eles fazem queijo todos os dias para poder vender para as pessoas mais próximas e outros. Então, eles sempre foram tendo iniciativas, eles nunca se acomodaram, sabe? Naquilo de estar fazendo uma rotina, né? A mãe teve um tempo que nos finais de semana ela trabalhava num restaurante, fazendo as comidas típicas lá do local, sabe? E quando teve toda a organização de um… Para as mulheres do campo aprenderem a fazer outras atividades, ela sempre foi uma pessoa que participou muito, e trazia as receitas para casa. E falar nela também na questão da luta, ela foi uma das mulheres, que ela tem muito orgulho, e a gente tem mais ainda, ela lutou muito para que viesse a aposentadoria para mulher do campo, então, se deslocando para a capital, com ônibus, sabe? Junto ao sindicato para fazer essa luta foi algo muito forte, então eu acho que o que a gente se torna, é muito uma mistura de tudo que vem a partir da onde a gente vem, sabe? Dos valores que nos são passados, e que a gente vai cultivando, e vai se atualizando também dentro da conjuntura que tem.
P/1 – E você contou dos seus irmãos, quais são os nomes deles e como que era a relação com você, né, entre irmãos durante a infância?
R – Então, a primeira é a Clarice que é a mais velha de todas, depois tem o Roberto, que a Clarice mora lá roça até hoje, o Roberto mora em São Paulo, a Zelia também mora lá na roça. Depois é o Bruno que também mora em São Paulo, e depois veio eu né, que sou a quinta dos irmãos, e depois veio o Celso que também continua trabalhando na roça,e o Ivanor que continua trabalhando na rola também. Então, a gente teve uma infância de muita criatividade, porque no primeiro momento, diferente, sabe? De hoje dos filhos, inclusive dos meus irmãos, que moram lá, a gente, nós somos um dos primeiros que tiveram televisão naquele lugar, mas nós já éramos grandinhos assim, e não tinha sabe? Então, a gente aprendia muito a brincar, sabe? A criar brinquedos, eu praticamente assim, fui ter uma boneca com cabelo depois que casei, sabe? Então, mas, meus pais sempre se preocuparam em poder, que a gente tivesse acesso ao que os outros tinham também, então a gente brincava muito, lógico que a gente brigava bastante também, porque imagina 7 crianças numa casa. E a gente também fazia muitos cerão a noite com os vizinhos, então os vinhos dos vizinhos, que eram tantos quanto nós, quando se juntavam com a gente, a gente jogava bola, a gente fazia loucuras, assim, então foi uma infância muito legal. Trabalhando muito sim, porque desde sempre as crianças acompanharam os pais na roça, eu me lembro que quando a gente fazia 5, 6 anos o pai dava uma enxadinha, a gente ia junto com eles. Lógico que a gente não trabalhava né, a gente brincava mais que isso, mas já era algo que nos motivava a ter muito amor por aquilo que eles faziam né, então sempre foi muito isso, sabe? Uma convivência muito forte com os irmãos, e com os pais, porque era isso que a gente fazia o dia todo né, era estar juntos.
P/1 – E você chegou a conhecer os seus avós?
R – Eu conhecia o meu bisavô, um só, esse que é o avô da minha mãe, ele veio da Itália. E os bisavós também por parte de pai, eles vieram da Itália, mas eu não conheci nenhum, não conheci nem o avô né, por parte de pai, mas por parte de pai eu só conheci a minha avó, e eu ajudei a minha tia a cuidar dela, 3 anos que ela ficou enferma, inclusive. E os pais da minha mãe, eu conheci muito eles, tinha uma amizade muito grande, assim, gostava muito deles, acompanhei eles, eles me acompanharam por bastante tempo. E eu, sabe? Eu penso, Bruna, que a minha vó, eu acho que ela já tinha algo de gênero assim, que incomodava ela, sabe? Porque eu só ganhei dos presentes dela na minha vida assim, que era difícil também de alguém ganhar presente, naquela época, porque não tinha como ter acesso, mas eu me lembro que ela me deu um avião de plástico, e ela me deu um, era um carrinho, sabe? De plástico assim, foram dois que não era normal as meninas ganharem, e hoje eu penso: “Puxa, eu acho que a minha avó ela já queria contestar isso das meninas, poderam ter já brinquedos que não conduzisem a serem mulheres né, de bonecas e submissas, mas que elas poderiam estar onde que elas quisessem estar.
P/1 – E pesando um pouco na sua infância também, tem alguem cheiro, alguma comida, alguma festa que lembre essa época, assim?
R – Nossa, tem muita coisa que lembra essa época, sabe porque até hoje algumas coisas eles mantêm, muitas coisas eles mantêm, então a comida é algo assim, muito especial, que marca a gente , e que eles cultivam né, era. Eles faziam pão, o pão era feito uma vez por semana, e era feito num forno grande a lenha, na rua,e a mãe sempre fazia de 13 a 14 pães. E era algo que a gente esperava demais que chegasse o sábado, porque era o dia do pão quentinho. Outras comidas também, como são italianos, faz muita polenta, né? Então a polenta era feita numa panela muito grande, e era virada depois de pronta em cima de uma tábua de madeira, e aí a gente ia cortando essa polenta com um fio, um fio de, um fio… De algodão, e aí no dia seguinte, né, que não era mais aquela polenta quente, daí botava em cima da chapa para gente comer, a gente adorava. Tem muita coisa, sabe? A gente levantava muito cedo para trabalhar na roça, e uma das coisas que a gente gostava muito era de comer na roça, então quando era umas 8h00 alguém, alguém dos irmãos ou as vezes eu também, a gente ficava esperando o café ficar pronto, a gente botava tudo num cestinha, e levava para roça para todo mundo comer junto. Então, vamo… A comida é o que mais remete, sabe? A essa infância assim, a lembrar isso, e sempre que eu vou visitar meus pais, eles tentam fazer esse tipo de comida, sabe? Que acaba lembrando muito esse tempo da gente, de infância.
P/1 – Nelsa eu queria saber se você sabe porque você chama Nelsa?
R – Então, porque é difícil alguém que fala meu nome certo,é muito difícil, é difícil, as pessoas chamam tudo que você possa imaginar, mens o nome certo. Aí eu perguntei também pros meus pais porque esse nome, que ele é tão estranho para todo mundo daí, as vezes, quando eu falo, as pessoas não conseguem entender, que vão esquecer, eu digo: “Olha, você conhece o Nelson? Eu sou o feminino.”Aí as pessoas gravam, sabe?Mas na região onde eu nasci tinham muitas pessoas que tinham esse nome, então era comum ter, sabe? Nelsa, Zelia, Celson, que é o nome dos meus irmãos,e aí a mãe acabava também, eu acho que como eram muitos filhos, também eles iam esgotando um pouco as ideias e… Se tinha alguém que já tinha, que era um nome que eles achavam lega, e acabavam colocando nos filhos
P/1 – E eu queria saber se te contaram sobre o seu nascimento, sobre o dia do seu nascimento?
R – Sim, a mãe contou muitas vezes, eu fui uma das últimas que nasceu em casa, só meu irmão mais novo que não nasceu em casa, meus dois irmãos mais novos, então a gente tinha a parteira que vinha, né, eu nasci em casa. E a mãe sempre conta assim, que a minha vizinha, ela tinha só filhos e todo mundo dizia que ia vir uma menina, que ela ia ter uma menina. Então, essa vizinha, ela faleceu há pouco tempo, mas ela foi uma das primeiras que foi lá quando eu nasci, ela sempre contava assim, do meu nascimento, da felicidade que foi, que ela foi lá e que ela me viu bem pequenininha, sabe? Então,eu tenho muito essa marca assim, eu lembro até hoje do quarto dos meus pais, que depois eles construíram uma outra casa, né, era um quarto grande onde, a gente adorava ficar no quarto deles, aquelas camas de madeira, sabe? E foi ali que eu nasci, e foi nessa casa também que eu me criei junto com os meus irmãos. E que logo que meus pais casaram, todos os casais, eles casavam e ficavam um tempo com os sogros né, com os pais do pai, e os meus pais ficaram até nascer o terceiro filho, então na verdade, eu quase que, só teve um que nasceu em casa, e depois fui eu que nasci nessa casa, que já era muito esse sentimento, eu nasci na casa que não era casa do vô, era casa dos meus pais, entao era um lugar que a gente gostava muito. Era uma casa grande, as gurias dormiam todas num quarto, os guris dormiam todos em um outro quarto, então éramos em 7, você imagina o que que era, era uma cama para três, então eu sempre dormi na parte dos pés, minhas irmãs na cabeceira, e foi assim que a gente foi se criando
P/1 – E como que era a cidade no entorno?
R – Então, naquela época, a gente, hoje ela se transforme em uma cidade, que era um distrito da cidade de Flores da Cunha, por isso que eu falo que eu nasci em Flores da Cunha,porque na minha identidade está que é Flores da Cunha, então era um distrito pequeno, a gente ia para escola a pé, ia para missa também, dava para ir a pé, depois meu pai conseguiu ter uma caminhonete, então a gente ia de carro. Mas, era 3,5 km, então eu me lembro assim, de já ter saído de casa para ir comprar uma agulha, que minha mãe precisava costurar, tive que caminhar 3,5 km, sabe? Para ir, e 3,5 km para voltar, e era um lugar muito simples, assim,muito…Todo mundo ia para missa no domingo, todo mundo ia para capela, né, que era o lugarejo menor, era onde servia os moradores no domingo a tarde, então as mulheres ficavam conversando, os homens jogavam cartas, as 16h para tudo, todo mundo ia rezar o terço, aí vai sendo… As crianças iam para a catequese, depois os jovens ficavam jogando bola, ficavam na frente da igreja, esperavam os namorados virem, sabe? Aí os namorados acompanhavam até em casa, das minhas irmãs eu acompanhei muito, né, aí eles jantavam com a família, depois eles iam embora, então era muito um lugar que a rotina se repetia de uma forma muito tranquila, assim. Tinha um incentivo muito grande para as pessoas estudarem para padre e freira, que era um lugar muito católico, então os meus dois irmãos eles moram em São Paulo hoje porque eles foram fazer filosofia em São Paulo, né, para morar em Santo André ali com os Franciscanos, então, e era uma coisa que todas as famílias queriam muito, sabe? Então,era um lugar com muitos costumes bem conservadores, porque só tinha italiano morando ali, então repetia, as comidas eram praticamente todo mundo parecidas, as festas em homenagem a todos os santos que você possa imaginar, e depois com o tempo esse lugar foi crescendo um pouco mais, cidade …E acabou hoje ela é uma cidade, esse distrito foi se desenvolvendo e hoje ela é uma cidade, é uma cidade que tem princípios bastante conservadores e economicamente muito bem resolvida, assim economicamente,assim… direto a Ceasa, os agricultores compram dos outros e vendem, sabe? Tem um desenvolvimento muito grande, assim, trabalham muito, produzem bastante. E tem como princípio fundamental o trabalho, então assim, quanto mais trabalho há, mais importante é a pessoa, sabe? Então o trabalho é dia e noite, quando eu era criança a gente não trabalhava jamais num dia de domingo, sabe? Ou num dia que fosse um dia santo, agora, hoje, eles trabalham, sabe? Porque o importante é trabalhar, trabalhar muito, então quanto mais colher, mais importante é a pessoa, eu acho que foram perdendo uma série de valores também, que eram muito mais legais quando a gente era criança, do que hoje, mas economicamente é um lugar extremamente resolvido. Não tem pobre no local, todos são pequenos proprietários na serra, então é muito morro, não tem como alguém ter grandes fazendas, todos são agricultores familiares, mas que conseguem escoar muito bem a sua produção, então conseguem ter uma vida boa do ponto de vista econômico.
P/1 – Nelsa, e você comentou um pouco sobre as brincadeiras na roça, sobre o fato de você ter tido uma boneca só quando era mais, né. Eu queria saber quais foram as brincadeiras que você tinha. que você mais gostava quando você era pequena?
R – Olha, a gente brincava muito de fazer casinha embaixo dos pés de uva, então no período que faziam as cestas, que eram feitas, a gente coletava umas… E a gente, o meu pai fazia as cestas e acabava sobrando um monte de coquinhos, e eu e meu irmãos, nós íamos e nós fazíamos as casas, as casinhas embaixo dos pés de uva assim. E era muito legal, porque a gente brincava, brincava o dia inteiro, era algo maravilhoso, tipo a gente fazia pão com pedra, sabe? Brincava que aquilo eram os pães, aí a gente, nossa, era muito, muito legal, sabe? Então,nos domingos também, a gente se encontrava muito, a turma das crianças, e a gente ia brincar nos campos, sabe? Às vezes lugares tipo bosques que tinham árvores, a gente acabava enfeitando isso, a gente tinha também uma brincadeira, que era uma turma ficava de um lado, e outra turma do outro lado, e no meio ficava um pau plantado, a gente chamava de barra bandeira, os que estavam de um lado tinham que fugir para um outro lado tentar tirar, sem que o outro se tocasse, sabe? Então a noite era comum isso, a gente ia ate 10h30 da noite, brincando disso, e eu gostava também de jogar bola, era uma das coisas que eu gostava bastante. A gente jogava vôlei também, tinha muitas, muitas brincadeiras mesmo que a gente fazia muito com coisas que a gente tinha, sabe? Então, eu acho que isso motivava muito a criatividade, eu me lembro de a gente construir as casas com galhos de nada, sabe? E transformava em lugares maravilhosos para a gente poder brincar, então qualquer coisa era motivo, a gente… De criar, sabe? Sempre muito isso de estar com o outro, sabe? Não eram brincadeiras que você ia no lugar e ficava brincando sozinho, eram brincadeiras que você precisava da outra pessoa, era divertido estar com outras pessoas, era legal estar com outras pessoas, né. Eu me lembro que meu irmão é o único que tem, meu irmão mais novo é o único que tem uma diferença maior entre nós, porque entre nós é tudo seguido assim, um ano e meio, dois de diferença, e ele, como nós já estamos nos afastando mais dele, ele gostava muito de jogar carta, então ele jogava do lado da mesa,depois ele virava as cartas para baixo, depois ele ia jogar no outro lado as cartas, depois ele vinha desse lado, então eu falei: “Poxa vida, no nosso tempo, quando a gente, antes do tempo deles a gente sempre estava em muitas pessoas”. E os meus pais também eram assim, a noite,fazer cerão, os homens jogavam cartas e as mulheres ficavam conversando, às vezes fazendo alguma outra atividade, mas os homens ficavam jogando cartas, dobre tudo no inverno, que as noites são compridas, até altas horas da noite, era impressionante, e as mulheres ficavam só fazendo comidas, comidas, comidas, e a gente brincando, depois entrava, era pipoca, pinhão, tudo que você possa imaginar, assim, das noites de cerão. Mas eu posso te dizer, eu tive uma infância muito legal.
