P/1 - Bom, senhor Silvio, primeiramente muito obrigado pela sua participação aqui no nosso projeto. E para começar eu gostaria que o senhor falasse o seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Eu que agradeço o convite, no primeiro momento estou ainda assustado pelo convite e conhecendo melhor o projeto. Meu nome é Silvio Yoiti Katsuragi, sou nascido no bairro da Lapa, em 31 de dezembro de 1960.
P/1 - E o nome dos seus pais?
R - Meu pai era Kiyoshi Katsuragi, e Tsuyako Katsuragi. Na verdade, aparece a grafia Katsuragi, mas... Como eu posso dizer? Meus avós vieram em 1933, então, a grafia do escrivão saiu errada, não existe a palavra “gi”, então é “gui”, e como você sabe, David, todo sobrenome japonês tem um significado, então o nome da minha família significa "árvore de Katsura". O Katsura parece um jacarandá da Bahia.
P/1 - E de que cidade eles vieram?
R - Meu pai veio da ilha de Hokkaido, e por parte dos meus avós maternos, vieram da ilha de Okinawa.
P/1 - Nossa, os extremos, né? O norte e o sul do Japão.
R - Não digo os extremos. A história do Japão é relativamente... Seria como se fosse uma guerra entre a ilha de Okinawa e todo o continente japonês.
P/1 - E você sabe qual foi o motivo, o contexto que trouxe a sua família para o Brasil na década de 30?
R - Praticamente como os portugueses vieram aqui também. Aquele sonho de vir para o Brasil, ganhar dinheiro e voltar. Só que, como meus avós vieram em 1933, até você se assimilar, em 41, 42, já começou a Segunda Guerra. Então, o país de onde eles vieram ficou praticamente destruído, né? O retorno ficou mais difícil ainda.
P/1 - E para qual cidade eles vieram quando chegaram aqui no Brasil?
R - Meus avós paternos vieram aqui para Terra Preta, e por parte dos meus avós maternos vieram lá para região do litoral. A minha mãe é nascida aqui no Brasil, em Ana Dias, é uma cidade entre Peruíbe e Itanhaém. E meu pai, ele nasceu no Japão e se naturalizou aqui.
P/1 - E a sua família, tanto por parte de pai quanto por parte de mãe, se dedicou a qual atividade aqui no Brasil inicialmente?
R - Eles vieram para a agricultura, basicamente. Aquela leva dos japoneses veio para a agricultura.
P/1 - E o senhor sabe que época que os seus antepassados vieram pra São Paulo, para o bairro da Lapa?
R - Meu pai trabalhava numa peixaria; minha mãe trabalhava na Rua das Palmeiras, e meu pai trabalhava nas feiras. Aí eu cheguei a conhecer... Eu vi o dono dessa peixaria. E como meu pai trabalhou com ele muito tempo... Ele se chamava Mario Nita. Como meu pai deve ter trabalhado com ele numa faixa de 15 anos, ele passou a peixaria dele para o meu pai. Sabendo que meu pai ia casar com minha mãe, que já trabalhava com peixe, ele cedeu a peixaria.
P/1 - Como é que foi essa transição da agricultura para o comércio de pescados? O senhor sabe?
R - É engraçado. Não sei se você vai perceber, como você também é descendente de japoneses. O japonês chegou aqui, a turma achava que ele era analfabeto. Só que o japonês já vinha com toda uma educação, só não falava o português, não sabia nem ler e escrever o português, mas ele tinha uma cultura até maior do que das pessoas que viviam a sua volta, né? Houve casos... A gente só fala em imigração japonesa para o Brasil, mas a primeira imigração japonesa começou para os Estados Unidos, depois para o Canadá. Só que o japonês imigrante, chegando aos Estados Unidos, na segunda geração... Como é que eu posso dizer? Ele veio para ser uma nova fonte de mão de obra, só que ele estava se tornando comerciante. Com a competição, começaram a barrar a entrada, aí, começou a leva aqui para o hemisfério sul.
P/1 - E no caso dos seus pais, quando é que eles começaram esse comércio de pescados?
R - Meu pai praticamente começou na agricultura, não deu certo e ele começou a fazer comércio de pescados. Apesar de que não foi ele, foi um irmão dele mais velho, e aí foi chamando a família. No caso dos meus avós maternos eles foram naquela região de Ana Dias para a plantação de bananas. Só que naquela época já havia inundações, e na primeira inundação que teve acabou com a plantação de banana. Aí vieram pra São Paulo e vieram praticamente... Uma parte trabalhar no comércio, e na mão de obra de manufaturas.
