P/1 – Qual o seu nome, local e data de nascimento?
R – O meu nome é Janice Fernandes Albuquerque. Eu nasci no dia cinco de março de 1980, aqui no município de Caieiras, São Paulo.
P/1 – E seus pais e a origem dos seus pais?
R – A minha mãe nasceu aqui em Perus, viveu, morou aqui e meu pai nasceu na Bahia, na região da Chapada Diamantina.
P/2 – Como eles se conheceram?
R – Se conheceram aqui em Perus porque meu pai sai de lá com a família, meu pai viveu lá com meus avós na época de exploração de diamantes, tudo, lá. Quando começou a cair um pouco, meu avô era garimpeiro, eles resolveram vir pra São Paulo. Eles passaram pelo Paraná e quando chegaram em São Paulo, eles chegaram em Perus. Eles se conheceram nas festas de Perus da Vida porque minha mãe fazia parte da igreja, eu acho que é bem assim a história.
P/1 – E quantos irmãos você tem?
R – Eu tenho mais quatro irmãos, duas irmãs mais velhas e um irmão e uma irmã mais nova, eu sou a do meio.
P/1 – E como era a infância? Você tem as lembranças dessa construção da família quando vocês eram crianças, vocês brincavam?
R – Falar da infância. Minha infância começou aqui em Perus, eu saí daqui eu tinha quatro anos. A gente saiu daqui, o meu irmão era bem novinho, a gente foi morar em Franco. É uma família que a gente considerava que era grande, eu falo porque eu aprendi a conviver no coletivo com a família, porque tudo se dividia, era tudo igual pra todo mundo.
P/2 – Franco?
R – Franco da Rocha, que é município aqui vizinho. Eu saí daqui eu tinha quatro anos, eu morei 14 anos lá. Quer dizer, minha infância inteira eu passei lá em Franco da Rocha. Foi uma infância pra mim muito boa porque era um lugar que era sossegado. Era uma vila onde todo mundo se conhecia, a gente tinha muitos amigos lá. Às vezes também nem precisava porque a gente era muito unido, eu e meus irmãos, então as brincadeiras eram muito mais com a gente. Foi uma infância bacana. Eu era muito ativa nessa questão de esportes, a gente jogava bola, participava de torneio de escola, isso desde meus sete anos de idade.
P/2 – Você jogava o quê nos torneios?
R – Eu jogava basquete, tinha várias medalhas até.
P/2 – Tem medalhas?
R – Tenho medalhas. Jogava handebol, cheguei a fazer parte da seleção de Franco um pouco mais adolescente. Jogava futebol também, que era uma das questões porque lá na vila tinha um time, que era o Flamenguinho da Vila Ramos, e meu pai não deixava a gente jogar porque ele achava que mulher não jogava bola. Então eu e a minha irmã, a gente escapava de domingo de manhã pra poder treinar no campo lá. Mas foi uma infância bem bacana.
P/2 – As medalhas eram de que esporte?
R – Basquete e handebol, eram os que eu mais gostava, me dava melhor. Jogava vôlei, não era tão aquela coisa assim, mas a maioria das minhas medalhas são de basquete e de handebol. Eu tenho de atletismo também. Eu era bem esportista na infância (risos).
P/1 – E como era a relação com o bairro, amigos, fora da família?
R – Franco pra mim foi um processo bem bacana na minha vida porque a vila que eu morava era próxima do Juqueri, o manicômio. Naquela época quando eu era pequena ele funcionava ainda e a gente convivia porque tinha um dia da semana que eles liberavam os pacientes pra sair lá e a gente acabava até, a gente se encontrava numa praça, que são esses pontos, vila são sempre dois lugares, a praça e a igreja, essas coisas de quermesse. E a gente convivia muito com isso, a gente tinha esses lugares de encontro, as amizades estavam sempre perto, a gente tinha essa coisa de brincar na rua, de jogar bola. Foi uma infância tanto dentro de casa como fora, que teve uma... Foi uma infância muito boa, não tenho do que reclamar.
P/2 – Janice, e quando vocês encontravam com essas pessoas que eram do Juqueri, você lembra de alguma situação ou de alguém?
R – Tenho.
P/2 – Conta alguma coisa sobre isso.
R – Quando a gente mudou pra Franco, a gente saiu daqui em 84 e a gente pegou acho que uma das maiores enchentes lá em Franco da Rocha. A gente ficou ilhado durante tempos, essa coisa do processo de não conseguir entrar e nem sair da cidade. E minha mãe tinha um comércio lá, a gente saiu daqui porque eles já tinham um comércio aqui também, meu pai e minha mãe sempre viveram disso, a gente saiu de lá e minha mãe tinha um comércio que era próximo, a gente morava muito próximo das entradas das colônias. E nesse dia, quando eles saíam, a maioria sempre passava pelo bar da minha mãe. E tem um que me marcou, ele colocava bolinha de gude debaixo da língua. Então toda vez que ele saía, ele ia lá pro bar da minha mãe pra pegar as bolinhas de gude pra ficar mexendo as bolinhas na boca. Acho que foi uma das histórias desse período, dessas relações, que mais me marcou.
P/2 – Seus pais tinham comércio de quê?
R – Quando a gente chegou lá, eles sempre trabalharam com bar, a vida inteira a gente sempre foi sustentado por comércio, tanto minha mãe como meu pai. A gente chegou lá e tinha um bar que era bem próximo da escola. Depois de algum tempo a minha mãe e meu pai conseguiram mais dois comércios, que era uma cantina, que hoje são as famosas pizzarias e um açougue, que eram todos bem próximos.
P/2 – E Janice, por que eles saíram daqui e foram pra lá?
R – O real motivo acho que era esse processo de buscar outros lugares porque eu saí daqui muito nova. Acho que era essa questão de partir pra, a gente morava aqui de aluguel, era uma casa que não era tão grande. E meu pai nessa época trabalhava como vendedor, que na época eram aqueles vendedores que passavam com a pastinha, que hoje são os grandes cerealistas, o meu pai passava de estabelecimento por estabelecimento vendendo. Eu creio que numa dessas andanças ele achou Franco da Rocha porque ele fazia essa região de Morato, acho que foi onde ele encontrou Franco da Rocha.
P/2 – Você falou em entradas de colônias. Colônias de quê?
R – Eram as colônias que tinham lá. Tinha a quarta colônia. Na época eram divididas, tinha a colônia dos internos, mas lá em Franco também tem as penitenciárias. Então era um complexo, tinha várias colônias.
P/2 – Colônias de pessoas do Juqueri ou da penitenciária?
R – Tinha tanto do Juqueri como da penitenciária, a gente passava por dentro, a gente gostava muito. A gente andava de bicicleta pelas colônias, tinha um moinho que a gente ia nadar direto. A gente tinha, o que é hoje o Parque Estadual do Juquery, que antigamente era o campo de aviação, era um dos lugares também que a gente ia muito quando a gente era pequeno, bem bacana.
P/1 – E como foi a questão de educação, a escola, a sua formação educacional?
R – Quando fala da escola assim...
P/2 – Além do esporte (risos).
R – É (risos). Era aquela coisa, na hora do intervalo era queimada. Mas eu acho que a escola que eu estudei da primeira à oitava série nela, aí depois eu saí por dois anos e retornei, mas foi uma escola que me deu uma boa base, era uma escola que incentivava tanto o esporte como a cultura. A gente tinha vários processos de montar peça de teatro, de dança, tinha muito essas coisas de festivais na escola. Era um período que a escola realmente possibilitava isso, tanto da questão da educação, acho que não tenho o que falar, era uma escola até muito próxima da minha casa, a gente falava que era difícil porque não tinha nem desculpa pra faltar (risos), era só descer a rua e você estava na escola.
P/2 – Era estadual ou municipal?
R – Era municipal. Uma das questões que sempre levou pra gente era porque a maioria dos professores eram conhecidos dos meus pais, muito mais da minha mãe, então a gente sempre tinha que estar na linha, senão: “Eu vou falar pra sua mãe, eu vou passar lá hoje”. E naquela época também a maioria dos professores eram próximos da vila mesmo, então tinha toda essa integração. Acho que essa fase da escola pra mim foi bem tranquila e que me fez projetar várias coisas que eu faço hoje também, acho que foi uma base muito boa que eu tive com a escola que eu estudei.
P/2 – E os professores, tinha alguém que te marcou mais?
R – Poxa, teve. Agora não estou recordando o nome dela, mas acho que era...
P/2 – Por quê?
R – Ela era uma professora que era bem bacana, ela tinha uma forma de educar que eu via, eu acho que foi o que despertou assim, era uma pedagogia que era mais libertária, que não era aquela coisa só de livro, incentivava o além. Acho que ela foi a minha professora da terceira série. Foi bacana. É esse processo porque na quarta série a gente tinha mais professores e ela já dava a base. Agora só não recordo o nome dela, mas ela era amiga da minha mãe também (risos).
P/1 – E a questão ensino médio?
R – Eu saio dessa escola em Franco na oitava série. E, naquela época, muito mais em Franco por ser município, tal, é bem diferente, a gente que vive aqui hoje vê o quanto era diferente você morar no município. Era a época das ETECs [Escola Técnica Estadual], que elas estavam surgindo. E minhas irmãs vinham de uma ETEC, as duas formadas, que era em Jundiaí. Tinha aquela coisa: “Não, tem que fazer alguma coisa, você tem que ter uma coisa que você se encaixe porque você tem que se formar e ganhar dinheiro”. Eu tinha duas irmãs formadas e eu fui, prestei lá também, passei no curso de Agrimensura, que na época eu nem sabia muito bem o que era assim, mas falei: “Vamos aí”. Eu estudei um ano e meio, o curso era três anos, só que na metade do curso eu percebi que não era o que eu queria, era uma coisa que propunham pra mim que eu tinha que fazer, mas não era o que eu queria fazer da minha vida. Eu sempre cresci muito indignada com as coisas, eu via que aquilo ali não ia me levar pra outros caminhos, que eu já projetava. Eu larguei lá com um ano e meio e voltei pra essa escola que eu estudei desde a primeira série. Eu terminei o segundo e o terceiro anos lá. Que também foi um outro processo, eu comecei a estudar à noite, começa a ter outras visões também, já era uma idade de 15, 16 anos.
