Plano Anual de Atividades 2013
Projeto Nestlé - Ouvir o Outro Compartilhando Valores – Pronac 128976
Depoimento de Aparecida de Fátima dos Santos
Entrevistada por Tereza Ruiz
São Paulo, 27/06/2014
Realização Museu da Pessoa
NCV_HV_30_ Aparecida de Fátima dos Santos
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Então primeiro, Fátima, eu vou te pedir pra falar pra gente seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Tá. Aparecida de Fátima dos Santos, São Paulo, dez de março de 1959.
P/1 – Agora o nome completo e, se você lembrar também, a data e local de nascimento dos seus pais, pai e mãe.
R – Meu pai, filho de português, o nome dele é Francisco dos Santos, ele nasceu em Bariri, interior de São Paulo. Minha mãe é Osalina Giacomini dos Santos, filha de imigrantes italianos, nasceu em Bariri, São Paulo.
P/1 – O que seus pais faziam, Fátima?
R – Bom, como eles eram filhos de imigrantes, eles vieram pra trabalhar na lavoura. Então eles trabalhavam na lavoura de café. E vieram pra São Paulo, eu estava prestes a nascer. Então fui criada em São Paulo.
P/1 – E aqui em São Paulo, eles trabalhavam com o quê, seus pais?
R – Aqui eles trabalhavam em indústria. Meu pai trabalhou muitos anos na Alpargatas. E eles trabalhavam na indústria.
P/1 – Trabalhavam como operários?
R – Como operários. Como todos os filhos de imigrantes daquela época. Eu cresci na zona leste de São Paulo, na Penha.
P/1 – Quando eles vieram pra São Paulo, eles foram morar na zona leste, na Penha?
R – Foram morar na zona leste, na Penha. Eu cresci na zona leste, brincando na rua, naquela época brincava-se na rua.
P/1 – Eu vou te perguntar das brincadeiras, queria saber um pouco antes como seus pais eram assim como pessoas. Descreva-os pra gente, temperamento.
R – Tá. São pessoas simples, com pouca instrução, pelo fato dos recursos, que eram poucos naquela época. Quando os pais deles vieram para o Brasil, eles foram pra...
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Projeto Nestlé - Ouvir o Outro Compartilhando Valores – Pronac 128976
Depoimento de Aparecida de Fátima dos Santos
Entrevistada por Tereza Ruiz
São Paulo, 27/06/2014
Realização Museu da Pessoa
NCV_HV_30_ Aparecida de Fátima dos Santos
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Então primeiro, Fátima, eu vou te pedir pra falar pra gente seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Tá. Aparecida de Fátima dos Santos, São Paulo, dez de março de 1959.
P/1 – Agora o nome completo e, se você lembrar também, a data e local de nascimento dos seus pais, pai e mãe.
R – Meu pai, filho de português, o nome dele é Francisco dos Santos, ele nasceu em Bariri, interior de São Paulo. Minha mãe é Osalina Giacomini dos Santos, filha de imigrantes italianos, nasceu em Bariri, São Paulo.
P/1 – O que seus pais faziam, Fátima?
R – Bom, como eles eram filhos de imigrantes, eles vieram pra trabalhar na lavoura. Então eles trabalhavam na lavoura de café. E vieram pra São Paulo, eu estava prestes a nascer. Então fui criada em São Paulo.
P/1 – E aqui em São Paulo, eles trabalhavam com o quê, seus pais?
R – Aqui eles trabalhavam em indústria. Meu pai trabalhou muitos anos na Alpargatas. E eles trabalhavam na indústria.
P/1 – Trabalhavam como operários?
R – Como operários. Como todos os filhos de imigrantes daquela época. Eu cresci na zona leste de São Paulo, na Penha.
P/1 – Quando eles vieram pra São Paulo, eles foram morar na zona leste, na Penha?
R – Foram morar na zona leste, na Penha. Eu cresci na zona leste, brincando na rua, naquela época brincava-se na rua.
P/1 – Eu vou te perguntar das brincadeiras, queria saber um pouco antes como seus pais eram assim como pessoas. Descreva-os pra gente, temperamento.
R – Tá. São pessoas simples, com pouca instrução, pelo fato dos recursos, que eram poucos naquela época. Quando os pais deles vieram para o Brasil, eles foram pra lavoura no interior, então lá era mais difícil ainda a questão de instrução e tudo. Então eles são alfabetizados, mas a instrução ainda é pouca. Meu pai até se especializou na construção civil e minha mãe também se especializou na área de enfermagem, mas tudo aqui em São Paulo, depois que vieram.
P/1 – E de temperamento? A personalidade deles?
R – Então, meu pai era bem rígido. Bem rígido, ele cobrava muito postura, ele era bem rígido. Minha mãe já era mais a mãezona, assim, que queria colocar todo mundo debaixo da asa. Isso ela é até hoje, que são vivos.
P/1 – E irmãos, você tem?
R – Eu tenho duas irmãs e dois irmãos.
P/1 – Como é o nome deles?
R – Tem o meu irmão que é Jorge, que mora em Santa Fé do Sul, no interior de São Paulo, divisa com o Mato Grosso. Tenho mais um irmão, que é o Ricardo, que é o mais novo, o caçula, que mora aqui perto, na Vila Mariana, ele técnico afinador e restaurador de pianos acústicos. Eu tenho uma irmã que é professora, que chama Ivanilda, mora na Liberdade, ainda leciona. Eu falei não sei como não ficou louca ainda, mas ainda leciona. E tenho outra irmã, que mora na Liberdade também, e trabalha com vendas.
P/1 – Conta um pouco pra gente agora como foi essa casa que você passou a infância na Penha. Como era a casa? Como era o bairro na época? Descreva um pouco pra gente.
R – Então, na época era um bairro tranquilo, não tinha edifícios, eram só casas, algumas casas. Tinham muitos loteamentos ainda vazios, então tinha bastante opção de brincadeiras na rua, na vizinhança, porque eram poucas casas, não era uma quantidade grande como hoje que não tem um espacinho. Não. Tinha bastante espaço, então brincavam todas as crianças da rua, brincavam juntas. Tinha a hora do dia, depois da escola, que ia todo mundo pra rua brincar, as brincadeiras tradicionais. Era bem interessante, bem gostoso.
P/1 – Quais eram as brincadeiras?
R – Então, olha, tinham todas as brincadeiras: pega-pega, andava-se de bicicleta, jogava bola. Então era muito interessante, porque quando eu tinha oito anos, meu pai adoeceu, foi quando minha mãe começou a trabalhar fora de casa. Porque antes ela trabalhava em casa costurando, depois ela passou a trabalhar fora de casa, então eu tive que assumir a responsabilidade da casa e dos irmãos menores. Então era interessante, eu deixava tudo arrumadinho, até a mesa do jantar posta, e eu saía pra brincar. Quando eu via meu pai chegando, lembrava que tinha esquecido alguma coisa, voltava correndo. Então era bem interessante. Tinha a responsabilidade, mas sempre sobrava tempo para as brincadeiras, todo mundo se reunia pra brincar junto, as crianças da vizinhança.
P/1 – Conta um pouco quais eram as brincadeiras e se você tinha alguma preferida.
R – Olha, na época a gente brincava de tudo: a gente brincava de cantar, a gente brincava de pega-pega, brincava de pique esconde, jogava bola, brincava de tudo, era bem diversificado. Sempre aparecia alguém com uma brincadeira nova e a gente emplacava, porque era bastante gente ali, era bem legal de brincar. Que é diferente de hoje, que as crianças não têm opção, ou elas ficam na TV, ou então quando vão pra um parque, não conhecem ninguém, brincam sozinhas. Então era diferente, era todo mundo brincando junto, era mais divertido, eu acho.
P/1 – E tinha brinquedos? Você tinha brinquedos?
R – Então, eram raros os brinquedos. Hoje, as crianças têm tudo que é brinquedo. Então você vê criança pequena, já tem celular, tablet. Meu netinho, bebezinho, ele pega o celular e já fica lá com o dedinho pra brincar. Na época era bem diferente, a gente ganhava um brinquedo por ano ou dois brinquedos por ano: um no aniversário e um no Natal, e só. Então não tinha tanta variedade até de brinquedos. E a gente, que não era uma família também bem financeiramente, abastada, então não tinha uma quantidade grande de brinquedos, então eram dois presentes no ano, dois brinquedos no ano, e só. Então era bem interessante. Boneca, por exemplo, da época, que eu lembro, a primeira boneca que eu lembro, era uma boneca que era feita de outro material, era de um papelão prensado, na verdade. Uma vez brincando... Porque a casa era sempre em reforma, nunca acabava, parecia igreja, porque não acabava nunca. Então tinha aquele monte de areia, aí a gente já aproveitava, já brincava ali, tal. Uma vez eu esqueci a boneca ali e era a única que tinha, porque você brincava um ano só com a mesma, ela acabava. Então esqueci a boneca na areia, no outro dia eu fui pegar, tinha derretido. E os materiais utilizados também eram bem menos resistentes. Mas era divertido.
P/1 – Eram poucas ocasiões que vocês ganhavam brinquedo, você tá dizendo.
R – Eram poucas.
P/1 – Você se lembra de alguma vez ganhar um brinquedo que tenha sido marcante, uma ocasião, uma coisa que você quisesse muito?
R – Então, essa boneca, inclusive, era um bebezão feito de um papelão prensado. Quando você olhava assim, parecia uma louça, mas na verdade era um papelão prensado. Se ficasse na umidade, ele realmente começava a dissolver. E essa eu que queria muito, porque era uma boneca grande. Então essa não deu pra brincar muito, porque eu acabei esquecendo, ela acabou derretendo. Mas era bem... Era uma coisa que eu queria muito na época. Quando eu ganhei, que era na época do Natal, que eu acordei, estava lá, eu fiquei superfeliz. Mas pena que ela durou pouco, coitada.
P/1 – Tinha um nome?
R – Não me lembro, não me lembro. Minha irmã tem uma boneca que na época ela ganhou também, ela tem até hoje. Tá horrorosa. Eu falo: “Joga isso”. Ela fala: “Não. Não”. Então guardou até hoje.
P/1 – E as refeições na sua casa nessa fase de infância, Fátima, como eram? Conta pra gente. Quem cozinhava? O que vocês comiam?
R – Então, minha mãe que cozinhava e cozinhava bem. Então massas... Bom, italianos, né? E a gente tinha um quintal muito grande e nesse quintal tinha um pomar. Então tinha sempre as frutas da estação, então tinha bananas. Sempre tinha. Mas não era uma penca de banana como a gente compra hoje na feira ou no mercado, era um cacho inteiro da banana. Então tinha banana, tinha... Então na época da fruta, comia-se tudo daquela fruta: geleia da fruta, o doce da fruta, a fruta, o suco da fruta, então era tudo. Naquela época não se tinha também a quantidade de industrializados que tem hoje, era uma alimentação bem natural. Tinha horta também, comia-se o que tinha na hora, comia-se o que tinha no pomar, na fruta, e comia os cereais que eram comprados no mercado, a carne, o leite, que também eram comprados no mercado. E era interessante, porque o quintal da casa era muito grande, então tinha umas galinhas. Era uma extensão como se fosse ainda o interior. Tinha o pomar, tinha a horta... Hoje, inclusive, essa casa nem existe mais nada disso. Existem várias casas nesse mesmo local onde só tinha a casa onde nós morávamos. Hoje é cheio de casas, então não existe. Eu já voltei lá pra ver o local, não existe mais. Inclusive, a casa continua ainda sendo dos meus pais, mas hoje são várias casas, já estão... Mas não tem mais o que tinha, que era o pomar, a horta.