P/1 - Você mencionou que a sua mãe morava na Rua das Palmeiras...
R - Não, trabalhou numa peixaria na Rua das Palmeiras.
P/1 - Onde é a Rua das Palmeiras?
R - Paralela à Avenida São João.
P/1 - E o senhor tem irmãos?
R - Tenho mais dois irmãos.
P/1 - E você é o mais velho, o mais novo?
R- Eu sou o mais velho. Hoje eu entendo, assim, porque aquela gana dos nossos pais em falarem assim: "Vocês têm que estudar, vocês tem que estudar". Praticamente isso ficou curtido nas veias e eu tento passar isso pras minhas filhas.
P/1 - Na cultura japonesa a responsabilidade de ser o irmão mais velho costuma ser muito grande. O senhor chegou a sentir algum tipo de pressão maior do que seus irmãos?
R - Eu acho que o japonês já nasce... Não seria uma cultura japonesa, o xogunato é praticamente como um feudalismo porque se você começar... Vamos falar em feudalismo porque todo mundo aqui estudou o feudalismo, não o xogunato, mas as palavras são muito parecidas. O rei podia ter vários filhos, então, o primeiro filho herdava tudo, o segundo filho ia ser padre, entrar para a Igreja Católica, e o terceiro ia ser um guerreiro querendo ganhar novas terras para ter alguma coisa. O xogunato também, então, o primeiro filho tinha que prover a família todinha, e a gente sente, né? Não é uma coisa assim: "Ó, você tem que...", não é rígido. É uma cultura que você vai assimilando.
P/1 - E eu quero que o senhor descreva um pouquinho como era o ambiente da sua infância, a casa em que o senhor morava, a rua em que o senhor morava.
R - Eu sempre morei no bairro da Lapa, e eu digo o seguinte: eu praticamente sou uma geração do pós-guerra. E por causa do eixo Japão-Alemanha- Itália, o japonês, no pós-guerra foi um pouquinho pressionado, eu vivi um pouco isso também. E se você ver a história da imigração japonesa, na década de 50 e 60, que é praticamente a época que eu nasci, o desenvolvimento econômico do japonês era o quê? Tintureiro, verdureiro, fruteiro. Até eu digo o seguinte, hoje o consumo de hortaliças é muito grande, o consumo de arroz também é. Esses produtos foram desenvolvidos pela mão de obra japonesa, né? Eu digo até o seguinte, até pesquisando num trabalho para uma faculdade, o prato arroz e feijão é uma invenção japonesa, porque até então, enquanto os japoneses não começaram o cultivo de arroz e trouxeram do Japão, se comia só farinha e o feijão.
P/1 - E como era a rua que o senhor morava, a casa, o senhor pode descrever um pouquinho a casa?
R – Olha, como assim.... Como você mesmo disse, né... Morávamos meu pai, eu, a minha mãe, a minha avó e duas tias. Então era praticamente uma família numerosa numa casa pequena, né? Porque hoje é fácil você ter financiamento; na década de 60, 70, financiamento de carro era difícil. Você pode ver muito bem, se você for analisar essa parte onde está o Museu até a Lapa, na Vila Romana, a maioria das casas eram casas operárias, e essas casas operárias não tinham nem garagem. Então, você, veja bem, a construção daquela época não se adequava ao automóvel, porque era muito difícil, não havia essa facilidade de você ter o automóvel.
P/1 - E havia muitos vizinhos também descendentes de japoneses ali?
R - Não, mais italianos, portugueses.
P/1 - Eu gostaria que o senhor descrevesse um pouquinho o seu pai e a sua mãe, o comportamento deles, como era a relação com os filhos.
R - Olha, como é que eu posso dizer? Hoje eu sou casado com uma descendente de portugueses, então as culturas são bem diferentes. O que eu digo é o seguinte, os meus pais... O período de trabalho deles era uma coisa anormal até pros padrões de hoje. Desde que eu me conheço eles sempre trabalharam no Mercado da Lapa, só que naquele tempo, você tinha que chegar cinco horas da manhã. Ou pior, o meu pai começava a trabalhar onze horas da noite, pra ele fazer compra de peixe no Ceasa. A peixaria abria às sete horas e ia até às sete horas da noite. Então, praticamente, quem me cuidou foi a minha vó, eu aprendi muito com minha avó.
P/1 - E como era essa relação com ela? Era uma educação típica de uma família japonesa?