P/1 – Eu queria saber qual é sua primeira lembrança da escola?
R – A minha lembrança da escola é uma escola que era muito perto de casa, aqui, como ela foi criada na época que o governador era Oronel Brizola, ela se chamava de Brizolinhas, então são escolas de madeira, e dentro da escola a minha primeira professora se chamava Ossolina, e ela tinha 4 quadros, quadros verdes, ela dava aula para primeira série, para segunda série, para terceira série, e para quarta série. E tinha quatro quadros, então cada uma acompanhava o seu quadro, e ela botava as atividades no quadro, corrigia as atividades, era impressionante, sabe? E eram turmas em torno de 20, 20 poucas crianças, e que ficavam lá na parte da manhã. Me lembro só de ir para escola na parte da manhã, então era muito legal, era legal porque a professora. ela também sempre trazia, todo mundo levava a sua merenda, então na hora da merenda a gente saia para o pátio para brincar e as vezes a gente ficava na sala porque a professora dividia a merenda dela e era muito gostosa, a merenda dela era um pão com uma geleia de maçã, que até hoje sabe, e sinto o gosto daquilo, assim. E era uma professora muito legal, sabe? Eu acho que a gente teve uma alfabetização super boa assim, com esse modelo da educação que foi implantado. Depois ali, foi diminuindo o número de crianças, hoje não tem mais nenhuma lá no local, passaram a ser todas no centro de .. E as crianças se deslocam e vão para lá, mas isso sabe,criava laços muito fortes com a vizinhança, porque você imagina, você estava ali, né,todos os dias, com os vizinhos. E uma das coisas que também era muito ruim naquela época, a gente tinha uma merenda que era um leite em pó, quem fazia era uma vizinha, mas era muito horrível, porque ele vinha cheio de bolinha, sabe? Então, a gente não gostava da merenda que era aquele leite em pó cheio de bolinha que ele fazia, mas era o jeito dela fazer que não era legal, sabe? Mas imagina, sabe, naquela época todos tinham comida, sabe? E a gente tinha merenda na escola, então eu acho que tiveram coisas que realmente são surpreendentes no que acontecia naquela época e que veio evoluindo, assim, nem sempre em melhor forma do que era.
P/1 – E você estudou lá até quando?
R – Eu estudei até a quarta série, todo mundo estudava só até a quarta série, depois, passa então, a ir pro centro de Nova Pardo, que era onde eu cursei a quinta e a sexta série.
P/1 – E tem alguma história marcante dessa época, assim, um momento que você lembre assim, que foi marcante? Pode ser uma história engraçada, ou uma história triste, ou que você lembre com carinho.
R – Ai, a gente ia para escola na parte da tarde, esses dois anos eu fiz na parte da tarde,então a gente vinha de lá, você imagina 3,5 km, uma turma de adolescentes,crianças, adolescentes. E a gente buscava, entrava no mato, procurava uma corda e vinha para casa pulando corda, então sempre os pais estavam apavorados, porque a gente nunca tinha hora para chegar, imagina até o tempo da gente achar a corda, depois vinha pulando corda, às vezes a gente ia pegar bergamota, sabe? No caminho, entrava nos pátios vizinhos para pegar e vinha comendo até em casa, então sempre era uma festa, assim, sempre os pais ficavam muito preocupados, assim, e queriam que a gente chegasse também para ajudar nas tarefas, e eu acho que era divertido, assim. Mas, ao mesmo tempo a gente precisava muito estudar, porque eram muitas provas que tinham, de manhã, como a gente estudava a tarde,de manhã a gente ia para a roça, então o estudar era a noite, que nem sempre era tranquilo também de estar estudando a noite então era… Não era uma coisa, assim, era uma coisa que era importante estar na escola, mas não se tinha tanto tempo assim para se dedicar também a estudar, tinha que aproveitar o final de semana, algum momento a noite, para poder depois dar conta do estudo. Mas, tem uma coisa assim, que eu acho que era muito marcante no período da escola, minha irmã mais velha que eu, ela chegou um dia, ela já estava na oitava série, e não tinha cadeiras para todo mundo, então cada aluno tinha que levar a cadeira para escola,um dia ela decidiu que ela não queria mais estudar, acabou, acabou com vida dela, ela não queria mais estudar, ela chegou em casa com cadeira, aí a gente ficou enlouquecido, meus pais enlouqueceram assim,porque realmente era como dizer “ponto fina, eu não vou mais, dá aqui a cadeira, trouxe para casa a cadeira.” Aí eu lembro que meus pais tiveram que fazer todo um processo de convencimento para ela voltasse com a cadeira para escola para concluir a oitava série, mas meus pais tem muito orgulho, assim, de ter feito a gente, sabe? Seguir, que ninguém desistisse de pelo menos ter feito o ensino médio, a única, não é o ensino médio, né,até a oitava série é o fundamental, é a minha irmã, só a minha irmã mais velha que não fez, porque ela acabou fazendo só até a quarta série, assim, mas ela se vira bem, sabe? Mas, até hoje assim, meus pais sempre… Assim, ela concluir até pelo menos o ensino fundamental.
P/1 – E nessa época, daí já começava, já trabalhava de fato, né, na roça?
R – Sim, a gente trabalhava o dia todo, fora o tempo da escola, tempo de férias também, férias era trabalhando o dia todo, eu não tinha, né, que nem hoje, a gente vai passear, vai fazer outras coisas, era trabalhar o dia todo. E assim, também era um trabalho pesado, sabe? Era trabalho de enxada mesmo, era trabalho de, meus pais sofreram muito, assim, porque, era carregar peso, assim, então a gente, na época de tirar uva,carregava, a gente carregava, ás vezes uma cesta em cada braço, sabe, cheia. Era carregar lenha, era capinar, era carregar coisa, sabe, que precisasse, então era trabalhar, trabalhar, o tempo todo, e todo mundo ia para a roça, daí quando fosse perto da noite, uma das, sobretudo as minhas irmãs, que eram mais velhas, elas voltavam da roça antes para começar a fazer o serviço que era pensar na janta, começar a tirar leite das vacas, e tal.; Depois vinha todo mundo, aí ajudava, mas eu quero te dizer, que eu fui também criada num ambiente muito machista,porque meio dia, por exemplo, os homens chegavam, então tinha sempre uma que ficava em casa fazendo a comida, daí as outras chegavam, as mulheres ajudavam a terminar, e os homens a descansar. depois a gente sentava na mesa para almoçar e os homens depois iam dormir, tirar uma siesta, e as mulheres lavar a louça, limpar a cozinha, preparar tudo, e muitas vezes quando a gente tinha terminado de fazer isso, eles já tinha terminado de fazer a siesta, “vamos embora” , então essa era uma das coisas que me revoltava muito, muito, muito, sabe? Porque a gente tinha que fazer esse serviço? É algo muito forte, ainda, assim, se valoriza muito o que os homens fazem na roça, tanto que fala assim “ Os homens foram trabalhar e as mulheres ficaram em casa.” Assim, não é:” Os homens foram trabalhar na roça e as mulheres estão trabalhando em casa”.” Então é um machismo forte demais, demais assim, então talvez seja uma das coisas que eu carrego, assim, com muita revolta, sabe? Porque eu me lembro que a primeira vez que o meu irmão lavou a louça ele fechou a porta,fechou a janela, trancou tudo, para que ninguém visse, então era algo muito, muito forte, assim, essa coisa machista, sabe que no interior ela é muito gritante, ainda
P/1 – E ,mesmo nessa época você já percebia isso?
R – Sim, porque era físico isso também, poxa vida,eu queria que depois que eles tivessem terminado eu também fosse descansar, né. Mas não, aí “Vamo embora, vamo embora porque tem um monte de trabalho." Então, tu vais, lógico que não com a consciência que eu tenho hoje, mas tu vais sentindo, assim, o tratamento, ela é diferente, sabe? E eu não sei se tem como se acostumar, se acostuma, né, porque depois as mulheres também reproduzem essa educação. Hoje vem mudando um pouco, sabe, isso, mas ainda é muito forte valorizar isso do trabalho da roça, é o trabalho, o de casa ele é uma outra coisa, como se fosse possível não ter esse outro trabalho. Então, tanto que a gente foi educado assim, fazer… Fazer esse tipo de coisa de comer, as mulheres faziam no domingo, enquanto os homens iam jogar carta, descansar, as mulheres ficavam fazendo… às vezes ficavam costurando, ficavam fazendo coisas, porque isso não é trabalho,isso é alguma coisa, que é a obrigação feminina a se fazer. Acho que essa, isso marca toda a minha vida, sabe? Essa revolta assim, dessa diferença, dessa… De vez enquanto você sentir que parece que não consegue mudar isso, sabe, que tá tão conformado nas pessoas que quando você vai falar elas ficam achando até que você é muito revoltada, que tem que ver como sempre foi assim, sabe? Então, é algo que bate muito forte.
P/1 – Nelsa, eu queria saber se você passou a juventude na mesma cidade, como que foi a sua adolescência?
R – Então, eu com 13 para 14 anos eu fui morar em Flores da Cunha, que é uma cidade, que é a cidade né, que naquela época… Era distrito ainda. Eu tinha uma vontade, de fazer alguma coisa, sabe? Que fosse diferente, que pudesse fazer uma coisa, naquela época eu entendi, eu queria fazer o bem para os outros, e aí como tinha isso da questão da religião muito forte, eu fui morar num lugar para estudar para ser freira, então eu, nessa cidade,a gente também continuava trabalhando na roça, numa horta muito grande que tinha lá, nós plantamos tudo, plantamos milho, plantamos várias coisas,e.. Foi o lugar onde eu fiz a minha sétima e oitava série, foi uma casa nova, diferente, né? Nós moramos, acho que nós éramos umas 8, 9 jovens, tinham duas irmãs que moravam com a gente, e começou a fazer mais esse acompanhamento, sabe? De ver se era isso que a gente queria na vida e tal, aí eu fiquei 2 anos morando nessa cidade, meus pais vinham me vistar muitas vezes, mas eu podia ir para casa todos os finais de semana, né, essa convivência muito direta. Eu acho que foi um período muito bom. E eu não sei porque, mas eu quero te dizer que teve uma coisa muito marcante, que marcou muito a minha vida, assim, naquele período que estava lá, o meu irmão, o Roberto, esse que mora em São paulo, ele me mandou um livro chamado “ O pequeno príncipe “, hoje eu não consigo entender o que foi naquilo ali que me encantou tanto, sabe, já li várias vezes, mas teve alguma coisa que despertou algo diferente em mim, sabe? Que esse mundo podia ser diferente, que a gente podia fazer alguma coisa para ele ser melhor, aí eu segui, no ano seguinte, já era 79, eu fui morar em Garibaldi, que aí era um colégio grande mesmo de freira, e nesse lugar a gente ficava só lá dentro, sabe? Então, tinha um hotel, dentro do próprio convento, onde a gente servia no restaurante, também arrumava as camas, limpava a escola, porque tinha uma escola também, o magistério ele acontecia lá dentro, a escola de segundo grau. E a gente, o único lugar que a gente saia de lá era para ir na missa, na paróquia, assim. Tinha café lá dentro, tinha a missa, tinha tudo, então era um lugar muito interno, foi um lugar aonde eu comecei a me perguntar se era isso que eu queria da minha vida, sabe? Eu olhava assim para as pessoas, para as outras freiras também, e eu sentia que eu queria alguma coisa disso, mas não era bem isso, não imaginava assim, nunca ficar com alguém, sabe? Não ter um parceiro, assim, eu queria isso na minha vida, eu sempre gostei de alguém, sempre tive alguém mesmo no período dos seminários, sabe? Com os seminaristas que vinha e tal, sempre teve alguém que eu achei legal, e aí eu queria que desse para conciliar isso, sabe? mudar o mundo, mas ter uma vida, uma vida afetiva, que fosse com alguém, que esse modelo não bastava, então depois disso, elas achavam que eu estava muito segura naquilo que eu queria. E nós fomos em três morar em Pelotas, que é uma cidade aqui no interior do Rio Grande Sul, e elas começaram uma experiência, como é que seria três jovens, morando numa casa, , e na frente dessa casa tinha um grupo de freiras, freiras que moravam, então nesse lugar, eu acho que foi a experiência mais forte que eu tive na minha vida, sabe? Que não tinha amparo econômico de ninguém, nós tínhamos que trabalhar, para se sustentar, para comprar as coisas, e a irmã inclusive que