P/1 – Era um terreno grande?
R – Era um terreno grande. Hoje, são várias casas.
P/1 – E esse momento da refeição como era? Você citou um pouco o que vocês comiam, queria saber se vocês comiam junto, se sentava todo mundo numa mesa.
R – Todo mundo junto. Sentava todo mundo junto, aí era aquela disputa, porque cinco... Na época, eram só quatro. Meu irmão, o caçula, ele veio muito tempo depois. Então se sentavam os seis à mesa, era aquela disputa, mas era bem divertido. De manhã, acordava todo mundo cedo, porque tinha que todo mundo tomar banho pra poder ir pra escola. Depois, à noite, sentava todo mundo junto novamente pra fazer a refeição. Tinha sempre o que aprontou no dia, sempre tinha também algumas bronquinhas do que aprontou durante o dia.
P/1 – Vocês conversavam durante a refeição?
R – Conversava. Conversava, às vezes discutia, então tinha de tudo. Que era a hora que estava todo mundo junto, era a hora de apontar quem fez o quê, e aí também já levava as broncas.
P/1 – E na sua casa tinha alguém que tinha o hábito de contar história assim, contador de causo?
R – Meu pai contava muita história. Aliás, ele conta história até hoje. Então contava, cantava, declamava, era tudo. Era uma coisa assim... Isso foi desde criança. Até hoje. Ele vê uma mulher bonita, ele já chega lá, já começa a fazer versos pra ela. Então 83 anos, continua ainda o contador de história. Ele contava bastante história pra gente.
P/1 – Você se lembra de alguma?
R – Então, ele contava as histórias e ele entoava, ele fazia, tinham várias. Tinha uma história de alguém que chegava a um local, a uma casa de fazenda, e ia encontrando os bichos. Entrava, encontrava o cachorro, aí ele fazia o barulho do cachorro, a gente acabava... E no final, no fogão à lenha tinha um gato, ele fazia o barulho do gato, então eram bem divertidas as histórias.
P/1 – E você falou que ele cantava também. Ele gostava de música? Você mencionou que seu pai cantava, declamava poesia. Queria saber se ele gostava de música, se ele gostava de ler.
R – Gostava. De música, ele gostava. Ele estava sempre com a viola, arranhando. Nunca foi de tocar muito, não, mas ele dava umas arranhadas lá e cantava. Cantava. Até hoje ele ainda anda cantarolando. Então gostava bastante.
P/1 – O que ele cantarolava? O que ele gostava de escutar e cantar?
R – Ah, ele gostava muito do sertanejo de raiz: Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho. Até andei achando uns CDs desses assim, eu compro pra ele, porque ele ainda gosta muito de ouvir essas coisas. Ele gosta e continua cantando as mesmas músicas, e é até que interessante. Eu fui a única que gostei bastante de música, então eu toquei contrabaixo por um tempo. E o meu irmão que trabalha com piano acústico. Então ele não toca, ele arranha algumas musiquinhas, assim, só pra testar, pra ver se a afinação tá ok e tal. Mas fomos os únicos dois que nos envolvemos um pouquinho com música.
P/1 – E dessas canções que seu pai escutava, tem alguma que tenha te marcado, que tenha marcado a sua infância?
R – Não. Canção... Ah, são várias. Ah, são várias.
P/1 – Não tem uma específica assim?
R – É. Mas nenhuma que eu conheça inteira, assim, que lembre inteira. Mas alguns pedaços ficaram bem marcantes.
P/1 – E vocês tinham o hábito de beber café na sua casa?
R – Ah, muito. Muito! Porque os meus avôs continuaram morando em Bariri, então lá plantava, continuou plantando-se café. Tanto é que o sítio, meu pai acabou comprando. Eles eram nove, tinha oito irmãos. E ele comprou a parte dos oito irmãos e ele acabou ficando com o sítio só lá em Bariri. E plantava-se café. Então esse café, ele colhia, ele torrava, tudo era feito artesanal. A massa, minha mãe fazia a pasta. A pasta, ela que fazia. E o café, ele plantava, ele secava, todo aquele processo. Tem que secar, tem que tirar a casca. Era um processo assim. E depois ele torrava esse café. Às vezes, a minha mãe que torrava o café. E a gente moía o café antes da hora de fazer. Então tinha lá o moinho, cada dia um tinha que moer aquele pouquinho de café. E ela fazia aquele café moído na hora. Então se tomava bastante o café porque era o café que se plantou e que fez todo o processo. Totalmente diferente de hoje, que a gente já compra o sachezinho pronto, coloca na cafeteira e toma o café. Não, era um café que a gente fazia todo o processo. Então era bem artesanal e era divertido. A gente se divertia fazendo.
P/1 – E como ele era preparado, você lembra? Como vocês preparavam?
R – O coador era de pano. Era um coador de pano, tinha um suportezinho metálico, aí aquele coador de pano, colocava o pó, jogava água fervendo e aí saía o café. Eu lembro que ela jogava a água fervendo já adocicada. Ela já colocava a quantidade de açúcar. Diferente de hoje, porque um gosta amargo, outro gosta com adoçante, outro com açúcar, então não dá pra fazer... Cada um adoça a seu gosto. Não, lá já era adocicado com açúcar.
P/1 – E tinha um nome esse sítio em Bariri, que depois seu pai comprou?
R – Tinha. Chama... Ai, agora eu não lembro. Não, não me recordo.
P/1 – Tudo bem. Não se lembra.
R – Era bem interessante. E o café sempre... Plantavam-se outras coisas e as frutas também tinha, mas o forte mesmo era o café.
P/1 – Os seus avôs, que eram imigrantes, chegaram a te contar alguma vez a história de por que eles vieram e como foi a chegada no Brasil?
R – Chegou. Era uma coisa, assim, bem rudimentar. Eles vieram de navio e era todo mundo junto. Então eles ficaram acho que um mês viajando e com as limitações dentro de um navio. Não é como os cruzeiros que a gente faz hoje, com toda mordomia. Não, era uma coisa bem rudimentar. A classe também com que eles viajavam... Eles vinham mesmo pra mão de obra e com a esperança de mudança de vida. No local onde eles estavam tinha guerra, estava difícil, então eles vinham mesmo para recomeçar uma nova vida e trabalhar na lavoura. E trabalharam muito na lavoura. E não era fácil. Minha mãe tem trauma até hoje de roça. Você fala “vamos para o sítio”, ela já olha torto. Você fala do fogão à lenha, ela odeia, porque ela trabalhou muito com isso. Então, assim, foi muito difícil, era muito trabalho. Então pra ela o sítio não é um lazer, é trabalho e trabalho pesado, trabalho árduo. Então pra ela não são boas recordações, porque foi muito trabalho.
P/1 – Fátima, eu queria te perguntar quantos anos você tinha quando você entrou na escola e quais são suas primeiras lembranças da escola.
R – Então, eu comecei a me alfabetizar com o meu irmão mais velho, que ele já estava fazendo o primeiro ano, o segundo ano, e ele estava se alfabetizando. E como tinha horário pra fazer lição, eu ficava junto fazendo lição. Então eu via ele fazendo e ficava perguntando, e ele ia me falando. Então eu comecei meio que me alfabetizar junto com ele. Aos sete anos, quando eu fui pra escola, porque naquela época não tinha creche, pré-escola. Não, você ia direto pra primeira série, aí você começava o processo de alfabetização. E funcionava. Funcionava porque você praticamente se alfabetizava no... E quando eu fui, eu já conhecia todas as letras, já fazia junção, porque eu tinha vivenciado isso na hora de fazer lição. Porque lá era tudo na baciada, os filhos: hora de fazer lição, ia todo mundo fazer lição, hora de brincar, ia todo mundo brincar, hora de almoçar, ia todo mundo, então era tudo junto. Então eu meio que já conhecia as letras. Mas me alfabetizei mesmo aos sete anos, quando fui pra escola.
P/1 – Que escola era essa? Qual é o nome? Como ela era?
R – Eu nem lembro o nome agora da escola. Eu estudei na escola do bairro, aonde todos iam, era uma escola estadual, aí fiz a quarta série. Na época, pra entrar na segunda fase do ciclo, agora é Ciclo Fundamental, lá era dividido por duas partes: a parte de primeira a quarta série, que era do ensino...
P/1 – Primário, na época.
R – É. Que na época era Primário. E depois se fazia tipo de um pré-vestibular pra entrar pra segunda fase. Aí eu tive que mudar de escola. Depois fazia tipo de um vestibular também pra entrar para o que agora seria o Ensino Médio, que era pra entrar nos três anos de Ensino Médio, pra depois fazer a universidade.
P/1 – Essa primeira escola em que você fez o primário, quais são suas primeiras recordações assim? Quando você foi as primeiras vezes, que impressão você tinha da escola? Como você se sentia? Como era a escola?
R – Era uma escola simples e as carteiras eram duplas, então sentavam dois alunos em cada carteira. Então era bem interessante.
P/1 – Era pequena, era grande, a escola?
R – Era uma escola pequena, não era muito grande. Era uma escola pequena. Mas era divertido, era gostoso.
P/1 – Você teve algum professor que te marcou nessa fase?
R – Não. Não tive. Sempre tive várias professoras, que era uma professora por cada ano, mas nenhuma, assim, marcou. Fui uma estudante medíocre, tirava as notas ali... Na primeira fase, eu tirava sempre notas muito boas. Na segunda fase, já foi piorzinho, fui uma estudante medíocre, tirava basicamente pra passar de ano. Na segunda fase, inclusive, eu gostava muito de esportes, então eu jogava muito. Eu cheguei até perder um ano de tanto jogar, porque eu não saía da quadra.
P/1 – O que você jogava?
R – Eu jogava handebol. Que estava muito na moda. Mas eu jogava demais, era uma coisa, assim, absurda. Eu cheguei a perder um ano. E perder um ano, naquela época, era um horror. Porque eu não saía da quadra, eu só queria ficar jogando, jogando, jogando. Era todo dia. Era uma coisa, assim, impressionante.
P/1 – Como você ia pra escola?
R – A pé. Ia todo mundo a pé, porque não era tão longe. Ia todo mundo a pé, ia todo mundo junto, então tinha aquela debandada de crianças na hora de ir pra escola, todo mundo indo.
P/1 – E tinha uniforme? Você se lembra do uniforme?
R – Tinha. No primeiro ciclo era sapato preto, meia três quartos branca. Aí tinha uma sainha azul marinho pregueadinha e uma camisa branca. Tinha uma gravatinha azul marinho com uma listinha nessa gravatinha com a série. Primeira série tinha uma listinha; segunda série, duas listinhas; terceira série, três listinhas. Era bem interessante. E na segunda fase, que seria a segunda fase do Ensino Fundamental, aí já era outro uniforme, que era uma saia cinza também com a camisa branca. Era interessante, porque não podia ir com a saia curta, a saia tinha que ser comprida, só que a gente enrolava tudo na cintura pra ficar curta, chegava lá na hora, desenrolava pra ficar no comprimento certo. Era divertido.
P/1 – Nessa fase de infância ainda, você lembra o que você queria ser quando crescesse? Você tinha uma vontade de ser alguma coisa quando crescesse? Criança ainda.
R – Não. Não tinha. Não tinha.