R - Totalmente japonesa. Hoje assim, a moda de você ir no restaurante japonês (risos)... Eu comia todo dia. A minha sorte é que alguma coisa eu aprendi e faço em casa. Mas é gostoso essa culturação. A minha filha mais nova tem 13 anos. Eu, com 13 anos, comida japonesa era pejorativa. Todo mundo falava: "Uh, mas comer peixe cru?". Eu levava sanduíche, minha avó passava maionese e punha alface e tomate. Hoje é normal, você vai em qualquer fast-food e eles põem, mas naquele tempo não. E eu adoro comer um lanche assim. Então, você põe uma folha de alface, hoje você pode por alguns frios, mas naquela época, na década de 70 - volto a falar década de 70 - era difícil até, você só tomava refrigerante e comia frios no dia de festa, né? Hoje não, graças a Deus a economia se desenvolveu, a indústria consegue pôr um preço menor nas coisas, apesar de não ser o mesmo sabor daquela época, né?
P/1 - E a escola, onde é que o senhor estudou?
R - Bom, como eu lhe disse, a minha família não era de posses. Eu fiz o colegial numa escola aqui na Lapa de Baixo, chamada Guilherme Kühlmann, e eu fui até a época da faculdade. E até vou contar, foi muito engraçado porque em 1976 a Secretaria da Educação exigiu que algumas escolas, dependendo do perfil do bairro, tivessem cursos profissionalizantes. E na minha escola foi sobre Administração de Empresas. E aí vieram alguns professores novos da Administração de Empresas. E eu assim, muito educadamente falei assim: "Professor, qual é a melhor escola de Administração de Empresas aqui de São Paulo?". O professor disse o seguinte: "Olha, a melhor, você tem a USP, a Fundação Getúlio Vargas, só que pelo colégio que você está fazendo você não vai ter condições de fazer nenhuma das duas". E aquilo mexeu um pouquinho no brio, né? Eu até agradeço a esse professor porque ele me incentivou. Eu sabia onde ele trabalhava, levei um ano e meio, fiz o cursinho um ano e meio e consegui entrar na faculdade de Administração de Empresas.
P/1 - E nessa época da escola ainda, quem é que levava você pra escola? Era a sua avó, seu pai?
R - Tinha um vizinho, era um vizinho que minha mãe pedia pra ele levar. Depois começou vir a época dos ônibus escolares e no final acabei indo a pé, né? Apesar de eu ter uma escola a praticamente quatro quarteirões, eu já estava totalmente... Eu não sei, vou dar só uma.... Como, assim, é um documentário... Nós temos a Lapa, a Lapa de Baixo e o Alto da Lapa. Eu morava aqui na Lapa, só que a melhor escola naquela época era a da Lapa de Baixo. Então, praticamente eu estudei de 67 até 78. E de lá eu fui para a Fundação Getúlio Vargas.
P/1 - Qual é a lembrança que o senhor tem da escola, o senhor gostava de estudar?
R - Eu gostava de estudar. O relacionamento... Você tendo filhos hoje, o relacionamento de amiguinhos é um, né? Outro dia eu até estava falando com um coronel, comandante aqui da região da Lapa, que infelizmente, no momento que você começa a morar em um prédio, os problemas que giram ao redor do prédio não é um problema de quem está morando, é um problema do síndico. E na minha época era o seguinte, os pais faziam questão de trazer os filhos pra casa para ver eles estudando e conhecer as crianças. Hoje, você pode ver, a maioria dos prédios tem um salão para a criança nem subir no apartamento. Você pode até analisar que os apartamentos começaram a ter um tamanho menor, mas isso não inibe de você trazer a criança para estudar dentro da sua casa. Eu vou até longe, você trazer amiguinho para casa custa, mas você tem que pagar um preço para conhecer quem rodeia o seu filho.
P/1 - Falando nas amizades, quais eram as suas amizades de infância? Eram os amigos da rua, da escola? O que você fazia para se divertir?
R - Eu até brinco que eu, como filho mais velho, eu tive que começar a ajudar os meus pais com sete anos de idade. E era muito engraçado porque eu tinha que acordar quatro e meia, cinco horas da manhã, quando eu chegava no caixa eu estava dormindo ainda, né? Então, eu ouvia toda hora: "Acorda Silvio, acorda". Então, eu comecei a trabalhar no caixa. E naquela época a gente tinha uma autoridade máxima para a infância que era o Juizado de Menores; quando aparecia o Juizado de Menores eu tinha que sair correndo, não tinha jeito (risos). Não tinha jeito, eu não lembro qual era a sanção porque eu era meio esperto, né? Nós saíamos correndo. Então, vários comerciantes, um avisava ao outro: "Olha, o Juizado de Menores está aí". A gente saía para a Lapa de Baixo.
P/1 - E dava tempo de brincar nesse cotidiano?
