Projeto Memória dos Brasileiros Maués
Depoimento de Ernandis Pereira Barbosa
Entrevistado por Thiago Majolo
Maués, 24/01/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MBMaues_HV_015
Transcrito por Écio Gonçalves da Rocha
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 18/02/2008
P1 – Para começar, Ernandis, eu queria que você falasse o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – O meu nome é Ernandis Pereira Barbosa. Nasci em Maués, no dia 26 de janeiro de 1968.
P1 – Eu queria que você falasse um pouco sobre a origem dos seus pais.
R – Os meus pais todos são filhos de Maués mesmo. Meus avós, eles todos eram daqui mesmo, descendentes geralmente de portugueses e indígenas. Todos eles sempre foram daqui mesmo, de Maués.
P1 – Então, você tem descendência de Sateré-Mawé?
R – Também tenho. A minha avó era descendente de índios mesmo.
P1 – E o que seus pais faziam?
R – Meus pais sempre foram agricultores, sempre trabalharam na agricultura para sobrevivência, sempre foi aqui, sempre foi assim. Trabalhou em várias propriedades, sempre teve a dele também. Como emprego naquele tempo era difícil, sempre trabalharam na lavoura. Daí sempre foi assim.
P1 – Mas foi com guaraná ou não?
R – Com guaraná, sempre foi com guaraná, com mandioca, sempre trabalhando com esses produtos.
P1 – E você tem irmãos?
R – Nós somos 11 irmãos.
P1 – E, no geral, o que eles fazem?
R – Graças a Deus, todo mundo optou por uma profissão. Tem bancário, tem fiscal, tem professor, tem engenheiros. Então, é uma turma diversificada. Tem trabalhando na agricultura mesmo. É bem diversificada a profissão deles. Professores também. Então, é uma mestiçagem, cada um tem uma profissão. Graças a Deus, todos trabalham.
P1 – Ernandis, como é que era a cidade, como é que era Maués quando você era pequeno?
R – Maués era uma cidade bem pacata. A gente corria muito, tomava banho nesse rio, tinha os flutuantes. O nosso hobby era brincar de fugir do colégio, que era aqui na rua principal. Tinha um restaurante aqui, chamava Itapuã. O nosso hobby era fugir da aula para vir pular n’água. A gente brincava muito, a gente era um verdadeiro peixinho mesmo, mergulhava, boiava longe. Essa era a nossa infância. A gente quebrava muita pedra, enchia muito saquinho, que naquele tempo era para sobreviver mesmo, pra gente ter as nossas bolinhas, que a gente brincava muito. Naquele tempo, não havia violência, não havia galera, a gente brincava muito. Nós encontrávamos aquela turma da rua e íamos brincar de barra-bandeira, brincar de se esconder. A gente tinha uma vida bem divertida naquela época aqui, todas pessoas legais mesmo, que criaram junto. Tem esse colégio aqui, Santina Filizola, tinha um campo, era o nosso hobby. A gente jogava muito. Tinha vários quintais aqui do nosso colégio, que a gente ia jogar bola direto. Era assim a infância aqui, muito divertida mesmo. Praticamente, a cidade ia crescendo e a gente também ia acompanhando o crescimento da cidade.
P1 – E essa casa, como é que era?
R – A minha casa era bem simples. Hoje mesmo o meu pai estava falando que a gente era nove que moravam na casa, que ele estava falando que hoje tudo é fácil. Naquele tempo, ele comprava um pão, ele dividia pra gente, em fatias, pra cada um comer. A gente, um usava sapato do outro, ou só tinha um. Naquele tempo era difícil, o governo não dava farda, não dava nada. A gente, em casa, só tinha uma farda. Os nossos cadernos eram todos encapados com um tipo de papel, que a gente fala, de embrulhar pão. Era muito difícil naquele tempo.
P1 – E como é que era a sua escola, a primeira escola?
R – A minha primeira escola, Clóvis Prado de Negreiros, uma escola simples, bem simples mesmo, naquele tempo. Fica na Rua Guaranópolis, na rua que eu moro. Daí a gente ia, estudava, bagunçava, alguma vez era suspenso, voltava de novo. Na infância, a gente apronta de tudo, né? Mas, graças a Deus, os professores sempre mostraram, na minha família o meu pai era muito rígido, que cada um mostrasse ter dignidade, tivesse um carinho que fosse, se tornasse uma pessoa digna, ser respeitada pelas pessoas. Então, hoje, graças a Deus, a família é toda assim. Todo mundo é respeitado, todo mundo tem uma função, todo mundo trabalha. É muito vantajoso pra gente.
P1 – E era difícil estudar?
R – Era, naquele tempo era muito difícil. Porque é aquilo que eu te falei, como a gente não tinha caderno, tinha que fazer a folha de papel almaço. E naquele tempo era rígido, que existia aquele negócio de sabatina, né? Você tinha que saber a tabuada de cabeça pra baixo. Nossos professores eram muito rígidos. Você só vinha pra casa se você acertasse tudinho a tabuada. Até hoje a gente lembra tudinho. O meu pai já é bem idoso, mas sabe fazer uma conta melhor que qualquer pessoa que é formada em universidade, os meus irmãos também. Então, primeiro, era o estudo. Naquele tempo, achava que era difícil a gente estar no banco de uma escola porque a gente não tinha material, a gente não tinha lápis. A gente andava com uma pontinha de lápis. Hoje o governo dá tudo, e você vê que é uma dificuldade, as pessoas não querem. Naquele tempo era muito difícil o material. Eu acho que estudava um ano com um caderno ou dois cadernos no máximo. Era uma dificuldade. Hoje não, hoje tudo é fácil.
P1 – E você estudou até que série em Maués?
R – Eu estudei até a oitava série. Daí eu fiz um minivestibular, passei. Porque naquele tempo existia Técnicas Agrícolas. Eu via aquilo, os meus professores darem, a gente tinha uma horta na escola. Daí aquilo sempre... Meus pais eram agricultores, sempre trabalharam com isso, meus avós, que eu morei muito tempo com eles. Daí aquilo foi me induzindo naquela profissão que eu queria. Eu passei nesse minivestibular, fui para uma escola federal. Só que lá era sistema fechado, que já fui para Manaus estudar. Fui ser interno, depois fui ser “laranjeira”, que era a pessoa que mora no colégio, sobrevive lá dentro. Tem muita dificuldade, mas você sobrevive. Graças a Deus, concluí em 87, graças a Deus. Passei um tempo dentro da escola. Ali era um regime que tinha uma disciplina muito grande. Você não podia deixar nada. Você entrava lá, você saía uma pessoa com muita responsabilidade. Que lá existiam normas, você entrava com 100 pontos. Se você ofendesse alguém, se você fizesse alguma coisa errada, você era punido. No nosso enxoval, acompanhavam carrinho de mão, machado, tudo isso, porque lá a gente ia aprender uma profissão. Quando a gente voltasse para a cidade da gente, soubesse desenvolver a profissão. Então me formei, passei três anos na escola. Depois de formado, ainda passei mais algum tempo lá, trabalhando. Depois eu saí e fui atrás da minha profissão.
P1 – Aí você voltou pra Maués?
R – Não, aí eu fui administrar várias, fui trabalhar em uma empresa do Distrito Industrial que fazia pesquisa para a Suframa [Superintendência da Zona Franca de Manaus]. Depois eu fui ser gerente de propriedade. Fui gerente da propriedade do gerente do Hospital Getúlio Vargas, de alguns professores. Depois tive que mudar radicalmente de profissão. Fui pra Aço e Ferro do Brasil, fiz uns cursos tudinho, porque era louco por máquinas, por caminhões, tratores. Era um sonho que eu tinha desde pequeno. Quando eu tinha oito anos, eu já trabalhava em oficina. Que o dinheiro que a gente ganhava, era louco por numa bicicleta. Naquele tempo, era diferente, não ganhava nem um presente. A gente tinha que fazer o quê? Os nossos carrinhos eram latas de sardinha com rodinha de sandália. Hoje todo mundo ganha fácil, naquele tempo era difícil. Então, eu fui aprendendo, desde novo, uma profissão. Trabalhava em oficina, com pintura, lanternagem, desmontar e montar motor, que era para comprar uma bicicleta pra mim.
P1 – Comprou?
R – Comprei uma bicicleta. A minha primeira volta dela, a minha rua era uma ladeira, embaixo tinha um capinzal daqueles “brabos” mesmo. Meu peito ficou todo descascado na primeira volta da minha bicicleta. Mas é assim a vida, a infância da gente.
P1 – Então você ficou quanto tempo em Manaus?