P/1 – Nem na adolescência? Antes, assim, de chegar perto do vestibular, antes de chegar a ter que decidir uma faculdade.
R – É, não tinha. Nunca falei “não, eu quero isso, eu quero aquilo”. Eu sempre tive muita vocação para as artes, isso desde criança. Então eu gostava muito de artes, eu lia bastante, eu gostava demais. Eu lia muito, ouvia muita música, então eu gostava muito de artes.
P/1 – O que você escutava de música?
R – Primeiro eu escutava as músicas que o meu pai estava sempre cantarolando, depois eu ouvia muito o que estava bem... Depois, na fase de pré-adolescência e adolescência, eu ouvia muito as músicas que estavam tocando nas emissoras.
P/1 – Que era o quê na época, assim, que você gostava, escutava mais?
R – Ah, eu gostei muito de Bossa Nova. Ouvi muito Bossa e gosto até hoje. Eu ouço até hoje. Bossa Nova, eu sempre gostei bastante.
P/1 – Você tem uma canção?
R – Gostei bastante de Beatles. Então ouvi bastante.
P/1 – Tem uma canção preferida, que tenha marcado a época?
R – Olha, se eu fosse definir algumas canções que mais me marcaram, depois o que superou tudo, eu gostei muito de Queen. Então se eu for definir uma música como minha, eu pegaria algumas das músicas do Queen pra falar “essas aqui foram as que mais marcaram”.
P/1 – Eu vou entrar um pouco mais então na sua adolescência agora, mas antes eu queria fazer pergunta, se nessa fase de infância tem alguma história que tenha te marcado, uma coisa que você lembre até hoje. Sabe, essas histórias que ficam pra vida, que conta para os filhos, que conta para os netos, ou que ficou marcada na família.
R – Então, muita coisa da infância, eu conto para os netinhos agora. Então muitas musiquinhas de ninar, tudo, eu canto igualzinho. E muitas historinhas. Então historinhas diversas, de Joãozinho, assim, um monte de historinhas.
P/1 – Mas uma história que você tenha vivido, eu quero dizer. Que tenha uma experiência de vida, uma história que você tenha vivido que tenha sido marcante nessa fase de infância. Uma memória forte, uma lembrança forte.
R – História? Bom, tem algumas coisas que ficam mais marcadas, e às vezes a gente para pra lembrar, a gente acaba lembrando de várias histórias, porque são tantas coisas. São muitas (pausa). Agora não me lembro...
P/1 – Não? De repente uma história de brincadeira, ou descoberta de infância que tenha sido marcante.
R – Nós brincávamos muito de... Na época tinha bastantes programas de... Quando começou a surgir a televisão, era uma TV por residência, quando tinha. Ás vezes no bairro era só uma que tinha. Então normalmente todo mundo tomava banho pra assistir. Não era assim de qualquer jeito, qualquer hora ia ligando. Não! Ligava-se uma vez no dia e não existia criança batata de sofá. Não, não tinha. Era uma TV e não eram todas as residências que tinham, e se tomava banho pra ir assistir TV. Todos tomavam banho, aí vinham os vizinhos, os amiguinhos, ia todo mundo pra frente da TV assistir. E tinha programa de auditório na TV. Então tinha as moças dançando e tinha os programas de auditório. E a gente assistia aquilo. Todo mundo junto ali, tomado banho e tudo, porque a TV ocupava lugar de destaque na sala, era como se fosse um altar até. Sentava todo mundo ali e assistia na hora da TV. Inclusive, quando a gente brincava, a gente brincava de auditório, então as moças ficavam lá dançando... Então era bem divertido isso, essa parte.
P/1 – Você lembra quais programas você assistia na época?
R – Ah, eu assistia Chacrinha, programas assim. Tinha uns antes dele, eu não lembro direito qual o nome, mas tinha antes do Chacrinha uns programas semelhantes, também de auditório que a gente assistia e ficava depois imitando dançando.
P/1 – Quando você entra nessa fase de adolescência, assim, no grupo de amizade, no lazer, o que vocês faziam pra se divertir? Onde vocês saíam? O que vocês faziam?
R – A minha adolescência, eu não tenho boas recordações. Na verdade, a parte da adolescência, a grande parte da minha adolescência eu não tenho muita lembrança, é como se eu tivesse meio que apagado. Pra mim, a adolescência não foi uma boa fase, não foi uma coisa boa de ter vivenciado. Talvez até a minha memória seletiva tenha deletado, porque não foi uma coisa boa que eu tenha vivenciado bastante, não.
P/1 – Mas porque foi conflituoso?
R – Foi. Eu me sentia muito mal. Foi bem... Tinha muito conflito mesmo, eu comigo mesma. Então foi uma coisa assim bem difícil pra mim, pra superar. Depois entrou a fase da rebeldia. Meu pai falava que eu queria ser comunista (risos).
P/1 – Com quantos anos isso?
R – Ah, isso já no final da adolescência. Não é! Porque eu achava, assim, toda pessoa tinha que lugar pelos seus direitos. Foi aquela fase que estava no final da ditadura e a gente tinha realmente ideais. É diferente do jovem de hoje, que eu não vejo ideais nos jovens. Eles estão meio que... Por isso que essas movimentações em massa se perdem. Então entram por interesses desconhecidos, ou até mesmo conhecidos, acabam entrando esses vândalos no meio, tudo, porque falta ideal.
P/1 – Mas você chegou a participar de alguma militância contra a ditadura, ou de alguma ação?
R – Não, porque meu pai era muito severo. Eu não cheguei a participar ativamente, mas já cheguei a estar em locais que eu falava: “Meu Deus, daqui a pouco vão invadir aqui, aí meu pai me mata”.
P/1 – Mas você se lembra de algum exemplo desse tipo?
R – Não, eu tinha que evitar. Assim, meio que tudo na surdina, porque meu pai era muito bravo e muito severo, então a gente meio que... E ele cobrava muito, principalmente de mim e do meu irmão, que éramos os mais velhos, éramos cobrados muito. Então a gente tinha que andar ali na linha, certinho. Com os outros, mais novos, já foi mais light, mas com a gente era muito cobrado severamente. Mas a gente tinha muito claro os ideais que a gente tinha. A vontade, a garra de querer lugar pelos direitos e conquistar uma coisa melhor na época.
P/1 – E você lembra o que alimentava esses ideais? Que tipo de cultura ou leitura vocês tinham acesso?
R – Olha, não tinha acesso a muita coisa, não, porque na época era tudo muito restritivo. Então se você era pego, por exemplo, lendo alguma coisa que era mais liberal, você já era vista com outros olhos. E na época, a perseguição era muito grande. Então o fato de os pais também não querer e não deixar os filhos irem pra esse lado, porque sabiam que o final não era bom. Porque era tudo muito ali com mão de ferro. Mas eu era bem rebelde. Bem rebelde não, eu achava que eu tinha claro pra mim os ideais e queria lutar por eles, como todo jovem da época, viu? Eu não era exceção. A não ser uns ou outros que não estavam nem aí pra nada, mas a maioria que tinha consciência queria lugar, lógico, queria ver um país melhor, queria ter uma vida melhor também.
P/1 – Você disse que não lembra muita coisa dessa fase de adolescência. Você falou que tem uma ligação, sempre teve uma ligação forte com arte, do que você escutava de música, ou em que momento você começa a tocar, durante um tempo você tocou um instrumento, nem nesse sentido assim? Ou filmes?
R – Então, eu ouvia bastante música e eu gostava muito de... O balé, no final da adolescência, que eu comecei a fazer balé, porque sempre gostei muito de artes, de dançar, de música. Sempre gostei bastante. Gostei bastante de cinema. Então eu sempre era voltada para as artes, porque eu gostava bastante. Tanto é que depois eu acabei fazendo Artes porque eu achava que a gente tinha que fazer o que gosta, na verdade. Bom, até hoje eu acho que tem que fazer o que gosta mesmo.
P/1 – Você lembra a primeira vez que você foi ao cinema?
R – Ah, lembro. Era criança ainda. E cinema também era uma coisa assim, era um ritual pra ir ao cinema. Não era uma coisa que você ia quase todo dia, não. Então era um ritual, era num domingo à tarde, aí foi todo mundo para o cinema. Então era bem divertido. Na época o cinema também... A telona era uma coisa diferente do que é hoje. E hoje a qualidade do cinema, mil vezes melhor, não tem termo de comparação.
P/1 – Como era o cinema da época? Essa sala que você se lembra, como era a sala? Onde ficava?
R – Então, tinha a telona embaixo, com um palco, porque tinha um palco na época. E as cadeiras eram de madeiras, bem rudimentares. E era grande! Era bem grande, que era o cinema do bairro. Tinham maiores, mas o cinema do bairro também era um cinema grande. Domingo era o dia “D” de ir ao cinema. E era uma coisa boa.
P/1 – Com você ia ao cinema?
R – Olha, normalmente iam todos os jovens juntos. Juntavam todos que brincavam, então acabava indo todo mundo junto.
P/1 – E teve um filme marcante que você tenha visto no cinema durante a infância ou adolescência?
R - Não. Eu assistia Mazzaropi, era bem divertido. Agora, o que eu assistia, que eu gostava muito, Charles Chaplin. Nossa, eu adorava quando eu via. Eu gostava muito.
P/1 – E tem algum filme predileto dele, ou não?
R – Olha, eu assisti todos e vários deles eu acabei repetindo várias vezes. E eu gostei muito. Eu achei que era um gênio.
P/1 – E nessa fase de adolescência, festa, nada disso você se lembra? Assim, de frequentar festas, de ir a bailes?
R – Ah, tinha os bailinhos. Na adolescência tinha os bailinhos de garagem, que chamava. Eram bailinhos caseiros, então eram bem divertidos. Eram gostosos os bailinhos.
P/1 – Como eram esses bailes? Descreva um pouco pra gente.
R – Bailinhos. Dançava-se o que estava se ouvindo na época, dançava, dançava menino com menina, depois dançava solto. Era bem gostoso.
P/1 – E como as pessoas se vestiam? Como era preparado? Assim, eram enfeitadas essas garagens? O que era servido?
R – Não, cada dia era na casa de um, então fazia o bailinho de garagem. Era música eletrônica, na época eram os toca... Não tinha nada. Mas era divertido. Era o que tinha pra diversão, não tinha muita opção além disso, além de um circo de vez em quando estar na cidade, além de um parque às vezes estar na cidade. Era o que tinha: o cinema e os bailinhos de garagem.
P/1 – Bom, a gente tá falando de uma fase do que hoje seria o Fundamental II. Quando você entra no que era o Colegial na época, que hoje é Ensino Médio, muda alguma coisa?
R – Muda. No Ensino Médio, eu já fui trabalhar. Eu fui para o mercado de trabalho. Então eu trabalhava durante o dia e fazia o Ensino Médio durante a noite. Então eu trabalhava em escritórios. Então eu ficava o dia inteiro trabalhando, à noite ia para o colégio, e fazia isso durante a semana inteira, e no final de semana também não tinha tanta opção, porque no final de semana você tinha que estudar. Uma fase eu jogava, continuava jogando, que eu gostava, e cinema, não tinha grandes...
P/1 – Qual foi seu primeiro emprego?
R – Foi num escritório.
P/1 – De quê?