R - As minhas brincadeiras, fora a escola, eram praticamente os funcionários do meu pai. Então, não sei se eu posso falar que era brincadeira aprender a limpar peixe, nome de peixe, conhecer peixe. E nós tínhamos uma facilidade muito grande, que naquele tempo a captura de pescados e a sua comercialização, você não tinha muitos equipamentos frigoríficos, então, o peixe vinha praticamente vivo. Você imagina, para um moleque, chegar assim... O cascudo é um peixe difícil de morrer, ele chegava vivo. A lagosta chegava viva, então, era uma diversão.
P/1 - O senhor mencionou aquele professor que te falou que não ia passar...
R - Ele não falou que eu não ia passar, ele falou assim: "Pela escola que você está fazendo você não vai ter uma bagagem para poder entrar". Eu só vou citar uma coisa (risos), quando eu saí do colégio e fiz a inscrição pro vestibular. Nesse colégio tinha estudado a História do Brasil no máximo até o Ciclo do Ouro. O que a prova pedia, 40% eram questões relacionadas ao Getúlio Vargas. Você vê qual é a diferença, nós estamos falando de 1776, que foi o que eu estudei naquele colégio, uma coisa que me pediram de 1940, são quase dois séculos, né?
P/1 - E você se dedicou a estudar para passar nesse vestibular, e o senhor passou em qual vestibular, qual universidade?
R - Da Fundação Getúlio Vargas.
P/1 - E com qual intuito o senhor fez o curso de Administração de Empresas?
R - Praticamente porque a vida dos meus pais era uma peixaria, então, eu tinha que acompanhar. Apesar que no momento que você começa a sair da faculdade, você tem milhões de propostas, mas eu prometi para a minha mãe que eu iria continuar o negócio deles. E acho que foi a melhor coisa que eu fiz porque trabalhando na peixaria eu conheci a minha esposa, eu tenho uma gama de amigos bem maior do que se eu fosse um funcionário de qualquer empresa, qualquer multinacional, que era à época. Eu me formei em 1984.
P/1 - Então, vamos voltar um pouquinho pra infância agora? Você mencionou que ia com seu pai para o Mercado da Lapa. Como era essa ida pro Mercado da Lapa, o que era esse mundo para você?
R - Televisão naquela época não pegava muito bem, não existia video-game. Eu sou de um tempo que quando você chegava em casa não tinha luz. Água, faltava todos os dias. Então, tudo. E naquela época, quando acabava a luz os vizinhos punham cadeiras na rua e ficavam proseando praticamente até o horário de chegar a luz para você poder terminar de fazer a janta ou jantar e tomar um banho e descansar. A gama de informações naquela época, o que você podia fazer? Empinar papagaio, pião, rolimã. Hoje é impensável você fazer isso na região da Lapa. Como eu posso dizer se era uma vida mais saudável? E você fica passeando pela região da Lapa, né, até um certo horário. Porque como eu disse, o Juizado de Menores, dez horas, toda criança em casa.
P/1 - E lá no Mercado da Lapa qual era o lugar que você mais gostava ali?
R - As lanchonetes, né? (risos). As lanchonetes. Eu sempre gostei do lanche de bauru, e como eu trabalhava, era um mimo dos meus pais eu todo dia poder comer um lanchinho diferente. Agora voltaram os guaranás pequenos, naquela época se chamavam caçulinha, né? E até pelo meu tamanho eu tomava um caçulinha e comia um belo de um lanche.
P/1 - E além das lanchonetes, da barraca dos seus pais, tinha alguma outra banca que você gostava de frequentar?
R - Vamos dizer assim, aos sete anos de idade era bexiga de ar, e como o pé direito do Mercado era muito alto, os funcionários do meu pai pegavam, me davam um barbante de três, quatro metros. Então, eu ficava passeando lá. E era muito engraçado, às vezes eu perdia a bexiga porque saía do Mercado, eu passava chorando pelo dono da banca, que infelizmente já faleceu, ele pegava e me dava outra (risos). E até uns cinco anos atrás, quando ele ia comprar peixe ele ia pagar eu falava: "Não, seu Francesco, esse daí é pela bexiga que o senhor me dava" (risos).
P/1 - Você sabe como foi que o seu pai adquiriu a banca ali, quando foi?
R - O meu tio mais velho, tio Massaro, ele começou a trabalhar numa peixaria no Mercado Paulistano, isso deve ter sido em 1952, 53, e o meu pai veio trabalhar com ele. Trabalhando com meu tio, meu pai começou a trabalhar em feiras livres e aí, o dono desse caminhão de feira adquiriu um dos boxes aqui no Mercado da Lapa.