P/2 – Por que você foi estudar à noite?
R – Porque lá o segundo grau só tinha no período noturno. Mas foi bacana.
P/2 – Janice, você falou que sempre foi meio indignada. Com o que você se indignava mais?
R – Ah, me indignava muito com esse processo de ter que diferenciar as coisas, as pessoas. Quando eu era pequena, por que eu tenho e meu amiguinho da escola não tem, como eu podia fazer para ele ter igual. Aquela coisa de pedir até lanche a mais pra minha mãe pra levar pra poder dividir lá. E de ver que muitos dos meus amigos moravam muito próximos da vila, mas em situações mais precárias. Então me indignava, como é que eu faço pra poder mudar? Eu sempre cresci com isso, eu nunca tinha esse processo: “Ah, se você mora bem você tem que andar com as pessoas que também moram bem”. Não, eu tenho que andar com pessoas que eu me sinto bem, circulava muito. Quando eu tinha uns dez, 11 anos, a gente saía, tinha uma galera que eram várias bicicletas, a gente rodava. E eu falava: “Meu, eu não sou diferente de ninguém”. Eu acho que eu cresci muito disso. “Ah, não anda com tal fulano porque ele é de tal lugar, ele não é uma pessoa boa”. Mas eram pessoas ótimas pra mim, eram pessoas que faziam as coisas comigo e eram muito bacanas. Eu cresci com essa indignação.
P/2 – E namorados, como que começou, qual foi o primeiro ou o primeiro amor?
R – Nossa, que difícil falar disso (risos). Mas tem que falar exatamente assim?
P/2 – Não.
R – Meu primeiro namoradinho foi meu vizinho, ele morava no fundo da minha casa. Eu tinha dez anos de idade, mas era aquele namorinho de criança: “Ah, eu gosto de você, você gosta de mim”, senta do seu lado.
P/2 – E namoro mais longo?
R – Eu nunca fui de ter namorados de um período muito grande, essa é até uma das minhas dificuldades na vida, os relacionamentos amorosos. Mas eu tive dois processos que foram os pais dos meus filhos. Acho que o meu primeiro namoro mais sério foi com o pai do meu filho, eu tinha 17 anos, eu tive meu filho com 18. Aí foi até nessa volta pra Perus, que era uma época que começou a cair muito lá, Franco, o comércio já não estava dando tanto retorno, a gente volta pra Perus pra morar na casa da minha avó e essa volta pra Perus deixou ele pra lá, acho que foi o mais sério. E tive um outro processo também com o pai da minha filha. E foram relacionamentos acho que do mesmo tempo de duração, dois anos. O pai da minha filha também foi aqui em Perus, sete anos atrás, e também permaneci com ele dois anos. Mas se falar que eu tive um grande amor na minha vida ainda não, só meus filhos mesmo.
P/2 – Eles moram com você?
R – Sim. Moramos só eu e eles. Meu filho agora está com 18 anos e minha filha está com seis. Eu falo que o homem da casa é ele.
P/2 – Janice, ele você teve lá em Franco da Rocha ainda.
R – É, ele nasceu, a gente até brinca que ele nasceu ali no Ersa 14 que todo mundo falava que era o hospital dos loucos, que era dentro do Juqueri mesmo, porque lá dentro do complexo do hospital tinha administração, tudo, lá do manicômio. Ele nasceu lá, ele veio pra cá ele tinha três meses, então ele cresceu aqui em Perus. Agora ela já nasceu aqui mesmo.
P/2 – Você tinha 18 anos quando ele nasceu e lá. Aí você veio pra Perus. Como foi essa mudança?
R – Foi uma mudança que no começo foi bem difícil porque como eu vivi 14 anos lá em Franco, eu deixei tudo pra trás, amigos, era toda uma história de vida construída lá. E a gente teve que vir pra cá e começar do zero porque na época eu tinha acabado de terminar o estudo, quando ele nasceu, e meus irmãos ainda tinham dois que estudavam, então eles iam pra escola e ainda conseguiam. Porque tudo mudou, eu fiquei 14 anos fora, então não conhecia ninguém. E não tinha muito, eu saía daqui pra ir pra Franco pra passear, eu não conseguia ainda ter esse lance de passear em Perus. Apesar de toda minha infância eu vir pra Perus pra passar as férias na casa da minha avó, então a gente tinha amigos próximos, mas quando eu volto depois de 14 anos eles já tinham outro círculo de amizade, já frequentavam outras coisas. Então pra mim essa primeira adaptação foi bem difícil.
P/1 – Em que ano foi?
R – Em 99, fevereiro de 99. Passei um bom período meio que vivendo só essa transição, até me encontrar em Perus de novo.
P/2 – Chegando aqui o que você fez, como você conheceu outras pessoas?
R – Quando eu cheguei aqui eu passei um tempo mais assim pra família mesmo. Como meu filho era recém-nascido, eu passei muito tempo mais com minha família. Acho que tem um processo também, a criação do filho. Mas eu era nova ao mesmo tempo, eu queria sair, queria curtir, mas ainda tinha essa responsabilidade. Comecei a sair mesmo acho que depois de uns dois anos que eu estava por aqui, que ele estava um pouco maior, já ficava com minha mãe, ficava com meu pai, que ele sempre foi muito apegado a mim também, meu filho quando era pequeno. Então teve esse processo.
P/1 – E o que você fazia em Perus? Onde você ia?
R – Eu comecei a sair pra Perus e me relacionar com outras pessoas a partir de amizade dos meus irmãos, muito mais ainda do meu irmão mais novo. Ele tinha uma banda de rock, ele teve várias bandas de rock, e eu ia com ele para os shows. Então o círculo de amizade do meu irmão passou a ser o meu círculo de amizade também. Acho que começo a sair pra cá e conhecer um pouco mais dessa cena de Perus acho que nesse período, com meu irmão e a banda dele, que era bem bacana.
P/2 – Ele tinha que diferença de idade de você?
R – Meu irmão tem quatro anos de diferença.
P/2 – O pai do seu filho continuou lá em Franco.
R – Continua. Continua no mesmo lugar, acho que ele nasceu lá e continua lá.
P/2 – Mas ele continuou lá, ele não veio pra cá com você.
R – Não. Porque quando a gente voltou pra Perus foi a época que a gente já estava separado. Ele vinha pra cá, ele frequentava ainda reuniões com a minha família, tudo, mas a gente já não tinha a intenção de ficar junto.
P/2 – E como foi ser mãe, pra você Janice?
R – Foi um tempo bem difícil porque eu estava numa idade, 18 anos era uma idade que eu via os meus amigos saindo, via os meus amigos fazendo coisas e eu estava em casa cuidando do meu filho. Porque assim, o nascimento do meu filho me marcou muito também porque ele nasceu de sete meses, foi uma época que foi bem difícil pra mim. Mas eu acho que foi uma das melhores épocas da minha vida também, acho que os meus filhos chegaram em épocas que eles deveriam chegar na minha vida, pra dar um breque. Me deu muita responsablidade, me trouxe muitas coisas. Ser mãe me trouxe amadurecimento, todas as questões. Mas foi difícil no começo.
P/2 – Foi?
R – Com 18 anos era difícil aceitar, mas foi tranquilo até.
P/2 – Você disse que aí começou a conviver com os amigos do seu irmão, né?
R – Sim.
P/2 – E ele tinha banda de rock, tal. Fala um pouco desse ambiente. O que você fazia nesses lugares.
R – Eu ia lá pra prestigiar a banda do meu irmão. Era engraçado porque quatro anos de diferença era todo mundo, tinha quatro anos de diferença. E pro meu irmão acho que no começo era até um pouco desconfortável: “Estou saindo com a minha irmã (risos). Minha irmã mais velha, tal”. Mas como a gente era muito próximo, eu e meu irmão, a gente sempre foi muito próximo. Eu tive uma afinidade bem bacana com ele e com a minha irmã mais nova, a gente fazia, como a gente era os três últimos da fila, a gente brincava muito junto, tudo o que a gente fazia era muito junto. Então com o meu irmão a gente sempre teve essa afinidade, sempre gostou das mesmas coisas, essa questão de frequentar outros lugares. E eu ia pra prestigiar meu irmão. Teve uma banda até que eles inventaram de fazer uma camiseta, a gente ia lá e ajudava eles a fazer, tudo. Não sei o que eu era da banda, era mais pra prestigiar mesmo e de conhecer um pouco mais o bairro porque eles circulavam por aqui, eles tocavam por bares daqui do bairro. Eram lugares, bar de rock, na quebrada (risos), às vezes eram lugares sinistros. Mas foi bem bacana, conheci muita gente nessa época.
P/1 – E questão de trabalho? Como foi seu primeiro trabalho, como gerou renda pra fortalecer a criação dos filhos?
R – Eu falo que trabalho eu comecei a trabalhar desde quando eu tinha dez anos. Como a gente fala, alcançou o balcão já era (risos). Vendia doce, fazia cachorro-quente, ajudando meus pais no comércio. E minha mãe e meu pai sempre prezaram primeiro estudo: “Não, vocês têm que estudar, se formar e depois vocês pensam em trabalhar”, acho que isso eu tenho muito porque eles sempre deram essa oportunidade pra mim e pros meus irmãos. Mas o meu primeiro trabalho, que eu tive uma remuneração que eu pude até fazer a criação do meu filho, foi quando eu volto pra Perus e meu pai falava que eu não tinha que sair pra trabalhar, não precisava ir trabalhar fora porque eu tinha eles e eles me ajudavam. Eu tinha sair e trabalhar. Aí buscando estratégias, tudo, nessa época minha mãe vendia salgado, vendia bolo, eu ajudava ela nisso também, comecei a fazer artesanato. E era uma época que era uma técnica que estava super em alta, que era o biscuit. E eu vendi, trabalhei com biscuit acho que uns cinco anos da minha vida. E gerava uma renda boa, me possibilitou muito trabalho também.