R – Naquela época se fazia datilografia. Você aprendia... O digitar hoje, você aprendia o datilografar. Fiz esse curso, tudo, e aí fui trabalhar. Trabalhava num escritório, comecei datilografando cartinhas de cobrança. Ficava o dia inteiro lá: TÁ TÁ TÁ, TÁ TÁ TÁ, TÁ TÁ TÁ. E era divertido, porque se pegava o ônibus de manhã lotado, trabalhava o dia inteiro, estudava à noite, depois voltava pra casa no final da noite, então não tinha tanto assim...
P/1 – E era um escritório que de quê, esse seu primeiro emprego?
R – Era um escritório de cobrança. Depois fui trabalhar... Trabalhei em vários escritórios, trabalhei numa editora e fui trabalhando.
P/1 – Você lembra o que fez com seus primeiros salários, o que você comprou?
R – Ah, era muito interessante. Eu recebi meu salário, então na época pegava o salário, contribuía com a casa, mas era uma forma interessante, porque a gente valorizava mais. Hoje a gente dá tudo para os filhos e netos, que eles acabam não tendo muito que lutar pra conseguir conquistar, porque é tudo muito fácil. Hoje você tem tudo muito à mão. Então foge muito o sonho de conquistar alguma coisa. Então com meu primeiro salário, eu pegava o meu salário, contribuía com a família, a outra parte você se planejava, você juntava pra comprar alguma coisa a mais, que o valor era mais alto, então você tinha que juntar pra pode chegar àquele valor, pra poder adquirir. Eu lembro que eu tinha uma característica, por ser uma das filhas mais velhas, eu ajudava em casa e eu me preocupava com os outros irmãos. Então eu comprava pra mim, mas sempre comprando para os outros irmãos também. Era bem interessante essa noção de família e os mais velhos ajudarem os mais novos. Então era bem assim.
P/1 – Você lembra alguma coisa que você comprou que você quisesse muito?
R – Ah, comprei uma bicicleta verde. Então a gente acabava comprando tudo que dava pra comprar. Um toca-discos vermelho pra minha irmã, que depois eu acabei quebrando. E comprava tudo que tinha vontade, porque juntava até chegar aos valores e ir lá e adquirir. Era bem gostoso. Hoje as crianças acabam tendo tudo, acaba não sendo tão prazeroso assim, porque não teve que esperar um tempo pra conseguir adquirir.
P/1 – E, Fátima, nessa fase de adolescência e juventude teve um primeiro amor? Na sua vida amorosa, você viveu alguma paixão? Alguma grande paixão?
R – Não, eu tinha vontade de aprender muito. Tinha as paquerinhas, assim, mas nada que fosse marcante.
P/1 – Nada que tenha te marcado.
R – Nada que marcasse, assim, paixãozinha. Tinha as paquerinhas da época só, normal. E eu não era tão ligada nessa coisa de namorar, de paquerar. A minha cabeça era mais voltada aos estudos e às artes. Eu estava sempre lendo. Eu lia bastante, eu ia bastante ao cinema, eu gostava. Então eu não tinha tanto. Eram só paquerinhas, nada que tenha marcado.
P/1 – Conta um pouco pra mim então como foi a decisão de entrar na faculdade. Como você decidiu que curso você queria fazer e como foi essa entrada na vida universitária?
R – Como eu sempre gostei da parte de artes, eu fui fazer Artes Plásticas. Então tinha a Faculdade de Belas Artes em São Paulo, que na época era na Luz. Eram grandes mestres, aprendi muito lá. E eu fui fazer faculdade de Artes, fiz os quatro anos, aí fiz bacharelado em pintura. Faz 20 anos que eu não pego num pincel!
P/1 – Quantos anos você tinha quando você entrou na faculdade?
R – Eu tinha 19 anos. Dezoito anos. Dezoito, 19. E eu desenho alguma coisa, pinto alguma coisa, ela fala: “Nossa, vó, você pinta bem, hein? Nossa, vó, você desenha, hein?” (risos). Eu falo: “Não, nem...”, porque faz muitos anos que eu nem mexo com isso. E era gostoso a galera, era gostoso. Eu fazia de manhã, naquele frio, o inverno era bem rigoroso, eu tomava chocolate com conhaque de manhã pra poder esquentar um pouco, pra pode esquentar as mãos, não ficarem tão duras. E era gostoso. Fiz a faculdade, no bacharelado em pintura eu curti bastante, gostei. Gostei muito do curso.
P/1 – Era na Belas Artes também, o bacharelado?
R – Na Belas Artes. Bacharelado em Pintura. Eu fui fazer um estágio numa fábrica de tinta no ABC. E nesse estágio, eu descobri que eu nasci pra ser peão.
P/1 – Qual era a fábrica? E esse estágio foi durante a faculdade?
R – A fábrica já fechou, nem existe mais. É, durante a faculdade. Eu fazia a parte de tarde o estágio. Foi bem interessante, porque aí eu comecei a trabalhar com restauro. Então restauro, a gente estudava muito materiais, porque você tinha que analisar o material, produzir um material semelhante pra poder restaurar a peça, a obra. E foi bem legal. Eu me apaixonei pelo chão de fábrica. Nossa, eu queria trabalhar na fábrica, direto na fábrica. Eu acabei a faculdade e comecei a me envolver com educação ambiental.
P/1 – Deixe-me só voltar um pouquinho, Fátima.
R – Tá.
P/1 – Eu queria entender um pouco melhor. Você começou a fazer esse primeiro estágio na fábrica, você lembrar o nome da fábrica? Era uma fábrica de tintas, é isso?
R – Era uma fábrica de tintas.
P/1 – E como você começou a trabalhar com restauro? Onde você trabalhava com restauro? Como chamava a fábrica?
R – A fábrica se chamava MC Tintas.
P/1 – E qual era o seu trabalho nessa fábrica?
R – Eu fazia estágio junto com o pessoal de qualidade. Então a gente analisava a pigmentação dos lotes. Aí tinha que avaliar a qualidade do produto final de cada lote que era colocado no mercado. Era bem interessante o trabalho. Aí que eu me apaixonei pelo trabalho com tinta.
P/1 – Você lembra algum momento que você tenha pensado “ah, eu gosto disso, é isso que eu quero fazer, eu quero trabalhar com fábrica”? Teve algum acontecimento que tenha sido decisivo?
R – Porque assim, como era uma coisa diferente de tudo que eu tinha feito até então, eu me deslumbrei com o negócio da fábrica em si. Então eu falei: “Nossa, que...”. Era uma coisa totalmente diferente de tudo que eu tinha vivenciado até então. Mesmo assim, eu não consegui dar andamento nesse trabalho, porque depois, quando eu acabei a universidade, eu não conseguia trabalhar em novas fábricas. Porque como uma indústria vai admitir uma pessoa pra trabalhar na fábrica sem nenhuma experiência e com uma faculdade de Artes Plásticas? “Olha, eu não tenho como encaixar você. Se fosse uma faculdade de Arquitetura, Engenharia, já estava direcionada. Agora, Artes? Sabe, a fábrica não tem um local, uma posição pra você na indústria com a Artes”.
P/1 – Quando você terminou a faculdade, você estava trabalhando nessa fábrica de tintas ainda?
R – Não, eu tinha feito o estágio durante. Quando eu acabei a faculdade, eu já tinha saído, só que eu não tinha colocação na indústria com a Faculdade de Artes. Eu fui trabalhar numa editora, onde eu comecei a trabalhar com educação ambiental. Então eu desenvolvi um trabalho com essa editora de educação ambiental e era uma coisa que não tinha no Brasil. Então eu tive que fazer cursos fora do Brasil na área de meio ambiente pra desenvolver esse trabalho na editora.
P/1 – Qual era, exatamente, esse trabalho com a editora? Vocês produziam materiais?
R – Produzíamos materiais de educação ambiental e programas de educação ambiental.
P/1 – Qual era o público desse material?
R – Então, o público era crianças e jovens, pra educação ambiental. E aí eu comecei a fazer cursos fora, de meio ambiente. Eu comecei a descobrir um universo totalmente novo. E era também um universo que estava começando. Então, por exemplo, quando eu comecei a Faculdade de Artes, eu trabalhei um pouco em rádio fazendo locução, então eu pinguei aqui, ali, durante esse período. Mas era tudo muito curto, o espaço era muito... O mercado era muito limitado. Então eu fiz uma série de coisas durante o período da faculdade, que nada vingou. Então eu estudei, aí comecei a tocar baixo, toquei baixo, fiz uma série de coisas assim, nada engrenava. Quando eu comecei a conhecer esse universo do meio ambiente, foi que começou a tomar volume, porque era uma coisa que estava começando. Era uma coisa que estava começando, no Brasil não tinha nada ainda. Tudo que tinha, a gente estudava lá fora e trazia aqui dentro pra poder passar. E foi quando eu comecei a... Eu fiz quatro pós-graduações em meio ambiente.
P/1 – Onde você foi estudar? Onde você foi buscar esse conhecimento?
R – Então, eu fiz um curso na Espanha de Meio Ambiente, eu fiz um na região da Galícia de área costeira e portuária, fiz um na Itália também de meio ambiente, voltado mais pra indústria, em controle de poluição ambiental. Eu fiz uma pós-graduação aqui, fui a primeira turma do PECE, da Escola Politécnica de São Paulo, de Gerenciamento Ambiental, que foi um curso de dois anos bem interessante, bem abrangente, que era assim, todo mundo que estava...Foram os primeiros formados lá fora que montaram, então foi dada a primeira turma. Fiz outro também na FAAP, também foi a segunda turma da FAAP de Gerenciamento Ambiental e de Risco. Também foi um curso bem interessante, voltado mais pra indústria.
P/1 – Mas durante todo esse tempo, você estava trabalhando na editora?
R – É. Um período eu trabalhei, outro período eu me casei, não trabalhei. Trabalhei para o Estado, aí eu trabalhava na área de Artes, que eu trabalhava junto com o gabinete da primeira dama, Fundo Social de Solidariedade do Estado de São Paulo. Aí eu estava casada, com filho, dois filhos, um casal de filhos.
P/1 – Deixe-me te perguntar, essa editora, você ficou quanto tempo, mais ou menos?
R – Nessa editora, eu fiquei quatro, cinco anos.
P/1 – Como era o nome da editora?
R – Editora Meca.
P/1 – E você falou que teve um intervalo porque você se casou. Queria que você contasse pra gente como você conheceu seu marido.
R – Ah, sim. Eu conheci numa área verdade, assim, de repente. Não foi um grande amor, mas foi um amor, conheci, me apaixonei pela primeira vista.
P/1 – Mas vocês estavam o quê, era uma viagem?
R – Não, não, eu fui a um parque, primeira vez que eu tinha ido àquele parque, ele também era a primeira vez que tinha ido, olhamos, eu estava com a minha irmã, falei: “Olha, é aquele”. E ele se interessou pela minha irmã, não por mim. Depois eu falei: “Não, que é meu, eu vi primeiro”. Ela falou: “Pode ficar, que eu não quero”. E eu fiquei.
P/1 – Você foi conversar com ele? Ele veio conversar contigo? Conta pra gente como foi a aproximação.
R – É. Fomos conversar. E naquela época era tudo muito recatado, não era nada como é hoje, não, que já vai pegando, já vai ficando, já vai... Não, era uma coisa mais formal. Conheci, ele morava em Santo André, eu ainda morava na zona leste, eu tinha 18 anos... Dezessete anos. Aí começamos a namorar, ele foi a minha casa, e começamos a namorar.
P/1 – Quanto tempo vocês namoraram?
R – Seis anos.