R – Em Manaus, eu passei 14 anos. Trabalhei na Aço e Ferro do Brasil, trabalhei em várias construtoras. Eu gostava também de negócio de construção civil, que tinha máquinas, tinha que fazer platô, ler projeto, essas coisas. Trabalhei em construtora um bocado de tempo, daí eu fui trabalhar com máquinas mesmo. Trabalhei para a Agrale, trabalhei para a MWM, fiz vários trabalhos. Eu gostava. Depois fui trabalhar no município de Coari, Tefé, trabalhei nesses municípios também.
P1 – E eu queria saber por que você voltou para Maués e como que a cidade estava de diferente do que você lembrava da sua partida.
R – Eu fui, passei esse tempo todo, 14 anos, fora. Quando voltei, a cidade estava muito abandonada, não tinha crescido nada. Eu voltei porque tinha um objetivo, porque eu sempre, meu pai ensinou assim: “Vocês têm que aprender para depois vocês virem e ensinar as pessoas.” Então, como eu tinha uma profissão que eu acho muito interessante, como tudo aqui é setor primário, quase tudo depende do campo, você sabendo uma profissão, você vem aqui, você pode ensinar muita coisa. O que me levou a vir para Maués foi um prefeito que trabalhava aqui, ele tinha um projeto, ele já tinha trabalhado no Idam [Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas]. Ele andava nos municípios desenvolvendo um programa agrícola. Daí ele me trouxe para implantar no município de Maués. Foi no qual eu vim, fui um dos primeiros técnicos a ser contratado por ele na Secretaria de Produção. Fui ler o projeto, a ideia dele era brilhante, que nós íamos mudar mesmo a cara do nosso município. Porque você andava hoje, você que está vindo hoje em Maués, você vê a cidade limpa. Naquele tempo não, era tudo abandonado. Hoje não, a gente pode andar sossegado. Você pode conhecer as comunidades e você vê uma mudança muito grande. A gente está aí, já trabalha há sete anos no município. E, graças a esse prefeito, que o projeto dele era audacioso, bonito mesmo, para ajudar o povo. Então, eu aceitei esse desafio de voltar para o meu município.
P1 – Você veio pra trabalhar na Secretaria?
R – É, já vim diretamente para trabalhar na Secretaria de Produção.
P1 – Me conta uma coisa, então. Explica qual é a função dessa secretaria e como que ela funciona, quais as divisões? Conta um pouco.
R – Certo. A Secretaria de Produção em que eu trabalho fica na Estrada dos Morais. Ela hoje tem um quadro profissional muito grande, que, só em técnicos, nós somos num total de 14 profissionais que trabalhamos. Isso quer dizer, o município foi bem dividido com esse programa agrícola, que o prefeito fez esse trabalho que eu lhe falei, para dar oportunidade para o produtor. A secretaria trabalha com fomento. Fomento quer dizer que tudo que a gente produz é para doar. As mudas são doadas, a assistência é doada, tudo é de graça, que a gente trabalha. Daí ocorre de dividir o município em 12 polos. Ele achou que seria mais fácil a gente trabalhar assim, que são do polo um ao polo 12, que vai da última comunidade de Marau à última do Paracunim, que são os polos mais longe que nós temos no município. Esse técnico trabalha como se ele fosse o gerente. Vou te dar um exemplo aqui. O polo um, ele tem o técnico e ele comanda 28 comunidades. Ele dá assistência para o produtor, ele vai lá, ele ensina. Porque aqui a gente tem o calendário agrícola no município. A gente doa. A gente vai desde a preparação da área, que a gente doa para o produtor fazer o roçado dele tudinho. Depois, a gente vai lá, mostra para ele fazer o esquadrejamento da área dele. Daí a gente vai mostrar para ele que plantar todo mundo sabe, mas a gente leva as técnicas para ele plantar tudo adequado mesmo, o plantio dele de mandioca, de todas as culturas. E o principal é o guaraná que a gente trabalha. Então, o nosso trabalho é esse, é como se a gente fosse o gerente. Tudo que acontece lá nas comunidades, por exemplo, nas 28. Aí eles chegavam para mim, e nós levávamos os problemas para a Secretaria de Produção. Como secretário, levaria as dificuldades para o prefeito. Então, era assim que a gente trabalhava, né? Todo técnico tem um trabalho muito importante no município, no qual a gente viu que era importante. Hoje também a gente tem a Associação dos Técnicos, que são os técnicos que trabalham nos polos. Então, isso é muito importante. Todo técnico tem ajuda, tem colaboração, ele tem uma estrutura boa para prestar esse serviço gratuito para o produtor. Ele tem, cada polo tem uma comunidade sede, no caso. Aqui, no polo um, a comunidade sede é o Menino Deus do Limão. Daí, o técnico mora lá. Ele tem uma casa, tem televisão, tem parabólica, tem uma sala para atender o produtor tudinho, tem motor de luz, tem geladeira, tem fogão, tem uma estrutura boa, tem um barco para ele andar nas comunidades e visitar os produtores. Ele tem todo esse trabalho. Hoje o técnico é bem capacitado, com treinamento, Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], Idam, temos vários parceiros. A gente tem uma parceria muito grande. Então, a gente trabalha com isso, de dar assistência mesmo para o produtor direto, em todos os polos do município.
P1 – E tem quantas comunidades por polo?
R – Por polo? Aí varia. Por exemplo, o polo um tem 28, o polo 11 tem dez, o polo seis tem 11. Então, isso vai variando. Tem polos que são maiores devido à região, porque aqui nós temos Urupari, Paraguari, Marau, assim, Maués Mirim, então são vários polos. Paracunim, né? Agora, tem uns que são berços e tem uns que são enormes. Só um exemplo, Marau tem mais de 33, o polo um tem 28, outros têm menos comunidades, porque ele dividiu bem estrategicamente para poder a gente dar assistência.
P1 – E o seu polo, qual é?
R – O meu polo, porque eu já trabalhei assim. Eu trabalhava no polo um, daí eu fui chamado para trabalhar na sede da Secretaria. Hoje, eu sou um dos 14, porque tem 12 polos, nós temos um supervisor e eu que trabalho como responsável da Secretaria. Daí é assim: o supervisor supervisiona todos os técnicos dos 12 polos, ele passa a informação, e eu estou na Secretaria para dar a sustentação para que esses técnicos que trabalham no interior darem continuação nos projetos, que os projetos são todos. Aqui na Secretaria nós trabalhamos com avicultura, piscicultura, trabalhamos com a cultura do guaraná, com mandioca, todas as culturas, e ovinos. Então, nós temos que dar assistência para todos esses projetos da Prefeitura, e eu que tenho que dar suporte, que eles todos aconteçam no interior.
P1 – E todos os polos são no interior?
R – É, todos.
P – Fora os centros urbanos?
R1 – É, fora os centros urbanos, que são mais de 180 comunidades que nós temos no município. Hoje todos, graças a Deus, têm uma estrutura boa, o produtor é assistido. E chegamos a quase todas as comunidades, todas praticamente, com assistência técnica.
P1 – Tem algumas muito longe?
R – Temos comunidade longe. Só um exemplo, Paracunim são mais de 14 horas, no barco do técnico você demora isso tudo. Como tem comunidade perto aqui, que é só atravessar o rio.
P – Eu queria que você contasse o que melhorou concretamente, a situação, quando chegaram com essa ideia de Secretaria de Produção, o que melhorou para as comunidades?
R – Melhorou porque aqui, quando nós chegamos aqui, tudo era abandonado, não existia assistência técnica, não tinha nem um produtor que era assistido. Hoje não, todos os produtores são cadastrados. Hoje você pode ir na feira que você encontra de tudo, com os programas de olericultura tudinho, horticultura tudinho, que nós tivemos no interior todo. Você pode chegar, você vê. Hoje eu te digo assim, desde 2001 para hoje, 2007, nós saímos do zero, hoje nós estamos com uma carga de 60% no município. Isso quer dizer que evoluiu muito. Que era muito difícil você encontrar uma fruta. Vou te dar só um exemplo. Logo que eu cheguei aqui, em 2001, que eu fui no dia 8 de agosto para o polo, eu andava com 100 reais para comprar uma galinha, não tinha. A partir do momento que a gente passou a desenvolver os projetos de avicultura, porque havia uma necessidade. Você sabe disso, o nosso caboclo tem muito peixe, mas não tinha uma proteína para complemento alimentar. Então, foi quando o prefeito resolveu a gente doar os projetos A e B, que são pintos, que variam de 25 para cima. A gente trabalha com patos também, carneiros, para ele ter outras fontes. Isso deu uma evoluída. Hoje você anda em qualquer canto da cidade, você vê um retorno muito grande disso, das comunidades. Hoje as comunidades, todas têm escola, as comunidades hoje tudo têm telefone celular, todas têm parabólica, hoje é só informar. Então hoje evoluiu muito do tempo que nós chegamos, praticamente há sete anos.