P/1 - O senhor disse que começou a trabalhar com o seu pai aos sete anos de idade. Aos sete anos, quais eram as suas atribuições ali?
R - Só caixa, fazer troco.
P/1 - E como é que foi se dando o desenvolvimento ali, enquanto seu pai administrava a barraca?
R - Até pelo horário, quem administrava o horário noturno das 11 da noite até às sete horas da manhã era o meu pai e depois minha mãe tocava o resto do dia. Praticamente eram 12 horas para cada um.
P/1 - Fora o Mercadão da Lapa, tinha alguma outra zona comercial que o senhor se lembra?
R - Sim, a Rua Doze sempre foi forte. Pra quem não conhece, a Rua Doze é uma rua principal do bairro da Lapa. Que eu me lembro, na minha infância, ela era totalmente de lojas que vendiam móveis e praticamente eram os descendentes de judeus. E foi muito engraçado. O judeu adora um peixe chamado traíra, né? E minha mãe fez muita amizade com essa colônia. Naquela época não havia jardim da infância, então, eu devo ter sido o único japonês que fez o jardim da infância numa sinagoga. Então eu me lembro o seguinte, todos os meus amiguinhos com quipá, e eu não podia usar o quipá (risos). Essa é uma lembrança bem marcante.
P/1 - E tinha alguma outra loja nessa Rua Doze que chamava atenção, onde sua família fazia compras?
R - Nós trabalhávamos praticamente de domingo a domingo, o Mercado trabalhava no domingo até o meio dia e abria no meio-dia de segunda-feira. Então, praticamente aqueles afazeres de casa quem fazia era a minha avó.
P/1 - E tinha algum objeto, alguma coisa, que a sua família sonhava em comprar naquela época? Que era o objetivo da família?
R - Televisão, carro e uma casa. Numa conversa mais franca, numa pergunta, não do lado material... Uma vez eu fui pescar com esse tio Massaro, que é o meu tio mais velho, ele falou assim: "Silvio, a sua família só vai ter raízes na Lapa, somente a partir do seu neto. Pra você criar e falar: aqui está a família Katsuragi". E aquilo ficou na minha cabeça. E graças a Deus eu participei de várias associações, praticamente eu dei uma... Apesar do meu nome ser árvore de Katsura, acho que eu já consegui dar uma enraizada melhor, antecedendo o que o meu tio falou. Então, participei de associação comercial, Rotary Clubes e tudo o que você demanda pro desenvolvimento da região da Lapa. Apesar de ser bem conhecido dentro do Mercado da Lapa, existia assim, um conhecimento político dos moradores e dos comerciantes da região da Lapa.
P/1 - Você disse que começou a trabalhar na peixaria aos sete anos e depois assumiu a peixaria por vontade própria, para levar o negócio da família adiante, mas antes disso chegou a pensar em ter outro tipo de atividade?
R - Olha, atualmente, porque você começa a se cansar um pouco com o comércio. Eu digo até o seguinte depois que você... O advento... Eu não vejo com maus olhos o advento do Código de Defesa do Consumidor, mas no momento que você esquece que quem está te servindo é um ser humano... Porque tem pessoas que já saem com outro pensamento, porque chegam assim: "Eu estou pagando, eu quero isso". As pessoas esquecem que quem está do outro lado do balcão é um ser humano também. É a mesma coisa que eu chegar para você, David, para você Lucas, e falar: "Essa luz aqui você tem que baixar mais, não é assim". Tem que chegar com jeito: "Você poderia virar um pouquinho para lá, um pouquinho para cá?". Se eu começar a fazer muita exigência, até da gravação, você fala assim: "Eu tenho que fazer esse serviço, mas, não vai ficar um ambiente agradável como estamos conversando aqui agora".
P/1 - O senhor lembra do seu primeiro salário?
R - Eu nunca tive salário. Essa é a minha bronca (risos). Japonês naquela época não pagava salário. Eu vejo assim, vários amigos meus que saíam de casa porque o pai não dava nada. Mas assim, o meu mimo era o quê? Eu me vestia bem, isso daí, meus pais... Eu nunca tive salário, mas nunca me faltou nada, graças a Deus.
P/1 - Mas aquele trabalho na peixaria, quando ele passou a ser remunerado de alguma forma?
R - Olha, como você mesmo começou nessa entrevista, a partir dos 13 anos o meu pai chegou e falou assim: "O banco você cuida". Então, você imagina. Aos 14 anos eu comecei a cuidar do dinheiro dos meus pais e a cuidar dos meus irmãos também.