P/1 – E como foi esse namoro, Fátima? O que vocês faziam juntos?
R – Ah, ia ao cinema, passeava, mas ele ia sempre a casa, às vezes eu ia à casa dele. Então era assim, era um namoro como naquela época, era diferente do namoro de hoje, que pega, fica, não fica, quando fica não é namoro, só pega. Não era. Era uma coisa assim, namora ou namora. Namorei, meu casei...
P/1 – Conte-me como vocês decidiram se casar e como foi seu casamento.
R – Olha, o grande sonho que eu tinha era morar fora da casa dos pais. E os meus pais não aceitavam isso. “Filha que mora fora da casa dos pais não é boa coisa, não pode.” E era meu sonho de consumo morar sozinha, morar fora da casa dos pais. Era um sonho. E não tinha jeito, não conseguia. E eu não queria romper com eles.
P/1 – Então, retomando, você estava dizendo que seu sonho era sair da casa dos pais.
R – É. Era morar sozinha, mas não tinha como. E eu não queria romper com eles, que eu sempre fui muito ligada à família, então não queria romper. A opção era o casamento, aí me casei.
P/1 – E como foi o seu casamento? Conta um pouco. Teve uma cerimônia religiosa, teve festa?
R – Teve. Foi na Igreja Nossa Senhora da Glória, aqui no Cambuci, com vestido de noiva. Eu lembro direitinho no dia do casamento, meu pai falou assim... Eu queria só botar um arranjo no cabelo, ele falou: “Ah, mas noiva sem véu não é noiva”. Eu falei: “Não seja por isso, faça o véu”. Eu mesma arrumei o véu ali, botei o véu, aí me casei. Com 18 anos... Eu tinha 18 anos, eu namorava ainda, aconteceu uma coisa muito extraordinária, eu adotei o meu filho. Era solteira. Então foi uma coisa muito terrível, porque meus pais não queriam: “Onde já se viu uma moça de 18 anos catar um beber e querer?”. Mas eu briguei e bati o pé: “Não, porque eu quero, porque vou, porque faço”. E fiz.
P/1 – Como isso aconteceu, Fátima? Como você tomou essa decisão de adotar uma criança? Como foi o processo?
R – Foi um pouco conturbado, mas valeu a pena.
P/1 – Mas da onde veio? Qual é essa história?
R – Essas coisas acontecem na vida da gente, porque é assim que acontecem. Então eu vi, a mãe era uma pessoa muito humilde, limitada, o pai também, com problemas psiquiátricos, inclusive, e ia ter dois, e falou: “Olha, eu não quero”. Eu falei: “Pois eu quero. É tudo que eu quero”. E eu...
P/1 – Você conhecia os pais dele então?
R – Conhecia. Eram primos distantes. E eu briguei com a família: “Não, que eu quero, que vou...”. E bati o pé, e fui, e fiquei.
P/1 – Você lembra quando você trouxe pra casa?
R – Nossa, quando ela foi pra maternidade, eu fui correndo lá: “Ai, vai ser agora, vamos que vamos, que vamos”. Eu fiz o enxovalzinho e tudo. E fui correndo lá. Eu vi os dois. Quando a enfermeira me mostrou os dois, era um loirinho e o outro feinho, mas eu me apaixonei. Ela falou... Quando eu voltei para o quarto, ela falou: “Você já sabe, né? O feio é seu, porque o louro é meu”. Eu falei: “Ótimo!”. Porque eu já estava apaixonada. No dia que eu fui buscar na maternidade, que eu saí com aquele bebê no colo, olha, eu saí chorando. Foi a mesma emoção que eu senti quando a minha filha nasceu. Eu saí chorando. Sabe, com aquela responsabilidade na mão.
P/1 – Qual o nome dele, o seu primeiro filho?
R – Peterson. Peterson dos Santos. Então foi, assim, uma emoção.
R – Como foi levá-lo pra casa? Seus pais, como reagiram?
R – Nossa, não queriam. Não queriam: “Onde já se viu?”. Mas eu falei: “Não, porque eu quero, porque eu quero”. Eu acabei conseguindo e fiquei. Quando eu me casei, ele já tinha três anos, então ele entrou de terninho branco na frente, tuc, tuc, com o pezinho batendo, entrou. Ele teve que ficar um período com a minha mãe, porque eu tive que trabalhar, então não dava pra conciliar o trabalho, então ele ficou um pouco com a minha mãe. Mas eu pegava sempre que podia e tudo, aí ficou. Na adolescência, que eu já estava mais tranquila, ele veio morar com a gente. Aí eu me separei...
P/1 – Mas sua filha vem antes da separação?
R – Ah, não, aí vem...
P/1 – Como foi? Conta pra mim quando você engravidou.
R – Eu fiquei grávida, eu falei pra ele, assim, que ele morava comigo, eu falei: “Olha, você vai ter um irmão, eu vou ter mais um neném”. Ele falou: “Não é neném, isso aí é comida da tua barriga”. Ele tinha nove anos. Eu fiquei grávida, nasceu minha primeira filha, junto assim, ele gostando e tudo. Aí eu perdi com três meses a minha primeira filha. Eu perdi com três meses. Três meses, ela teve um problema do coração e morreu. Foi difícil, foi muito difícil, é como se tivesse tirado um pedaço da gente junto, mas a gente tem que superar, porque a vida continua. Um ano depois e fiquei grávida da minha filha que me deu os meus netos. Aí nasceu a Lívia.
P/1 – E como foi? Conta pra mim como foi o parto, como foi pegá-la a primeira vez nos braços.
R – A mesma emoção quando nasce, quando eu fui pegá-lo na maternidade, quando minha filha nasceu, que é uma emoção da vida mesmo. Tanto é que até a equipe médica que faz o parto fica tomado por essa emoção da vida nova que chegou. É a mesma emoção que toma também da perda quando a gente perde uma pessoa. Então essa emoção da chegada da vida nova, todos que presenciam ali são tomados por essa emoção. E foi uma coisa assim, maravilhosa. Foi a coisa boa que sobrou de um relacionamento de 16 anos.
P/1 – Como foi ser mãe pra você, assim, desde o seu primeiro filho, depois com sua segunda filha?
R – Ah, foi a melhor coisa que me aconteceu, eu acredito. Foi uma coisa boa.
P/1 – Mudou muito a sua vida?
R – Ah, eu sempre fui muito mãezona. Eu sou mãezona até hoje. Eu sou mãezona dos funcionários, eu sou mãezona dos meus irmãos, dos meus sobrinhos, dos meus netos, eu sou mãezona. Dos amigos! Eu sou mãezona. A minha característica é bem mãezona mesmo. Então pra mim, isso tudo era muito natural, então eu curtia muito. Com eles, eu lia todos os dias, a gente lia histórias. Primeiro quando eles não eram alfabetizados, eu que lia; quando eles começaram a se alfabetizar, eles que tinham que ler pra mim, ler e comentar o que se estava lendo. E era muito divertido. A gente jogava muito, a gente acampava, viajava. Então eu curti muito cada fase da vida deles.
P/1 – Você mencionou que ficou 16 anos casada e aí se separaram.
P/1 – Aí me separei, a minha filha tinha um ano. A Lívia tinha um ano, eu me separei. Saí de uma casa enorme, fui morar num apartamento de dois dormitórios e um banheiro. O “um banheiro” foi a maior dificuldade, porque éramos três: eu, um adolescente e uma criança. Então de manhã a gente acordava, todo mundo tomava banho pra poder todo mundo já sair pra ir trabalhar e estudar. Então era uma: “Ah, ele tá demorando”. Então era, assim, era complicado. Assim, o que mais marcou foi o fato de só ter um banheiro e três pra usar ao mesmo tempo. Era bem conturbado o negócio, a situação. Mas foi bom, porque é como eu tivesse renascido. Então com a separação, eu mudei tudo na minha vida. Até então eu trabalhava com restauro, mudei tudo. Trabalhava no Estado uma parte, a outra parte eu trabalhava com restauro, a parte da tarde. Um período eu trabalhava no Estado, no Fundo Social de Solidariedade, eu ensinava arte aos menores da região dos Campos Elíseos, nos cortiços de Campos Elíseos. Então eu convivia com uma realidade ali daquelas crianças bem difícil. Eles moravam naqueles cortiços que nem a polícias entravam, que hoje já foram desativados, aqueles casarões antigos já foram restaurados e tudo, mas era uma região bem crítica. Então eu andava lá os cortiços: “Oi, tia”. Mas foi um trabalho que eu gostei muito de fazer.
P/1 – Você se lembra, desse trabalho, de alguma situação marcante?
R – Ah, eram constantemente situações marcantes, porque era uma área de muito risco. Então no período que você tinha que recadastrar as famílias, não importa que você não era nem assistente social, nem psicóloga, eu tive que me especializar nessas duas áreas, porque todo mundo da equipe tinha que sair pra fazer os cadastros. Então a gente entrava naqueles cortiços que nem polícia entrava. Então vivia gente sendo assassinada ali, inclusive os menores que a gente trabalhava. E esses menores, eles tinham uma realidade, era muita droga, era muita violência, então eles mesmos acabavam morrendo. Mas eu acreditava naquilo que eu fazia. Um que eu conseguia recuperar e tirar dali, e dar uma vida melhor, e descente pra eles, pra mim já valia a pena.
P/1 – Teve algum que você criou um vínculo especial?
R – Ah, tiveram vários que saíram dali e foram viver uma vida legal, e seguiram a vida em frente. Infelizmente, muitos a gente perdeu para o tráfico e para a violência. Então às vezes aparecia um adolescente esfaqueado num hotelzinho, então eram coisas muito terríveis que a gente vivia no dia-a-dia ali, mas foi uma coisa que valeu. Tudo que eu aprendi ali valeu a pena.
P/1 – Quanto tempo você ficou nesse trabalho?
R – Onze anos.
P/1 – Bastante tempo.
R – Muito tempo! Onze anos.
P/1 – Você se lembra de um exemplo, Fátima? De uma história que você tenha vivido?
R – Ah, eram muitas. Eram muitas, porque eles faziam as peças de artes, cerâmicas, telas, e a gente participava de uma feira da solidariedade que tinha, eles vendiam essas peças e tinham esse rendimento, ia pra eles. Então muito usavam isso pra uma coisa boa, outros, infelizmente não. Então junto era feito um trabalho psicológico, dentário, médico, e essa parte de artes também. E muitos... Muitos? Poucos a gente conseguia resgatar! Muitos porque você trabalhava isso tudo com eles por um grande período, aí de repente eles fazendo coisa errada na rua, pegavam, levavam pra Febem, ia por água abaixo tudo que eles tinham aprendido ali, todos os valores que eles tinham conseguido adquirir ali. A violência era tanta que eles acabavam perdendo tudo. Aí voltava daquele jeito. E a gente começava a fazer tudo de novo, mas valia a pena. Era uma coisa que eu acreditava e acabava valendo a pena.
P/1 – E como foi essa virada que você mencionou? Que você trabalhou muitos anos, dez, 11 anos com isso.
R – Muitos anos lá.
P/1 – E o que aconteceu pra você fazer essa mudança e que mudança foi que você fez?