P/2 – Como você descobriu o biscuit?
R – Fui descobrir na necessidade (risos).
P/2 – Mas por que o biscuit?
R – Eu sempre gostei muito de arte, sempre gostei. E lá de casa eu era a que levava mais jeito pra essas coisas. Na época de brincar de massinha eu fazia. Os meus irmãos faziam bolinhas lá e eu fazia todo um castelo imaginário lá. Aí buscando essas formas de poder trabalhar em casa, porque não tava dando pra trabalhar fora, eu tinha que arrumar alguma coisa que eu trabalhasse em casa. Aí me veio essa, que era o biscuit, que é uma massa de modelagem, tal, como estava muito em alta na época eu falei: “Vou me enfiar de cabeça e ver no que vai dar”. Aí comecei a fazer imã de geladeira, que naquela época também era febre, todo mundo tinha 500 imãs de geladeira. E minha irmã trabalhava numa firma aqui próximo, na MD, que era uma firma de papel. Eu fazia e ela revendia lá. Deu super certo, eu já passei a fazer encomendas pra lojas, escola, tal. Eu parei muito assim também porque nesse processo eu peguei uma tendinite, tive que fazer várias fisioterapias, eu parei e foi na época que eu comecei a fazer o curso de marchetaria, que daí eu entro com a oficina com os meninos.
P/2 – Como você encontrou esse curso de marchetaria?
R – Minha tia trabalhava na escola municipal aqui. A gente sempre morou próximo, a gente morava no fundo da casa da minha avó e essa minha tia morava tipo três, quatro casas abaixo. Ela veio e falou: “Olha, você que gosta de mexer com essas coisas de artesanato, vai ter um curso aqui muito próximo também, que era só descer a rua. É um curso que mexe com madeira, tal’. Eu falei: “Beleza, vamos lá ver o que é”. Aí comecei a fazer esse curso, foi através da minha tia.
P/2 – E esse curso era onde?
R – Era bem próximo da minha casa.
P/2 – Mas era em que espaço?
R – Era um espaço que eles locaram, antigamente era até um salão de festas. Era uma ONG [Organização não governamental] que veio dar esse curso aqui, a Care.
P/2 – Care?
R – A Care, é. Eles vieram pra cá e foi na época que eu conheci os meninos. Até conheci primeiro o Fofão, o Careca, de manhã e o Dedê Cabeludo à tarde, só não sei de onde ele tirou o cabelo. Foi lá que eu conheci os dois. E de lá também começa a vir a minha renda, a gente monta uma oficina aqui, onde que é o espaço aqui hoje, a gente começa a comercializar as peças que a gente produz, começa a fazer feiras, investe nessa oficina e aí desmonta.
P/2 – Janice, você disse que encontrou o Cleiton, que o apelido é Fofão, e o Dedê.
R – Isso.
P/2 – Eles eram alunos?
R – Eles eram alunos também. E tinha um outro que fazia parte da Quilombaque também, os três estavam lá juntos.
P/2 – Mas já existia a Quilombaque?
R – A Quilombaque acho que estava no começo. Eles já tinham a garagem, já se encontravam. Eu conheci eles assim até, já tinha a programação de um primeiro evento, que foi um evento que eu fui pra lá, isso era final de 2005, já existia já.
P/2 – Já existia. Mas você já conhecia eles da Quilombaque ou não?
R – Não. Não tinha conhecimento da Quilombaque em Perus. Eles circulavam até, conheciam o meu irmão, tudo, mas eles eu ainda não conhecia, nem a Quilombaque, conheci nesse curso.
P/2 – E como que você conheceu eles e resolveram fazer uma oficina? Fala um pouco desse processo, desde conhecer até que virou uma oficina.
R – A gente fez o curso. A gente começa a se conhecer, ver que os ideais batem na vida e a gente termina esse curso. Só que assim, esse é um curso que ia ser terminado e beleza, cada um pro seu lado e já era, vocês foram capacitados, agora busquem outras... E durante esse processo a gente já tinha a coisa de formar esse grupo e produzir, porque já vem também com a história da Quilombaque, né, de fazer um projeto até. Porque quando a gente faz esse projeto, que era o Projeto Pinóquio, quando a gente se junta, a gente faz ele, a gente circula com ele, mas sempre levando o nome da Quilombaque. A gente fez folder, tudo, e ia muito mais por Quilombaque, até pra não atrelar com o pessoal, com essa ONG que tinha dado a formação pra gente. A gente decide formar esse grupo, mas a gente não tinha um espaço ainda, a gente teve que fazer várias negociações lá porque a oficina ia ficar parada lá, acabou o curso, a oficina não ia ser utilizada e a gente pede esse espaço pra gente poder produzir. A gente começa a produção lá, através das vendas a gente começa a juntar um dinheiro pra comprar as máquinas. Aí vem esse espaço aqui.
P/2 – Antes, o que é o Projeto Pinóquio?
R – O Projeto Pinóquio é esse projeto que a gente montou, a partir da produção e das vendas dessa captação, era o projeto de marchetaria.
P/2 – Mas esse Projeto Pinóquio, vocês que inventaram esse nome, essa ideia?
R – Isso, a gente que formou. No começo era eu e os três, Cleiton, Clébio e o Douglas. A gente colocou esse nome até pra participar, pra poder sair, fazer feiras, vender.
P/1 – E o que eram as feiras pra você, participar de algumas feiras?
R – É, a gente participou de feiras bem importantes. A nossa primeira feira como Projeto Pinóquio, a gente desvincula dessa ONG, até do próprio professor, a gente faz uma Fimai [Feira Internacional de Meio Amibente Industrial e Sustentabilidade], que é no Expo Center Norte, a gente é convidado para um stand lá. Então foi lá, acho que foi aquela feira até que fez a gente acreditar que a gente estava muito no caminho certo, que a gente vai dar certo na vida. E lá possibilitou outras feiras também, a gente fez muitas feiras no MuBE, que era o Museu da Escultura nos Jardins. A gente circulou por outros meios, a gente sai dessa produção em Perus, uma produção local, e começa a percorrer vários outros lugares, até de outras realidades das nossas. A gente tinha peças nossas em ateliês bacanas aqui de São Paulo, a própria Azzurro.
P/2 – Própria?
R – Azzurro, que era um ateliê bem bacana. A gente fez feira na Pompeia. Foi um processo bem rico pra mim nessa questão de empreendimento, tal, de conhecer novas formas.
P/2 – E quem colocava vocês nessas feiras, como vocês chegavam nesses espaços?
R – Pela gente mesmo, né? Um passava. Acho que é através desses contatos, de você fazer num lugar, a pessoa ver e achar bacana, entrar em contato pra poder expor. Foi através dessas articulações mesmo.
P/2 – E quando você está nessa feira e fala: “Olha, é isso aí”. O que aconteceu nessa feira pra vocês acharem que era isso mesmo?
R – Aconteceram tantas coisas.
P/2 – Nessa daí, primeira.
R – É que foi uma... Acho que aconteceu essa mudança de mundo, essas outras possibilidades. Foi um processo bem bacana porque a gente estava no Center Norte, que era a Fimai, que era feira do meio ambiente, tal, a gente trabalhava muito essa questão da marchetaria porque ela é feita com materiais que são reutilizáveis, as madeiras, a gente fazia com resto de guarda-roupa, gaveta, por isso até que a gente se encaixou lá. E a gente era um stand que era muito diferenciado do resto das feiras.
P/2 – Por quê?
R – Porque tinha toda essa nossa temática da Quilombaque. A gente fez uma decoração bem bacana, decoração mais africana e isso chamava muito a atenção. E fora a venda do produto também, que levantasse todas as questões, que era feito com material reciclado, todo esse processo que a gente fazia pra chegar até o produto final. Então assim, acho que foi uma outra visão, foram as visões do que seriam as nossas articulações pro resto da vida, foi bem isso.
P/2 – E vocês faziam peças, tipo caixas, algumas outras coisas.
R – É, a gente fazia caixas de madeira, porque a marchetaria é uma técnica milenar que você junta, trabalha com madeira, com osso, com chifre, você juntava as madeiras e a partir daí você ia trabalhar com isso. E é uma técnica francesa que tinha um custo elevado, é um artesanato mais fino. E era bacana porque era um artesanato mais fino, produzido por pessoas da periferia, sabe? Esses foram grandes diferenciais pra gente, que foi até bacana porque a partir até disso a gente começou a dar palestras sobre isso, que era linkando a técnica da marchetaria com todo esse lance da sustentabilidade, por trabalhar com materiais que iriam ser descartados, mas aí começamos a ser chamados pelo Senai [Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial], a gente fez acho que foram três, quatro Senais fazendo palestras e linkando o meio ambiente com a técnica da marchetaria e com o nosso projeto.
P/2 – E essa ideia que você acabou de falar, tudo isso, veio do curso que vocês fizeram, o quanto veio do curso e o quanto era do grupo de vocês, dá pra você falar isso, você consegue?
R – Eu acho que o que veio do curso foi mais a parte do aprendizado da técnica. E o resto foi esse encontro, um encontro de ideias, de projeções. Acho que o curso mais a técnica e com os meninos e com a própria Quilombaque talvez esse restante assm.
P/1 – E depois da formação como vem a questão da marchetaria, desse trabalho, dessa evolução?
R – Depois do curso?
P/1 – É, depois de entender que virava alguma coisa, tinha esse reconhecimento no Senai, depois quais possibilidades foram criadas.
P/2 – Além das feiras.
R – Teve feira, a gente teve palestras. Logo após da gente ter sido formado por nosso professor, a gente recebeu o convite, nesse processo a gente já estava com a nossa oficina montada, a gente recebeu um convite da ONG pra dar um curso de capacitação pros alunos dos nossos professores, um curso de empreendedorismo, não ia só ensinar as técnicas, mas a gente ia ter também todo esse lance de envolver os alunos em todo esse universo que a gente estava circulando, que eram as feiras e tal. Esse curso quem deu fui eu e o Cleiton, a gente deu aqui. Nessa época já tinha o Dedê, o Clébio e o Douglas dando outro curso em outros lugares também.