P/1 - E as suas funções ali na peixaria, como é que elas foram evoluindo? De caixa passou para qual tipo de atividade?
R – Como todo japonês, não estou falando mal do meu pai, mas como todo japonês arcaico, eu tive que começar a fazer de tudo: limpar peixe, lavar geladeira, lavar de tudo, entendeu? Porque meu pai falou assim: "Para você começar a comandar essa peixaria...". Não tenho vergonha de falar isso, acho que meu pai tem até um pouquinho de razão, eu fui começar bem de baixo. A manipulação de alimento, você não pode querer escolher o que você quer. O peixe está lá, o cliente pediu, você tem que praticamente até ensiná-lo a cozinhar.
P/1 - E quando você era criança como era a sua relação com os outros funcionários da peixaria. Quantos funcionários tinham?
R - Eram 12 funcionários. Eu tenho contato com todos esses funcionários, isso que é gostoso. Era uma relação de família, eu ainda tento fazer esse relacionamento. Como é uma empresa familiar a gente ainda tenta manter essa tradição.
P/2 - Silvio, você tem alguma lembrança marcante desse período que você aprendeu a limpar o peixe, ou que você tinha outras atribuições?
R - Olha (risos), esse funcionário chama até Arlindo. A primeira vez eu devia estar com uns nove anos. Ele falou: "Vem cá". O processo mais difícil é você tirar a escama do peixe. Eu me lembro que ele me deu mais ou menos, na primeira tarefa, escamar 20 quilos de corvina. Ele falou assim: "Enquanto você não escamar eu não te ensino outras coisas".
P/1 - E esse foi um aprendizado que o senhor carrega até hoje.
R - Eu acho que era uma coisa normal, né? Eu vejo hoje pelas minhas filhas que, quando elas estão em férias escolares elas gostam de me ajudar, principalmente final de semana. Você não vai entrar numa peixaria para escolher o serviço, tem que fazer de tudo, não tem jeito, não tem jeito.
P/1 - Agora eu quero que o senhor descreva um pouco para a gente, mas na época da sua infância, como era o Mercadão, fisicamente, o que o senhor lembra?
R - Naquela época estava se iniciando o comércio de supermercados, então, o abastecimento de toda região da zona oeste era feito no Mercado da Lapa, o movimento era muito maior. Era muito mais difícil de você trabalhar, você não tinha os equipamentos de refrigeração, você não tinha um transporte adequado. O transporte adequado começou a ser feito... O último financiamento... Hoje você tem o Ministério da Pesca que você não vê nenhum incentivo em termos produtivos. Mas o último incentivo que eu vi em termos governamentais deve ter sido na década de 70, que se começou, na verdade, começou a se exportar o camarão, e começou a pesar na balança de pagamento e você tinha que modernizar todo o parque industrial.
P/1 - E quais lojas existiam lá? Quais eram as lojas vizinhas às bancas dos seus pais?
R - Praticamente continuam os mesmos, só que com outros comerciantes, eu estou lá há quase 45 anos.
P/1 - Mas chegou a haver uma mudança na predominância do comércio ali?
R - Na região da Lapa sim, porque você conhecia todos os comerciantes da região da Rua Doze, para quem não conhece, são praticamente oito quarteirões. E hoje você tem uma predominância de magazines, onde não tem a fixação do dono, né? Então, fica uma coisa assim, até difícil. O clube dos lojistas da Lapa foi um dos pioneiros e você fazia grandes promoções. Hoje você já não consegue mais, porque você não fala mais com o dono da loja, você vai falar com o gerente. E é uma bela de uma desculpa para você não ajudar numa campanha, né?
P/1 - E desse pessoal que era lojista naquela época da sua infância, tem alguém que persiste até hoje, dentro do Mercadão ou na Rua Doze de Outubro?
R - Sim, dentro do Mercadão nós devemos ter 20 famílias que ainda continuam no mesmo ramo. Na Rua Doze eu acho que umas quatro lojas só.
P/1 - É comum no Mercadão as bancas serem passadas de pai pra filho e permanecerem na família?
R - É difícil, é difícil. Por exemplo, eu não quero que minhas filhas continuem no comércio. Eu não quero. Apesar de que a mais nova, a Vitória, ela tem todo o perfil de comerciante dentro dos padrões da nossa família, mas eu não quero. Hoje é desgastante. O relacionamento com o público, você já não consegue atender a todas as exigências. É difícil.
P/1 - A gente está numa cidade como São Paulo que está bem distante do litoral, e para uma loja de pescados isso é um dificultador. Como é essa relação com os fornecedores? Como era a do seu pai e como é hoje?