nos acompanhava, era uma pessoa extremamente de esquerda, assim, você não faz ideia, assim, era uma assistente social, irmã e ela sempre nos deixou muito livres, assim, discutia muito, fazia análise da conjuntura, análise da realidade, imagina? A nossa cabeça virou, assim, no sentido de não querer aquele modelo fechado que a gente tava integrado, então foi um período onde eu trabalhei em biblioteca de escola, trabalhei em posto de saúde, né, foi quando eu comecei a viver muito forte essa relação com o mundo do trabalho, mas foi exatamente nesse período que eu acho que eu conheci o que transformou muito a minha vida, que foi o movimento de jovens chamado “ Juventude Operária Católica” que foi a… E a Bernadete que era uma das que morava naquela época junto na casa, ela que começou a ver esse acompanhamento, sabe? De dizer “ Olha que legal que seria vocês participando do movimento, que trabalha o método ‘Ver, julgar e agir’, a gente analisar, ver porque que as coisas acontecem, buscar saídas, e tal, era bem importante vocês estarem nesse movimento.” E eu me lembro que um dia o bispo foi lá e ele falou “ O que que você achou desse movimento?” “Aí.” eu disse “Eu acho que se a gente quer mudar o mundo precisa estar em movimento nenhum não, é só a gente fazer a nossa parte e tal. “ Não passaram três meses eu já estava participando do movimento, já tinha ido no primeiro encontro que teve em passo fundo, e aí, foi assim, eu acho que até hoje, é a base da minha vida, sabe? Esse movimento me ajudou muito a criar consciência, e aí quando foi no final já, e aí foi o ano que eu fiz 18 anos, você não faz ideia a minha felicidade no dia em que eu fiz 18 anos, nem os 15, nem outra idade foi tão importante para mim na vida, como foi o dia dos 18 anos, eu me lembro que eu pulava de felicidade porque eu podia assinar as coisas, eu podia responder por mim, sabe? Então tem uma marca muito forte, e foi nesse período dos 18 anos que nós decidimos não continuar naquele projeto de seguir aquele caminho, então cada uma de nós foi para lugares diferentes. Eu fui morar, alugar uma peça, uma casa, a Bernardete foi para outro lugar, a Jacinta já tinha saído antes, e eu queria então trabalhar muito como operária, assim, estava trabalhando no posto de saúde, e queria trabalhar naquilo que era o maior sofrimento dos trabalhadores naquela cidade que era trabalhar como safristas, que era o período da coleta dos pêssegos, e esse foi um período muito forte, assim,acho que marcou muito a minha vida, muito sofrido, porque a gente trabalhava, era tudo muito controlado, sabe? A gente não tinha tempo, a gente tinha 15 minutos por dia para ir no banheiro, então tinha uma pessoa dentro do setor que ela ficava controlando a hora, e era longe, sabe? Não era um banheiro do lado da onde a gente trabalhava, era muito longe, então a gente chegava lá, era praticamente 3000 pessoas que trabalhavam, sempre tinha uma fila de gente, sabe, para ir no banheiro, então você tinha que ir correndo, voltar, porque a soma das duas vezes que você fosse , se passasse os 15 minutos, passava a descontar o seu final de semana, e descontar no seu salário. Nem precisava me perguntar quanto a gente ganhava, porque ninguém ganhava mais que o salário mínimo, então era sempre um período de safra, então foi um período muito curto, e um período assim, que a gente, eu sabe, eu não tinha prazer nenhum pelo trabalho, eu estava lá realmente para ver se a gente conseguia fazer alguma coisa para mudar aquela realidade, então eu pegava um ônibus muito cedo de manhã, a gente começava a trabalhar 6h30, e ia até 5h30, 6h00 da tarde, e eles faziam o pagamento depois do horário de trabalho, então depois do horário de trabalho a gente ia para uma fila infinita, e 10h30 da noite a gente ia embora para casa. Então era muito sofrimento assim, não tinha como alguém ser feliz naquilo, eu me lembro da gente trabalhar com os, porque o pêssego, ele passava por um turbilhão de água e soda, e aquela soda ficava no pêssego, quando a gente pegava o pêssego para tirar os caroços, ou então as pontinhas pretas que ele tivesse, aquilo ia roendo no meio dos dedos da gente, então ficava assim, sabe, às vezes em carne viva no meio dos dedos. A gente trabalhava com moranguinho, o moranguinho manchava a nossa mão,como é que a gente ia para uma festa no final de semana com as mãos todas manchadas? Então a gente não ia para festa também nos finais de semana, eu tinha vergonha, inclusive na hora que a gente passava no ônibus, sabe, de pagar a passagem, então foi um período muito sofrido. E foi também naquele ano que a gente resolveu,disse “Vamos fazer alguma coisa, vamos fazer alguma coisa para essa realidade não continuar.” E a gente fez uns panfletinhos, que foram largados nas filas no dia do pagamento, era uns homenzinhos feito palitinho, sabe? E nós mostrando que não dava mais para continuar, e foi muito legal assim, foi nossa primeira ação, a gente ficou super feliz, e em seguida não teve mais o pagamento depois do horário de trabalho, depois do horário de trabalho, O pagamento no mês seguinte passou a ser o horário de trabalho, então a gente ficou muito feliz, foi nossa primeira conquista. A partir daí foi… Foi organizado um congresso de jovens trabalhadores, a gente organizou nas várias vilas de Pelotas, nós fizemos quatro congressos grandes, nós conseguimos fazer maior congresso do Brasil naquela época, maravilhoso. com toda discussão, com jovem participando, sabe? E a gente marcava assim com o pessoal da fábrica para conversar sobre a vida, para, as vezes eles vinham achando que iam namorar, né, e a gente queria era falar sobre a realidade , a gente marcava, eles vinham, no domingo a tarde, eles falavam “ Puxa, você só sabem falar sobre isso? A gente quer falar sobre outras coisas.” A gente queria era falar sobre a realidade, sobre mudar as coisas, sabe? Então foi um período muito forte, e foi também o período, pela primeira vez eu participei do movimento sindical, porque tava tendo a negociação,e nós fomos e contamos o que estava acontecendo na nossa fábrica e eu mais um colega ficamos na comissão de negociação, junto com o sindicato. O sindicato super… Sabe, e a gente começou a falar das coisas todas que estavam acontecendo lá, e eu sei que um dia, nós chegamos na hora da negociação, quando nós chegamos, eles estavam falando mal da gente, o patrão e o sindicado falando mal da gente, assim. Então, foi muito difícil, lógico que quando acabou a safra a gente não conseguiu mais voltar a trabalhar nas fábricas, mas a gente começou a fazer muito essa organização da juventude, e aí já era em 83, esse movimento por eleição nacional, né, para direção, e eu passei a compor a direção nacional da JOC e eu morei em São Paulo durante 3 anos ali na… São Joaquim que é onde fica a sede até hoje desse movimento, e era um processo super legal, porque a gente viajava o Brasil inteiro para ajudar a onde tinha JOC a fazer o planejamento de vida e ação, era o planejamento de vida e ação, sabe? Era você organizar a sua vida como jovem, e ver como você poderia mudar o mundo onde você estivesse. O fundador era um padre belga e ele dizia que a gente tinha que mudar o mundo onde a gente tivesse, então se você estivesse trabalhando numa loja, é lá que você tinha que mudar o mundo, se você tivesse trabalhando numa fábrica, era lá que você tinha que mudar o mundo, se você tivesse morando num bairro, era lá que você tinha que mudar o mundo. Então, a gente ia, discutia com aqueles que eram do movimento para planejar as ações, curto, médio e longo prazo, com revisão constante,e a gente fazia muito revisão de vida, sabe? Era assim… A gente sentava, e cada um falava da sua vida, das suas angústias, da suas expectativas, e a gente discutia a vida de cada um, de forma coletiva, olha eu nem posso imaginar hoje a gente fazendo isso, sabe?Então, era, ia formando muito consciência, sabe? Muito envolvimento com tudo, e o movimento que marca, tem muitas pessoas que atuam fortemente hoje, e que vieram desse movimento, assim, inclusive no período que tava a JOC, foi o período também que estava a pastoral operária que era muito forte, e as vezes eu encontro, esses dias encontrando o Gilberto Carvalho e a gente fala “ Puxa,nós viemos da mesma vertente, do mesmo.” E muitas pessoas que eu gosto muito, sabe, que estão atuando, são lideranças sindicais populares, vieram desses movimentos, e eu vivi muito esse movimento da igreja, da teologia da libertação, até agora no mês passado, eu conheci a pessoa que eu mais admirei naquele período, sabe,da teologia da libertação, que é o Leonardo Boff, quando eu encontrei ele eu falava assim “ Eu não acredito, o que significa, eu estou vendo você, sabe? Estar encontrando com você hoje, porque foi muito inspirador.” Porque aquele período em Pelotas, foi o período das comunidades de base, a gente fazia celebrações nas garagens, sabe, perto de casa, com os moradores, a gente celebrava o que tinha acontecido na fábrica, a gente celebrava o que tinha acontecido durante a semana no bairro,sabe. Então, e quem celebrava era o ministro da eucaristia, que era meu vizinho, sabe? Um morador maravilhoso, Gilberto, que era quem fazia as próprias celebrações, então era muito… celebrar a vida, sabe, contar as coisas que tinham acontecido, e foi nesse ambiente, sabe? Muito esse ambiente assim, que não aliena, que hoje muito quando se fala de religião geralmente ela vem casada com com uma alienação profunda, eu tive o privilégio de viver o tempo em que estar nisso era estar profundamente consciente, sabe,profundamente comprometido e indignado com as injustiças do mundo, e a gente se integrar para mudar essas injustiças que tem. Aí esse período na joc foi um período muito importante, então nos fazia muito essa ligação com a igreja, então sempre tinha nas coordenações um padre que acompanhava, quem os acompanhou naquele período foi o Reginaldo Andrieta que hoje é bispo de Jales, né. E foi quem depois celebrou o casamento da gente, mas foi um período muito marcante, você não faz ideia o que que foi, sabe? Sai de ônibus aí de São Paulo para ir… Ir até Belém do Pará, sabe, eram dois, 3 dias de viagem, Piauí, Fortaleza no Ceará, Bahia, Minas Gerais. Quer dizer, a gente tinha praticamente movimento em todos os estados, então acho que isso me deu uma formação, uma dimensão muito profunda assim de vida, muito marcante.
P/1 – Nelsa, antes da gente começar a falar sobre economia solidária de fato, eu queria te perguntar duas coisas, a primeira é como você se sentiu no dia do panfleto que vocês distribuiram e como reverberou né? Eu queria saber como você se sentiu naquele momento?
R – Olha, no dia daquele panfleto eu era a pessoa mais feliz do mundo, você não faz idéia, imagina, é o panfleto mesmo, eu acho que eu tenho ele em algum lugar guardado, sabe? Porque era assim, era um mimeógrafo, um papelzinho, que era assim, era um monte de palitinhos um atrás do outro, de homens e mulheres palitinho, sabe, dizendo que assim não dava mais para continuar, sabe, a situação. E era legal, porque daí eles estavam distribuindo e a gente estava lá dentro, esperando na fila, fazendo de conta que aquilo não era nada com a gente, mas quando nós saiamos para fora, gente era uma felicidade, uma felicidade, eu acho que a gente achou que tinha feito a revolução no mundo sabe? Então, nossa, foi muita vibração, muita vibração mesmo, e mais ainda quando já no próximo mês ja mudou, sabe, então isso é algo, quando você tem um retorno muito rápido de uma ação é algo maravilhoso, assim, eu acho que deu uma força de ver que realmente o mundo podia ser mudado, né?
P/1 – E a outra pergunta que eu queria saber é que você, durante assim, a sua juventude acabou se mudando muito, né? Assim, você foi primeiro de Nova Pádua para Flores da Cunha, depois para Pelotas e depois para São Paulo, é isso?
R – Nova Pádua para Flores da Cunha, depois Garibaldi, depois Pelotas, depois São Paulo, e depois eu fui para Fortaleza, e depois para Porto Alegre
P/1 – E como que foi lidar com tantas mudanças sozinhas, o que que foi que você sentiu quando você fazia essas mudanças? O que que estava passando na sua cabeça, qual era sentimento?