P/2 – Tudo de marchetaria.
R – Tudo de marchetaria.
P/2 – Janice, você falou que quando você estava fazendo o curso, a Quilombaque era na garagem.
R – Isso.
P/2 – Aí vocês usaram a oficina que era a ONG que bancava.
R – Era a oficina que era do próprio curso. Era o lugar que a gente aprendia as técnicas lá.
P/2 – E como é que vocês conseguiram montar sua oficina, com que recurso?
R – Foi o recurso das vendas das peças que a gente começou a produzir e vender. Acho que a Fimai foi a primeira feira, ela possibilitou a gente ter um investimento bacana pra empregar em máquinas, então foi essa a primeira que a gente conseguiu comprar as máquinas e mudar de lá. Porque a gente precisava desse tempo e de um lugar pra gente começar a produzir pra poder tocar o projeto em frente.
P/2 – E esse outro espaço que vocês conseguiram era onde vocês estão agora, onde a Quilombaque está, ou era ainda outro?
R – Não, é esse espaço aqui que a gente tem hoje. Aqui ao lado era a firma do pai dos meninos, esse lado aqui era um lado que era locado, mas não era utilizado. E ele cedeu pra que a gente montasse a oficina aqui.
P/2 – Exatamente aqui onde a gente está?
R – Não, lá no outro salão. Esse espaço aqui existia, mas era totalmente diferente.
P/2 – Como se construiu esse espaço? Vamos aproveitar pra saber.
R – Bom, esse espaço. É que é assim, antes de chegar nesse espaço, a gente ficou um período com a oficina aqui, mantendo a oficina aqui e as atividades da Quilombaque na garagem. Só que lá começou a crescer e o espaço começou a ficar pequeno. E aí o pessoal, e a gente passava muito tempo produzindo às vezes e a gente não tinha muito como ficar lá na garagem. Aí o pessoal começou a se encontrar aqui, era uma coisa muito doida porque a gente lixando madeira e o pessoal querendo vir pra conversar e poder se reunir mesmo. A gente fica um período com essa oficina aqui, aí com esse lance de estar crescendo lá, porque nesse mesmo período a gente dá a oficina de marchetaria também na garagem, a gente trabalha lá e lá fica pequeno e a gente aprova um projeto de tambores, projeto inicialmente vai para a escola e depois a gente precisava de um lugar também pra se encontrar, a gente começa a se encontrar aqui e começa a vir outras coisas pra cá. E a oficina vai ficando mais de canto até que ela sai de vez de dentro do salão, não sai de dentro da Quilombaque, mas é um momento em que a gente dá uma pausa na marchetaria e começa a dar conta de outros projetos pela Quilombaque, tinha o projeto dos tambores tudo. E a gente começa a enxergar que aqui seria um lugar que comportaria a Quilombaque no tamanho que ela estava nesse período. Crescimento das pessoas. E esse lugar aqui vem nessa época quando a gente recebe até uma proposta pra ter uma sala, a gente já estava com o projeto de estruturar o espaço, mas a gente recebe uma proposta de ter uma sala do Mova aqui com a gente. Eles já tinham feito outras oficinas na questão de libras, de interpretação de texto na garagem, a intenção era passar essas oficinas pra cá também, e a gente começa a construir essa parte daqui até pra comportar outras atividades. Então nasce aqui.
P/2 – E como é que vocês construíram isso? Tem uma proposta de construção?
R – As propostas (risos).
P/2 – Porque parece que tem muita coisa de material reciclado.
R – É, a gente tinha isso até pela questão do custo, né? Porque dinheiro, financiamento, a gente tinha, mas eram financiamentos que eram muito dirigidos a atividades, então a gente tinha muito essa coisa de fazer com o que tem, de buscar, mas de construir com o que a gente tem mesmo. Porque sempre uma proposta da Quilombaque também, da sustentabilidade. Eu acho que já vem com a marchetaria, que era o reaproveitamento, vem com a questão da permacultura, que também sempre foi presente aqui. E a do espaço, da construção, ela vem com essa proposta também. Até por conta do custo mesmo.
P/1 – E voltando, eu queria que você falasse um pouco da sua percepção ao chegar na Quilombaque, de entender o que era, o que não era, de entender a proposta, qual será essa proposta ao chegar lá na garagem.
R – Eu sempre falo isso, eu cheguei lá, eu comprei uma ideia, porque a gente conversava muito, trocava muita ideia dentro do curso. Então, quando eu chego na garagem, eu cheguei era um evento que estava acontecendo lá, eu vi tudo aquilo. Era um grafite acontecendo na parede, eram as pessoas, tinha DJ, tinha isso, tinha aquilo.
P/2 – Tinha DJ, tinha grafite. Pode falar tudo o que tinha.
R – Tinha várias coisas acontecendo ao mesmo tempo. Tinha uma galera que estava vendendo torta lá para levantar um dinheiro pra poder fazer as coisas lá. Eu acho que a primeira impressão que eu tive foi: “Poxa, cheguei no lugar certo, finalmente encontrei alguma coisa aqui em Perus que bate muito com as ideias que eu tenho, bate muito com o que eu acredito”. Então foi uma impressão bacana, até pela própria estética do lugar, que era a garagem, que a parede era toda grafitada, tinha quadros e tinha coisas assim, que até me identificava muito.
P/2 – E por que você diz aqui é o lugar que bate com o que eu acredito, o que mais fez você ter essa impressão? O que você viu lá você descreveu, mas o que isso mostrou pra você, que bateu com o que você acredita.
R – Bateu porque eu sempre tive muito comigo esse lance do encontro, da troca e da construção mais coletiva. A minha primeira garagem da vida, que era uma garagem muito parecida com a Quilombaque, só não tinha toda a decoração foi lá em Franco, então eu me identifiquei por isso também, porque a gente tinha uma garagem lá que a gente se encontrava, na época a gente, o rap estava numa cena bem bacana, bem forte, 90 e alguma coisa. A gente se reunia pra escutar rap, porque tinha um menino que o sonho dele era ser DJ, então a gente se reunia pra isso. A gente era muito fiel, ter que estar lá toda semana. E me identifiquei muito com isso, até por todas as questões das referências que eles traziam lá que eram referências minhas também, eu acho que bateu muito esse lance da ideia, do propósito, ou do porque ter um lugar assim, sabe? Por que ter ações e atividades aqui? Acho que tudo isso fez acreditar que eu estava no lugar certo. E as pessoas, elas comungavam das mesmas ideias que as minhas e tinha esse propósito de unir pra fazer essa ação mais coletiva em prol do bairro, de trazer outras perspectivas até pro bairro.
P/1 – A partir do momento que você começa a frequentar, eu queria que você falasse como era a organização, programação, as dificuldades pra desenvolver a comunidade.
R – Eu chego na Quilombaque quando está num processo de organização de uma equipe que já tinha há um bom tempo. Eu lembro que eu cheguei numa reunião e eu já saí com um cargo assim (risos), entro por essa parte porque eu tenho uma coisa com organização, sou até bem neurótica. E era difícil.
P/2 – E você acha que te deram esse cargo por quê?
R – (risos) Eu acho que eu já mostrava isso porque pra mim é tudo muito os mínimos que fazem a grande diferença, acho que me deram esse cargo por isso. Eu gosto muito de tudo muito certo, acho que tenho, enfim. Mas era difícil, quando eu entrei lá a gente estava nesse processo de ir buscar essas formas, já estava com a própria marchetaria que tinha uma renda. E acho que foi logo que eu entrei, ou um tempo depois, a gente conseguiu o primeiro financiamento da Quilombaque, que era um financiamento que eu achava que ele era até meio contraditório, que a Quilombaque nasce do tambor, mas o tambor ainda tinha aquele preconceito, quem tocava tambor era macumbeiro, tal, essas coisas. E o nosso primeio financiamento veio por um projeto que era junto com a igreja, o Projeto Coruja, que na época a gente recebeu um dinheiro, acho que era uns três mil e a gente achou isso o máximo. A gente conseguiu fazer várias coisas, a gente achava que nossa, né? A gente colocou cines lá, tinha debates, a gente conseguiu até fazer um coquetel no final, tal.
P/2 – E ainda era na garagem?
R – Ainda era na garagem.
P/2 – Você falou que era meio contraditório o financiamento via igreja e os tambores.
R – É, mas ele veio de um projeto que era o Projeto Coruja, que eles tinham essa questão mais política dentro do bairro também.
P/1 – Você lembra o ano?
R – Isso já era 2006.
P/2 – E a igreja era só a igreja daqui de Perus ou era uma coisa das igrejas?
R – Era uma específica que eles usavam o lugar lá. A grande maioria dos moradores aqui também, essa coisa do catolicismo, tal. Mas eu achava engraçado por causa disso.
P/2 – Mas o que dos moradores e catolicismo? Fala só um pouquinho sobre essa sua visão desse ambiente.
R – Eu falo porque eu fui criada por uma família católica, fiz primeira comunhão porque a minha avó achava que tinha que fazer, minha mãe, tal. E essa coisa mais conservadora, tipo, era aquilo que a gente acreditava e tinha essas, de ter que desmistificar que eram coisas que eram iguais mais ao mesmo tempo eram diferentes, acho que era mais essa questão da doutrinação, né? E Perus sempre foi porque tinha essa movimento aqui em Perus, eram as comunidades de base da igreja, os grandes encontros, que eram lugares que serviam até para esses comitês, que se reuniam lá e planejavam tudo. A minha mãe fez parte durante muitos anos pela igreja, não nessa parte mais política, mas nessa parte de organização, essas festas, tudo. Acho que é por isso.
P/2 – Janice, não sei se é possível você falar, mas você fala que a igreja tem esses dogmas, a igreja católica, essas regras. Ao mesmo tempo você falou que a igreja era o espaço onde tinha organização política. E pra vocês, jovens, o que isso acontecia, essa conversa? Ou não tinha porque era outra época.
R – Não tinha, acho que a gente não tinha essa relação. A gente começa a conhecer as pessoas que faziam parte, mas acho que não tinha essa relação.