P1 – Eu queria que você contasse um dia típico, uma rotina de um dia típico da sua vida, que horas você acorda, o que você faz durante o dia como técnico.
R – Como técnico? A nossa rotina é assim: a gente tem um barquinho, ele tem 12 metros. Daí a gente acorda, a gente mora num polo. Eu dizia assim: “Hoje eu vou visitar as comunidades do Pupunhal.” É só um exemplo, é um rio que nós temos aqui no município. Acordava bem cedinho, seis horas da manhã, pegava, colocava o meu bagulho, fazia meu almoço tudinho, colocava no barco, funcionava e ia para o Pupunhal. No Pupunhal, por exemplo, tinha quatro comunidades. E eu falava com os coordenadores, com os produtores tudinho, via a necessidade deles de muda ou necessidade quando era época de plantio, quando era preparo de área, via a necessidade deles. Trazia tudinho, ia guardando e voltava para a sede. Às vezes, não dava para voltar, ficava até, dormia nas comunidades, no outro dia, voltava para a sede, e ia pegando os relatórios das comunidades, com ficha de reunião, onde a gente vai, para eles assinarem, né? Todos os nossos produtores hoje de Maués, quase todos, eu digo assim, 90% são cadastrados com ponto de GPS na propriedade. Então isso é fácil de a gente trabalhar. Daí essa era uma rotina praticamente. A gente passava, mais ou menos, uma média de 25 dias no interior e cinco a gente vinha para a cidade, que era para receber, pegar o que tinha de demanda, ver o que ia ser a necessidade das pessoas nas comunidades, e a gente voltava de novo. Essa era uma rotina que a gente tinha.
P1 – E você trabalhou como orientador da comunidade Vera Cruz, né?
R – É, eu era técnico do polo um. Eu tinha 28 comunidades. Daí todas essas comunidades Vera Cruz, todinho, que são 28 comunidades. Fui, eu era o técnico da propriedade de vários produtores. Lá tinha um total, na época, de 60 famílias. Daí eu dava assistência para várias pessoas lá. Que você sabe, oferecer assistência, muitas vezes, como é de graça, as pessoas não querem, elas querem ver resultado. Mas a gente trabalhava ali, debatia com eles. Hoje, você vê, quando a gente volta lá, tem uma consideração muito grande, você é muito reconhecido hoje pelo seu trabalho que você faz. Então, isso é muito vantajoso, isso é um mérito que a gente tem de dizer: “Oh, nós estivemos aqui.” Que esse é um trabalho pioneiro no município e no Amazonas também. Isso não existe, que um município tenha técnico em cada lugar da região não existe. No Amazonas não tem, e aqui em Maués é pioneiro. Então esse é um sistema que a gente pode dizer: “Sou orgulhoso porque eu estou contribuindo, o meu município está mudando.” É lógico que quem trabalha no setor primário não muda da noite para o dia. Então, os frutos que nós estamos levando eu sei que daqui mais, eu sempre digo: “Em 2008, 2009, você vai ver uma safra de guaraná grande, você vai ver resultado.” E essas pessoas que estão plantando, você vai vendo muita coisa, muita mudança. Então isso, que hoje para mudar assim um setor primário no município... Eu estava lendo na história da Noruega, são vários anos. Estava vendo agora o outro recente aqui, do Vietnã. Então, são histórias que a gente vê que não é da noite para o dia, mas tenho certeza que a gente já mudou muito a estrutura, o jeito de ser da nossa cidade no setor primário.
P1 – Mesmo estando trabalhando para a Prefeitura, você mantém ativa a atividade do guaraná com a família?
R – É, mantemos. A gente tem um irmão que trabalha. Ele tem um pouco de gado e ele que dá assistência no terreno. O meu pai hoje tem um total de 100 hectares, sendo 25 de campo, e nós temos quatro hectares de guaraná. Vai passando assim de pai para filho, vai passando pela gente, que fica no Rio Pupunhal, uma propriedade que a gente ainda tem. Mas é um irmão meu que administra. Eu dou assistência mais como técnico mesmo, mas é o meu irmão que para na propriedade, é ele que faz a limpeza, tudinho. É ele que é o responsável.
P1 – Mas você sabe beneficiar o guaraná?
R – Sei, eu sei todo o processo do guaraná. O trabalho, como eu estou te falando, hoje todo técnico profissional é bem capacitado. Aqui nós temos a Embrapa, que é um termo de pesquisa muito importante, e você faz todo o processo. O que a gente faz hoje? A gente acompanha o produtor desde a escolha da área até a colheita, até a torrefação, até a venda dele, que é a indicação para compra na AmBev. Então, a gente faz todo esse processo para ele. Se ele é o técnico de lá de um polo e você vai: “Oh, esse ano estamos em agosto, setembro, vocês vão preparar a área. Quem vai plantar guaraná?” Então, o produto é cadastrado, o qual a gente está distribuindo agora, que é o período ideal para o plantio. A gente começa a fazer o roçado, a gente escolheu a área junto com eles. Daí eles vão fazer o roçado, vão queimar entre setembro e outubro, novembro e dezembro, o plantio da roça, que aqui sempre eles trabalham com duas culturas, que é o guaraná e a roça. Eles plantam a roça e depois plantam o guaraná, entre janeiro e fevereiro e março. Então, é esse processo.
P1 – Mas você aprendeu com quem essas técnicas que você ajuda agora a ensinar?
R – Eu aprendi com o meu avô, comecei com ele bem cedo, bem novo mesmo. Ele morava, tinha um terreno aí também no Pupunhal. Daí ele nos ensinava, ele levava a gente para o guaranazal. Naquele tempo, era assim, as pessoas mais velhas ensinavam mesmo, tinham uma paixão pela agricultura, diferente dos jovens e das pessoas de hoje. A gente tenta colocar na cabeça que é bom ele investir na agricultura, que ele vai ter bom lucro. Naquele tempo eles trabalhavam por amor. A produção de guaraná de Maués era muito grande. Depois caíram os preços. Eu com o meu avô, a gente andava direto. Eu era, como sou o neto mais velho, então tudo era, o trabalho era eu que fazia. Naquele tempo, tinha que andar com um paneiro nas costas. Ele ia apanhando, ele ia colocando no meu paneiro e ia levando para casa. Naquele tempo, os guaranazais eram bem limpos, tinha bastante fruteira, que eles plantavam muito. Daí era muito divertido. Então, isso era, fazia um acompanhamento. E geralmente é assim, quando a pessoa é velha, ele ia, a gente ia para o guaranazal, depois ele ia pescar. Sempre o neto serve de contrapeso na canoa, ele está pescando lá na frente, a gente que faz o contrapeso lá atrás. Então, era muito interessante, e a minha vida quase toda, logo cedo, logo no começo da minha vida, eu morei com eles, com os meus avós mesmo. A minha mãe me deu para eles, aí, graças a Deus, eu fui acompanhando eles tudinho e fui aprendendo, desde a colheita, como fazer o beneficiamento, como fazer a lavagem, como fazer a classificação, como fazer a torrefação, todo o processo, como ensacar, tudinho. Então, isso vem desde cedo mesmo. Daí agora a gente, como técnico, foi aperfeiçoando, que tudo existe tecnologia, tudo existe técnica. Hoje nós somos técnicos bem capacitados. Sobre a cultura, graças a Deus, a gente domina bem para dar qualquer explicação para qualquer produtor, mostrar para ele desde o plantio ao processo da colheita até a torrefação e depois a venda para o mercado.
P1 – Essa especialização, esse aperfeiçoamento, você aprendeu onde, com quem?
R – Isso é porque todo ano nós temos treinamento. A gente sempre vai fazer capacitação na Escola Agrotécnica Federal. Nós temos, aqui em Maués, a Embrapa, ela traz os seus pesquisadores, as pessoas que trabalham com isso mesmo, engenheiros. Nós temos uma reciclagem todo ano que vai, porque todo ano existe uma mudança, melhoria do guaraná, melhoria de clone, muda, essas coisas, adubação, o jeito de torrefação, colheita, o método certo, domínio das pragas e doenças. Isso todo técnico recebe certificado, ele participa. Então, todos têm uma boa capacitação.