R – Nenhum, acho que nenhum, foi muito fácil, sabe? Sempre foram decisões difíceis de se tomar, mas sempre tinha uma expectativa boa, sabe, em cada uma delas tinha uma expectativa boa, diferente, e encontrar pessoas diferentes, né, então eu nunca tive muita dificuldade assim nas relações com as pessoas, assim, de entrosar de poder tocar adiante, então, eu sempre achava que ia ser o passo melhor, ao mesmo tempo sempre com o sentimento, sobretudo assim, deixar Pelotas foi uma das coisas muito doidas, sabe,para ir para São Paulo, porque a gente estava num pique que você não pode fazer ideia, assim, era muito. E a gente, era uma mistura de tudo, sabe, era uma mistura de reunião, de fazer revolução, de juventude, de fazer atividades diversas, então tudo estava acontecendo, sabe? Tudo era bom assim, do que estava acontecendo, e estava interrompendo, mas ao mesmo tempo estava sendo colocado um desafio que era importante sabe, na conta ter. Daí o período que eu fiquei sem São Paulo também acabei encontrando os meus irmãos lá, que moravam naquela época em São Paulo, depois foram morar em Santo André, então a gente se encontrava muitas vezes, sabe? Muitas vezes se encontrava na avenida paulista, ia tomar uma cerveja, poder conversar, a gente as vezes sai cantando música, descendo a Brigadeiro ali, sabe? Então era muito, suavizando bastante a distância dos pais, porque daí passou a ser bem mais difícil de encontrar eles, né. E foi também no período de saida para Pelotas para São Paulo que eu comecei a namorar, então meu companheiro que eu estou até hoje, o Claudir, eu conheci antes de ir para São Paulo e ele estava já morando em São Paulo, na mesma equipe, então foram 3 anos que eu tinha alguém muito perto de mim todos os dias, né, que era… Construindo uma relação mai sólida, quando chegou no final dos 3 anos de coordenação a gente casou. Nós fomos casar em passo fundo, que é a cidade dele, fizemos uma festa grande, tinha mais de 300 pessoas,o pessoal veio vindo de ônibus de São Paulo, tinha o pessoal da Argentina do Uruguai, dos lugares mais diversos que você possa imaginar, vieram, fizermos uma grande celebração, tinha 5 padres que foram assessores na JOC que estavam na cerimônia, eu sei que tinha uma mesa grande que meus pais levaram frutas o pessoal comeu tudo durante a celebração, porque demorou, e o pessoal estava com fome, então foi um casamento muito legal, assim, que muito tempo ainda as pessoas falam das coisas que aconteceram antes do casamento e depois, e tiveram inclusive casais que se conheceram no nosso casamento e depois acabaram ficando. E aí quando terminou… A gente tinha um desafio que era fortalecer a JOC em algum lugar, porque a gente tinha um acúmulo muito grande de 3 anos de direção, e tinha um desafio que era ou ir para a Argentina, ou era ir para o Ceará, ou era ir para Argentina começar o movimento lá, ou ir pro Ceará e fortalecer o que tinha, e a gente escolheu ir para o Ceará, então esse foi um outro momento muito especial na nossa vida, porque o desafio era ir pro Ceará e trabalhar nas fábricas de confecção, e para trabalhar nas fábricas de confecção eles não estavam aceitando mulheres casadas, então eu tirei minha aliança e fui trabalhar como se eu fosse solteira, morando com meu irmão, que era meu marido, morando com ele, que precisava estar lá, porque tinha problemas de saúde, então estava acompanhando meu irmão, por que alguém sairia do Rio Grande do Sul para ir pra lá? Então estava acompanhando ele, que precisava de um clima quente e tal, então acabamos ficando lá durante um ano. E daí eu trabalhei nas fábricas, consegui na época … que era uma fábrica grande, depois, aí a gente lógico né, fomos para lá para já tocar direto e tal,vamo organizar, já chamamos mas o pessoal para uma reunião no salão da comunidade lá, e eu conhecia quem era da fábrica, né todos, mas o meu gerente de produção foi para a reunião, aí no outro dia ele me demitiu, eu e minha colega. Então, já assim, chegando, mal chegando a demissão, aí fomos atrás de uma outra fábrica para trabalhar, e a gente pegava, eu pegava dois ônibus para ir, foi um período legal, sabe, foi um período que aconteceu duas greves gerais no Brasil, as duas vezes as duas fábricas pararam, então para gente também foi muito marcante assim, isso da gente ter vivido esse período. Eu também não sabia nada de costura, era revisora de qualidade, eu trabalhava e não sabia nada de costurar, eu revisava só os defeitos que tivessem nas peças, foi meu primeiro contato nesse mundo da costura,e aí foi um período marcante, assim, lá aconteceu, um período que aconteceu de novo o congresso de jovens, então a gente organizou o congresso na cidade, depois viemos para o congresso nacional em São Paulo, com um ônibus que saiu de fortaleza até São Paulo. Foi um período que a gente organizou bastante a questão da juventude, e sobretudo da confecção, sabe? Foi um período assim, muito legal, organizamos oposição sindical, então foi uma marca muito forte. Aí quando foi no final do ano a gente veio para Porto Alegre, começamos a procurar um lugar para a gente parar, né, de andar e ficar num lugar que fosse uma casa, que fosse da gente, tal, e procuramos numa ocupação que tinha aqui em Porto Alegre, que é onde a gente mora até hoje. É uma ocupação que aconteceu na década, no final da década de 70, era um lugar que plantava arroz, e no dia para noite ela foi ocupada, tanto que no primeiro momento ela se chamou "caída do céu “ depois “ Vila Nossa Senhora Aparecida”, e foi ocupado público, então aqui não é um lugar assim, que tem um salão da comunidade, tudo virou casa. E quando nós começamos a procurar um lugar para a gente ficar, a gente andou muito aqui e não conseguimos achar lugar nenhum, a gente tinha pouca economia também, a gente falou “ A, vamo lá para o interior, ficar um tempo lá com os pais, e a gente não gasta dinheiro ficando aqui, enquanto vamos pensando o que a gente vai fazer da vida.” Aí antes de nós irmos, nós caminhamos na fila que está hoje, nós passamos assim, olhamos, perguntamos para um jovem, uma criança que estava de bicicleta, a gente falou assim: “ Você não sabe de alguma casa para vender?” Aí ele falou que não, aí nós vamos andando, quando nós chegamos na outra esquina ele chegou de bicicleta, e disse assim: “ Olha, minha mãe está querendo vender a casa.” Aí voltamos, falamos com ela, eu não me lembro que dinheiro era, mas a gente tinha assim, tipo 200, sabe? Do dinheiro, e ela queria 400, e a gente falou assim “ A, nós não temos esse dinheiro, né, vamos sair fora, vamos… “ E aí conversando com os pais, sabe, que a gente queria muito e tal, aí eles falaram assim: “ Não,nós podemos emprestar para vocês.” Aí o meu irmão, também de São Paulo, disse que podia emprestar, aí nós tínhamos uma amiga na Bahia que também acabou nos ajudando, e a gente voltou e acabou comprando esse lugar aqui… Porque era a época que a inflação era um horror, sabe? Então, a gente tinha que devolver isso, e todo mês assim, virava outro tanto. A gente fazia as contas, a gente via que era algo impossível do nós conseguimos fazer. era impossível. Eu me lembro assim, que às vezes eu estava trabalhando, eu tentava fazer a conta: “Mas olha, mesmo que a gente fizer isso não tem jeito, não tem jeito da gente conseguir.” E eu fui procurar trabalho numa fábrica de alimentos, e aí o meu companheiro foi numa metalúrgica, eu fui numa fábrica de alimentos, trabalhei lá durante 5 anos, então foi um período muito importante, assim, eu comecei a atuar bastante dentro da fábrica, né, sobretudo assim, deve a greve geral, e a gente foi fazer piquete nas empresas de ônibus, a fábrica foi recolher todos os trabalhadores com uma kombi, passou na frente da empresa de ônibus e eu tava lá, né,e no dia seguinte quando eu fui trabalhar eles me chamaram e eu estava grávida,e eles não puderam me demitir, então eu sofri muito na fábrica, você não faz ideia assim, o sofrimento porque eles me colocaram no trabalho mais pesado que tinha, trabalhar o dia inteiro enchendo fardos com pacotes de 20 kg , e eram pacotes de 500 g de florentina, milharina, a gente ia colocando dentro dos fardos. Era muito, nossa, eu chegava em casa eu estava acabada assim, chorava, sabe? Porque eu tinha muito dor na minha barriga também, então a minha gravidez foi dura o tempo todo, eu não saí daquele local, bem no finalzinho eles me colocaram numa outra sessão que era bem longe da produção, praticamente isolada de todo mundo que eu não via quase mais ninguém, assim, fazia um intervalo diferente, e também foi um período que eles começaram ali e eu continuei atuando, sabe? Então, a gente, eu me lembro que teve uma das coisas que a gente começou a se encontrar sabe, fora da fábrica, e nós queríamos que fosse reajustado o valor, porque a gente queria, fazia tempo que a gente não tinha reajuste. Aí a gente deu o prazo, até as 4 horas da tarde, se não viesse um aviso de reajuste, a gente ia parar, e eu me lembro que o meu gerente me chamou, e ele me perguntou o que eu pensava que eu era “ O que que você pensa que você é, você acha que você pode determinar o que que a empresa vai fazer?” Eu falei: “ Eu não penso nada do que eu sou, mas se não der o reajuste até tal horas nós vamos parar.” Aí quando foi 15h30 eles demitiram a minha colega, e às 16h00 eles deram o reajuste para todo mundo, e foi muito duro, sabe? Aí começou um período de demissão, quem eu conversasse eles mandavam embora, então às vezes a gente se encontrava atrás dos caminhões, sabe, que faziam o transporte para a gente conversar, eu comecei também a não me sentir no direito, sabe, de que outras pessoas fossem demitidas, então foi um período muito difícil, a gente organizou oposição ao sindicato, e aí a gente, primeiro a gente compôs com a direção para ver se a gente conseguia mudar dentro, entramos no grupo, e não conseguimos ter mudanças, a gente organizou oposição, aí também a gente perdeu a eleição e acabou que esse período entre estar no sindicato, eu engravidei do meu segundo, tive a minha primeira filha a Gabriela, e depois tive o meu segundo filho o Tiago, então foi um período assim de muita atuação, foi o período que eu mais atuei no movimento sindical, organizamos as mulheres na federação estadual de… Fizemos congressos, fizemos muitas coisas legais assim, de organização da categoria, participei dos congressos da CUT, de toda essa construção, e sobretudo melhoramos muito as condições de trabalho da fábrica, pode se dizer que ela não era das piores fábricas, sabe? Muito pelo contrário mesmo, ela tinha um nível salarial que não era tão ruim quanto, mas lógico que a gente queria que fosse melhor, e também a gente teve lutas assim, de direitos, a gente conseguiu o café da manhã, que a gente não tinha, porque eu saia de casa às 5h30 da manhã, então eu deixava meus filhos na casa de uma vizinha, e iá, pegava o ônibus das 5h30 para ir trabalhar, e chegava em casa 6h00, 6h00 da tarde, quando eu pegava os filhos de novo para retornar, então precisava ter café da manhã, então a gente conseguiu café da manhã, conseguimos melhor a alimentação do dia, que era, nem sempre era boa. A gente conseguiu um auxílio, como não existe creche que abre 5h00 da manhã para as mães deixarem, então que pudesse ter algum valor para ser pago, que pudesse colocar os filhos em alguma creche próxima de casa, então foi melhorando um monte de coisa nas condições de trabalho. E aí quando chegou um período em que a minha estabilidade venceu, do período do sindicato, tal, fui demitida, e aí eu pensei: “ Bom…” Sabe, eu só quero te contar uma coisa que me marcou muito, que eu disse: “ Eu não quero mais isso para minha vida.” Porque até ali teve muito essa consciência, sabe? Sobretudo de querer mudar dentro da fábrica, então o período que eu fui nas fábricas de safra de Pelotas, até esse período da minha vida, eu achava que isso era muito importante, mas eu não era feliz, no trabalho, sabe, naquilo que eu fazia, eu queria muito que chegasse o fim do dia, de vir embora, e eu achava que era um desperdício de vida a gente estar trabalhando, para a luta sim valia a pena, mas pelo salário, sabe? Você está fazendo aquilo que você não gosta, e eu me lembro que um dia eles homenagearam a minha colega, que ela completou 20 anos dentro da fábrica, e ela contava sempre que ela não viu os filhos crescerem, que ela não conhecia os vizinhos, porque a fábrica, além da gente fazer esse horário, ela exigia que todo mundo fizesse duas horas extras por dia, e eu não fazia, porque eu tinha estabilidade e eu podia negar, mas os outros não podiam negar, então, todo mundo ficava até as 8h30 da noite, trabalhavam sábado e domingo direto assim, essa minha colega trabalhava direto nos sábados e domingos, e ela não conheceu ninguém. E eles deram um presente para ela no dia que ela completou os 20 anos, e eu fiquei … Assim, que eu mais me indignei, sabe? Que alegria você tem um presente desse? Que orgulho que você tem de ter trabalhado 20 anos numa empresa que te tirou tudo da sua vida, que te tirou todo sentido, e aí eu pensei: “ Não, eu quero trabalhar em alguma coisa que eu possa lutar, e que eu possa ser feliz também, e aí quando eu fui demitida eu comecei a perseguir essa ideia, sabe, de buscar alguma coisa que eu gostasse de fazer, e que eu pudesse lutar também. E aí eu pensei, que eu já tinha duas crianças pequenas, então tinha que pensar também em como dar conta disso tudo, e comecei a costurar em casa,por conta, agora me diz se eu sabia muita coisa? Muito pouco, nada, sabe, eu sabia. Aí eu consegui os moldes, através da minha sogra, uns moldes de costura, comecei a comprar tecido, e meio que assim, eu não sei, sabe, tanto que eu comprei as duas máquinas, a máquina de costura, e acabei pedindo para empresa que ela tinha que trocar a minha máquina, porque ela furava as peças, que era um absurdo, que ela tinha uma falha terrível, só depois que eu troquei a máquina que eu descobri que a agulha era muito grande, e eu tinha que ter uma agulha mais fininha, olha se isso tem cabimento de alguém querer ser uma costureira, mas aí eu fui aprendendo assim, a primeira roupa que eu fiz foi uma calça pro meu filho, uma calça cinza. E foi um dia que eu chorei muito assim, porque eu andava pela casa e eu dizia “ Olha aqui, isso aqui fui eu que fiz, sabe? Fui eu que fiz.” Porque até aí eu nunca tinha feito nada, porque eu sempre tinha trabalhado na linha de produção, então encher fardo, encher saquinho de milharina, lavar pote de vidro, sabe? Nunca era um produto feito, nunca era algo que você olhasse e dissesse assim: “Isso aqui foi você que fez.” Então foi um dia de muita, muita felicidade, sabe? Lógico que a calça furou, né, mas assim, depois eu fui resolvendo isso, e comecei então a comprar tecidos, eu comprava o tecido, cortava e fazia. E as pessoas começaram a vir em casa, para pedir “ Oi, eu quero uma calça.” Naquela época não tinha as roupas de um preço tão, com um preço tão acessível quanto é hoje, então as pessoas vinham “Aí, da para fazer um vestido de viscose aberto, fechado?”