P/2 – Ficou alguma coisa dessa época pros jovens? Porque foi um movimento forte, mas antes, né? Foi mais na década de 80, 90.
R – Isso é. Hoje eu não tenho conhecimento de outros grupos assim porque a gente também não tem essa ligação.
P/2 – A Quilombaque não teve nada desse movimento, nada desse movimento teve a ver com a Quilombaque, das igrejas. Dessas comunidades de base, o que teve antes, se teve alguma influência no trabalho de vocês. Se você sentiu.
R – Aqui em Perus?
P/2 – Na Quilonbaque.
R – Ah, na Quilombaque? Acho que mais teve a influência das relações com as pessoas que faziam parte desses movimentos, agora na questão da juventude a gente, eu não sei dizer.
P/2 – Você não enxergou essa influência.
R – Não.
P/2 – Eu estou pegando o que você falou, né, que tinha antes, a igreja tinha esse trabalho, as reuniões.
R – Eu acho que o próprio Soró vem dessa base com a igreja, que foram as pessoas que acreditaram até na Quilombaque quando a gente começou a fazer essa articulação no bairro. Acho que eles pensavam nessa continuidade até da militância e da luta, mas a gente não tinha, com a igreja não, só pelas ideias e o pessoal mesmo dar essa continuidade.
P/2 – Quem é Soró?
R – Soró? (risos)
P/2 – Do seu ponto de vista.
R – Nossa, que pergunta difícil.
P/2 – Quem é essa pessoa que você está falando.
R – É o Soró. Ele faz parte, hoje ele faz parte da comunidade Quilombaque. Soró, eu acho que ele chega na Quilombaque há uns nove, dez anos. E ele chega com uma proposta bem bacana pra gente, porque era uma época que a gente estava com essa intenção de quando sai os editais, de captar o recurso com os editais que saíam de apoio à juventude na cidade e ele chega com conhecimento de ensinar a elaborar projetos, a gente já tinha mandado projetos que não tinham sido aprovados, acho que ele chega a gente estava aprovando o primeiro projeto. E ele chega com essa coisa de toda essa bagagem que ele tem, todo esses conhecimento que ele adquiriu e estar passando pra gente isso. Hoje ele faz parte da gestão da Quilombaque e tem todo um plano de território pra frente. Esse é o Soró.
P/2 – O Projeto Pinóquio não tinha financiamento, era só a ideia mesmo, não tinha recurso.
R – Não, o Pinóquio era a gente que geria, era mais com nós mesmos e os financiamentos eram através das feiras. Todo o recurso que tinha...
P/2 – Já era uma organização que tinha nota fiscal, essas coisas.
R – Não, não, não. A gente não chegou a formalizar ele, ele era como se fosse uma espécie de coletivo mesmo.
P/2 – E como vocês faziam pra receber nas feiras, essa parte mais financeira mesmo? Ainda era uma oficina de marchetaria, vocês iam nas feiras e tinha alguma verba ou era só o que vendia.
R – Era o que vendia. Geralmente a gente expunha em lugares que a gente era chamado para exposição e venda e era aquela coisa bem assim porque eram feiras abertas, então acho que... Mas em questão de nota, tudo, acho que na época a única era a Sutaco, que a gente podia, mas pra você emitir você tinha que ir lá e pagar, totalmente burocrático assim, burocracia sempre presente.
P/1 – E esse processo de mudança, a questãode sair de um espaço menor, se agregar aqui e desenvolver o trabalho aqui, como foi essa relação de construção desse espaço?
R – Complexa (risos). Acho que vou falar uma palavra que resume tudo: foi bem complexa. Você trabalhar o coletivo é difícil, que a gente estava recebendo muita coisa, a gente estava recebendo muita gente, a gente tinha já um núcleo que era pré-estabelecido, que eram as pessoas que estavam na frente, mas foi difícil no começo. Era bem bacana, mas passamos por muitas dificuldades, até pelo próprio espaço, esse lance do espaço ser alugado, a gente ter que correr atrás pra poder sustentar aqui. Acho que toda essa parte foi um pouco difícil.
P/2 – E como vocês conseguiam recurso pra pagar aqui o aluguel, além da marchetaria? Tinha outras formas?
R – A gente fazia eventos, nos eventos a gente vendia as coisas que ajudavam nisso.
P/2 – O que vocês vendiam geralmente?
R – Era meio aquela coisa, a gente vendia bebidas, torta, o que cada um podia trazer pra vender, a gente trazia e vendia pra poder captar esse recurso, foram várias formas. A gente começou também a aprovar projetos, acho que o financiamento começou a partir disso. Demorou um bom tempo até a gente estabilizar tudo. Projetos que circulavam aqui também.
P/2 – Janice, você falou que foi numa reunião e logo te deram um cargo, né? Quem te deu esse cargo, como era essa reunião? Era pra quê?
R – Essa reunião eu fui porque a gente já tinha intenção na época, que era 2006, de fazer que a Quilombaque se tornasse uma organização mesmo, não ser só um coletivo que se encontra e produz, mas que virasse uma associação, acho que até já projetando assim. E eu fui numa dessas reuniões que estavam tirando diretoria e precisavam de pessoas que estivessem nessa construção. Então eu cheguei nessa hora, que já tinha esse pensamento de legalizar, de tornar a Quilombaque uma organização, isso em 2006.
P/2 – O Soró que puxou isso?
R – Não, o Soró não estava nessa época. Soró vem bem depois.
P/2 – E vocês conseguiram tornar a Quilombaque, nesse momento, com essa organização?
R – Não. Nesse momento, em 2006, a gente começa porque não tinha verba, era buscar a gente pela gente, então estudar como monta um estatuto, do que seria o estatuto, o que a gente projetava o que queria ser a Quilombaque, com quem a gente trabalharia, tudo. Então a gente estava nesse processo de buscar, de entender tudo isso e de se reunir pra discutir tudo isso também. Então, é isso.
P/2 – Janice, em dois momentos, um principalmente, vocês foram empreendedores com a marchetaria. Vocês fizeram algum curso de empreendedorismo, esse tipo de coisa?
R – É, a gente teve algumas pessoas que passaram algumas informações. Acho que o empreendedorismo mesmo a gente aprendeu na própria prática, já vinha com a gente.
P/2 – Não teve um curso formal.
R – A gente teve durante o processo de formação da marchetaria, mas são aquelas coisas que passam. Eu aprendi muito por esse processo de buscar entender, buscar saber, na questão dessa legalização da Quilombaque, de associação, então eu buscava muito assim.
P/2 – Onde que você buscava e onde que você encontrou?
R – Nossa, eu buscava em tudo quanto era lugar (risos). Na internet, eram pessoas que eu conhecia que já tinham uma certa caminhada nesse processo. Então trocava muito: “Pô, aconteceu coisa tal, qual é o procedimento?”. Sempre foi muito isso, né? A gente fez por nós, sempre buscou muito, acho que a Quilombaque tem muito essa história.
P/1 – E você falou sobre o Projeto Tambores. O que foi o Projeto Tambores, como desenvolveu isso?
R – Projeto de Tambores. É assim, a Quilombaque nasce de um grupo de percussão. Então a ideia era que tivesse esse grupo, a Quilombaque é muito isso. E a gente aprova esse projeto que vai possibilitar que a gente faça esse grupo.
P/2 – É o Coruja?
R – Não, é o projeto VAI [Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais], é o primeiro VAI que a gente pega. Isso foi em 2007. E a construção desse projeto foi bem bacana porque já tinha esse propósito de formar esse grupo de percussão em Perus, até pra desmistificar e fazer com que através desse projeto a gente conseguisse passar as nossas ações, todas as propostas de se ter a Quilombaque aqui, de se trabalhar a arte e a cultura como ferramentas de transformação. E foi um processo que teve uma construção bem bacana porque seria muito simples a gente fazer esse projeto e colocar ele na Quilombaque. Nessa época a gente já começava essa ideia do mapeamento pelo bairro e de ver onde que o tambor, a Quilombaque, tudo o que vinha junto assim tivesse esse propósito de transformar. E a gente optou pelo Recanto dos Humildes que foi uma vila aqui no bairro de Perus que tem um contexto histórico muito pesado, que foi a primeira grande ocupação de Perus, ocupação enorme, demorou anos pra ser legalizada também. Tinha essa questão de trabalhar os ritmos regionais através dos tambores e lá é um grande reduto de migrantes, maioria nortista e nordestina. E era um lugar de Perus que não tinha acesso a essas linguagens, à cultura, que Perus ainda carece muito de espaços culturais, mas o Recanto por ser mais afastado é o que mais sofria com isso. Então foi essa proposta de colocar essa oficina lá, dentro de uma escola. Eu acho que ali a gente conseguiu juntar mais pessoas, conseguiu atingir o bairro também com as ações, o próprio grupo, que o grupo de percussão também circulou por vários lugares, a gente fez apresentações em lugares também, desfilamos aqui em Perus, tivemos propostas pra unir com escola de samba. Então foi o projeto que foi integrando a Quilombaque, os ideais de luta, tudo, ao bairro. Eu acho que começa daí.
P/2 – Janice, você disse que foi aí que vocês tiveram a ideia do mapeamento, até pra chegar nesse bairro. Quem teve esse ideia de mapeamento, ou como ela surgiu?
R – Acho que é sempre muito coletivo, a gente discutia muito esse lance de fazer esse trabalho no bairro, a gente tinha sempre essa preocupação.
P/2 – E como foi feito esse mapeamento?
R – Acho que na época o mapeamento foi feito de uma forma bem simples, lá precisa, vamos dar uma olhada lá, a gente conhece umas pessoas que circulam por lá, vai ser lá. Hoje ele já é mais complexo, mais trabalhado. Tinha muito esse lance das carências. Acho que o mapeamento chega assim, de qual área de Perus que é mais vulnerável e tem menos acesso?
P/2 – Assim que vocês decidiram.
R – Assim que a gente decidiu.
P/2 – E vocês chegaram na escola e como foi essa relação com a escola, pra fazer o trabalho lá dentro?