R – Eu comecei a fazer esses cursos de especialização, aí eu recebi... Gozado, a minha ex-cunhada, ela falou: “Vamos trabalhar junto”. Falei: “Vamos”. Começamos a trabalhar, ela falou assim... Um amigo nosso chegou, falou assim: “O que você entende de reciclagem?”. Eu falei: “Olha, reciclagem em nível artesanal, eu entendo bastante; em nível industrial, não muito, mas é uma coisa que eu gostaria muito”. Ele apresentou a Suzaquim, que era uma fábrica de óxidos metálicos, que fazia lá os óxidos e os sais metálicos a partir de matéria-prima nobre, metal extraído da natureza. Ele falou: “Olha, o que você acha de oferecer pra eles a fazer os mesmos óxidos e sais metálicos a partir de resíduo industrial?”. Eu falei: “Nossa!”. Aí eu fui aprender, eu estudava dia e noite sem parar, pra poder fazer esse trabalho, porque só de falar, eu já me apaixonei.
P/1 – Deixe-me entender, você foi trabalhar com a sua cunhada, foi isso?
R – Isso.
P/1 – Mas era uma empresa? O que era?
R – Isso. Eu já tinha essa empresa de restauro, que era a Faarte, aí nós mudamos o escopo social dela pra trabalhar com representação comercial, pra fazer toda a parte comercial dessa empresa. A empresa já existia, mudamos o escopo dela e começamos a trabalhar. Então a gente captava os resíduos no mercado pra fazer. Então eu participei de toda a redescoberta da Suzaquim. Fiz o licenciamento, foi bem conturbado o licenciamento, porque era uma coisa inovadora, que ninguém ainda tinha feito. Então pra você provar pra Cetesb o viável, era bem complicado. Então ia a equipe toda da Cetesb, eu falei: “Não, vocês veem aqui, eu faço pra vocês o processo todo e vocês veem como é feito”. E assim foi.
P/1 – Vocês propuseram isso?
R – É.
P/1 – Conte-me um pouco como foi esse processo.
R – Assim, olha, pra Suzaquim nós falamos: “Olha, vamos fazer o seguinte: você trabalhar com resíduo, eu trago o resíduo pra você, você vai fabricar o mesmo óxido e sal que você faz com metal nobre, você vai fazer com resíduo industrial”. Tivemos que adaptar toda a fábrica nos controles, nos lavadores de gases, então teve que botar equipamentos pra fazer os controles, pra poder desenvolver esse trabalho. E foi um trabalho bem de parceria mesmo. Nós fizemos o licenciamento, tudo, licenciamos e começamos buscar junto ao mercado. Então eu levei uns dois anos pra colocar o nome da Suzaquim no mercado. Então fomos buscar no mercado os geradores desses resíduos pra poder fazer a reciclagem lá.
P/1 – Vocês fizeram o quê? Um mapeamento? Como foi esse processo?
R – Fiz um levantamento no mercado e fui bater de porta em porta dessas indústrias, falei: “Olha, é um trabalho inovador, que nós pegamos o resíduo aqui e vamos fazer a reciclagem aqui”. Então as empresas, de início, ficavam um pouco assim, mas queriam fazer. E aí foi toda a fase do licenciamento, adequação da fábrica, adequamos tudo e começamos a desenvolver o trabalho meio que de formiguinha.
P/1 – E me explica um pouco, em linhas gerais, quando você fala em resíduo industrial, isso inclui o quê?
R – Minha filha, inclusive, falava assim, ela via algumas amostras, ela falava: “Mãe, mas o que é isso, resíduo, esse negócio?”. Eu falava assim: “Olha, filha, todas as residências hoje geram resíduo, que vai para o esgoto: cocô, xixi, o resíduo da pia da cozinha, tudo, vai para o esgoto. O esgoto vai pra uma estação de tratamento efluentes, que trata esse esgoto, gera um resíduo que vai para o aterro e a água tratada volta para o corpo d’água. A indústria é a mesma coisa, no processo de produção, pra fabricar o produto, ela gera um resíduo industrial que vai uma estação, que no caso não é biológico, é físico-químico, trata esse efluente. A água tratada ou vai para o corpo d’água, ou volta pra utilização, e a borra, que é o resíduo, em vez de ir para o aterro, é esse aqui, que é o resíduo que vai pra gente reciclar na fábrica. Então você trabalha com cocô de indústria”. E falei exatamente isso! Esse resíduo industrial em processo, metal, mecânico em geral, tratamento de superfície, eu pegava esses resíduos, documentava, que isso tudo tem toda uma legislação já que regulariza isso, e levava pra fábrica pra fazer a reciclagem.
P/1 – Em que ano que foi isso, Fátima, que vocês começaram?
R – Em 75, 76.
P/1 – Desde então você tá com a Suzaquim?
R – Exatamente. Começamos a desenvolver, a fazer um estudo do mercado, a desenvolver o mercado. E foi ficar mesmo conhecida no mercado lá pra 98, 99.
P/1 – E com que vocês trabalham hoje? Que tipo de resíduo ou lixo vocês trabalham?
R – Então, hoje a Suzaquim recicla resíduo industrial sólido desses processos, não são todos; resíduos líquidos, também desses processos; pilha. Aí em 77... Não, em 79, nós desenvolvemos a pedido de uma empresa francesa, que era a Saft Nife, nós desenvolvemos a reciclagem de pilhas e baterias. Porque eles fabricavam as baterias aqui e eles queriam reciclar. Porque na França já fazia isso. Aí nós desenvolvemos o processo de reciclagem e fazíamos só pra eles. Só que em... Isso foi em 77, desenvolvemos pra eles e começamos a reciclar as baterias deles. Em 79, saiu a primeira legislação pra reciclagem de pilhas e baterias, que foi a resolução do Conama 257. O Conama é o Conselho Nacional do Meio Ambiente, que foi em 99. Só que quando o Conama lançou a 257, começou a sair na mídia que não existia reciclador de baterias aqui no Brasil, que iam mandar pra França. Eu falei: “Como não existe? Olha, eu tou aqui, eu já faço isso há dois anos”. Tinha assim aqueles grupos de estudos, palestras, eu ia falava assim: “Me põe para o final”. Todo mundo falava: “É, só que não sabemos como vamos recolher, não sabemos como vamos reciclar, o código de nota que vai usar pra fazer o transporte do produto pós-uso”. Eu já tinha isso tudo em procedimento, porque eu já fazia isso há dois anos. Então eu tinha a consulta da Receita Federal, o código de nota que ia usar, eu tinha o modelo de tudo, eu tinha o procedimento com as documentações que ia seguir junto com o transporte, eu tinha tudo isso. Chegava ao fim, eu falava: “Olha, gente, eu sou uma empresa que recicla esse produto pós-uso e faço dessa e dessa forma com esse procedimento, utilizo esse tipo de nota com a consulta número tal”. Ia mostrando tudo como que fazia, ficava todo mundo... Porque eu já fazia há dois anos! Mas eu não sabia que ia tomar um volume tão grande, uma proporção tão grande. Comecei a fazer. Aí vieram as reportagens. A mídia toda... Era o único no Brasil que fazia, ia todo mundo fazer reportagem lá. E aí o ficar conhecido de todas essas reportagens.
P/1 – E vocês começaram a receber um volume grande de pilha para reciclar?
R – Grande, mas a maior foi a procura da mídia pelo trabalho que a gente estava desenvolvendo, porque era o único, então todos os meios de comunicação acabavam aparecendo. E sem contar que quando eu ia desenvolver um estado específico, eu ia ao Fiesp aqui em São Paulo, todos esses órgãos que juntavam as indústrias. Eu convidava as indústrias daquela região e fazia uma palestra explicando para as indústrias o trabalho que a gente desenvolvia, como a gente desenvolvia, quais as documentações que necessitava e quais as legislações que a gente atendia. E eu fiquei muito conhecida no mercado do meio ambiente, porque fui umas das primeiras a estudar e a trabalhar efetivamente na área desenvolvendo esse trabalho. Até então, a gente tinha poucas tecnologias disponíveis no Brasil pra fazer isso. Tinham os aterros, por toda vida você tá responsável por aquilo que você colocou lá nas células do aterro, você tinha o coprocessamento, que era queimar fornos de cimento, que era uma tecnologia que existia na época, e só. Só existiam essas tecnologias. E aí eu entrei com uma tecnologia que é o reprocessamento, que é a reciclagem. É transformar esses resíduos e esses produtos pós-uso numa matéria-prima pra fabricar outros produtos, que é o que nós fazemos até hoje.
P/1 – Em que matérias-primas vocês transformam isso?
R – Sais metálicos, eu retiro os metais desse resíduo ou desse produto pós-uso e fabrico sais metálicos e óxido metálico pra fabricar corante pra pisos cerâmicos, vidros, tintas e refratários. Então os sais metálicos que eu vendo no mercado como outros sais metálicos, comum, que é um produto mais nobre, ou o óxido metálico que é o mix de tudo que sobra, dos metais todos que sobram, que eu vendo pra fazer o corante para pisos cerâmicos, vidros ou tintas.
P/1 – Você estava mencionando então que você fez esse histórico do início, quando entra reciclagem de pilhas. E hoje vocês têm então reciclagem de resíduos sólidos, líquido, pilhas.
R – Isso. E em 2004... Então todo esse aprendizado e todo esse conhecimento que eu tive que desenvolver no mercado pra captar esses resíduos e levar pra serem reciclados lá na fábrica, todo esse conhecimento de legislação, de trabalhar com esse trâmite, eu coloquei tudo num livro, que inclusive ele se chama Resíduos na Sociedade Moderna. Então nesse livro eu coloco todos os resíduos que geram, todas as tecnologias disponíveis pra destinação final desses resíduos, desde o resíduo hospitalar, resíduo doméstico, até o resíduo industrial, e o procedimento, as legislações de cada tipo de resíduo como deve ser tratado e o que deve ser feito, e as tecnologias, enfim, tudo. E coloco também toda a legislação pertinente a esses resíduos nesse livro que eu escrevi. Depois, em seguida, dois anos depois, eu junto com essa minha sócia, a Anna Maria Brasil, nós escrevemos esse livro de resíduos, porque ela fez Direito, fez o apanhado de legislação, colocamos tudo no livro, ficou um livro bem interessante e prático pra se utilizar no dia a dia na área.
P/1 – Que ano foi que vocês...
R – Foi em 2004. Em 2006, nós escrevemos um dicionário de meio ambiente. Aí eu coloquei todos os verbetes de meio ambiente. Não os verbetes direcionados, por exemplo, à química. Não. Porque isso já tem no dicionário de química. Então os verbetes referentes ao meio ambiente. Nós colocamos todos os verbetes. O dicionário ia chamar O Homem na Sociedade Moderna. A ideia nossa de fazer esse dicionário era pra que desde a criança, até o velhinho da terceira idade, tivesse acesso a esses verbetes de meio ambiente, que muitas vezes é falado e ele não sabe o que é, e a definição do que é tudo. O Homem e o Meio Ambiente. Quando eu cheguei a uma técnica do MEC pra falar: “Olha, eu quero colocar esse livro pra que toda criança tenha acesso a esse livro, porque vai ajudar muito o professor, criança, adulto, velho”. E era interessante que a gente pegava algumas escolinhas pra fazer uma pesquisa. A gente fez uns bonecos dos livros pra testar como seria o interesse desse livro. Então eu pedia pra que algumas casas colocassem esses livros à disposição de crianças pra ver o interesse que essas crianças tinham com esses livros. E era bem interessante, a gente tem tudo isso gravado, as crianças folheando o livro e vendo: “Nossa, olha que interessante, no lixo hospitalar tem pedaço de gente”. Então o interesse que eles tinham, os idosos também. Isso a gente tem tudo documentado. Era muito interessante, isso nos bonecos. Aí a gente foi pra editora pra poder editar esses livros e vender no mercado. E estão sendo vendidos até hoje. Já tem versões mais atualizadas. E o dicionário, a técnica do MEC falou: “Não, você não pode usar o Homem e o Meio Ambiente porque é uma visão muito machista”. E falei: “Não, já mudei o nome do livro agora, vai chamar O Ser Humano e o Meio Ambiente de A a Z, porque é do ser humano que eu quero falar. Quando eu digo ‘homem’, é o ser humano”. E o livro passou a se chamar O Ser Humano e o Meio Ambiente de A a Z.