P1 – Então, conta pra gente, no seu entender, no seu conhecimento técnico, todos os passos, desde o plantio até a finalização, para ter um guaraná de boa qualidade. Quais seriam esses passos?
R – É, o guaraná de boa qualidade é assim. A gente vai lá, mostra para o produtor que muitas vezes ele quer colocar o roçado dele onde tem muita saúva. Isso é ruim, a gente sempre tem que dizer que onde tem praga não adianta. A gente vai lá, ajuda ele a fazer o roçado, mostra para ele a melhor área, como é o corte das árvores, como é a derrubada, como é feita a queima. Depois, vem o esquadrejamento da área. A gente mostra tudo direitinho, o espaçamento é cinco por cinco, a cova é 40 por 40. Ele, fazendo daquele jeito, fazendo a limpeza, ele vai produzir um guaraná de qualidade. Chega na safra, a gente vai. Para o guaraná ser bem selecionado, ele vai, faz a colheita, faz todo aquele beneficiamento. E o que é para sair o guaraná de qualidade? Geralmente, querem que o produtor torre num forno de barro, que fica com mais qualidade. E, para não ter aquele problema de guaraná de má qualidade, porque a gente ensina eles a classificar o guaraná. Você torra primeiro os grãos maiores e depois os menores, aí fica um guaraná de qualidade, para não deixar queimar. Tem uns que têm o costume de torrar. A gente sempre mostra, com água fica interessante. O guaraná cozinha primeiro, depois ele torra, fica muito, o guaraná fica um guaraná de primeira, fica um pó que você sente o cheiro a distância, se você colocar, você sente o aroma dele. Então, esse é o patamar para você chegar a um guaraná de qualidade, que ele sempre faça isso, faça tudo direitinho, e a colheita, isso é o principal.
P1 – E qual é a época do plantio?
R – A época do plantio, a gente trabalha em janeiro, fevereiro e até o meado de março é o período ideal, que aqui na nossa região é o inverno, que eles chamam. É o ideal para o plantio de qualquer cultura.
P1 – E qual o tipo de terreno para o guaraná?
R – Aqui, o nosso solo do município de Maués é arenoso e argiloso. O guaraná que em todos, que nós experimentamos, todos eles dão bem, ele não sofre muito, ele aceita bem. É uma cultura que é resistente, ela aceita bem. Agora, o principal é o que a gente sempre passa para eles, que a planta, assim como nós, se a gente só plantar lá e não cuidar, né? A mesma coisa nós. Se a gente ficar lá, se a gente não se alimentar, comer, a gente vai ser um cara fraco, um raquítico, a gente não vai trabalhar. A mesma coisa a gente vai passando para eles. Se eles plantarem, eles cuidarem, eles vão ter o benefício depois. Que eu sempre passo para os nossos produtores que o guaraná é o décimo-terceiro deles, porque ele só dá geralmente no final do ano, novembro e dezembro, e agora um pouquinho de janeiro, você vê que tem vários guaranás. Mas a safra é entre novembro e dezembro.
P1 – É essa época da colheita?
R – É, exatamente, e isso seria o décimo-terceiro deles.
P1 – Outra coisa que eu ia perguntar. Você planta por semente ou por muda? O que você recomenda, quais seriam as técnicas, qual seria?
R – É, a gente recomenda... Hoje a tecnologia está globalizada, né? Você sabe disso, que hoje, se a gente ter uma coisa que seja mais rápido, a gente oferecer para o produtor tecnologia, seria mais viável. Mas não quer dizer que os nossos antigos produtores não plantem como era de primeiro, que são as de semente. Tiravam aqueles fios debaixo das plantas e iam lá e plantavam. Mas hoje a gente aconselha o quê? O de semente vai ficar entre quatro e cinco anos esperando. E, hoje, com a tecnologia, ele pode, no terceiro ano, já estar produzindo guaraná. Então, tem vantagens para ele. No nosso entender como técnico é sempre oferecer o melhor pra ele. Quanto mais rápido ele tiver o retorno daquele trabalho que ele teve lá na propriedade dele, é muito mais vantajoso, não é verdade?
P1 – E isso não interfere na qualidade do produto? Sendo por semente ou por muda, é igual a qualidade do produto no final?
R – A qualidade do produto? Não, não interfere em nada, não. Porque geralmente, quando você trabalha com muda de estaquia, ou clonada, como se chama, mas por estaquia mesmo, é preciso você fazer a adubação, essas coisa todinhas. Hoje a gente trabalha com composto orgânico também. Mas ela não altera quase a diferença.
P1 – É isso o que eu ia perguntar. O adubo é orgânico ou é químico, que vocês usam?
R – Geralmente, aqui, os produtores usam os dois. A gente aconselha, geralmente, que hoje, você sabe disso, o mundo quer que trabalhe sempre o valor, agrega mais valor é o orgânico, aquele que você não usa produto químico. A gente aconselha que eles façam o composto orgânico, a gente aconselha tudinho, que eles trabalhem com isso. Mas há ainda adubação química em vários guaranazais no município, a produzirem.
P1 – Quanto tempo dura um guaranazal, quanto tempo vive um guaranazal?
R – Hoje, com a Embrapa, e a gente tem estudo, vou só te dar um exemplo do meu avô. Ele tem, o do meu pai tem mais de 30 anos, o do meu avô tem mais. Então, hoje te daria assim, um guaraná equivale a tantos anos, isso varia muito. Porque uns, tu sabe, eles demoram de 30 a 40, assim como eu estou te falando. Os meus avós, os dos meus pais já têm mais de 30 anos. Então, isso aí hoje te dá uma estimativa. Eu acho, no meu ponto de vista técnico, já vi guaranazais que têm mais de 50 anos, pessoas que já são mais velhas, muitos produtores bons aqui do município, que tem uns que têm 91 anos, eles já trabalham há um bocado de tempo. Isso porque tem muito guaraná que tem muito mais tempo do que isso.
P1 – Quando que se sabe que o guaraná está no ponto para ser colhido?
R – A gente sabe, o processo dele é assim, tem a safra dele. Dos cachos você vai tendo a frutificação dos cachos todinhos. Então, você vai observando, eles vão abrindo. Daí você já sabe que ele está no período ideal para colheita. Eles vão abrindo aquele bago. Ele abre tipo um olho, daí você já sabe que os cachos vão abrir uma sequência.
P1 – E aqui a colheita é feita em mutirão? Qual o processo de colheita?
R – A colheita aqui? Como a safra, você tem que fazê-la meio rápida, porque, você sabe, um hectare são 400 pés de guaraná. Se você for tirar assim, demora um pouco. Então, geralmente, um troca dia com o outro, ou outras pessoas que têm condições, mas pagam o dia do outro. Mas é assim, geralmente, é mais por mutirão mesmo. Um ajuda o outro, que é para você não perder. Porque, quando ele está maduro, já no cacho, eles vão caindo tudinho. Então, isso é prejuízo. A gente faz isso, mutirão, ou às vezes contratam pessoas para ajudar mesmo, período ótimo que ajuda as pessoas.
P1 – E aí trabalham mulheres, crianças também?
R – Mulheres, crianças, toda a família ela engloba fazendo esse trabalho.
P1 – Mas tem alguma função específica para mulher, diferente para criança, ou é tudo igual?
R – Tudo é igual. Porque aqui é assim, a gente trabalha com a família. Todos os produtores. Sempre é o pai, a mãe e os filhos. Esse trabalho todo é em conjunto mesmo. Isso já vem mesmo de geração.
P1 – Conta, então, na parte técnica, como é que é a secagem dos grãos?
R – A secagem dos grãos? Porque a gente trabalha assim: você colheu, você deixa ele desidratar. Você traz num paneiro ou num saco, você deixa de um dia para o outro. Ele vai ficar desidratado, no qual o nosso produtor costuma, geralmente, pisar. Daí ela vai soltando toda aquela película, que tem tipo uma remela branca, e a casca, ela vai soltando tudinho. E o produtor coloca no seu paneiro, daí ele vai no rio, ele fica lavando a casca. Ele vai separando, e ficam só os grãos mesmo, prontos para ir para o forno, que pode ser torrado no forno de ferro ou no forno de barro.
P1 – Da secagem, da torragem dos grãos até o bastão, quais são as etapas?