. Eu fui indo fui fazendo, e comecei a sentir uma felicidade muito grande de ver minhas vizinhas vestidas por uma roupa que eu tinha feito, então eu trabalhava muito, sabe? Eu trabalhava até as 3h00 da manhã costurando, as pessoas não tinham hora, elas chegavam meio dia, elas não tinham hora para ir embora, não tinham hora para chegar, vinham sabe? E eu tocando, aí cuidava das crianças, e ao mesmo tempo costurando,daí a gente ampliou por uma salinha nos fundos né, de casa, do lado assim, na frente de casa, onde as pessoas chegavam, e foi assim que eu fui trabalhando durante dois anos, foi um período que eu me envolvi muito com a questão do bairro, então a gente começou a participar do orçamento participativo, foi algo muito marcante, assim, na nossa vila não tinha nada, sabe? Não tinha asfalto, não tinha saneamento básico, faltava tudo aqui, e a gente conseguiu mudar totalmente a nossa comunidade, assim. A gente fez um acordo que cada ano era uma rua que a gente ia batalhar para ser asfaltada, então reuniões grandes, todo mundo participando, todo mundo se conhecia, então quando a gente tinha conseguido melhorar uma rua, as pessoas que tinham melhorar participavam para melhorar no ano seguinte, aí eu fui delegada, fui conselheira do orçamento. Aí eu pegava minha filha na escola, quando ela fez o pré, era o prézinho, depois ela foi para a primeira série, eu pegava ela lá 5h00 da manhã, nós pegávamos dois ônibus e íamos para reunião do conselho do orçamento, e ela ia junto,sabe? Então, até hoje encontro conselheiros que hoje são vereadores da cidade, e eles sempre lembram dela, porque todo mundo brincava com ela, porque era a única criança que estava, e a gente vinha às vezes cantando música, tocando, então os meus filhos também, eles foram crescendo participando assim, nas assembleias eles iam, tinha brincadeira para criança, então eles ficavam brincando, então foi um processo muito de ver a nossa vila sendo transformada. A gente trouxe brincadeiras para comunidade, eles brincavam, o lugar de brincadeira, ele sempre foi na rua, porque a gente não tinha praça, não tinha lugar, então a rua era o encontro de todo mundo. E aí trabalhando esses 5 anos, eu fui começando a ter uma outra, um outro sentimento, eu me sentia só, sabe? Apesar da ação na comunidade, eu queria trabalhar com outras pessoas, queria ter alguma coisa que desse para gente trabalhar com outras pessoas. E aí eu encontrei, tinha uma assistente social, muito comprometida aqui, da unidade de saúde, e também uma outra mulher já, que tinha sido jovem do mesmo movimento que eu, começamos a reunir nós 3 e pensar coisas que a gente poderia fazer, sobretudo com as mulheres. E uma das coisas que a gente pensou, ela queria muito trabalhar com os adolescentes, então ela começou a dar curso de datilografia, e eu queria trabalhar com as mulheres, e foi aí que começou a história da economia solidária, porque a gente pensou que podia ajudar as mulheres daqui, para costurar para o hospital , o qual o posto de saúde pertencia, que é o maior hospital do estado, que é o hospital Conceição. E aí teve um dia que teve uma manifestação, porque nós não queríamos que um médico legal que tinha aqui, Dr Marcelo fosse embora, então teve um dia do fica Marcelo, e o gerente do hospital veio para essa manifestação e aí nós fomos conversar com ele para ver se a gente, porque eu pensava assim, que nós tínhamos máquinas, algumas domésticas, muitas mulheres também do interior, que a gente poderia costurar para esse hospital, só reformas, nós imaginávamos assim, costurar lençol rasgado, fronhas descosturadas, e tal. E a gente falou para esse gerente se a gente poderia costurar para esse hospital, ele falou “Mas que boa ideia que vocês tiveram, e quantas vocês são?” Nós éramos nós 3, né, a gente falou “ Nós somos umas 20.” Se não ele não ia dar crédito para gente, dizendo que fosse só 3, aí ele falou “Então vamos." E ainda falou “Que boa idéia “. Você sabe que para trabalhar para hospital tem que ser uma cooperativa, ou uma associação, aí chamamos as mulheres, vieram 19 na primeira reunião, e aí a gente descobriu que não podia fazer cooperativa com 19 naquele período né, em 86, tinha que ter no mínimo 20, na segunda reunião viram 35 mulheres, dentro de um salão da comunidade aqui, e a gente não sabia o que era abrir cooperativa, mas a gente achou assim “Cooperar deve ser uma coisa boa, se ajudar.” E aí buscamos o estatuto da … Que é uma cooperativa habitacional aqui de Porto Alegre, e fizemos o grande circo e começamos a discutir o estatuto, então o nome da cooperativa “Cooperativa de costureiras venceremos.” Aí discutindo artigo por artigo, e no fim tinha que datilografar esse estatuto, quem que ia datilografar esses estatuto? Não tinha também pessoas que tivessem máquina de datilografar, tanto que o nosso estatuto ele foi datilógrafo uma parte por uma máquina, outra parte por outra máquina. Também a gente entrou na junta comercial, cada vez que o estatuto ele ia ser contestado, voltava, nós tínhamos que pegar a assinatura de todo mundo de novo, e datilografar de novo, porque hoje não, hoje você vai ali, corrige e imprime, né. Então, eu tapei, então foi um período muito difícil, foi o período da criação da cooperativa, sabe? Foi um período que a gente não tinha dinheiro, não tinha onde trabalhar, era dentro dessa salão da comunidade que a gente conquistou também, e a gente, cada uma trabalhava na sua casa, então você imagina assim, qualidade, não tinha como ter acompanhamento.Serviço, a gente começou a pegar as facções quando a costura já vem cortado para a gente costurar, aí nós pegamos o primeiro serviço que foi 35 mulheres, para fazer 105 moletons, jaquetas de canguru e capuz, nos pagaram um real por jaqueta, não que hoje seja muito mais que isso, mas pagaram um real para gente fazer cada jaqueta, quando nós fomos dividir… Você sabe o que é dividir 105 reais em 35 mulheres? É uma tristeza assim, não é nada. Aí cada vez assim, que ia sendo difícil, uma ia desistindo, então foi um período muito, muito complicado assim da gente pensar muitas vezes “ Será que isso vai dar certo? Será que a gente vai conseguir” A gente começou a participar de tudo, tudo que tivesse a gente ia com os mosquitinhos, e largava os papeizinhos dizendo: “ Olha, eu tenho uma cooperativa de costureiras na zona norte de Porto Alegre” E quando foi no final de 96 o sindicato dos metalúrgicos fizeram uma tomada de preço para fazer 500 camisetas, e a gente, então “ Vamo tocar as 500 camisetas.” Nós cortamos, compramos com cheque pré datado a malha, cortamos, confeccionamos, mandamos fazer a … Num conhecido e entregamos as camisetas, quando nós fomos entregar as camisetas a qualidade era terrível, tinha descosturado debaixo do braço, gola torta, gola escapada, era duas pessoas para arrumar o que estava ruim e mais 3 para dobrar para gente poder entregar, nossa, mas foi muito, muito feliz, o dia mais feliz de quando a gente criou a cooperativa, porque a gente foi dividir, e foi em dezembro, foi a primeira vez que a gente teve um retorno de ver dinheiro na mão da gente. Então, foi algo assim, uma grande virada assim, e a gente falou assim “ É isso que nós vamos fazer, agora vamos buscar parceiros, vamos buscar quem possa nos apoiar, daí para o caminho, vamos fazer projetos, vamos divulgar que a gente precisa, a gente conseguiu duas máquinas com… Depois conseguimos mais recursos com a… Depois a gente pegou um apoio do… para ter o primeiro apoio de capital de giro, que foram 3000 reais, e fomos tocando a cooperativa, e aí a gente começou a ouvir falar de uma pesquisa sobre economia solidária, ele pesquisaram… e Santa Maria, e a gente acabou se integrando na economia solidária sem saber muito bem o que que era, mas nós éramos isso, então foi um período bem difícil, assim, a gente começou fazendo pijamas, mas as pessoas não tem muito pijama, né, compra um, depois ele dura muito tempo. Então, depois nós começamos a fazer uma coleção de camisetas de Porto Alegre, com criadores, a cooperativa foi indo, foi indo, e ela foi se consolidando. Os filhos foram crescendo também, acompanhando sempre esse processo assim, sempre junto, assim, então a família sempre vibrou muito.E eu me lembro um dos momentos muito marcantes, teve, Porto Alegre fez um edital para selecionar histórias no trabalho, e eu escrevi a história, a história desse período de Pelotas, a fábricas, o período também na COAF, até o começo da cooperativa, e ela foi selecionada como a melhor história sobre o mundo do trabalho, e eu me lembro que eu e o meu filho, nós pulávamos em cima do sofá assim, nós pulávamos, pulávamos, pulávamos “ nós conseguimos, nós conseguimos. “ Ele virava “Nós conseguimos né, mãe? Nós conseguimos” A gente sempre vê direito, mesmo os dias que eram para levar de volta o estatuto, eles sempre estavam juntos, sabe? Então, cada vez, eu me lembro que uma vez … Quanto voltou? Umas 10, 15 , sabe? E quantas vezes assim, eu voltei chorando, assim, e eles iam consolando “Não mãe, a gente vai conseguir, vai conseguir.” Sabe? Então, eles eram muito uma fortaleza no sentido de sentir que o que a gente estava fazendo era certo, e que ia ser possível fazer essa virada, e aí veio vindo o período de participar da economia solidária, participar dos fóruns. Teve um fórum social mundial, os 5 fóruns sociais mundiais de Porto Alegre que marcam a vida de muita gente aqui de toda cooperativa, porque a gente começou a conhecer gente da França, da África, da América Latina, da Europa. E a gente era o motivo das pessoas virem, sabe? As pessoas vinham muito na nossa cooperativa, eles vinham para conhecer as mudanças que o orçamento participativo tinha feito, e as mudanças que nós tínhamos aprendido com o orçamento participativo, que gerou a criação da cooperativa, porque foi por causa do orçamento que a gente criou a cooperativa. O orçamento participativo nos ensinou que só é possível mudar o mundo participando, então a gente falou assim “ Se nós conseguimos melhorar..” A nossa vila hoje é toda asfaltada, sabe? Tem pavimentação nela, tem saneamento básico, e foi fruto da participação, então o passo para criar a cooperativa, foi entender que esse era o jeito de nós mudarmos o mundo, que era participando, e assim a gente criou a cooperativa, então as pessoas vinham e queriam conhecer a cooperativa, e conversar com os moradores, davam entrevistas para a TV, sabe? Então a cooperativa sempre foi muito assim, presença de pessoas que ajudaram a ir formando consciência, e as mulheres integrando, participando, né. Eu me lembro que uma vez tinha, o Gilberto que morava lá na Bélgica, e tem uma mulher da cooperativa que ela sempre conta “ Nunca esqueço a história dele, que ele dizia que tirava neve de cima do telhado, olha só que loucura.”Sabe? Então, mesmo essa troca de cultura, algo que mudou muito a consciência da gente. E o fórum social mundial ele trouxe o passo a mais que a gente deu de poder fazer isso, de poder construir a… Muito, eu vim participando do fórum, porque daí eu participei do fórum brasileiro de economia solidária, foi também algo muito marcante, assim, de conhecer pessoas do Brasil inteiro, que estavam integradas em setores econômicos tão diferentes, sabe? Que a gente podia pensar junto, nós fizemos o encontro nacional com 2000 empreendimentos participando, sabe? Em São Paulo, em Brasília, em Brasília que foi profundamente marcante para nossa vida, de poder estar ali debatendo sabe, a diversidade do que nós somos, do que nós estávamos construindo. E a UNISOL Que foi um outro momento, assim, espetacular, sabe? De você criar uma entidade que fosse representante das cooperativas e dos nossos grupos de economia solidária, e a UNISOL me deu oportunidade de conhecer a Espanha e a Itália, então foi o ano que eu pude em 2003, aí teve um intercâmbio lá com a Espanha, e quando eu sai de lá do intercâmbio eles gostaram tanto da nossa história que eles financiaram a construção da cooperativa UNIVENS, da nossa sede da cooperativa, mas foi muito marcante, assim, poder estar, e participar desde o começo, sabe, da concepção, da criação da UNISOL Brasil, participar da direção desde o começo, sabe? E da gente sentir que a gente tava fazendo também política pública dentro da própria missão, e nesses dois espaços é que a gente foi conhecendo, quem planta algodão, quem faz fio, quem faz tecido, que é toda essa criação da… E foram períodos difíceis, sabe? Criação da … Muito, assim, inspirado naquilo que a agência de desenvolvimento da CUT escreveu, dos complexos cooperativos, a gente começou a pegar isso, sabe, eu a Idalina, a Dalvanir, sabe? Começamos a pensar isso como algo a ser perseguido a qualquer custo, nós tínhamos que criar essa rede, nós tínhamos que criar essa rede, e aí as pessoa a gente contava que a gente ia conseguir criar essa rede, e as pessoas às vezes diziam assim “ Vocês pensam que se fosse fácil já não teria sido criado, vocês não vão conseguir, quem que vocês pensam que vocês são para conseguir criar uma rede desse jeito, sabe? E nem eram pessoas, eram pessoas que eram colegas às vezes de luta também, sabe, e a gente sempre ia tendo assim, era um dia de vitória e um dia de derrota, um dia assim que a gente vibrava e nos dias difíceis assim, sempre tinha um ombro, um ombro, sabe? Uma vez a gente foi em São Paulo, porque a gente queria muito um empréstimo para poder desenvolver toda essa rede, a gente não conseguiu, eu me lembro assim, eu e a Idalina sentadas numa calçada do aeroporto de congonhas,e eu chorando e ela dizendo “ Não, vamo Nelsa, vamos, que nós vamos conseguir, nós vamos conseguir.” Então, era sempre assim, quando alguma tivesse triste a outra apoiava para estar tocando. E a gente conseguiu então fazer as primeiras roupas em em 2005, no fórum social mundial, antes disso a gente fez 60 mil bolsas, com 35 grupos coordenados a partir da cooperativa aqui, envolvendo fio, tecido, né, e todo processo de costura quando entrega é maravilhoso você ver pessoas do mundo inteiro carregando sacolas que a gente tinha feito. E já no final do ano a gente já estava com roupa, já feitas, do algodão orgânico da Justatrama, que é no Ceará o plantio do algodão em.., Naquela época ainda era… de São Paulo que fazia o tecido, a Cones de Nova Odessa fazia o fio, a Açaí está desde o começo, cooperativa Açaí lá de Rondônia fazendo os botões, os colares que acompanhavam as peças, a fio nobre de Santa Catarina fazendo a parte do tricô e também roupas né, e a cooperativa UNIVENS aqui de Porto Alegre, que é ontem acabou sendo a sede da Justatrama. Então foi um tempo de muito, muito, muito crescimento, assim, até a gente entender, né, tanto que o Paul Singer, ele sempre falava com orgulho da Justatrama, que ele dizia que a gente era a desalienação do trabalhador, e da trabalhadora, porque a gente conseguia dominar tudo o processo de produção, imagina isso na economia solidária, sempre foi algo e é até hoje muito encantador, porque não existe outra cadeia tão completa quanto é a Justatrama, e ainda mais tem algodão orgânico, né, que é isso, poder ter um algodão que ele é consorciado, trabalha na ecologia. E aí a Justatrama também, ela foi mudando com o tempo, né, mudando alguns elos saíram, outros foram entrando, e nessa caminhada de construção da Justatrama a gente teve muitas perdas, assim, perdas bem difíceis, difíceis de assimilar, sabe? A primeira perda que a gente teve, inclusive a primeira perda foi da Sandrinha, que depois é a inspiração do banco aqui, lá do banco palmas, depois a gente perdeu a Idalina, né, e perdemos a Dalvanir lá de Rondônia, e as 3 morreram de câncer, assim, no seu vigor da luta, da juventude, marca profundamente, assim, toda, marca muito a minha vida, sabe? Às vezes eu paro para pensar, teve um momento que eu disse “Eu não quero mais levar.” Porque sempre vem como algo que emociona muito, sabe, cada coisa que a gente consegue, eu sempre penso “Puxa, se elas estivessem aqui para ver o que a gente fez, o que vem acontecendo depois elas iam ficar muito orgulhosas e muito felizes, assim por essa construção.” Então, a Justatrama, ela abriu um leque enorme, e assim, tenho orgulho infinito na minha vida, sabe? Da gente ter conseguido construir essa rede, sabe, essa inspiração, eu acho que a gente é muito isso, sobretudo ela se mantém viva para ser uma grande inspiração, de dizer que a gente pode, que a gente consegue, que a economia solidária ela pode fazer algo profundamente transformador numa sociedade, numa outra forma de promover desenvolvimento, e de fazer uma distribuição justa de renda, porque a Justatrama, ela consegue remunerar o melhor valor dos agricultores, sabe? Ninguém recebe o que os agricultores da Justatrama recebem pelo plantio e assim em todo seu processo, e é nosso, sabe? Se a gente decide fazer uma roupa bordada com as flores das plantas consorciadas com algodão, a gente decidir a gente faz, se a gente decide o que a gente decide, sabe? Caí sobre nós isso, é lógico que a gente precisa que alguém depois consuma esses produtos, comprem isso, mas isso está bem no processo de encantamento que a gente faz, que a gente não quer um consumo desenfreado, a gente quer um consumo que ele também seja consciente, que você pense se você precisa daquela roupa, aquela roupa ela acaba não tendo nada sintético, então o próprio meio ambiente ele consome ela de uma forma mais rápida, da gente não gerar resíduo sabe, então estão aí fazendo bonecas, fazendo jogos, lixas, para fazer com que tenha vida longa esse processo todo. Então, ele é um processo assim, é indescritível, sabe? O que acontece com a vida, e eu sempre falo “ Eu não queria estar em outro lugar, que não fosse estar fazendo isso que a gente está fazendo hoje, e essa rede, essa cadeia nos transformou, porque olha, ninguém de nós sabia fazer nota fiscal, hoje a gente tem um sistema digital, a gente foi aprendendo, a gente foi aprendendo a lidar com um… De automação, sabe? Coisa que a gente nunca imaginava, criar, a gente achou