R – A gente utilizava a escola todo domingo.
P/2 – Mas como foi esse contato com a escola, foi bem?
R – A articulação na época foram vocês que fizeram lá, né? Já tinha uma conversa, um diálogo lá, era uma escola que já tinha esse lance aberto, esse diálogo aberto e eles super toparam. A gente usava de domingo, era aberto pra comunidade em geral, não era pro público específico da escola e a escola servia de espaço para os encontros e as oficinas.
P/2 – E como eram esses domingos, o que acontecia, o que era o projeto, de fazer o quê?
R – Domingo a gente se encontrava aqui e começa essa transição pra cá, a gente começa a se encontrar aqui porque começa a vir pessoas de fora pra participar dessa oficina. A gente se encontrava aqui e ia a pé até o Recanto levando os instrumentos, tudo.
P/2 – Já iam fazendo o cortejo ou não?
R – Sempre tinha um lá que tocava (risos), não dava pra segurar. E foi bacana porque foram os primeiros instrumentos da Quilombaque, que teve a necessidade de ter os primeiros instrumentos de percussão.
P/2 – Vocês compraram?
R – É, teve essa, tinha uma verba que era para comprar os instrumentos. Porque os meninos vêm de outro processo, eu não pego esse primeiro processo dos tambores com eles, mas eles vêm desse processo de falta de instrumento, tal, de pegar emprestado, de produzir até os próprios instrumentos. Eu já pego a época boa, a época que tinha dinheiro pra comprar e fazer (risos). Mas a oficina, acho que ela foi essencial.
P/2 – Ela era para ensinar o quê?
R – Era pra ensinar técnicas dos tambores, da percussão, e a gente trabalhava nos ritmos regionais com eles, que era o samba reggae, o baião. E trazia também todo esse contexto histórico do que eram os ritmos. Não era só a técnica, a gente já tinha essa preocupação de resgatar tudo, era bem um resgate da memória e permanência.
P/2 – E na escola vocês ficaram fazendo esse trabalho durante um ano.
R – É, foi um pouco menos de um ano porque era o prazo do projeto, mas daí esse grupo vem pra cá, ele vem pro espaço da Quilombaque já. A gente formou um bloco de percussão, que era o Refúgio.
P/2 – Com os participantes da oficina.
R – Isso, a gente formou um bloco de percussão.
P/2 – E eram moradores de lá?
R – Grande parte, teve uma adesão muito bacana dos moradores do Recanto. Vieram muitas pessoas de lá nessa época. Tem pessoas que participam com a gente até hoje. O próprio Almir, que também está fazendo parte dessa entrevista, ele vem de lá do Recanto também, mas ele já tinha um processo antes de conhecer lá e super se identificava com esse lance dos tambores, a própria irmã dele. Tinham crianças também que participavam desse bloco. Foi um processo bem bacana assim pra Quilombaque.
P/2 – E esse bloco permaneceu?
R – Permaneceu por um tempo, um bom tempo a gente permaneceu com o Refúgio, fizemos apresentações, tudo, mas quando começa a vir muita gente, vem muita ideia, vem muita ação, a gente começa a tomar outros projetos, outros rumos assim e o projeto, a gente ficou com ele uns três anos.
P/2 – Porque ia renovando?
R – A gente tinha esse lance de renovar as pessoas, que a gente deu a continuidade aqui depois também, que a gente continuava se encontrando, continuava ensaiando.
P/2 – Mas continuou renovando o contrato?
R – Não, não. O Tambores a gente pegou foi um ou dois anos? Foram dois.
P/2 – Vocês conseguiram continuar o projeto além do financiamento.
R – Não, aí acaba a verba, acaba a alegria (risos), os tambores tocam mais baixo (risos).
P/2 – Fala disso, essa coisa de quando tem o financiamento você consegue a mobilização, depois vai e os tambores começam a tocar baixo. Como que funciona isso?
R – É que o financiamento possibilita você ter pessoas que podem se integrar, de estar mais integralmente aqui na Quilombaque, de poder fazer as ações com mais tranquilidade. Porque a gente chega numa época que a gente precisa sobreviver, todo mundo precisa sobreviver. Até nessa época a gente começa a trabalhar em um outro lugar, a gente começa a ter essa jornada dupla porque só essas ações, só arte e cultura, ainda não possibilita que as pessoas sobrevivam só desses financiamentos de projetos. Porque são projetos que têm a verba, mas elas geralmente vão muito direcionadas, a gente possibilita dar uma pequena ajuda de custo. E sabe que é selvagem todo esse lance de se sustentar. Mas as oficinas permaneciam, mas a gente não conseguia sempre que as pessoas viessem só no voluntário. E era uma coisa que a gente até batia muito por acreditar que a arte e a cultura, a gente é artista, é um trabalho, não é simplesmente: “Eu sou artista, eu toco, beleza e vou toca de graça”. Não, ele é um trabalho, porque tem todo um estudo, tem todo um tempo empregado, tem toda uma técnica. É tudo, sabe? A gente escolhe viver disso, se aprimora disso e a gente tem que ser reconhecido por isso, não só no trabalho, mas financeiramente também. Então acho que é isso que eu falo que quando acaba o financiamento, porque é uma parte do tempo que você tem como ter essa ajuda, né, aí as coisas começam a ficar mais difíceis.
P/2 – Você aprendeu a tocar tambor?
R – Aprendi. Aprendi a tocar com a Quilombaque (risos). Tive ótimos formadores.
P/2 – Você toca?
R – Toco. Mas eu ainda me identifico com outros instrumentos de percussão. Passei por todos, isso que era bem bacana na oficina porque todos passavam por todos os instrumentos, não era aquela coisa que um só toca, você só vai tocar isso, você só vai tocar aquilo. Não, todo mundo tocava tudo, que era uma oficina que tinha essa vivência, a gente tinha que ter toda essa vivência, com tudo.
P/2 – E você escolheu o quê?
R – Hoje eu toco ganzá.
P/2 – O que é o ganzá?
R – O ganzá, a gente fala que é o molho, né, da percussão. Ele é um instrumento de, é estilo um chocalho, né? Posso falar que é chocalho? Não, é um ganzá, de chacoalhar. Todo mundo fala: “É só chacoalhar”. Não, tem uma puta técnica, são vários toques diferentes. Acho que foi o que eu mais me identifiquei.
P/2 – Você tem um aqui?
R – Temos.
P/2 – Depois você toca, no final.
R – (risos) Vamos fazer o grupo aqui hoje, já tem três tocadores já.
P/2 – Boa ideia, importante.
R – Vamos fazer uma cirandinha já.
P/2 – Se você puder ficar.
P/2 – Janice, você estava falando que viver de arte é difícil. Você faz outro trabalho?
R – Sim. Eu sou educadora social, trabalho numa casa de acolhimento na região central de São Paulo, na Bela Vista.
P/2 – Quanto tempo?
R – Acho que já vão nove anos já. É, vai fazer nove anos.
P/2 – E qual o seu trabalho lá?
R – A gente trabalha lá, a gente é educador, a gente passa um período com os meninos e as atividades que a gente desenvolve lá são atividades. Eu tenho um trabalho com os meninos de alfabetização, trabalho alfabetização. A gente trabalha também esse lance da socialização dos meninos, até nos próprios equipamentos próximos porque o centro de São Paulo tem muitos equipamentos, mas muitos acham que não têm acesso, ou não fazem parte. A gente tem esse processo lá também. E fora o processo da questão de trabalhar com os meninos a identidade, essa questão da onde a gente veio, de como a gente se relaciona, de enxergar também. Porque a gente vê assim que lá é o último lugar, né? Quando ele chega lá ele já foi rejeitado por vários, aí fica na conta do Estado mesmo criar. A gente mostrar até pra fazer essa reinserção do menino no mundo, que ele possa ter outras possibilidades e outras visões.
P/2 – Você falou que faz o trabalho de alfabetização. Tem um jeito que você encontrou pra alfabetizar eles? Eu ouvi dizer (risos).
R – Teve em dois mil e... Agora não vou lembrar muito bem a data, eu fiz parte de um projeto que a casa fez em parceria com a Alfa Sol, que era um processo de formação e alfabetização de jovens e adultos. E dentro desse processo eu estava fazendo a alfabetização dos meninos, que a gente tem um...
P/2 – Você criou uma forma de fazer isso, é isso que eu queria que você comentasse.
R – Então, eu tinha pra mim que foi o mesmo processo que me escolarizou para a vida, que foi a cultura hip hop, muito através do rap que é um dos quatro elementos dessa cultura. E eu fazia alfabetização com os meninos através do rap. A gente pegava as músicas, porque são músicas que contam a realidade dos espaços que esses meninos estavam inseridos, que são as grandes periferias da cidade. Então trazia a alfabetização através da realidade dos meninos. Então a gente alfabetizava através das letras de rap e estimulava também para que os meninos não só ganhassem um outro repertório, mas que projetassem também outras coisas porque a gente tinha nessa época muito o lance do funk, de música, de apologia, tal, e de fazer essa transição. Então a partir desse processo de formação até com a própria Alfa Sol, de ter esse projeto em desenvolvimento no Taiguara, a gente formou com os meninos um grupo de rap, os meninos começaram a escrever, ampliou muito o repertório deles, eles começaram a escrever, montaram um grupo de rap e com esse grupo a gente começou a circular com eles, também inserindo eles até nos próprios espaços que a gente tem culturais, teve meninos que vieram cantar aqui, teve meninos que foram cantar em fábricas de cultura. Esse grupo que a gente formou também teve uma passagem bem bacana, acho que foi uma das coisas que me marcou, que teve um cantor que é muito famoso no rap, até então eu não o conhecia pessoalmente mas, a gente conseguiu possibilitar aos meninos não só conhecer, que era um dos referenciais no processo de alfabetização, de cantar junto, de dividir o palco com esse cantor. E esse projeto também possibilitou que a gente fizesse fanzines, que era um fanzine bem bacana que a gente trabalhava o rap, mas trabalhava também nessa questão da autoafirmação, do que era o ser negro, de ter esse lance da identidade, de ponderar esses jovens, de se auto afirmar mesmo. Era um fanzine bem bacana, que chamava Ser Sim, que o nome já dá essa autoafirmação, Ser Sim, ser negro. E a gente colocava nele poesias feitas pelos meninos porque o rap é o ritmo e a poesia, a poesia cantada em cima da batida e distribuía esses fanzines onde a gente ia, nos shows que os meninos faziam, foi um processo bem bacana.