P/1 – E ele chegou a ser adotado em escolas?
R – Ele é vendido para as prefeituras e é utilizado nas salas verdes do Brasil todo e da África. Nas salas verdes, que é desenvolvido pelo Ministério do Meio Ambiente. E também nas escolas das prefeituras. Então é vendido direto para as prefeituras pra fazer o trabalho de educação ambiental.
P/1 – Bacana.
R – Tanto o livro, quanto o dicionário. Então no dicionário tem os verbetes e no final tem os biomas e os impactos do planeta.
P/1 – Bacana. Deixe-me entender só uma coisa, hoje em dia você trabalha... Continua sendo a empresa de vocês prestando o serviço?
R – Eu continuo com a empresa Faarte, que é a empresa que presta serviço à Suzaquim fazendo o trabalho da captura do resíduo e toda a documentação técnica até chegar dentro da fábrica, então esse trabalho. E a Faarte também faz toda a parte de consultoria ambiental à indústria, então desde a viabilidade do empreendimento, o licenciamento, a documentação técnica de qualquer indústria pra ser implantada, nessa parte de meio ambiente. Então essa parte ambiental, nós fazemos toda junto à indústria.
P/1 – Pensando na Suzaquim, a questão de lixo tecnológico. Vocês trabalham também com lixo tecnológico?
R – Isso. Lixo tecnológico. Então, por exemplo, antes, que eu trabalhava só com indústria, hoje eu trabalho com prefeituras, com banco, com instituições bancárias, enfim. Hoje os clientes mudaram muito, porque todos geram lixo tecnológico e pilhas e baterias.
P/1 – Explica um pouco pra gente o que é esse lixo tecnológico.
R – Lixo tecnológico é todo o eletroeletrônico em geral. Que antes ia para o li... E hoje, a geração tá aumentando muito. Porque hoje, os eletroeletrônicos ficam obsoletos muito rapidamente. Bom, ele já é feito pra não durar muito. E antes ia para o lixo. Daqui a pouco a gente ia estar de lixo até! Então a ideia da reciclagem, do reaproveitamento dos materiais desses produtos pós-uso e fazer a reciclagem disso, voltar esses materiais pra cadeia produtiva novamente na reciclagem foi meio que... A reciclagem de pilha e do lixo tecnológico foi que meio assim. A gente não tinha ideia de que ia tomar um volume muito grande, aí acabou tomando um volume muito grande. Então todo esse produto pós-uso, em vez de ir para o lixo comum, só tomar espaço no local e a inda correr o risco de contaminação, a gente utiliza. A gente desmonta tudo, o plástico volta para a cadeia produtiva, o vidro volta pra cadeia produtiva, e os metais, a gente extrai pra fabricar o nosso produto.
P/1 – Queria perguntar uma coisa. Vou entrar um pouco nessa questão do relacionamento com a Nestlé e do trabalho que vocês fazem de reciclagem de cafeteira e cápsula, mas antes de chegar a isso, queria voltar pra uma coisa da sua vida pessoal e saber quando nasceram seus netos ou netas, não sei se são mais de um.
R – Isso. Eu já trabalhava com isso, minha filha se casou em 2011. Não, 2009... 2009? É, 2009, ela se casou, aí minha netinha nasceu em 2009, porque ela se casou, minha netinha já estava bem encaminhada. Aí nasceu a minha netinha, que é a Laísa, que já vai fazer sete anos a semana que vem.
P/1 – Como é ser avó? Como foi ser avó?
R – Foi muito melhor do que ser mãe, muito melhor do que ser... Do que tudo. Eu acho que pra um ser humano e pra uma mulher... Acho que para um ser humano, a melhor experiência é ser avó, ou ser avô, eu acredito que também seja. Mas, olha, foi assim, eu curti. De início, eu me assustei. Eu achei que eu estava velha, que eu não queria, mas, olha, quando nasceu, a primeira coisa: “Vem com a vovó!”. E eu não queria ser chamada de vó. Foi a melhor coisa! Então a ligação com o neto é muito mais intensa. Eu não sei também se é porque a gente tá numa outra fase de vida, mais tolerante, que a gente acaba curtindo mais de uma forma diferente. A Laísa nasceu em 2009 e ela curte muito... Ela me vê de uma forma diferente. Ela me acha o máximo. Eu sou linda, o meu cabelo é lindo, tudo é muito lindo. E ela também. A gente tem uma ligação muito forte, a gente faz tudo juntas, é uma coisa muito boa. Tanto é que quando mãe ela quer puni-la porque ela não tá obedecendo, porque ela tá muito rebelde, a punição dela: “Vai ficar sem a tua vó por dois dias. Não vai dormir na casa da tua vó por um mês”. Então, assim, dependendo do que ela faz, a punição dela é tirar a vó dela. É a punição dela. E falo: “Eu tou sendo punida junto”. E funciona, porque é uma coisa assim muito boa. Minha filha se separou, ela tinha um ano, depois ela teve outro relacionamento, que tá até hoje. E no ano passado, exatamente hoje do ano passado, nasceu o meu segundo neto, que foi o Luciano, que também é uma delícia. Hoje ele tá fazendo um aninho. E é uma delícia, um fofo, que a gente curte bastante também. E eu tou escrevendo pra eles, na verdade. Eu tou escrevendo mais dois livrinhos infantis de meio ambiente, que são: Eu e o meio ambiente, que conta a descoberta da criança com o meio que ela vive como um todo, desde o começo, até com o planeta; depois de O meio ambiente e eu, é O planeta todo e eu, localizado essa interação do planeta com a criança. Primeiro a descoberta dele como pessoa dentro do meio, que é o nosso planeta, depois abrangendo todo esse planeta, qual a função dele aqui dentro. Então que é da fase da primeira infância, que é o como ele se descobre, como ele começa a se descobrir e começa a descobrir a natureza; e o segundo que é a interação dele com a natureza, que já é da fase pré-escolar. Que são dois livros pra não alfabetizados, na verdade. Um é o não alfabetizado, o outro é a iniciação da alfabetização e como ele descobrir a posição dele, interagir com o meio ambiente, que é o que... Então esses dois já estão bem adiantados e eu pretendo publicá-los o ano que vem.
P/1 – Bacana. Vou conversar um pouco contigo agora sobre a relação com a Nespresso. Com a Nestlé, mas principalmente com a Nespresso. Eu queria saber como começou, primeiro, essa relação. Como vocês chegaram até a Nespresso, como a Nespresso chegou até vocês, como foi isso?
R – Então, a gente foi desenvolvendo esse trabalho de reciclar, aí começaram as responsabilidades pós-uso dos produtos. Então, por exemplo, os fabricantes de pilhas, ou o fabricante, ou o importador, todo produto que ele coloca no mercado, ele tem que ter uma responsabilidade pós-uso, de recolher de volta, de mandar reciclar. Então os fabricantes começaram a nos procurar pra desenvolver essa logística reversa e mandar esses materiais pra nós.
P/1 – Deixe-me fazer uma pergunta pra você. Isso é uma questão de legislação?
R – De legislação. Tudo no meio ambiente... Hoje o Brasil tem uma legislação ambiental uma das melhores do mundo, porque na hora de fazer a legislação, então eu participei de vários grupos de estudo técnico pra elaboração de legislação. Então a gente vai uma vez por mês a Brasília, o corpo técnico, a sociedade civil, os órgãos, se reúnem, os especialistas, pra documentar tecnicamente o como seria uma legislação específica pra um determinado setor. Então isso tudo é feito, aí isso depois vai pra câmara técnica de assuntos jurídicos pra ele transformar numa redação de legislação e ser aprovada essa lei, e essa lei ser juramentada e ser utilizada. Então tudo, tudo, todo esse trabalho que é feito é em cima de legislação. Como no Brasil não existia uma legislação, nós adotávamos, pegávamos umas duas ou três legislações do que há de melhor no mundo. “Olha, em tal país tá sendo feito dessa forma, em tal desse e dessa.” Então nós pegávamos o que era melhor do que estava sendo feito pra usar como metodologia pra poder fazer a nossa legislação. Então o Brasil acabou tendo uma legislação ambiental uma das melhores do mundo. Isso em todos os aspectos. Tem falhas? Tem falhas ainda. Muitas! Mas a gente vai arrumando e vai fazendo depois pra poder ir melhorando, mas foi uma das melhores, tanto em controle atmosférico, controle ambiental de água, de solo, de ar, como todas as... Então todas essas legislações estão sendo aplicadas hoje. Então os fabricantes de pilhas, de baterias, de produtos que antes, eles tinham contato com a gente só no processo de produção, porque a gente pegava o resíduo que ele, durante o processo, gerava. Aí ele começou tendo outro setor da indústria, começou a nos procurar pra poder fazer o descarte adequado, que não seja ir para o aterro e ficar com a responsabilidade para o resto da vida. Porque se você coloca no aterro, você continua responsável, porque ele vai continuar lá. Ele começou a procurar pra fazer essa reciclagem, pra ele se livrar dessa responsabilidade, resolver definitivamente e de uma forma ambientalmente melhor, porque ele tá reaproveitando esses materiais, prolongando a vida útil desses materiais transformando-os em produto novamente, mesmo que não fosse o dele. Então esses fabricantes começaram a nos procurar, fabricante de tudo. Como outros fabricantes também, chegou o caso da Nestlé. Ela fabricava as cafeteiras, inclusive cafeteira ótima, que eu tenho uma aí, um café maravilhoso. E eu sou assim pra café, não é qualquer café. Eu tinha um café plantado e produzido, então a qualidade do café tem que ser boa. Aí a Nestlé fazia... A Nestlé tem uma ideia de fazer um trabalho de socioambiental responsável, uma responsabilidade ambiental legal. Então ela queria que as cafeteiras, os sachês utilizados nas cafeteiras fossem com uma a responsabilidade socioambiental legal. Então nos procurou pra gente desenvolver a reciclagem, tanto dos equipamentos pós-uso, que não davam mais pra serem reutilizados, como das cápsulas do café que a gente utiliza nas cafeteiras. Aí nós começamos a desenvolver. Fizemos todo o esboço e começamos e desenvolver e fazer a reciclagem tanto das cafeteiras, como dos sachês de café.
P/1 – Isso foi em que ano, mais ou menos?
R – Foi... Ai, agora eu preciso... Porque tem tantas outras...
P/1 – Se você não lembrar, não tem problema.
R – Não me lembro. Porque outros nichos de mercado também nos procuram pra gente... De televisão, de... Então são outros... E a gente faz a reciclagem. Então eles recolhem e a gente recebe as cargas desses equipamentos e a gente faz a reciclagem, a separação dos materiais e todo o processo de tornar em matéria-prima novamente, pra voltar pra cadeia produtiva novamente.