que criar era uma coisa de design e a gente cria peças. a gente cria vestido, a gente cria roupa, sabe? Então, é algo que da uma outra perspectiva, e sobretudo quando está numa rede dessas, você pensa “ Aqui eu posso estar a vida toda.” É um período que a gente tem que sentir que da para fazer sua parte, de poder estar nesse processo a vida toda, então é um sentimento que acaba marcando fortemente não só a mim, mas a todas as que estão envolvidas, porque acho que uma das coisas mais triste assim, que quando você está tocando a sua vida, e de repente parece que as coisas estão andando, e aí é interrompida, como no mundo do trabalho, e a gente está numa construção que é um lugar que a gente pode estar a vida toda, e ainda mais integrado, sabe, a gente vê quanto mais vai conquistando mais agricultores, plantando de forma consorciada, de forma que preserva o meio ambiente, envolvido com esse processo todo de transformação de fio, tecido, sabe? É o que dá muito prazer, em cada peça que a gente tem, tem uma vida que acompanha, então isso é o que dá um sentido muito especial para a nossa vida, e para tudo isso, sabe? Que eu acho que são poucas pessoas que podem dizer que são profundamente felizes naquilo que faz, e eu acho que que tem isso que a gente conseguiu construir, tem, eu acho que 70%, possibilidade de ser uma pessoa muito feliz. Então, esse trajeto de vida, sabe, e ter chegado a construção da Justatrama, viabilizado a cooperativa UNIVENS, estar na Justatrama, sentando, se encontrando com cearenses, com rondonense, com mineiro, sabe, e rondonense, e a gente poder estar construindo isso. E hoje a Justatrama tem se transformado essa rede que não tem mais esses mesmos componentes, vieram vindo outros elos, que se mantém desde o começo, é a Dec lá no Ceará, a cooperativa Açaí lá de Rondônia, a cooperativa UNIVENS aqui de Porto Alegre, os outros eles foram se alterando, então não tem mais São Paulo dentro da rede, né, mas tem a Coperteste lá de Minas, que é onde faz o processo de tecelagem e fiação, a gente tem a cooperativa, não tem mais a cooperativa que faz o plantio do algodão lá do Mato Grosso do Sul, mas a gente tem a associação Chic lá do Rio Grande do Norte, então isso é muito especial, sabe, também, você não precisa estagnar, entre outros autores a gente consegue ir perseguindo o mesmo sonho. E aí nessa construção toda, tem uma marca muito forte em 2016, que a gente queria que tudo isso que a gente estava fazendo, não estava conseguindo dar um impacto daquilo que a gente queria aqui na nossa comunidade, então com toda essa construção, a gente já tinha então a cooperativa UNIVENS, a gente já tinha a Justatrama, toda essa articulação da Unisol também, e a gente tinha já criado também uma cooperativa Nova Geração para fazer o trabalho com as crianças, porque a gente sentia que precisava ter um lugar que fosse também com o método Paulo Freire né, que, onde pudesse ficar os filhos, os netos das cooperadas, e também as crianças da nossa comunidade, então é uma cooperativa super legal que tem aqui na nossa comunidade, que se chama cooperativa nova geração, que é tocada por mulheres também, né, as educadoras todas são mulheres. E a gente sentiu nesse período, e aí foi um marco assim, sobretudo em 2016, a onde havia muito forte a presença do tráfico aqui na vila e que a gente precisava fazer alguma coisa para isso, que não bastava só nós termos criados a Nova Geração, ter a cooperativa UNIVENS, ter todo esse processo, porque o tráfico estava muito forte, e era muito, muito tiro, de metralhadora, crianças, jovens sendo assassinados, e foi um período duro, sabe? Da gente estar, pensando assim, que futuro ia ter esse local, e aí a gente decidiu que nós precisávamos fazer alguma coisa de impacto no território, e aí não lembramos muito,né, do Joaquim, da Sandrinha, do Dr Palmas, da Idalina que sempre dizia que um dia a Justatrama ia ter um banco comunitário, e nós criamos o banco Justroca, que e o banco aqui das pessoas da comunidade, começamos a conversar, ver se esse era o caminho, chamamos as pessoas da vila, para ver se eles achavam que um banco podia ser algo legal, e eu me lembro muito que um morador, ele disse assim, ele levantou na assembleia e disse assim “ Eu quero falar, quero dar um testemunho, eu sou do interior… “ Ele falou “ Lá tinha o fulano…” Ele falou “ Que ele tinha um pequeno armazém, e ele nunca dava o troco para as pessoas em dinheiro, ele sempre dava um papelzinho que dizia ‘Vale dos reais’ e botava o nome do armazém em cima dele, sabe que ele foi crescendo, então eu acho que o banco comunitário vai da certo.” E eu acho que ele pegou muito o espírito da coisa, porque a gente lida até hoje com a moeda e papel, e isso foi muito legal, porque 2016 estava o período do golpe do Brasil, onde as pessoas começaram, era difícil você ver onde que você se apegava, no que acreditar, então foi um período que a gente precisava materializar isso, então nós temos a moeda do justo, a nossa moeda ela tem o nome das ruas, porque as ruas da nossa vila foram todas elas escolhidas de forma democrática, a gente passava pela rua pedia sugestão dos nomes que as pessoas quisessem, que tivesse o nome da rua, e depois a gente voltava e as pessoas votavam, qual era o nome que elas achavam mais legal. Então, aqui a gente tem a rua do povo, rua Aparecida, a rua da Esperança, Mario Quintana,da Cultura, então são nomes que vão expressando muito, o que também a comunidade foi construindo, então nossa moeda, ela tem exatamente assim, o nome das ruas com símbolos nas cédulas. E esse banco, então nós cadastramos toda a comunidade, a gente viveu todo um processo assim, de apropriação dessa moeda, com microcréditos também, empréstimos. E aí não sei se foi disso, mas acho que isso ajudou também, hoje a nossa vila é um lugar maravilhoso de se viver, não existe tiroteio, não lembro mais a última vez que a gente ouviu um tiroteio aqui na comunidade, então a gente é um testemunho vivo do que de fato um banco comunitário, ele traz de fato uma mudança muito profunda no território. E veio a pandemia, né, que foi um período muito difícil, foi o banco comunitário que a gente conseguiu trazer cesta básica pro povo aqui, não teve nenhum um outro programa, né, que não fosse através do banco comunitário que chegasse, a gente conseguiu fazer chegar máscaras até as pessoas para se cuidarem. A gente vem fazendo cursos, agora para as pessoas serem reintegradas no mundo do trabalho, ou então para desenvolverem iniciativas de economia solidária, a gente vem também fazendo muito discussão sobre a realidade, discutir a questão da mulher, discutir questão de raça, a questão da economia solidária, de como poder começar um negócio que seja individual, mas que aos poucos ele se transforme em coletivo também, a gente faz muito curso também de costura, teve sociais novas que entraram na cooperativa foi exatamente a partir de curso que fizeram promovido pelo banco, a gente desenvolveu também curso de tricô, agora nós já temos um grupo de 7 mulheres que estão fazendo as roupas com o fio né, com o cordão feito com o fio da Justa Trama, então a comunidade passou a ser um lugar muito especial, assim,a gente foi de casa em casa, no período da pandemia entregando sabão, entregando máscara, encontrando as pessoas, e foi muito lindo que a gente vibrou muito, porque, abandonadas por todo público como foi o período do Bolsonaro, período assim do governo do estado, do governo municipal, só quem estava cuidando era a gente, então as pessoas, a gente ia passando, e elas iam se chamando, né, sem vir para rua, vinham até o portão, e chamavam “ Vem, vem, vem, quem é que está cuidando da gente? .” Então foi um período de muita emoção assim, da gente ver as pessoas confiando muito trabalho sentindo como se elas tivessem lugar para se amparar quando não existe mais nada assim, prespectiva, porque também foi um período difícil né, um período que as pessoas, tivemos muitas perdas aqui na comunidade, muitas perdas de amigos, de vizinhos, então parece que você ter um ponto de apoio é um lugar que te da essa segurança e cuidado. Então, a gente está nessa construção que está sendo muito importante, assim, então, hoje é como se fosse um centro de apoio, então as pessoas hoje juntam tampinhas, levam pro banco, para a gente poder fazer a separação, as pessoas, eles vêem a gente troca com sabão, elas levam óleo de fritura a gente troca por sabão que é feito desse óleo de fritura. A gente ensina como fazer esse sabão, e a gente está tocando todo esse processo de construção que ele é muito importante, e que a gente entendeu muito isso, é preciso mudar aonde a gente está, o território onde a gente está, não da para pensar mudança se não muda aonde a gente vive no dia a dia, e a economia solidária ela é muito isso, ela transforma o ambiente que a gente está, e também ela tem um projeto maior de transformação que é um projeto de mudança da sociedade como um todo, e pra mim, assim, a Justa Trama é uma expressão disso, é possível você juntar pessoas de tão longe, reunindo as distâncias, com todo um processo de transparência, com um projeto estratégico. E a gente tem muitos sonhos, sabe? Nesses projetos, a gente não vai ficar nisso, cada dia surgem ideias diferentes, a gente quer estar produzindo, num processo de mais produção de escala, para que a gente possa juntar mais cooperativas para estarem trabalhando juntas, ampliar mais, ter mais agricultores plantando o algodão agroecológico. E aí eu acho que vem o recorte forte da política pública, assim como os bancos vêm avançando, para que os bancos sejam de fato reconhecidos pela política pública, como quem pode operar as políticas sociais, eu acho que esse é um grande passo pelas experiências que a gente tem, a gente sonha que na questão das cadeias produtivas, as redes, a gente possa estar fornecendo também para o poder público as roupas que ele encontre no mercado convencional, que ele possa comprar da economia solidária, assim como é a merenda escolar, assim como é todo o programa do PEAA, que a gente possa ampliar também para área urbana, imagina como é que a gente pode estar juntando cooperativas, e a gente está fazendo lençóis para os hospitais, estar fazendo uniforme dos presídios, nos espaços que são públicos que parte dessas compras sejam feitas da economia solidária, assim como é na merenda escolar, que a gente possa estar fazendo os uniformes para as escolas, quantas mulheres podem estar saindo da exploração que é o mundo do trabalho na confecção, porque as fábricas fecharam, mas as roupas continuam sendo feitas, e são feitas por mulheres que não tem jornada de trabalho, que não tem um sálario garantido, que não tem direitos, direitos trabalhistas, que não se aposentam nunca, que adoecem e não tem amparo, e que essa política pública pode resgatar essas mulheres, então a gente está muito de olho para avançar nesse sentido. Eu nunca medi esforços de estar na interlocução junto aos espaços públicos, eu participei no período de 2011 a 2014 no governo do estado, governo Tarso Genro, governo popular, um governo muito comprometido, né, de esquerda, onde criou pela primeira vez no Brasil criou uma secretaria estadual de economia solidária, em apoio a micro e pequena empresa, e eu toquei a parte a que diz respeito à economia solidária, nós tivemos um departamento que tocou essas ações, junto com mais uma equipe que fez parte comigo. Eu era a diretora teve junto comigo, a Berta, o Alonso, a Nena, a Maribel, e mais a equipe do quadro de trabalhadores estaduais né, no governo, e construímos uma política de estado, avançamos com a lei estadual, avançamos com uma lei aqui no estado, a onde o estado tem que comprar no mínimo 20% da economia solidária, a gente conseguiu regulamentar isso, conseguimos implantar o simples cooperativo que até o valor de faturamento as cooperativas não pagam o tributo do ICMS, 370.000 não pagam ICMS, depois passa a ser uma alíquota bem baixinha, e só volta a pagar os 17% quando ela tiver um faturamento de 4 milhões, e aí é bem importante que pague, porque isso que gera política pública, então conseguimos avançar na organização das redes e cadeias de produção, avançamos na constituição de casas da economia solidária,que são espaços da economia solidária onde acontece a formação, a capacitação e a comercialização, já estavamos com a elaboração para criar um fundo de economia solidária que não deu tempo, então avançamos bastante, assim, no sentido, criamos um conselho estadual de economia solidária, só que a política pública ela é assim, né? A gente, mesmo quando é uma política de estado, se assume um governo que não tem compromisso nenhum, ele diminui totalmente, primeiro ele diminui totalmente o espaço dentro do governo para desenvolver essa política, e depois ele vai, vai ignorando, se omitindo, tanto que a gente não conseguiu manter o conselho, isso porque o conselho não tem custo nenhum para o governo do estado, porque não teve mais interesse nenhum de tocar a economia solidária como política pública. E a gente sentiu também o que aconteceu a nível federal, então foram períodos muito difíceis para economia solidária e que a gente retoma agora com muita esperança né, com a questão da retomada da secretaria nacional da economia solidária, de para poder estar participando, e a gente espera que dentro dessa reconstrução a gente consiga reconstruir essas políticas públicas. Eu não posso deixar de dizer que vi toda essa trajetória na minha vida, da economia solidária especialmente, o Paul Singer teve uma marca muito especial, uma relação de amizade muito boa assim, muito bom da gente estar junto, da gente conversar bastante, sabe? E poder estar compartilhando muitas mesas com ele, me identifico muito com os sonhos que ele tinha, a gente tinha muita, muita identidade em comum das estratégias também, bebi muito do que ele deixou para a gente, e ele também me inspirou muito a escrever. E eu escrevi um primeiro livro em 2014, que é “Tramando certezas e esperanças” que conta muito essa trajetória toda da família, tal, que veio o filho, até a questão da JOC, do trabalho na fábrica, da criação da cooperativa até a Justa Trama. Aí veio um período depois, no dia que eu entreguei o livro para ele, ele disse assim “Gostei de esse jeito que você escreve, acho que você deveria continuar escrevendo.” E eu assumi esse desafio, continuei escrevendo, devo muito isso a ele, ele fez a apresentação do meu livro “Tramando certezas e esperanças”, e está na contracapa também, assim, então eu acho que sempre foi uma pessoa muito, muito inspiradora, acompanhei ele até o fim, até quando ele se hospitalizou em São Paulo, e acompanhando toda essa trajetória eu sei o quanto foi difícil para poder também implementar a política pública, porque ainda a gente tem que, tem que encantar mentes e corações para isso. E depois então eu escrevi o segundo livro, que já não tinha tantas certezas porque foi num período difícil, então é “Tramando esperanças “, porque a gente se alimentava muito mais nas esperanças do que nas certezas, e conta, então, esse segundo momento da Justatrama, conta todo esse processo da construção da política pública no período do governo de estado, e por fim conta a constituição do banco monetário Justatroca. De toda essa construção da política pública, eu nunca deixei de estar na cooperativa, então todos os dias antes de ir para o governo do estado eu ia para a cooperativa as 7h00 da manhã, ficava lá até 8h00, 8h30, conversando todas as questões que tinha, e me envolvendo também com a questão da produção. E quando terminou o mandato do governo, eu nunca, nunca sumi para ficar os 4 anos, eu sempre senti que era importante naquele momento dar essa contribuição, achei que eu ia ficar 2 meses, até organizar um pouco a política, as estratégias, depois 6 meses,depois passou o primeiro ano, então tá ia completar o segundo ano, e aí foi indo sem nunca ter certeza de ficar os 4 anos, sempre achando que era um processo de transição, e no fim se completaram os 4 anos. E no dia 2 de janeiro eu já estava de volta na cooperativa no mesmo lugar onde eu sempre estive,e muito feliz de ter participado dessa experiência da construção da política pública, e de voltar pro mesmo espaço, mas com uma bagagem enorme para construir, para estar tocando, eu acho que eu consegui contribuir mais ainda na construção da Justatrama, e to aí na construção da política pública e estar tocando em todos os espaços possíveis. É essa que eu queria trazer para vocês.