R - Todo comércio, às vezes, você liga a televisão naqueles canais que passam sobre o mundo, você vê que o comércio de peixe é um leilão. Ficam assustados no Japão porque foi vendido um atum de 200 mil dólares. No Brasil também é feito leilão. Não deveria ser como leilão. Se você pegar em qualquer livro, na minha época de faculdade, no primeiro livro de Economia, do Paul Samuelson, até lembro o nome, ele dava uma idéia do que era oferta e procura. E ele falava: os melhores exemplos são as verduras e os legumes e o peixe. A variação de preço desses dois tipos de alimento é praticamente diária. Mudaram as condições climáticas, dificultou o plantio, estragou o plantio, o preço aumenta. O peixe é a mesma coisa. Apesar de estarmos longe, nós temos outra dificuldade. Há muito tempo atrás existia o Porto de Santos que abastecia, bem ou mal, o desembarque e a comercialização de pescado. Hoje a maioria vem de Santa Catarina e Rio Grande do Sul e você tem uma predominância muito grande ainda de pescados vindos da Argentina, do Uruguai e do Chile, haja vista que aqui em São Paulo você tem um número de restaurantes japoneses que já passou o número de churrascarias.
P/1 - Por qual motivo o porto de Santos não abastece mais essa região?
R - Infelizmente, em alguns setores você precisa ter uma regulamentação governamental e também um incentivo, porque em alguns países você tem... Todos os meses produtivos para produção de pescados, no momento que você compra começa a deprecionar. Porque a água do peixe corrói, tudo se desgasta. Se você não tiver... Não estou falando para o governo pegar e subsidiar; eu acho que nós temos equipamentos no exterior ultramodernos, só que com a carga tributária você não consegue trazer aqui para o Brasil, diferentemente do que você consegue adequar o parque industrial na Argentina e no Chile, e até no Peru. As cargas tributárias para o setor de pescados são diferenciadas.
P/1 - Na época que o seu pai administrava a banca, na sua infância, onde é que ele ia comprar esses peixes?
R - Ainda hoje, a maior concentração... Porque você pode falar assim: "Puxa, eu fui pescar ali no litoral e dá muito camarão". Só que você tem que pegar o seguinte, você foi com o seu carro, deve ter passado em quatro, cinco pedágios para ir e voltar. A comercialização de pescados exige um automóvel frigorífico, caixas e gelo. Então, você não pode simplesmente pegar um veículo e pegar 20 quilos de camarão. Você tem que ter um volume tanto aqui, no caso em Itanhaém, e ter um local com todas as exigências sanitárias. Então, o que acontece? Todo mundo abastece o Ceagesp que facilita. Dentro do Ceagesp você tem um serviço de inspeção federal, a comercialização de pescados é feita de madrugada no mundo inteiro até por questões climáticas e também porque à noite não tem mosquito, mosca, você não tem, e a temperatura é mais amena também. Eu não conheço nenhum lugar que você faça comercialização em um lugar frigorificado, não tem jeito.
TROCA DE FITA
P/1 - Senhor Silvio, o senhor se lembra de ir lá no Ceagesp com o seu pai para escolher o peixe, para comprar o peixe?
R - Vamos voltar um pouco. Na época do meu pai, a comercialização de pescados, cereais, frutas e verduras, acho que era feita na Avenida do Estado. Nós temos hoje o Mercado... Na época se chamava Mercado Central, hoje se chama Mercado Paulistano, então, aquilo aglomerava toda a zona cerealista e a comercialização de pescados, frutas e verduras. Na época, no final de década de 60 foi construído o Ceagesp, e aí praticamente toda a comercialização, apesar da zona cerealista do centro da cidade ser muito forte ainda, mas em termos de frutas, verduras e pescados, vieram todos se concentrar aqui no Ceagesp.
P/1 - O senhor se lembra de ir lá com o seu pai?
R - Não, no Mercado Paulistano, não. Eu lembro a primeira vez que eu devo ter colocado os pés na Ceagesp foi em 1971.
P/1 - E como era essa viagem para lá?
R - O bairro da Lapa é muito próximo ao Ceagesp. A única coisa é que nessa época São Paulo ainda era época da garoa. Então, todo dia assim, você acordava, aquela época você tinha que ir ao Ceagesp às 11 horas da noite. Então, era uma névoa danada, você não enxergava um palmo.
P/1 - Como era a questão de escolher o peixe ali? A quantidade que devia ser comprada?