R – Bem, daí você torrou, você fez a classificação dele, né? Isto é, torrou entre uma fornada, entre quatro a seis horas, que demora no forno. Ficou bem torrado, o produtor sabe o tempo todinho. Daí sim vem o processo, tirar o casquilho, para ele ficar bem soltinho dentro. Você vai tirar o casquilho dele. Hoje os artesãos aqui da nossa cidade usam o pilão, mas já tem aquilo que você pode moer mais rápido, já tem máquinas para fazer esse processo. O bastão é pilado mesmo, você separa os grãos. Quando você quer fazer um artesanato bem limpinho, sempre ficam os grãos mais negros e os grãos mais brancos. E você classifica, tudo é classificado. O pó, sendo de qualidade, classifica também. Depois que você tirou o casquilho, ficaram só os grãos, quando você coloca na sua boca, dá um amargo gostoso. Você fica horas e horas, quando a gente doa para as pessoas, na festa do guaraná. Depois você faz esse processo. Selecionou tudo, ele vai para o pilão e daí ele faz tipo uma argamassa. Daí a criatividade do artesão é que cria tudo, muitas coisas interessantes e bonitas que são feitas com guaraná. É uma massa, é tipo aquela massa de brinquedo de criança. Eles têm criatividade. É a mesma coisa o artesão, que ele quer muitas coisas bonitas.
P1 – E, do bastão, para ficar em pó, como é que faz?
R – Do bastão é a mesma coisa. Você levou para o pilão também, você pilou, aí você faz o bastão e você tem que levar para um fumeiro. O fumeiro vai defumar o teu guaraná por alguns dias para ficar, que tudo tem uma técnica. Se você não souber fazer o teu bastão, poucos dias dá um fungo, ele não presta. Tem que ter um processo naquele fumeiro, que geralmente é um jirau que você faz, fechado, e aí você só deixa aquela fumaça, ele fica defumando ali dentro. Daí tem esse processo que eu te falei, que demora entre três e quatro dias. Daí sim, daí o bastão vai testar tudinho. Tem um barulho que você conhece. Você bate um com o outro e você já sabe que está um bastão de qualidade, no qual, depois, você vai usar a língua do pirarucu e vai dar aquela raspada.
P1 – Você, como técnico, então você acompanha. Na época da colheita, você vai até as comunidades e as ajuda. Como é que funciona na época da colheita?
R – É. Os técnicos do polo te dão toda assessoria, desde o plantio até a colheita, como eu estou te falando. Que o nosso trabalho, a gente nunca abandona o produtor, que o principal é isso, dizer para ele que os compradores estão comprando, se ele fizer o produto dele de qualidade, vai ter mercado. Que é isso, que a empresa que compra é exigente. Daí a gente tem que estar sempre lá com eles justamente para isso: “Toca teu guaraná direito.” Porque tudo isso tem, para ver se o guaraná está bem torrado, se uns deixam meio úmido para pesar mais, tudo isso a gente tem que orientar, porque tem um teor de umidade que a gente tem que deixar. Então, tudo isso é bom o técnico estar lá porque ele orienta: “Se tu fizer o teu produto de qualidade, tem mercado e as pessoas vão comprar de ti. Se tu fizer um produto que não seja bom, qualquer pessoa que conhece o guaraná já vai descartar o teu produto.”
P1 – Quando a comunidade tem uma queixa, uma reclamação ou alguma demanda, eles falam para o técnico?
R – Com certeza. Eles falam para o técnico, geralmente dão um documento. Daí o técnico traz. O secretário de produção vai até o prefeito. Geralmente, tem queixas, muitas vezes até do próprio técnico, você sabe. Às vezes, um município é muito grande, não dá para você dar assistência para todos os produtores. Hoje, o nosso município tem mais de, quase quatro mil e poucos produtores, e aí você não tem condições. É um polo com muitas comunidades. A média de produtor por comunidade é 40, 50. Então, são muitos e não dá, e geralmente vem a reclamação. E, quando eles estão solicitando algum material, eles passam pro técnico: “A nossa comunidade está precisando de um centro social.” Eles passam. “Tem que tirar a madeira, tem que fornecer isso.” Daí o prefeito, o secretário passa para o prefeito, o prefeito dá o retorno, a gente leva para a comunidade.
P1 – Você, como técnico, já viu coisas, superstições, crenças que as pessoas fazem para o guaraná crescer mais, para ficar melhor, alguma coisa assim?
R – Crenças, superstições? Superstições tem aquela, né? Tem produtor que não deixa tirar fotografia porque ele acha que não vai produzir o guaraná. Mas o resto, superstições mesmo, não tem.
P1 – Rezas?
R – Não, isso aí a gente nunca...
P1 – Você acha que a maneira de fazer hoje o guaraná, que você está contando a maneira como você conhece, é muito diferente do primeiro contato que você teve quando começou a mexer com guaraná, como se fazia antigamente?
R – Com certeza, muito diferente. Antigamente, o meu avô colhia aqueles paneiros, que naquele tempo produzia muito. Ele virava a madrugada torrando tudinho. Hoje já é queimado para despolpar, hoje já é tudo mais moderno para o produtor que está equipado no município. Ele tem a despolpadeira. Naquele tempo, tudo era na mão. Então, houve muito esse avanço hoje. Naquele tempo, era difícil, não existia isso, era tudo na mão mesmo. Hoje não, a despolpadeira, tu coloca lá vários paneiros. Você vai, já separou o grão da polpa, da casca.
P1 – Esse avanço técnico você deve à Embrapa, à AmBev? A que se deve esse avanço técnico?
R – A que se deve isso?
P1 – É.
R – Se deve porque, você sabe, a tecnologia está aí, graças à Embrapa, que vem mostrando o método, à AmBev também, à Fucap [Fundação Centro de Análise, Pesquisa e Inovação Tecnológica] que tem no município. Quando a gente deu o treinamento em quase todas as comunidades, como usar o equipamento para fazer o trabalho.
P1 – Esse guaraná que você disse de estaquia é chamado de clonado pela população?
R – É, aqui pela população é chamado de clonado.
P1 – E você o considera melhor, pior, em termos tanto de produtividade quanto de qualidade? O que você considera?
R – A gente considera o quê? Que, quando você faz o processo bem feito, ele dá um resultado gratificante para o produtor. Nós temos vários produtores modelo. Quando chega o final do ano, tem um dia de campo aqui no município, no qual a gente dá brinde para vários produtores modelos, no qual a tendência de um guaraná desses que a gente faz é, para ele, 1 hectare cada planta para produzir 1 quilo, e nós temos vários produtores bons. Mas é aquilo que a gente fala, tem produtores bons e tem produtores que não seguem a cartilha tudinho. Mas, hoje, te dizendo assim, com a tecnologia, é muito mais vantagem você trabalhar com um guaraná que vai te dar mais rápido. Agora, você tem que fazer todo mesmo, todo o processo, como a gente passa para eles. Daí o produtor tem mesmo um retorno grande.
P1 – Mas essas pessoas que não seguem, elas não seguem por quê? Resistência, ou por falta de recursos? Por que?
R – É. A maioria é por falta de recursos. Porque o guaraná você tem que fazer uma limpeza pelo menos três vezes ao ano, três a quatro limpezas. Isso requer custo, daí eles não fazem, e daí tudo isso gera o quê? O guaraná fica muito no mato e fica assim. Por exemplo, o mato fica concorrendo com a planta. E, é claro, ela não vai produzir o que era esperado para ela.
P1 – Quem são os compradores do guaraná hoje em dia?
R – Aqui no município?
P1 – Isso.
R – Aqui, hoje a gente tem, no qual a gente faz parte do projeto, a AmBev, a Coca-Cola também compra, várias outras empresas de fora. Há alguns anos tinha a Samaúma, uma empresa que comprava para vender pra fora.
P1 – E pessoas privadas, tanto estrangeiros, como do Brasil, também compram bastante?
R – É, compram bastante. Tem várias pessoas aqui que vendem por internet, as pessoas que vendem para Mato Grosso, muitas pessoas mesmo que vêm aqui no município. Então, solicitam, daí é enviado para o Mato Grosso bastante. Principalmente para o Mato Grosso, eles compram bastante. Eles vão vendo, porque todo ano tem um evento importante aqui, que é a festa. Daí isso é registrado para todo o Brasil, e você recebe um retorno, muitas ligações depois sobre como você vai conseguir, como é o produto. Então, tem várias encomendas. Tenho um cunhado que viaja o Brasil representando o município, no qual ele leva várias para mostrar o guaraná verdadeiro de Maués, que é uma diferença muito grande que você encontra, até na capital do Amazonas também. O guaraná que a gente vai tomar é uma diferença muito grande, eles misturam com outras coisas, café, outras impurezas. Você, que é de Maués, você conhece, você trabalha no dia a dia, toma guaraná quase toda manhã, você conhece. Onde você chega, você diz logo aquilo.
P1 – Além disso que você falou, de produtores colocarem várias impurezas, também tem que em outros estados é diferente, o guaraná é diferente?