P/1 – E, Fátima, qual você acha, nesse processo, pensando mais especificamente no caso da Nestlé, das cafeteiras e das cápsulas, o que você vê de benefícios nesse processo de reciclagem para as empresas envolvidas, então pra Nestlé, pra Suzaquim, pra sua empresa e pra sociedade como um todo?
R – Então, olha, eu acho que isso é o futuro. Eu acho que tudo, é por esse caminho que tem que ser. Eu acredito nisso. Porque, veja, você ganha ambientalmente, porque você deixa de consumir um recurso natural não renovável. Quando você reaproveita um material que já foi, por exemplo, o alumínio que era da cafeteira, que volta a ser um alumínio fundido pra fazer novas peças de alumínio, você deixa de extrair o alumínio da natureza pra fazer aquelas peças, você tá usando um que já foi. Então tem muita coisa ainda pra melhorar aí, inclusive esse é um produto já tarifado, tributado, ele não deveria ser tributado novamente, então tem muitas falhas aí, mas que isso tudo com o tempo dá pra se arrumar. Então você ganha ambientalmente, porque você deixa de consumir um recurso natural não renovável, você vai prolongar a vida útil de todos esses materiais utilizados pra fabricar novos produtos, então as pessoas ganham novamente porque vão trabalhar novamente naquele produto. Você gera uma mão de obra nacional pra fazer essa transformação, pra transformar em matéria-prima. Então é uma coisa que todo mundo acaba ganhando. A natureza ganha com isso, a sociedade ganha com isso porque volta materiais pra fazer novas peças e a outro custo, porque é um produto, ainda não é isento de tributação, mas a ideia é que seja isento de tributação, que ele seja tributado uma vez só pra ele ter um custo melhor pra sociedade também. O ambiente ganha, porque ele deixa de contaminar. Ele sendo disposto inadequadamente, por exemplo, jogar lá e começar a se desprender e contaminar o corpo d’água e o solo, então o ambiente também ganha, porque ele não vai contaminar. Então eu acho que isso tudo acaba ganhando. Essa reciclagem desses... E eu acho que todas as linhas de fabricação, eu acho que deveria... Nem todas estão na legislação que elas têm que ter essa responsabilidade socioambiental, mas deveriam estar. E com o tempo vão acabar todos os outros mercados também entrar nessa forma. Eu acho que é esse o caminho.
P/1 – E tem alguma especificidade da relação com a Nestlé? Na relação com a Nestlé ou com o tipo de produto da Nestlé que vocês reciclam?
R – Da Nestlé, especificamente, a gente não tinha o processo da reciclagem das cápsulas, então nós desenvolvemos pra reciclar o todo. Então não adianta você chegar e reciclar: “Olha, recicla só metade, o resto você joga ali”. Não. Não funciona. Nós desenvolvemos o processo da reciclagem das cápsulas pra poder reaproveitar. Então o pó que sai já queimado dá pra ser utilizado, poderia ser utilizado pra adubo, aquele pó, porque ele tem um valor nutritivo que dá pra ser agregado ao solo. O plástico e o alumínio das cápsulas, faz a separação química e dá pra serem utilizados novamente. Esse processo não tinha, nós desenvolvemos especificamente pra Nestlé.
P/1 – Então foi um conhecimento que foi gerado a partir dessa demanda também?
R – Um conhecimento a mais, porque você tem que estudar os materiais, desenvolver o processo pra fazer pra aquele tipo de material. Isso é bem interessante. Essa fase do desenvolvimento é bem interessante, bem divertida, é bem gostosa de fazer.
P/1 – E é bacana também porque fica um legado, a partir do momento que você desenvolve.
R – Fica. É. Você desenvolve, você faz e você abre para outras pessoas também fazerem. Pode ser que amanhã o volume dessas cafeteiras seja bastante, porque é prático, o café sai gostoso, é bem prático de usar, é bem fácil. Você pode botar num saquinho e levar num posto de volta essas capsulazinhas. É limpo. Pra vida agitada do dia a dia hoje é bem legal. Então pode ter uma fábrica só de reciclagem de cápsula. Até então é uma coisa boa, que você deixa pra ir para outras pessoas fazerem também, para o futuro.
P/1 – Deixe-me só entender quem tá envolvido. Você falou, em determinado momento, de gerar emprego também, gerar mão de obra.
P/1 – Sim, mão de obra.
R – Nesse caso específico também da Nespresso, da Nestlé e de vocês, dessa parceria, quem tá envolvido nessa cadeia? Para entender quais são as pessoas que participam disso de ponta a ponta.
R – Claro. A Nestlé, ela fabrica as cafeteiras e fabrica as cápsulas, ela gera uma quantidade de mão de obra. Depois ela gera no comércio, o comércio tem outra mão de obra, que vai distribuir essas cafeteiras, que as pessoas vão usar as cafeteiras, vão usar os sachês, vão comprar os sachês pra usar no escritório, na casa, enfim, isso tudo já é uma coisa boa. Depois, segunda parte, que pra transformar tem o pessoal que recolhe esse material, que faz uma logística reversa e recolhe esse material pra poder levar pra reciclagem, que também é outra mão de obra, indireta, mas também é outra mão de obra, é uma forma de trabalho. Tem o pessoal que faz toda essa parte de desmontagem, separação dos materiais, que também é outra mão de obra. Tem esses materiais, depois de separados, tem aqueles materiais que vão para as indústrias recicladoras do material específico, que também é outra mão de obra. Então é uma cadeia muito grande, que muitas outras pessoas estão envolvidas e que trabalham indiretamente, mas em função de um único produto específico.
P/1 – E que gera emprego, gera renda.
R – E que gera emprego, qualidade de vida para as pessoas.
P/1 – Bacana.
R – Porque tudo gira em torno da qualidade de vida para as pessoas, para o ser humano. Nós estamos no topo da cadeia alimentar, então tem que girar em torno da qualidade de vida pra nós que estamos no topo da cadeia alimentar. Lógico, não desrespeitando os outros elos da cadeia, nunca, mas nós estamos no topo, então tudo gerando em torno de uma qualidade de vida pra nós seres humanos.
P/1 – Bacana. Eu vou encaminhando para as perguntas finais, Fátima. A gente sempre faz duas perguntas de encerramento. Antes, eu queria saber se tem alguma coisa que a gente não tenha perguntado e que você gostaria de dizer, qualquer coisa.
R – Não, eu acho que eu contei tudo.
P/1 – Não quer acrescentar então?
R – Não. Não tenho nada. Ah, tenho a acrescentar, sim. Na hora que vai falando, a gente se esquece de coisas. Então no ano passado nasceu o meu netinho exatamente no dia de hoje. Infelizmente, em julho do ano passado eu perdi meu filho. Ele morreu de tromboembolia cardíaca, da mesma forma que morreu a minha filhinha com três meses. Eu acordei, ele estava morto. Ele teve o coração... Então foi assim, uma coisa muito difícil, que eu pensei que... Pensei não, eu tenho certeza que nunca mais serei a mesma depois de um fato desses. Mas, infelizmente, a vida tem que continuar, porque a gente não pode se dar ao luxo de ser fraco. Eu costumo dizer sempre: a gente não pode se dar ao luxo de ser mimada. A gente tem que ser forte e ponto. Então o que me sobrou foi: os meus pais, que ainda tenho vivo, os meus irmãos, a minha filha, que agora é uma só. Outra coisa que eu me esqueci de comentar, que em 2006 eu encontrei um companheiro. Depois de tantos anos sozinha, só estudando, trabalhando, escrevendo livro, naquela.... Que aí eu me atirei direto para o trabalho e para o conhecimento. Eu conheci um companheiro 20 anos mais novo. Ele era mais novo que meu filho, um ano, mas era.
P/1 – Como foi esse encontro?
R – Então, ele foi fazer um trabalho na minha empresa e ficou me olhando, mas eu nem liguei. Aí ele ficou assediando, assediando, e cercando, e cercando. Eu relutei bastante, assumo que relutei muito: “Imagina que eu ia querer alguém 20 anos mais novo!”. E foi um anjo que Deus colocou na minha vida. Uma pessoa que está comigo há 16 anos e foi um companheiro que eu nunca pensei que fosse ter, que cuidou de mim, me ajudou, passamos a adolescência terrível da minha filha juntos, ele me ajudou demais. O nascimento dos meus netos, ele é até padrinho da minha neta, é como se ele fosse um... Ele é como se fosse parente deles mesmo, porque as crianças o adoram. Que tá comigo até hoje, acabou estudando também Gerenciamento Ambiental e passou a trabalhar comigo também.
P/1 – Você pode falar o nome dele?
R – Alessandro. Então tou com ele até hoje. Acredito que fico com ele até o final dos meus dias.
P/1 – Que bom. Foi uma coisa boa.
R – É. Então na vida a gente tem algumas coisas ruins, tristes, que mudam a gente, infelizmente, porque são dores que não passam, a gente aprende a conviver com elas, como eu to aprendendo a conviver, porque agora mês que vem faz um ano. Então eu tou aprendendo ainda a conviver com a dor. E tem coisas boas também, como os meus netos, um companheiro maravilhoso que eu encontrei. Estamos aprendendo ainda a viver no dia-a-dia.
P/1 – Agora então a penúltima pergunta: quais são seus sonhos hoje?
R – Quando a gente sofre uma perda muito grande, os sonhos da gente ficam um pouco ofuscados. Porque a dor é tanta que a gente começa a reavaliar até que ponto valem a pena as coisas. A gente percebe que a vida é muito frágil, que no dia-a-dia a gente não dá conta disso, que ela é frágil demais, então a gente começa a valorizar mais pequenas coisas. E nessa valorização de pequenas coisas, os sonhos mudam. O que era sonho, a gente reavalia, fala: “Ah, por que eu tou sonhando isso?”. Antes, o sonho era de aumentar... Eu trabalho com todo o território nacional, então eu recebi uma proposta pra trabalhar na mesma área nos Estados Unidos, que eu tou estudando, mas eu ainda amo muito esse país, mesmo com tudo que eu sou contra, que acontece aqui, eu ainda amo esse país, então eu tou reavaliando. Sonhos, hoje, eu quero viver bem, em paz. Eu acho que nada paga a paz da gente. Não tem preço. Paz é uma coisa que não tem preço. Porque sem paz, a gente perde até a saúde. Então eu acho que a paz tá em primeiro lugar. Então hoje eu quero viver em paz, mas tenho aí uns projetos, além dos dois livros que eu tou finalizando pra editar no ano que vem, tenho uns projetos aí, talvez abrir uma nova recicladora, também para produtos desse tipo, ou pra resíduos. Estou em estudo ainda.
P/1 – E, por fim, como foi contar sua história?
R – Olha, contar história, a gente se lembra de coisas boas, como toda história tem, e das coisas tristes, que tem que ser, porque faz parte do aprendizado de vida, mas foi verificar que tudo valeu a pena.
P/1 – Tá certo.
R – Que sempre tudo vale a pena, principalmente quando a gente faz aquilo que a gente realmente acredita e aquilo que a gente realmente gosta. É fazer com prazer as coisas. As coisas têm que ser feitas com prazer. Eu costumo dizer que a paixão é que move o mundo. Você tem que fazer com paixão. Eu quando faço, eu faço de verdade, não dá pra ser meio termo, tem que ir e fazer mesmo com paixão.
P/1 – Tá certo. Muito obrigada então.
R – Ah, imagina. Foi um prazer.
P/1 – A gente encerra aqui. Foi ótimo.
FINAL DA ENTREVISTA
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