P/1 – Nelsa, e você estava falando, super legal, acabou abarcando várias que eu ia fazer para você, nessa resposta, e algumas coisas que ficaram assim, faltando né, que eu queria saber, é que na época da cooperativa da Justatrama, se teve alguma política, política da SENAIs que ajudou vocês como cooperativa e depois na Justatrama? Tanto a nivel federal, estadual, como municipal.
R – A cooperativa UNIVENS ela faz um trajeto, que ela vai se consolidando nos apoios que ela acaba tendo da sociedade civil, sobretudo das organizações que estão próximas a economia solidária, mas assim, muito, lógico a sede, alguns equipamentos foram muito pelas organizações, não pela política pública, que elas vieram. Agora, acho que se não tivesse a política pública a gente não tinha conseguido construir a Justatrama, porque foi um processo, primeiro a gente não teria se encontrado, porque o fórum brasileiro, eu acho que não teria tido o tamanho que ele teve se não tivesse tido a Secretária Nacional da Economia Solidária, que foi viabilizando as possibilidades de encontro disso. E depois também essa análise nos deu o primeiro capital de giro para a gente fazer a rede, sabe? Remunerar o agricultor, para fazer a ampliação, fazer a tecelagem, fazer a primeira roupa. E a gente se encontrava muitas assim, através de programas, sabe, que foram tendo assim. Então nós fizemos um convênio com o SEBRAE, tivemos um…Que a gente desenvolveu que a aperfeiçoou muito o nosso processo, então teve muita presença da política pública que nos ajudou a viabilizar, e fazer acontecer. Eu acho que se nós tivéssemos criado Justa Trama no período do Bolsonaro não tinha andado, de jeito nenhum, sabe? Não tinha andado mesmo. E muito assim, sabe, esse estilo de encontrar as pessoas, então ela foi muito importante, lógico que equipamentos, o tear veio pelo Ministério do Trabalho, sabe, o tear que a gente tem, então foi muito forte a presença da política pública, e sobretudo para proporcionar os encontros, sabe, de fazer as coisas acontecerem, A gente teve um projeto super bacana da fundação Banco do Brasil, da Petrobrás, sabe? Então são parceiros que também você só tem quando você tem um governo de esquerda se não eles desaparecem também, porque quem toca a frente são pessoas que estão comprometidas com a economia solidária.
P/1 – Outra coisa que eu queria te perguntar é se na época que você estava com o estatuto na mão lendo em conjunto com a suas colegas, amigas de trabalho, se vocês tiveram algum tipo de formação sobre economia solidária, ou se foi intuitivo mesmo?
R – Olha, não dá para acreditar, mas foi intuitivo, foi intuitivo, lógico tem a bagagem da JOC do orçamento participativo, mas foi muito intuitivo, sabe, nem tinha, não tinha uma… Naquela época tinha a prefeitura de Porto Alegre, mas também não tinha um setor, sabe? De economia solidária, a gente se aproximou deles quando a gente já tinha isso decidido, então todo o processo de constituir o estatuto foi muito nossa cara e coragem, às vezes eu ne entendo como é que a gente conseguiu, sabe? Vencer isso, porque foi muito difícil, uma vez a gente teve a visita de um vereador, que era o João Mota, daí ele ver como era que a gente estava, legal. Depois a gente se aproximou com a Secretária Municipal da Indústria Comércio, que era a Odair e o Ivan, eles, mas isso a gente já tinha resolvido essa primeira parte, e aí com eles foi legal porque a gente começou a discutir onde vender, onde comercializar, né, mas muito assim. Eles também eram departamento da Indústria Comércio e a economia solidária a gente foi praticamente as primeiras sabe, a gente, mais uns outros dois grupos que começamos, então também eles não conseguiam ter forças dentro da prefeitura para dizer que essa política precisava ser maio. E aí foi indo, foi indo, começou a ter feiras, a gente participava, começou a dar visibilidade, foi crescendo, mas é difícil de acreditar, sabe? Quando a gente vai contando, se reporta lá daquele tempo, hoje é tão diferente, hoje tem universidade para acompanhar, tem estatuto que você pode quase que copiar, sabe? Naquela época não tinha isso, dizer “Eu vou pegar esse estatuto, porque eu acho aquela cooperativa legal, para fazer um estatuto parecido.” Não tinha, assim, o regimento interno também foi tirado da nossa cabeça, e não, colocamos regras que a gente achou que deveria ser. Você imagina, olha, a gente criou uma regra que para entrar na cooperativa tinha que ter um instrumento de produção, ou tinha que ter tesoura, ou tinha que ter uma máquina, tinha que ter, e realmente para entrar na cooperativa tinha que ter uma máquina, porque a gente não tinha dinheiro, a gente não tinha nada. A gente começou a cooperativa com 3 reais cada socia, 3 cotas, deu 105 reais quando nós entramos na junta, a junta era 105 reais, ela cobriu todo o nosso capital social, sabe? A gente não tinha dinheiro para ir nos lugares, então, nossa, era tudo, sabe quando falta tudo, assim? E que você acha que vai conseguir, mas que falta tudo, e todo mundo vivia, hoje eu acho que financeiramente nós estamos melhores, sabe? Naquela época era tudo muito díficil, todo mundo com criança pequena, sabe, a vila sem infraestrutura, era outro tempo, sabe, outro tempo bem difícil. Muitas mulheres eram renda única na casa, precisava ter retorno imediato, inclusive uma das que entraram… Teve coisas hilárias que a gente fez, tipo a gente queria, a tesoureira era uma jovem, ela foi emancipada para ele poder ser a tesoureira da cooperativa, olha que loucura que a gente fez, emancipamos ela, a mãe emancipou ela para ela para ela poder ser a tesoureira. Teve uma das que entraram que a família dela estava com tanta necessidade econômica naquele momento, ela disse assim “Eu não posso esperar “, ela falou “ Eu amo esse projeto, eu queria estar nele, queria que desse certo, mas eu não posso esperar”. Daí ela foi trabalhar no comércio, e o primeiro dinheiro que ela ganhou ela comprou um ferro elétrico e ela doou para a cooperativa, sabe? Para você ver assim, sempre teve muita humanidade, muito sentimento nessa construção, e todos os anos a gente fazia muita festa para comemorar o aniversário, sempre, dia 23 de maio sempre foi um dia de festa, hoje é o dia da nossa assembléia, todos os dias 23 a gente faz assembléia da cooperativa para toda a produção, para a gente falar sobre tudo, né.E essas festas a gente ia fazendo para arrecadar dinheiro, porque a gente queria um dia ter a nossa sede, tanto que a Espanha, ela nos ajudou a financiar a construção, a compra do terreno foi sem a gente dividir sobras, fazendo festas e juntando dinheiro, para poder ter capital de giro para poder tocar, sabe, sempre foi muito difícil, assim. Hoje a gente tem uma vida que dá para respirar, mas foi muito difícil.
P/1 – Você estava comentando sobre o professor, o Paul Singer, e eu queria saber se você tem alguma memória com ele que você queria contar?
R – Cara, eu tenho um monte de memórias com ele, eu, sabe, a primeira vez que eu me encantei com ele foi em Santa Maria, e ele veio e fez uma fala, e a gente estava bem começando, sabe? E eu me lembro, não me lembro mais a pergunta que eu fiz, mas ele respondeu a pergunta, eu me achei, assim, um máximo, sabe? Achei ele assim, ele respondeu, ele sempre respondia, sempre respeitando muito as pessoas, sabe? Valorizando a perguntam, sabe, então e eu comecei a admirar sempre, sempre, em todas as coisas que ele estava, assim, como alguém que sempre respeitava muito as pessoas. Ele, esses dias até, eu falei isso, ele é tão assim de querer valorizar as pessoas que ele sempre dizia que, às vezes eu contava algumas coisas, e eu já tinha contado isso para ele, e ele dizia assim: “Nossa, nunca tinha ouvido isso”. Mas, eu sei que ele também sabia que eu já tinha contato, mas assim ele estava valorizando isso, sabe? Eu acho assim, uma pessoa, pode olhar, todos os escritos dele são importantes para humanidade, mas o lado humano dele, eu acho que é o lado mais encantador de construir a economia solidária. E eu fico pensando, a gente pode até construir outros modelos, pode construir muita coisa, mas se a gente não tiver o sentimento humano de inclusão, de respeito, não fica nada, né? Mas, as pessoas que marcam a gente, na transformação da gente, como pessoa, marcam para a vida toda, e elas permanecem pela vida toda, porque a gente vai passando elas adiante para os próximos que virão, então eu acho que mais que tudo, ele marca por aquilo que ele é. E ele nunca se recusa, sabe, ele nunca se recusava a fazer uma foto… Foto com as mesmas pessoas, sabe, mas ele estava sempre pronto, assim, sempre dava um jeito, assim, de que as pessoas levassem uma boa lembrança. E sempre também trabalhando muito conteúdo, sabe? Que fizesse refletir,e valorizar as experiências desse Brasil afora, acho que o Paul Singer sempre foi de valorizar muito, sabe mesmo às vezes excipientes que fossem, mas valorizar isso. A gente poderia ter mais inclusão, poderia ter mais inclusão, nós poderíamos trabalhar esse outras aspecto na economia solidária, eu acho que ele fez, ele faz esse encantamento, sabe, nas pessoas, e isso ninguém vai tirar.
P/1 – Nelsa, e como é seu dia a dia hoje?
R – Então, hoje os filhos cresceram, e eles já casaram os dois, o Tiago casou por último, a Gabriela casou primeiro, né, e a Gabriela e o Mateus eles tem uma filha que se chama Gabriela, o Tiago e a Andressa casaram depois, então ainda são eles dois, e a Joana, a filha deles ela é a nossa felicidade, você não imagina, assim, como a gente é feliz por essa menina, assim. E a Gabriela está esperando mais um neném, que a gente está super, super feliz, então a casa que moravamos em 4, hoje ela é uma casa de dois, então a gente às vezes sente muita falta, sabe, da bagunça, das conversas que a gente fazia. Mas os dois estão trabalhando, eu lavando as 6h20 da manhã, faço uns 15, 20 minutos de esteira, depois eu vou para a cooperativa, a cooperativa fica a duas quadras de casa, geralmente eu chego primeiro, né, abro a cooperativa, as gurias já chegam em seguida, e aí a gente toca. É muito difícil, o meu trabalho é de corte, de cortar as roupas, junto com mais 3 colegas que cortam comigo, e depois a gente faz, então, a distribuição do trabalho, e durante o dia vai acontecendo lives, vai acontecendo reuniões, vai acontecendo a discussão do banco. Aí é gente que vem para conversar, para fazer negocio, para ampliar, a gente faz reuniões também durante o dia, então nunca é uma rotina tranquila, assim: “ Hoje eu vou…” Nunca, nunca, nunca, as vezes tem reunião fora, então, as vezes tem reuniões em outros estados, tem atividades fora do Brasil também, então é essa vida assim, tocada todos os dias. Aí a noite geralmente tem reunião, e ele também acaba tendo outros compromissos, que atual no movimento sindical, hora ele está na política pública, aí a gente janta, as vezes depois a gente vê um filme, e assim acaba o dia. Depois vai responder todas as mensagens do whatsapp, mais os emails, fazer algumas elaborações necessárias, é a vida que a gente vai tocando, mas é bem, não tem rotina, não tem rotina.
P/1 – Você estava falando dos seus filhos, né, e da sua neta, e eu queria saber o que que a maternidade mudou na sua vida?