R – É, com certeza.
P1 – Por que? Você, como técnico, por que você acha que é diferente?
R – Porque a Embrapa faz pesquisa disso, a qual ela repassa para a gente todo ano. Ela diz que o da Bahia, do Mato Grosso, que são os maiores produtores, o teor de cafeína é muito baixo em relação ao nosso. O nosso tem um percentual quase 5% maior do que os outros que são produzidos no Brasil.
P1 – Mas por que será que acontece isso? É o clima, é o solo?
R – Segundo os pesquisadores, é a variedade mesmo, é o tipo de guaraná que é diferente, que foi adaptado aqui na região. Ele é bem melhor do que os outros que foram adaptados nas outras partes do Brasil.
P1 – Você conhece a história do plantio do guaraná em Maués, da família Negreiros, por exemplo? Você conhece?
R – É, eu conheço bem pouco, que é do tempo dos meus avós ainda. A família Negreiros era mais popular, tinha muitos e muitos hectares. Daí o meu avô, toda a safra que produzia já sabia que era para a família Negreiros. Naquele tempo, a gente produzia muito, ajudava o meu avô a costurar saco e mais saco. Comprava mercadoria, porque era difícil, a cidade não existia quase. Daí, me lembro assim, os meus cinco, seis anos. A família Negreiros era tradicional, a família que mais tinha guaraná, que tinha quase tudo no município. É a lembrança que eu tenho.
P1 – Nos anos 80, teve uma alta nos preços muito grande, né?
R – Com certeza.
P1 – Conta um pouco dessa época.
R – Essa época, porque naquele tempo tinha bastante guaraná. Daí conseguiram elevar o preço a 23, 25 reais, um preço bem chamativo mesmo, para as pessoas. Mas tinha bastante. O que leva... Porque o guaraná, acompanhando como um técnico, tem ano que ele dá bem, tem ano que ele dá uma maneirada, tem ano que ele produz bem. É assim. Esse ano ele produziu bem, tinha preço para as pessoas.
P1 – E, nos anos ainda 80 e 90, teve uma praga que dizimou grande parte, me conta um pouco disso.
R – Ah, é. Porque, hoje, os guaranazais são diferentes dos meus avós, diferentes, não havia doença. Hoje, há um índice muito grande também de pragas e doenças, que é o tríplice, é tipo uma pulguinha pretinha que vai sugando a folha. Outra doença, antracnose, que é o superbrotamento. Tudo isso prejudica a produção. Isso prejudicou muito nessa época, que teve uma epidemia mesmo. Daí vieram as pesquisas, por meio das quais se foi fazendo melhoramento e, hoje, graças a Deus, existe, existe, mas ela já é mais amena. Mas é uma praga que quando ataca...
P1 – Ela é controlada borrifando?
R – É, com certeza, você usa produtos químicos.
P1 – Você já ouviu falar de alguma história, de uma tentativa dos japoneses, na década de 20, 30, de plantar guaraná aqui em Maués?
R – Não, nenhuma.
P1 – Bom, você é descendente de Saterés-Mawés por parte dos seus avós?
R – É, por parte da minha avó. Ela era, não sei se era Sateré, mas sempre que ela falava para a gente, porque o meu avô era português, e ela era descendente de índios. Mas não sei te informar se era Sateré, porque os Saterés, eles tinham toda a região de Maués, e os meus avós eram de outra região. Eu não sei te informar se eu sou descendente de Satarés-Mawés, mas tudo indica que sim.
P1 – E eles foram os primeiros a cultivar e se beneficiar do guaraná?
R – Com certeza, eles foram os primeiros aqui a cultivar.
P1 – Como que é o guaraná deles hoje em dia?
R – O guaraná deles, porque é uma área, você sabe, área de reserva indígena é complicado até para você entrar. Você tem que ter autorização. Hoje, lá, eles não aceitam muito, eles destacam, só têm que ser nativo mesmo, aqueles deles antigos. A gente conversa com pessoas de lá, mas, para você entrar na área, eles não deixam. A gente sabe que o mercado que eles têm é bom, paga um bom preço para eles. São essas informações que têm. Mas é igual aos outros nossos, que nós temos, porque às vezes tinha índio que vinha comprar fora para justamente vender junto com o produto deles.
P1 – Eles vendem como selo verde, é isso?
R – É. Eles têm uma empresa que compra deles. E daí, como o deles, se diz assim, é guaraná orgânico, porque não levou nenhuma adubação química, não levou nada. Então, isso é muito importante. Hoje, você sabe que o produto, requerem muito esses produtos orgânicos nos mercados.
P1 – Eles vendem para fora do país?
R – É praticamente tudo para fora.
P1 – E como é o relacionamento da população com os indígenas? Eu sei que não dá para entrar lá, mas eles vêm para Maués bastante?
R – Bastante, eles vêm para Maués. Nós temos um técnico também que cobre toda a área, que fala a língua deles, o dialeto. Daí, ele passa muita informação da gente. Normal, eles vêm na cidade, o técnico dá assistência para eles lá. Normal a convivência aqui, eles têm a casa deles aí. É aquele negócio, ninguém mexe com ninguém. Somos todos iguais. Mas aqui é normal isso. Você vê muita etnia aí no porto, aqui nas ruas. É normal a convivência.
P1 – E, fora o guaraná, você acha que tem hábitos ou costumes na população de Maués que vieram dos indígenas, algum outro hábito, fora o de tomar guaraná?
R – Tomar o guaraná?
P1 – Além desse.
R – Esse foi o principal, porque todos nós sempre ficamos com este, que eles tomavam o çapó e nós depois viemos, com o costume, e tomamos sempre. Porque, na linguagem deles, é o çapó, para nós é o guaraná ralado. O deles é ralado na pedra e tomado na cuia, o nosso é ralado e tomado no copo. É esse aí.
P1 – Conta um pouco da festa do guaraná.
R – A festa do guaraná é um evento bonito que nós temos aqui, sempre nas últimas semanas de novembro. Nós temos uma praia bem limpa, maravilhosa, na qual se reúne o prefeito, um evento para reunir as comunidades, as pessoas, os turistas. É realizado na praia o evento, sempre tem atração de fora, sempre tem a lenda do guaraná. Você tem ali um barracão para lhe mostrar todo o processo, o guaraná é dado para você de graça com mel, com mel de cana, com mel de abelha, com várias misturas, para você provar que o guaraná pode ser tomado de várias maneiras. Então, é um evento muito bonito que tem aqui no município, ao qual vem muita gente de fora. Todas as pessoas que conhecem vêm, graças a Deus. Todo ano, sou um dos responsáveis pelo barracão do guaraná. O barracão é um barracão que a gente monta na praia mesmo, que vai todo o processo. Leva desde a planta, daí a gente faz, tem a colheita, tem a lavagem, tem a secagem no forno, tudo ao vivo. Vem pilar, vem moer tudinho. Faz artesanato, faz o bastão, faz tudo. Então, o processo todo ao vivo lá. Todo o processo que o produtor faz lá na propriedade dele é feito na praia. É uma das melhores atrações que o povo gosta, os turistas. A gente vai dando guaraná porque é energético, gostoso. Daí, quando tem atração nacional, eles ficam muito ativos.
P1 – E lá na festa, eles encenam a lenda do guaraná?
R – Exatamente, a lenda do guaraná.
P1 – Conta pra gente a lenda.
R – A lenda, né? A lenda a gente conhece assim: uma índia muito bonita, a qual se apaixonou por um outro guerreiro de uma outra tribo. Só que os pais não queriam aquilo. Houve uma tragédia, da qual, depois, ela veio a se matar. E daí que brotou, dos olhos dela, a planta do guaraná.
P1 – Fala uma coisa, o que muda na cidade de Maués na época da colheita do guaraná?
R – O que muda é porque fica agitado. Todas as pessoas estão em época de colheita, estão vendendo. Toda hora você vê saco de guaraná chegando, saindo, descendo para ir para Manaus, para ir para a AmBev, para ir. O produtor está chegando no seu rabeta para vender na cidade. Então, há uma agitação muito grande, aquela circulação de dinheiro. Você vê um movimento muito grande. A maioria é bem rápido porque tem que voltar para ir colhendo o resto, porque é assim que eles trabalham. Uns vendem no final da safra. Agora, devido à necessidade, muitos, logo que terminam de fazer, torrar, eles deixam esfriar, colocam num saco e já vêm para a cidade vender. É uma movimentação muito grande. Os barcos geralmente chegam domingo aqui na cidade, das comunidades, e você vê uma movimentação muito grande nesse período.