P/2 – Tinha alguém que te ajudava no fanzine?
R – Tinha. Tinha o Cleiton, da Quilombaque, que trabalha lá comigo também, a gente entrou na mesma época. E a gente sempre teve essa mesma linha de trabalho, de desenvolver através da arte e da cultura junto com os menino lá. Ele que me ajudava fazendo toda a diagramação, porque além de todas as outras coisas ele é designer também. E era bem bacana porque as ilustrações do fanzine eram feitas pelas crianças do abrigo, a gente deixava as letras para os adolescentes e a ilustração eram os desenhos que as crianças criavam. Aí ele tinha todo esse processo de recortar desenho, encaixar tudo. Foi um processo muito, muito, muito bacana.
P/2 – E não continua?
R – O projeto do fanzine a gente meio que parou faz algum tempo. O primeiro fanzine foi bacana, ele trouxe um lance bem bacana pra dentro do acolhimento porque da gente estar trabalhando essa temática do ser negro, da cultura, tal, pro lançamento do fanzine a gente fez um grande encontro lá, a gente levou pra dentro do abrigo tudo o que a gente faz aqui fora. E de tudo que a gente trabalhava com essa questão das raízes. A gente teve grupos de dança afro lá, teve o próprio rap, que os meninos puderam ter mais isso aí.
P/2 – Lá no centro?
R – No próprio abrigo.
P/2 – Abrigo é essa casa de acolhimento.
R – Isso. A gente fez um dia que foi o Dia da Consciênca Negra dentro do abrigo. Que até então a gente pensava que a gente não tinha que formar só os meninos, até os próprios educadores, que são todos vindos também das grandes periferias e todos com essa questão de toda essa...
P/2 – Você acha que era a Quilombaque lá ou era a Janice lá?
R – Ah, não tem como separar se é a Janice e o Cleiton da Quilombaque, acho que em todo lugar é assim porque a gente é a Quilombaque e a Quilombaque é a gente, sabe? Chega uma época que a gente já não... E a gente levou o pessoal lá da Quilombaque, até pra poder dar essa ideia do que é o que a gente faz aqui, que é numa proporção maior, que lá a gente pensa que a gente atende 20 e aqui fora são sei lá quantos, 20 mil assim, né? A gente levou pra ter essa troca, até para os meninos entenderem. Às vezes na própria quebrada que eles moram tem esse centro cultural, tem esses processos com coletivos lá, mas que eles não tinham um entendimento, não tinha essa aproximação. Porque a gente fala muito na história da arte, da cultura, desses movimentos, seriam ambientes que são saudáveis, são ambientes que são livres de tanta degradação, como outros movimentos que existem, questão de drogadição, é uma coisa mais consciente, de conscientizar, ambientes mais seguros e mais saudáveis.
P/2 – Janice, fala um pouco também disso, desses ambientes, desses outros coletivos, em relação com a Quilombaque. Como que acontece isso aqui no bairro.
R – Aqui no bairro.
P/2 – E como os jovens funcionam, a relação desses jovens. Não sei se dá pra você falar isso, os jovens aqui na Quilombaque, nesses outros grupos, como é que você se relaciona com tudo isso. O papel da Quilombaque nesse contexto.
R – A gente tem, acho que é esse papel de chamar pra reflexão, tipo, de juntar e através de todas as ações que a gente faz, ter essa temática que vai atingir esse jovem, de chamar pra tudo isso, ser o menos degradante, da produção, do produzir, de conscientizar, de tornar pra eles outros modos.
P/2 – E como que acontece? Como é que vocês cativam os meninos e as meninas?
R – É tem que ser os meninos e as meninas.
P/2 – Como vocês cativam?
R – A gente tem várias ações, a Quilombaque tem várias ações dentro do bairro. A gente trabalha tanto o processo de formação, que é um processo de formação aberto, de produção cultural, tal, que está todo esse entendimento da luta, da resistência, de todas as estratégias de sobrevivência até, através da arte, da cultura, a gente faz esse processo com jovens agentes coletivos que foram formados aqui no bairro. A gente tem ações na rua que são eventos que a gente fala que são até os eventos articuladores, que são eventos que a gente passa tudo isso daqui de dentro pra fora, a gente sempre procura passar isso dentro das atividades, dentro desses eventos. E é até interessante porque quando fala dos jovens, do coletivos daqui de Perus, foi a partir de um curso aqui que a gente conseguiu até expandir mais essas ações porque era muito mais a Quilombaque que era esse referencial e depois de um curso que a gente fez em 2016, no ano passado, um curso de formação cultural, a gente abriu pros agentes, pra esses coletivos que estão aqui, são os jovens, a gente já começou a trabalhar esse lance do mapeamento e das carências do bairro e de como atingir mais a juventude. Porque acho que todo evento que a gente faz a gente tem muito esse lance do enfrentamento, de levantar a bandeira, de lutar contra tudo isso, de toda essa violência que é imposta pro jovem na periferia, toda essa negação, todo esse preconceito, essa marginalização dos jovens. E a partir desse curso com os jovens aqui que já tinham essa experiência um pouco com a arte e a cultura, a gente fez esse mapeamento no bairro e descobriu-se que tinham lugares que eram lugares estratégicos, que eram lugares que estavam até um pouco mais distante da Quilombaque, do centro aqui assim, e que eram espaços que estavam desocupados, espaços públicos, e fizemos as ocupações, formamos mais dois empreendimentos culturais, abrimos mais dois leques de ações aqui no bairro, que iam ficar aqui na Caioba, que é um lugar até um pouco mais distante também até pras pessoas que estão lá ter acesso à arte e à cultura e a gente poder passar tudo isso através dessas ações. E a outra é aqui no Recanto dos Humildes, que a gente volta pro Recanto (risos), que eu acho que eu sempre vi o Recanto como a menina dos olhos aqui de Perus, que é onde a gente tem um índice maior dessa população jovem voltada a toda a questão do tráfico, da marginalidade e da falta. Perus carece de lugares assim, a gente não tem espaços culturais. O equipamento público mais próximo de lá é uma biblioteca, que hoje ainda tem um trabalho a mais de ser só uma biblioteca. E a gente faz essas duas ocupações, então abre-se esse leque pra ter esse diálogo com os jovens.
P/2 – E essa ocupação é assim: “Vou entrar lá porque o prédio está abandonado”, é isso?
R – É, estilo pé na porta, né? (risos). Está aqui, está degradado, são ocupações que estavam há um bom tempo fechadas, espaços fechados, que estavam sendo utilizados pra uso de drogas. No próprio Recanto lá teve questões de estupro, tudo, na da Caioba também, eram espaços que estavam totalmente degradados e à mercê de qualquer coisa que o poder público já não dava atenção e não queria saber também. Então assim, tinha esse processo também de revitalizar. No Recanto foi um processo muito, muito bacana, que é o que eu estou mais próxima, que esse lugar estava fechado, ele já fazia dois, três anos que estava abandonado e um comerciante do lado dessa ocupação se preocupou pela situação com que o espaço estava ficando, porque foi retirado tudo, a estrutura, os próprios usuários de drogas tiraram tudo o que sobrou lá, usavam lá pra poder ficar usando a droga lá, tudo. Ele teve essa preocupação e ele tranca esse espaço, ele faz um furo lá na porta e fala: “Não”. Até por uma questão de segurança, porque aí já começa a aparecer outras coisas ao redor. E ele vai atrás, até para que tenha uma solução. Só que ele recebe uma resposta, ninguém vai fazer nada. E essa hora que a gente chega. Que daí ele: “Não, eu abro pra vocês, tal”, começou a fazer parte dessa ocupação com a gente também. Ele é um dos grandes apoiadores lá, foi o que tomou propriedade geral do que virou a ocupação, que virou a Casa do Hip Hop de Perus. Bem bacana.
P/2 – Esse virou a Casa do Hip Hop. E a outra ocupação?
R – Virou a ocupação Caioba, ele é gerida lá por um grupo de teatro, o Teatro Pandora, lá ela virou um Cine Teatro, essa ocupação. São dois pontos bem bacanas assim. Que daí trazem também da questão da juventude, todo esse processo de formação. A Casa do Hip Hop tem diversas atividades que acontecem lá, diversas oficinas, a gente produz muita coisa ali também, porque o espaço físico lá é pequeno, mas a gente fala que a gente ganha lá por um quintal que é a praça na frente, então são muitos eventos lá que são esses eventos de conscientização, dessa militância. Porque o hip hop é um movimento de resistência, de militância. E a Casa do Hip Hop tem esse papel ali, não é só simplesmente oferecer as oficinas, mas é conscientizar e politizar a molecada que está fazendo parte. A importância da gente ter isso, né? Tem que ter esses enfrentamentos a tudo isso que é posto pra gente, tudo o que nos tiram.
P/1 – Sobre essa questão, qual a inspiração que move pra estar fazendo essas ações?
R – Inspiração pessoal?
P/1 – Pessoal ou coletiva que move pra estar ampliando essas ações, fazendo essas atividades.
R – Poxa, a minha, mais pessoalmente falando (risos), mas acho que bate muito com a da Quilombaque, acho que não é inspiração, acho que é um propósito da gente, que nasce de um, mas a gente vê que esse um ia fazer muito mais, possibilitava além. Hoje eu prezo que essa mobilização dentro da periferia, da gente tornar um lugar que saia desse lugar de ser marginalizado, de não ter acesso, de estar sempre à margem. Eu acho que a minha inspiração é tornar, é ter essa desconstrução porque é aqui, de quem nós somos, de fazer isso aqui ser um lugar possível pra todos, eu acho que é bem isso. Complexa essa pergunta.