R – Sabe que teve um sentimento, ele é difícil de explicar, assim, porque até a maternidade eu achava que todo mundo podia ir, sabe? Todo mundo podia ir, até na relação afetiva, podia acabar indo, sabe? Os pais podem acabar indo, acabam ficando longe, os irmãos também, cada um vai tocando a sua vida, os amigos às vezes estão próximos ou não. E a maternidade, ela me deu um sentimento de algo, que depois eu vi que nem era, não é assim, porque agora eles foram, mas assim, era de algo muito, um pedaço de você, sabe? Muito pedaço de você, e é um sentimento maravilhoso assim, inexplicável, assim “ Meu Deus…” Eu pensava assim. “ Todo mundo pode ir embora,mas meu filho vai ficar aqui, vai ficar aqui sabe, ele está aqui.” Vivendo o dia a dia, é como se fosse algo seu, não é um seu egoísta, sabe? “Eu fiz o filho para mim.” Tanto que eu não fiz né, eles estão aí, já estão tocando toda a sua vida, mas esse pertencimento, essa coisa da maternidade, eu acho que ela é fora de sério. E o dia do nascimento, então, é algo, nunca, nunca dá para explicar, assim, e eu tive o primeiro foi a Gabriela, eu queria muito ter uma menina, uma companheira, sabe? E foi uma emoção fora de sério assim, porque todo mundo dizia que era um menino, pelo jeito da barriga, pelos enjoos, pelas dores, tal. E quando nasceu a Gabriela foi uma felicidade infinita, e o Tiago, eu pensava “Poxa, eu seria tão feliz de ter um casal”, e o Tiago eu descobri fazendo um ultrassom, então eu chorei muito, muito, eu me lembro assim, descendo uma ladeira depois, chorando de muita felicidade, inexplicável isso, inexplicável, mas acho que foi uma das coisas mais maravilhosas que aconteceram na minha vida assim, de ter eles dois, e o que eles são. E os dois hoje trabalham na saúde, a Gabriela fez parte, muito tempo, do processo da escolinha, na educação infantil, trabalhou na escolinha, ajudou a estruturar, sabe? Nossa, foi fundamental todo o processo dela, tivemos pontos de cultura que ela coordenou, então ela teve uma vivência muito forte em economia solidária. E o Tiago também foi pro campo da saúde, que é a fisioterapia, então ela é enfermeira, e ele fisioterapeuta, a companheira do Tiago também é fisioterapeuta, então é muito meu lado humano, assim, essa construção.
P/1 – Eu queria saber o que o trabalho coletivo e autogestionário representa na sua vida?
R – Olha, falar do trabalho coletivo dá para fazer vários livros que nem o Paul Singer e o Cláudio Nascimento já fizeram, né, mas eu não acredito que você consiga se transformar se não for coletivamente, sabe? Para mim o coletivo, ele é algo profundo de transformação das pessoas, eu sempre brinco né, eu falo que eu acho que a gente não deveria, e queria que o Paul Singer estivesse vivo para a gente trocar os nomes, sabe? De invés de ser “ empreendimento de economia solidária” a gente chamar de “coletivos de economia solidaria” , porque o coletivo é transformador, sabe? Eu sei que ele transformou a minha vida, e eu vejo o quanto ele transforma a vida das mulheres que trabalham comigo, porque você não pode ter uma, você, não tem como você se achar, que você é dono da verdade, você está em um coletivo, então às vezes você pode estar certo, às vezes a outra pessoa que está certa, então você aprende a viver a democracia, você aprende a respeitar a opinião dos outros, você aprende também a controlar os seus sentimentos, sabe? Numa sociedade onde parece que cada um pode dizer o que quiser, aí eu acho que o coletivo te ajuda nisso, sabe? A você ir se polindo como pessoa, sabe? “Não, olha, esse sentimento não é bom, esse sentimento eu tenho que, eu tenho que substituir ele por um outro sentimento bom, porque isso vai fazer bem na convivência das pessoas.” O coletivo, ele é transformador, ele cria consciência, ele que faz as pessoas serem melhores, sabe? No seu dia a dia, eu falo coletivo, coletivo toda, sabe? O coletivo família, o coletivo de economia solidária, o coletivo cultural, a onde você estiver o coletivo ele te ajuda a transformar. E eu acho que algumas pessoas têm muita dificuldade de viver coletivamente, porque ele exige uma abertura de você querer mudar, de você se deixar mudar, você precisa se transformar, e isso, às vezes as pessoas podem pensaR – “Não, mas daí ele quer me descaracterizar como pessoa.” Não, ele vai te fazer, você ser uma pessoa melhor, não tirando o seus traços pessoais, o seu jeito, da tua forma, mas sempre respeitando a outra pessoa. E eu acho também que esse coletivo, sabe? Que gera renda ele é algo mais profundo ainda, porque a gente está dizendo que é possível a gente, a partir do conhecimento, da nossa força de trabalho, a gente gerar o resultado, e que esse resultado não vai me beneficiar só a mim, vai beneficiar o coletivo, que vai distribuir esse ganho entre esse coletivo. Olha que algo mais profundo e transformador isso e ainda mais, isso que eu estava falando a pouco também, que marca a gente profundamente, porque além de ter todo esse sentimento, a gente está fazendo um produto que respeita o meio ambiente, sabe? Que não contamina, que respeita as pessoas isso é algo que é indescritível, sabe? Do que a gente está fazendo, é por isso que a gente tem esse sonho, sabe? De que a Justatrama ela cresça, que surjam outras redes, outras cadeias, com outros produtos, porque isso é profundamente transformador, sabe? Você cuidar desse planeta que ele não é nosso, ele não é meu, ele não é nosso dessa geração, ele é de todo mundo, e ele é da próxima, e ele é da própria natureza em si, sabe? Que precisa ser respeitada, preservada, e que a gente pode tirar dele o que tem, que não o destrua, né, que não o polua, e que a gente pode fazer dele um produto que faça bem para as pessoas e pro meio ambiente. Isso, eu acho, eu não consigo imaginar um estágio melhor que esse, sabe? É mais profundo que esse, dentro de uma sociedade que a gente quer construir, você estar num espaço coletivo, que transforma as pessoas, você gerar uma renda que ele é distribuída de uma forma justa, portanto que ataca exatamente a desigualdade social, e com um produto que respeita o meio ambiente, respeita as pessoas, é isso que a gente quer.
P/1 – E qual legado você deixa para o futuro?
R – Eu quero deixar esse legado, sabe? Dessa capacidade ímpar que a gente tem de fato de transformar, e aí se você perguntar assim: “Mas você imaginaram isso em 96?” Jamais que imaginávamos isso, e quando a gente diz que não imaginava isso, a gente ia dizer que as pessoas acreditem profundamente na capacidade de transformar coletivamente, que é possível, porque nós mulheres, sabe? Sem todo o conhecimento que a gente tem hoje, sem nada de recurso financeiro, sem nada de estrutura, sem nada de infraestrutura, hoje a gente consegue chegar onde a gente chegou, chegar onde a gente chegou de poder construir isso, então todo mundo pode, se nós conseguimos, nosso maior legado é dizer que se nós conseguimos todo mundo pode, todo mundo pode, porque a gente começou do nada a construir isso tudo, e a gente pode muito mais que isso, a gente pode transformar esse mundo num mundo melhor, a gente pode transformar esse Brasil num Brasil melhor “ A vai ser na nossa geração?” Eu não sei se a gente vai conseguir fazer a virada de chave, mas que a gente pode deixar o mundo melhor a partir da onde a gente está a gente pode, a gente pode, fortalecendo essas iniciativas que tem espalhadas por esse Brasil, por esse Brasil inteiro, a gente ganhando corações e mentes de quem está na política pública, de quem está no governo, que de fato a economia solidária ela é uma grande estratégia, uma estratégia de transformar o território que é onde a gente está, de transformar uma cidade, de transformar uma país e da gente ter uma outra estratégia de economia, sabe? De desenvolvimento, e esse é nosso maior legado, deixar, a partir do nosso testemunho, de que essa mudança é possível, que as pessoas, elas podem se transformar, que as pessoas têm capacidade, que elas não imaginam que tem, não imaginam. A gente assim, a gente se emociona, sabe? De ver, do jeito que a gente começou, e o que a gente conseguiu, hoje fazer uma roupa de extrema qualidade, sabe? Que a gente consegue fazer o processo de estar em mercados que a gente nunca imaginou que poderia estar, que você pode ver gente de fora do Brasil vestindo a nossa roupa, que a gente vê pessoas aqui de dentro vestindo a roupa da gente, então é possível, sabe? E que a gente pode estar em todos os setores da economia, a gente pode estar em todos os setores da economia, bens, serviços. E que a economia solidária é um grande sonho, e que ela seja essa grande estratégia de desenvolvimento, de transformação de vidas, de pessoas, de economia, e de distribuição de de renda, porque essa talvez seja a que mais nos indigna, é o meio ambiente do jeito que ele está, e a desigualdade social. Acho que cada um de nós que tiver o mínimo de consciência tem que estar profundamente indignado.
P/1 – A gente já está chegando ao fim, só tem mais duas perguntas, a primeira delas é se você gostaria de contar mais alguma história que eu não tenha perguntado, que não tenha vindo na sua cabeça no momento que você estava contanto e que você lembrou agora? Ou se não tiver nenhuma história, se você queria deixar alguma mensagem?
R – A histórias tem muitas para contar, porque é uma vida que tem muitas histórias, né, e algumas da cooperativa a gente dá risada lembrando, sabe? Mas, de tudo assim, eu acho que o processo de construção da Justatrama ele exigiu de nós uma capacidade ímpar, sabe? De poder encontrar culturas diferentes, conhecimentos diferentes, e ver que as pessoas foram se transformando, sabe? Eu acho que essas histórias, que cada um, sabe, da gente poder se reunir e o primeiro momento que a gente queria ir para o Rio de Janeiro fazer um desfile da Justatrama, e que nada disso deu certo, e que a gente acabou fazendo lá no Cantagalo, com as meninas da favela, e que foi um dia que a gente se sentiu muito balançado, se exatamente isso iria da certo, mas que a gente saiu de lá super empolgados, porque um dos agricultores que estavam lá, nós fomos discutir o que que é um preço justo. O que que é um valor justo de uma roupa? E esse agricultor, ele disse: “ Olha, o valor justo para mim é quando a gente que está produzindo, a gente pode comprar aquilo que está produzindo.” E isso sempre nos instiga muito, sabe? Quando a gente vai formar os preços das nossas roupas, será que as pessoas como a gente podem comprar? Então, isso também é algo que a gente entende como um comércio justo, e além disso a gente buscar esse valor que ele seja justo, que a gente possa comprar, mas ao mesmo tempo que a gente possa remunerar de forma justa o agricultor, a costureira, o artesão, todos os que estão envolvidos. Então, história a gente tem tantas, porque a gente foi para Venezuela, foi lá para desenvolver a cadeia do algodão, e a gente reuniu lá com os agricultores, e eu me lembro que um dos agricultores, quando a gente foi falar de todo o processo do agroecológico, porque na beira do rio… Que fica ao norte do Brasil, que faz divisa com a Venezuela ali naquela região faz divisa com Roraima, a gente foi ver, quando o rio ele desce, eles plantam o algodão na beirada do rio, depois quando chove ele cobre toda a área, e aí fica borbulhando aqueles recipientes de agrotóxico, e era com esses agricultores que a gente estava conversando, sabe? E a gente explicou todo processo da agroecologia, e um dos agricultores bem velhinho, ele chegou com uma calculadora na nossa frente, fez o cálculo “Aqui a gente ganha tanto assim, assim, a gente vai continuar plantando com veneno.” Ele falou, e aí a gente percebeu que é um processo a ser construído, que não é por uma palestra que você consegue convencer alguém, né? Mas é com muita conversa, muito diálogo coletivo, para poder convencer de fato para mudança de vida, isso não é uma simples escolha, é uma mudança de vida e de comportamento, e a gente viu que a nossa missão era grande demais, aí o governo de lá fez uma proposta da gente, cada um de nós passar um mês lá, um mês, dois meses, para desenvolver a cadeia produtiva, imagina a gente estava no começo aqui, a gente falou “ Não, não tem condições, nós queremos tornar a Justatrama forte, que a partir disso a gente possa daí articular a nível mundial.” Mas são muitas histórias que a gente tem de vida, muito legais, sabe? Também de muito crescimento assim, da gente poder conhecer esse mundo, esse Brasil e essas capacidades. E a mensagem que eu gostaria de deixar, é que todas as pessoas, que tiveram uma iniciativa para mudar esse mundo, que elas persistam, as vezes ela não dá tão certo daquele jeito que desenhou, é porque as vezes tem que remodelar ela e ir por outro caminho, mas que tem que seguir em frente, porque a gente, a gente não está aqui nesse mundo por acaso, a gente tem uma missão, e eu acho que cada um de nós tem uma missão grande para fazer esse mundo ser melhor, e que cada um de nós pode fazer essa mudança, e essa mudança ela vai ser compartilhada também, para que a gente vá encontrando caminhos que nos façam chegar mais rápido naquilo que a gente quer, que é mudar esse mundo para ter um mundo mais justo, mais solidário, mais humano, em que todos caibam.
P/1 – Nelsa, o que você achou de contar a sua história hoje no museu da pessoa?
R – Eu me senti profundamente privilegiada de poder estar aqui com vocês, poder contar, é difícil, sabe? Sempre vai escapando coisas, que são muito detalhes na vida, as vezes você está contando, aí você pensa “Acho que eu estou me retendo muito nisso, vou falar mais de outro aspecto.” Então são muitas marcas, sabe, que vão tendo na vida, e que é muito bom compartilhar, sabe? Eu sempre falo que cada vez que a gente vai contando é como se você fosse tendo a oportunidade de repensar ela, e tendo outras ideias, então quando você conta é como se fosse o momento também de ir avaliando a trajetória, e ir pesando outros desafios que tem pela frente. Aí eu achei muito bom, foi muito bom estar com vocês.
P/1 – Nelsa, eu queria agradecer muito, foi ótimo, muito obrigada pela sua participação, fiquei muito feliz com sua história, eu tenho certeza que é um relato de trajetória de vida que além engrandecer o Museu da Pessoa tem muito a ver com a Economia Solidária, tem muito a ver com a trajetória da Economia Solidária no Brasil, então eu agradeço em nome do Museu, e em meu nome também. Fico muito feliz de ter conhecido você, um prazer.
R – Eu quero agradecer muito vocês, ao Alisson que ficaram aí esse tempo todo né, ouvindo, e eu tenho que agradecer muito também o instituto Paul Singer assim, por ter dado essa indicação, poder estar aqui, eu sinto que eu não estou compartilhando a minha vida, eu estou compartilhando a vida de todos aqueles que estiveram, e estão nesse trajetória, porque é uma vida nossa, nessa construção, e eu só tenho a agradecer vocês, me sinto profundamente feliz de poder ter compartilhado com vocês.
[Fim da Entrevista]
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