P1 – E o senhor consome guaraná? Você toma guaraná?
R – Tomo guaraná.
P1 – Todo dia?
R – Todo dia.
P1 – Quantas vezes?
R – Só uma mesmo, só de manhã, porque eu não tenho o costume de tomar café. De manhã, é o guaraná que eu tomo. Ele me deixa ativo o dia todinho, porque eu sou energético. A minha profissão é assim, você nunca para, você tem que estar sempre. Ele não dá fome para você, principalmente eu que sou acostumado. Tomar de manhã, eu posso passar o dia todinho trabalhando que eu não sinto nem...
P1 – E quanto que você toma?
R – Eu geralmente tenho aquela colher de chá, eu tomo uma colher cheia com um copo mais ou menos de 160 mililitros. Tomo geralmente sem açúcar, que ele faz mais efeito ainda, que ele fica bem forte.
P – E, fora esse benefício de ficar mais energizado, que outro benefício traz para você?
R – Meu amigo, eu te garanto que ele é um energético que te dá uma... Hoje, falando com sinceridade, tenho 38 anos, mas eu não me troco por um garoto de 18, 19 anos, segundo as mulheres. Que ali você está sempre com saúde mesmo, e você tomando aquilo, porque ele é um estimulante. Eu tomo para justamente manter sempre aquele preparo, o corpo bem jovem, não sinto nenhum problema. Porque ele é um estimulante, ele estimula mais. Às vezes, quando você quer fazer uma estripulia, você toma à noite, aí você se segura mesmo, porque ele é muito forte.
P1 – Conta uma estripulia que você quis fazer tomando guaraná.
R – É, estripulia assim. Às vezes, você quer fazer uma balada na noite, sair mesmo para curtir, se divertir com uma, duas, três. Aí, você toma um copo de guaraná. Se você vai dançar, teu corpo começa a ter aquela energia mesmo. Os turistas tomam muito na festa. Quando vai começar a atração, tem um barracão que a gente vai doando. Daí eles vão lá: “Eu quero, agora eu quero com mel, quero com isso.” Porque vai começar a atração nacional, todo mundo quer se soltar mesmo. Que ele é energético, ele vai ativando, você sente logo na corrente. Quando você não é acostumado, ele vai te dar um suador, tu vai sentindo aquela energia, que ele é ativo na corrente sanguínea, que o teor de cafeína é muito alto. Então, ele é um energético ativo.
P1 – E ele tem uso medicinal também?
R – Com certeza, que são muitos. Os avós da gente usavam para a gente, para curar dor de barriga. É muito bom.
P1 – Para dor de barriga, o que mais?
R – Dor de barriga, e tem muita utilidade, que as pessoas têm como crença, para passar uma dor de cabeça, para várias coisas.
P1 – Mas é tomado igual, só água e guaraná?
R – Só água e guaraná mesmo.
P1 – E pode fazer mal?
R – É, para a pessoa que não é acostumada, sempre a gente aconselha, como dizia na festa, aqueles eufóricos, a gente sempre dizia assim: “Não, tem que tomar esse tanto porque é aconselhável você tomar, porque, quando não é acostumado, baixa a tua pressão.” A gente tem vários casos porque, como eu estou te falando, eu acompanho o movimento na festa. Então, já tive vários casos de dizer: “Olha, baixa a pressão porque você não é acostumado. Você toma, você sabe, o teor de cafeína é muito forte. Daí baixa a tua pressão.” Então, a gente vê muito isso aí, esses turistas que vêm de fora. Acontece.
P1 – E aí, a pessoa só passa mal, mas só isso?
R – É, ele vai te deixando nervoso, aquele negócio tudinho, mas depois ele vai passando. Ele é um ativo. Ele passou pela tua corrente sanguínea, mas depois ele normaliza.
P1 – Você conhece alguma história boa dessas, aconteceu alguma coisa com alguém? Conta para a gente uma história de alguém que passou mal, que tomou demais.
R – Ah, aconteceu na festa. Porque eu sou responsável pelo barracão, fico analisando tudo. A gente tem as moças servindo guaraná para as pessoas todo o tempo. Daí a gente vê muitos, aqueles que vêm de novo: “Ô, arruma aí!” Eles querem um carocinho para ficar embaixo da língua, que vai dando um sabor, depois você pode beber a cerveja que a cerveja fica gostosa. Daí chegou, que muitos turistas, a gente manda eles escreverem lá. Depois, prepara um daqueles mesmo, considerável. Eu coloquei para ele amendoim, coloquei o guaraná em pó, coloquei o mel de abelha, coloquei o mirantã. Depois, o caboclo passou perto de mim, era uma tremenda nove horas da manhã, ele estava suando, suando: “Me arruma água que eu estou passando mal.” Daí eu falei pra ele: “Eu vou te abanar aqui. Isso é o guaraná que tu pediu, tu não é acostumado.” Haja abanar ele, que ele, eu cheguei, ele estava suando frio, eu cheguei, ele estava branco. Que, quando você dá muito forte, mas ele queria. Então tem muitos desses casos, a gente registra muitos aí no tempo da festa.
P1 – Ernandis, a gente está procurando também causos, histórias da cidade ou envolvendo o guaraná. Conta para a gente algum causo, alguma coisa interessante.
R – Um caso? A gente viaja muito, que a gente escuta muito. Mas para lembrar assim... Porque eu gosto sempre de ir anotando tudo o que se passa nessas histórias. Tem muita história interessante. Lembrar alguma agora... Não estou lembrado de nenhuma agora para ti. Deu um branco mesmo.
P1 – Nenhuma que aconteceu com você nas viagens, nada?
R – Não, não.
P1 – Ou mesmo na festa do guaraná. Dizem que lá tudo acontece.
R – Lá tudo acontece, isso que eu estou te falando, porque é muita gente, e você tem que ficar ligado ali, prestando atenção nas pessoas. Assim, tu fala que tipo, mais ou menos? Dá uma ideia.
P1 – O que você quiser.
R – Porque guaraná é isso que eu estava falando para ele. O pessoal do Jota Quest, esse pessoal que, quando toma, gosta mesmo. Então, é uma coisa interessante, que depois eles criam o gosto, eles vão lá várias vezes pedir. Está torrando ao vivo lá no forno: “Mostra aí para eu experimentar.” Porque é muita gente que vem de fora, barcos e barcos. Aí Maués, esses dias, fica cheio de iates, esses barcos grandes. Eles querem provar mesmo, ver se aquilo é real, com mel, como se dá o sabor, que vão alterando os sabores do guaraná quando a gente faz diferente. Que ele tem receitas, tem muitas coisas que você pode fazer com guaraná. Mas um caso, um causo meio, não estou lembrado mesmo, para te contar a história. Que a gente anda muito em todas essas comunidades, são muitos produtores. A gente vai conversando. A maioria é longe, na estrada a gente vai andando, caminhando com eles, eles vão contando aquelas coisas para a gente, que aparece isso na propriedade, aparece aquilo, já foi seguido, aquele negócio. Que nem a história da cobra.
P1 – Conta para a gente.
R – A história que tu contou, né? Aí a gente tem vários casos. O cara ia para o guaranazal dele, ele escutava aqueles assovios. Geralmente, só andam de dois caçadores, quando o cara escutava o assovio. E aquilo ia enchendo na cabeça dele. Quando ele procurou o parceiro dele, o parceiro dele ia que nem uma múmia, direto para o assovio, que ele ia seguindo aquilo tudo. Porque ele escutava, mas só o outro que ouvia. Daí ele disse que era uma coisa que chamava ele no caminho. A mesma coisa da cobra, do teu amigo, que, quando falava, aparecia na frente dele. E toda vez que ele ia com esse caçador, também o caçador escutava o mesmo assovio. E, toda vez, se ele não estivesse perto para despertar ele, ele ia sendo seguido por esse assovio. Porque, quando a gente está na mata andando, você ouve muito isso, só que o dele era tipo assim uma hipnose. Hipnotizava, ele ia seguindo. Eles dois iam no caminho. Quando ele via o parceiro dele, dava um branco, aí o parceiro dele ia embora. Daí ele tinha que estar batendo, ele dava altas porradas nele para poder ele acordar. Era tipo uma hipnose mesmo, né? É um dos assovios que ele ouviu muito. Essa região aqui do Limão, que tem muitas coisas de terra preta, os índios iam passando de um lugar para outro. Tem várias coisas que tu vê. São zonas de terra preta, que onde os índios ficavam, eles sempre deixavam restos dessas coisas tudinho.
P1 – Nessas zonas tem várias histórias?