P/2 – Eu só ia falar pra você contar rapidamente que história é aquela que eu vi numa linha do tempo, da cerveja e da cadeira, ou das cervejas e das cadeiras.
R – Ah, esse processo foi um processo que eu acho que fez a gente caminhar mais, deu aquele empurrão e falou: “Tá vendo, o papel de vocês aqui em Perus é esse, vocês têm que lutar contra isso, contra esse poder público”, que a gente sabe que não faz o papel, que a gente trabalha com a questão da política pública e acho que a gente faz muito mais além do que a própria política pública proporciona. A gente estava no começo das atividades, a gente fazendo cine, fazia debates lá na Quilombaque e a gente precisava de cadeiras. A gente tinha um diálogo com uma gestão antes, na subprefeitura, mais parceira, e essa pessoa sai, entra uma nova pessoa e a gente vai debater essa questão porque a gente precisava das cadeiras, tal, não sei o quê. E a subprefeita na época, primeiro a gente foi lá se apresentar, fez tudo o que a gente fazia, e a gente fala dessa questão dessas cadeiras que a gente precisava, tal, não sei o quê. Aí ela vira pra gente e fala assim: “Então, se vocês querem ter cadeiras, vocês deixam de tomar a cerveja aos finais de semana e vocês comprem as cadeiras”. A gente falou: “Opa, então tá”. Porque já tinha essa visão também, né, você pode interpretar por diversas assim, não só no descaso, mas também no descrédito, de que essa coisa de você ser culturalista sabe, você não é uma trabalhador, você é só um tipo da farra, ou está sempre querendo, como diz o nosso secretário, mamar nas custas do governo, né? (risos) E era uma ajuda simples assim, mas essa questão foi passar até, como a gente tem esse processo de militância no bairro e tudo, foi feita uma matéria com a TV Gazeta e essa história foi parar nessa matéria (risos), aí todo mundo ficou sabendo dessa subprefeita que negou a cadeira porque pediu pra gente parar de tomar cerveja (risos). Foi um processo que fez a gente acreditar e brigar mais, até de romper dessas coisas de ficar em dependências com órgãos que a gente sabe que não têm, não possibilita, e fazer por nós, de caminhar por nós. Mas é muita resistência, muita luta e muito enfrentamento.
P/1 – Então pra encerrar, o que é a Quilombaque pra você e quais as perspectivas futuras que você vê aí?
R – Cara, o que é a Quilombaque pra mim? A Quilombaque pra mim é a vida que eu construí, sabe? Acho que é a concretização de tudo o que eu acreditei um dia, que eu podia fazer pra fazer essa diferença de todas as minhas indignações. Acho que a Quilombaque é a concretização de tudo isso. Eu até brinco que depois de tantos anos a Quilombaque vira um tipo sanguíneo, sabe? Que é o sangue da resistência e da luta porque me formou e me amadureceu muito a vida, a Quilombaque. A Quilombaque pra mim é isso. Minha segunda casa também. É o meu lugar, eu encontrei meu lugar no mundo, é a Quilombaque.
P/1 – Esqueci de fazer uma pergunta importante.
P/2 – E depois você fala do futuro, depois da pergunta.
P/1 – Sobre a relação com a sua mãe, de entender o que é a Quilombaque pra ela. Porque hoje ela já participa.
R – Porque o processo com a minha mãe foi um processo bem complicado, bem tenso. Porque quando eu começo a fazer parte da Quilombaque, eu tenho muito tempo fora de casa, nesse lance da produção, de tudo, do lance dos tambores, do lance de toda essa produção cultural que eu comecei a fazer com a Quilombaque. E minha mãe tinha um entendimento assim que eu não estava produzindo nada, que eu estava na farra, que era essa coisa de: “Viver de cultura não existe, você tem que cuidar dos seus filhos, você tem que ter uma carteira assinada, você tem que ter uma vida totalmente dentro do padrão de que essa sociedade”. Até na questão da base na educação dela, eu tinha que ser assim e eu era totalmente oposta, era a doida desvairada que queria viver de cultura e que ficava aí na farra. E a gente teve, acho que até esse processo com a minha mãe foi, ela me expulsava de casa toda semana (risos), me fez criar esse amadurecimento até da minha própria liberdade porque na época eu morava com ela, de amadurecer também a minha vida. E a minha mãe, durante muitos anos era essa a grande briga com ela, de ela ter esse entendimento de tudo o que eu fazia, de que não era só pra mim, era até pela questão do meu próprio filho, porque a gente está construindo é pra essa juventude, é pra essas crianças que estão chegando agora, né? E muitos anos, muitos anos a gente teve várias brigas assim. E quando eu saio de casa, que eu começo a fazer minha vida fora, a minha mãe começa a entrar numa época da vida dela que ela começa a ficar depressiva, tal, já não tinha muitos... Aí eu trago pra ela um curso de bijuteria, que era aqui num espaço que era de mulheres, Cidadania das Mulheres, porque eu já não aguentava mais também ela na orelha lá, eu falei: “Vai sair, vai conhecer novas pessoas e vai aprender alguma coisa que está relacionada até com essa questão que a gente faz”. Ela começa a fazer esse curso e lá ela conhece outras pessoas e outras mulheres, que era um curso voltado só pras mulheres. E ela começa a querer fazer a mudança lá dentro também, essa mudança que me veio com a Quilombaque desde quando eu comecei. Aí saindo desse curso ela forma um grupo de mulheres, que eles têm as noções de bijuteria e têm noções de empreendedorismo. Acho que foi nessa fase que ela começa a mudar a percepção dela. Porque a minha mãe tem essa questão porque ela foi sempre da igreja, ela sempre foi de movimento, acho que resgatou isso nela também, né? E ela viu que era uma época que ela já estava mais sossegada porque sempre eram os filhos, tal, não sei o quê, agora os filhos já estavam criados, tal, ela já não tinha muitas amarras assim, então ela pega um grupo de mulheres que estão ali se formando com ela e elas resolvem montar um coletivo, um coletivo de artesanato e ela vem e fala: “Olha, eu estou com a intenção de fazer um coletivo de mulheres”, que era um espaço até de encontro que elas já começavam a se encontrar fora do curso e ela via o quanto esse espaço, esse encontro, essa união das mulheres fazia bem não só pra ela, mas pra outras mulheres que estavam com ela também, porque tinham mulheres que vinham de vários processos também, de depressão, de mulheres que só tinham a casa, tal, não sei o quê e marido, dessa emancipação, desse empoderamento. Aí ela resolve fazer esse coletivo depois desses encontros, ela chega pra mim e fala assim: “Olha, estou com a intenção de fazer um coletivo de mulheres e a gente ir pra rua, de fazer feira. Com o quê a Quilombaque entra?” (risos). Eu falei: “Olha, que coisa né, com o quê a Quilombaque entra” (risos). Porque ela começa a participar das ações também, começa a ter esse entendimento, porque da arte, da cultura, da transformação, de todo esse encontro de você estar na rua também, de estar fazendo isso. Aí ela forma esse coletivo, que é o Coletivo Arteferia Perus, isso em 2013, e coloca a mulherada na rua, a gente entra na questão da estrutura com elas, e das atrações das feiras. O coletivo começa muito mais pela questão da produção de feiras de artesanato.
P/2 – O coletivo dela.
R – O coletivo de mulheres, o Arteferia. E são todas mulheres aqui do bairro, isso é bem bacana. E hoje elas já ganharam vários outros espaços, elas têm esse processo de formação também. E a minha mãe, que a minha mãe, como eu falei, é comerciante desde que nasceu eu acho, hoje ela faz parte da comunidade cultural Quilombaque, ela faz parte do nosso núcleo de gestão, ela trabalha com a área da produção cultural aqui dentro e dessa gestão de negócios também. E a bicha vende bem, captação de recursos é com ela. E pra mim foi um processo muito forte, que isso aí não só reverberou na minha mãe, mas em toda a minha família, da minha mãe estar dentro disso também, estar dentro desse movimento que eu faço parte. Porque daí traz, o meu irmão nem tanto, porque o meu irmão já trabalha muito esse lance, mas até meus outros irmãos, sabe: “Ó, como fez bem pra mãe estar fazendo isso, né? E a gente achava que você ficava aí na farra, tal”. E de ver essa transformação, da minha mãe ver, de todas as ações dela, esses resultados que a gente sempre teve e sempre buscou da Quilombaque, acho que dentro do bairro, dentro do território.
P/2 – Qual o nome dela completo?
R – Minha mãe é a dona Maria Angela Fernandes de Albuquerque. Grande figura, minha base, meu oposto (risos), mas é cópia. Minha mãe é o que eu tenho, minha mãe comigo e pra tudo, essa é a minha mãe.
P/2 – A gente vai ter que terminar mesmo por causa do tempo. O Cleiton perguntou o que você vê pro futuro, em poucas palavras pra gente encerrar, tá?
R – Eu sempre brinco que eu quero dominar o mundo, né? (risos) O que você quer? Eu quero dominar o mundo. Mas eu creio que o que eu projeto pro futuro com a Quilombaque é de cumprir todos esses projetos que a gente propõe com território, da gente concretizar todos esses sonhos que a gente tem, da questão de todo esse movimento em Perus, a questão da fábrica, do território, sabe? Da gente concretizar todos os planos, essas metas que a gente projeta de tornar a periferia sempre mais viva, sempre mais produtiva, sempre mais capaz, sempre com muito mais possibilidades, não só essa da sobrevivência. Acho que a minha projeção é essa, primeiro eu começo a dominar o território, depois eu domino o mundo (risos).
P/2 – Ótimo. A gente termina aqui, Janice, muito obrigada. Parabéns pela sua história.
R – Ah, obrigada. Porque eu acho que ficou bastante...
P/2 – Você acha que ficou o quê?
R – Eu acho que ficou bacana, é que se deixar eu vou longe, eu procurei nem me estender muito, mas tem bastante passagens e foram bacanas.
P/2 – Mas como disse o Cleiton, vocês vão poder continuar contando.
R – Pode ser?
P/2 – Parabéns, mais uma vez.
R – Obrigada.
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