R – Tem muitas histórias. Quando a gente vai fazer esses manejos florestais, a gente anda dias na mata, direto mesmo, matas fechadas. Você vê cada coisa impressionante.
P1 – Que coisas?
R – Você vê bicho, você ouve cada coisa, coisa interessante da fauna, da flora, cada coisa, que você se assombra! Quando você anda fazendo manejo florestal, tem que identificar todas as árvores, tem que olhar, tem que ver. Às vezes, aparece do nada cada coisa que tu fica impressionado. Como eu estava te contando, do jacaré aqui da Boca do Limão, que eu vinha sozinho, atravessando o córrego. A gente tem um barquinho, naquele tempo era dirigido na popa. Eu vinha, eu sempre ando com o Novo Testamento, um livrozinho, só ando lendo nas minhas viagens. Sozinho, sempre só eu e Deus. Eu vinha lendo, eu vinha do Pupunhal, atravessando para o Limão, e o rio bem calmo. Sem mais nem menos, eu vinha lendo, quando eu vi um barulhão, emergiu. O nosso barco tem 12 metros. Olhou um bicho tão grande, que só dava para ver a parte do olho dele, aquela montanha, e o final dele. Mas ele era maior do que o barco da gente, muito grande. Depois fui conversar com as pessoas que moram lá há muitos anos, eles dizem que tem um jacaré muito grande nessa boca aí, a Boca do Limão que eles falam, que já apareceu para vários pescadores. Isso que eu tinha visto. O rio estava bem calmo, dava para ver aquela coisa grande do olho, bem grande. A nossa canoa tem 12 metros, ele era maior do que a nossa canoa. E aí você vê muita coisa. Geralmente eu sempre fazia isso, atravessava esse horário, entre cinco e seis horas. Às vezes, do nada apareciam aquelas ondas, parece que passou um navio, sabe? Não era nada, só levava teu barco lá em cima, como se tivesse alguma coisa, mas não tinha nada. Então, eram coisas impressionantes que aconteciam com a gente nessas viagens. Porque é assim: o técnico tem o barquinho dele, ele vai embora, ele vai daqui para as comunidades, só ele e Deus. Alguns levam a família, outros não. A gente, eu por exemplo, trabalhava sozinho. Eu sempre gostei, eu e Deus. E tem muitas histórias aí. Se eu for te contar o que acontece mesmo... Você sabe que a mente da gente tem muita coisa. Às vezes, você ia triste, brigava com a namorada, podia aparecer muita coisa. Uma vez, eu ia só eu, no meio desse riozão, o meu barco tinha aquele vão todinho. Ele tem 12 metros. Daí eu ia pensando, rezando em Deus, tudinho. Tinha brigado com a namorada e ia pensando naquilo. Sentava, cruzava as pernas, ia lendo o livro, e ia só dirigindo aqui, que o leme era bem aqui, com a mão. Sempre tinha um banco bem aqui, a gente ia só dirigindo, ia lendo, encostado assim na coisa do barco. Daí eu olhei pra frente. Primeiro, começou a boiar um bocado de boto, boto, boto, boto. E, beleza, eu vendo os botos boiarem, não faziam nada. Normal para mim. Como eu digo, com Deus, que é a minha espada, que eu não tenho que temer nada, o resto é resto. Daí, quando olhei para a frente, tinha um senhor bem branco, camisa branca. Sentou mesmo, cruzou as pernas, sentou lá na frente, porque ele tem uma proazinha, o nosso barco. Ele é grande, no meio tem o estrado, tem mais um banco, a máquina e o fim. Daí ele sentou lá na frente. Daí ele fez: “Meu jovem.” Eu olhei, olhei, só eram uns botos boiando, não tinha visto. Eu olhei para frente. Porque, como a distância é longe aqui, eu colocava aqui, amarrava uma corda e dava certinho lá no Limão, que é a boca do Rio Grande lá. Ia embora. Me chamou três vezes: “Está vendo esses botos?” Ele disse: “Você brigou com a sua namorada, né?” Eu disse: “Briguei, ela que me deixou.” Ele disse: “Está vendo esses botos? Olha o seu barco e passa bem onde eles estão boiando.” Daí: “Por quê?” Ele disse: “Você vai pegar a água e passar na coisa do seu corpo, tudinho, que isso vai lhe dar inspiração.” Ele falou bem assim. Quando eu fiz, passei a água: “Vou obedecer, né?” Eu fiz isso e, graças a Deus, hoje, se tu perguntar... “Aquele cara com as mulheres tem um domínio fora de série.” Isso é real, porque a gente morava numa casa lá no Limão, de noite tu via os botos subirem mesmo para andar, a casa ficava a poucos metros da beira, de você ver eles andarem mesmo. Tinha a casa do técnico lá, que eu mandei fazer, meio longe do rio. Mas tu vias eles andarem tudinho, assoviarem tudinho. E eu dormia sozinho. Lá tinha, porque aparecia muita coisa. Aparecia um cavalo sem pescoço num campo grande de futebol. Lá tem tanta coisa, que eles falavam, e eu dormia sozinho. Eu disse: “A única coisa que isso pega é no pé da gente.” Colocava o travesseiro e dormia com a bibliazinha aqui no peito. Eu disse: “Com Deus, não tem quem possa.” Daí essa imagem até hoje tem na minha cabeça. E, graças a Deus, com as mulheres... As pessoas ficam chateadas. Sou feio. Eu sou feio, mas graças a Deus eu... Entendeu? Então, tem esse lado, que muitas coisas acontecem com a gente. Às vezes, a gente não conta para as pessoas porque elas nunca vão acreditar. Mas são muitas coisas reais que acontecem nesse tempo de extensão que a gente tem, já muitas e muitas coisas mesmo.
P1 – Lembrou de um monte.
R – É, porque é assim, vêm muitas coisas interessantes. Lá nessa comunidade que eu te falei, onde era a sede do polo Menino Deus, lá aparecia muita coisa. Você não podia dormir na beira que desatava a rede, jogava as pessoas. E às vezes eu viajava muito fazendo treinamento, esses cursos de farinha, curso de guaraná. Uma vez, eu, o motorista já cansado, parou bem perto de um cemitério, mas ele não sabia. Não deixou ninguém dormir de noite. Jogava da rede, balançava. Então, era tudo isso que acontecia. Mas, graças a Deus, eu acho, eu tenho muita fé, eu não tenho medo. Porque aí nesse rio já peguei cada temporal. Que, nessa viagem que eu estava fazendo com vocês, eu estava dizendo para vocês, Maués-Açu é muito traiçoeiro. Às vezes, Deus me livre, o que eu já passei nesse rio. Você tem que ter muita fé em Deus, porque se não... O negócio era feio, sabe? Outras coisas que eu já vi: às vezes, chegar no meio do rio, puxar o barco para ele não sair. A gente fala isso: “Pô, como é que no meio de um riozão desse?” Tu já viu, me perguntou a profundidade. Eu não sei como te dizer a profundidade que tem. Mas você vê muitas coisas que acontecem aqui nessas coisas, sabe?
P1 – Então, Ernandis, para acabar, eu queria perguntar o que você achou de ter participado desse projeto, de contar a sua história. Fala para a gente qual foi a sua impressão disso.
R – A impressão, desde a primeira vez, quando veio falar sobre isso, eu sempre gostei. Já fiz vários trabalhos com várias pessoas, fez documentário, né? Então, eu acho muito importante passar um pouco do que a gente sabe para as pessoas. Através disso, graças a Deus, já dei várias entrevistas para vários canais de televisão, também japonês, italiano. Então, isso é uma forma da gente mostrar o que a gente faz, deixa a gente orgulhoso de dizer: “Pô, hoje eu sou um cara que tenho um trabalho legal, decente, trabalho para ajudar as pessoas.” Isso é muito importante. A gente só tem que agradecer por oportunidade que aparece, a gente nunca deve deixar passar. Eu sempre sou assim. E, como o André diz, a gente sempre tem que ser aquele cara top de linha, porque, a hora que você precisar, você tem que estar sempre lá. Não importa o que as pessoas falem de você, mas sempre você tem que ser um vencedor. Isso, graças a Deus, sempre me estimulou muito. Conheço muita gente boa, muita gente bacana, graças a Deus. Aonde você for, qualquer cidade que eu vá, tem um conhecido, porque é o meu trabalho. Eles me conhecem pelo que eu falo para eles, pelo que eles me conhecem. Então, isso é muito gratificante para a gente, como profissional, como técnico no município de Maués.
P1 – Obrigado pelo depoimento.
R – Eu que agradeço.
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