R - Hoje ainda, a escolha do peixe é empírica, né? Olhando o peixe você sabe, se você puser um peixe lá para mim eu sei praticamente há quantos dias ele morreu, como é que está a conservação. Porque não importa só quando o peixe morreu, o que importa é a conservação do peixe. Por exemplo, você pode ter pescado há duas horas atrás e se você não acondicionou ele perfeitamente, ele pode estar estragado. E eu posso lhe mostrar um peixe que foi pescado há 15 dias foi conservado adequadamente e está melhor.
P/1 - O senhor estava falando sobre a importância da conservação do peixe a partir do momento em que ele foi pescado.
R - Mas David, voltando um pouquinho à sua pergunta, eu lembro o seguinte: na década de 70 os caminhões ainda não eram frigoríficos, então, eram carrocerias abertas. E de vez em quando eu era obrigado, obrigado não, para mim era uma diversão, eu tinha que ficar, ir com meu pai, ficar em cima do caminhão para que não houvesse nenhum furto de alguma caixa. Então, eu passava a noite inteira sem poder dormir (risos). De vez em quando a gente pegava um siri, um caranguejo e ficava brincando a noite inteira, isso passava a noite.
P/1 - E nesse momento que o senhor ia com o seu pai lá, buscava o peixe, e levava direto pro Mercado da Lapa?
R - Mercado da Lapa.
P/1 - E como ele era acondicionado no Mercado?
R - Chegando lá já descarregava, e ainda existem câmaras frigoríficas para conservação de pescado.
P/1 - Agora vamos falar conforme o senhor foi crescendo no Mercado, quando é que o senhor passou a também atender aos clientes?
R - Eu acho que com dez anos a gente já começava. Como eu posso dizer? Eu não via isso como um trabalho, né? Você tem que ver que com sete a dez anos a gente tem uma visão que tudo é uma brincadeira. E era uma coisa que fluía perfeitamente, tanto é que eu não exigia nenhum salário, né?
P/2 - E você estava falando da compra do peixe, como vocês adquiriam. E o gelo, onde é que vocês conseguiam? Eram os mesmos fornecedores?
R - Naquela época o gelo era fabricado no próprio Ceagesp, havia até um, não seria um subsídio, é que hoje pagamos muito alto por água e por energia elétrica. Os custos naquela época eram bem menores.
P/1 - O senhor começou a atender os clientes já com...
R - Com dez, onze anos. Funcionava assim: "Silvio, pega esse pacote, entrega para aquele senhor, cobra tanto". Nós tínhamos uma maior dificuldade. Hoje você tem as balanças eletrônicas, naquela época você não tinha essas calculadoras digitais, a calculadora era um trambolho desse tamanho, caro, e as balanças eram todas mecânicas. Então, você tinha uma dificuldade, você colocava o peixe naquela balança, o freguês ficava olhando assim para você, e você tinha que fazer a conta na hora. E graças a Deus eu sempre fui bom em Matemática, né? Até chegar em equações, o básico da Matemática...
P/1 - E esse contato com a clientela como foi? O senhor gostou no início, sentia alguma dificuldade de lidar com o público?
R - Até por questões culturais o japonês sempre foi travado. Eu... eu assim, fui... Junto com um amigo, até ele era um dos diretores da área de armazenamento do Ceagesp, fui ver um curso de Oratória, acabei fazendo esse curso e a extensão desse curso. E isso me ajudou não só a vender o peixe no sentido estrito da palavra, me ajudou a fazer trabalho em várias associações.
P/1 - E a questão da concorrência? Tinha muitos concorrentes ali no Mercado da Lapa, ou no bairro?
R - A concorrência, eu nunca pensei numa concorrência. Há um tempo atrás, num jantar em casa eu disse o seguinte... Eram seis casais, praticamente todos comerciantes. Eu disse o seguinte: "Olha, você não é um vendedor de roupa, você não é um vendedor de massa, eu não faço a minha função de vendedor de peixe, nós somos vendedores de felicidade. No momento que alguém compra uma calça e se sente bem, e muda até o ego da pessoa, ele tá vendendo felicidade. E é muito usual você falar assim: “Nossa, eu comi um prato ontem” - pode ser de peixe, de carne, de macarrão – “Eu estou me sentindo tão bem”. Então, no momento que você satisfaz a pessoa você está vendendo um pouco de felicidade também".
P/1 - E quando é que o senhor começou a administrar a barraca? Como é que foi? E quando foi?
R - A partir dos 14 anos. O meu problema é o seguinte, infelizmente todo mundo fica doente, e quando meu pai ou minha mãe ficavam doentes eu tinha que administrar. A minha maior dificuldade é você ter um trato com uma pessoa, que tinha praticamente o triplo ou quádruplo da sua idade, né? Você tinha que medir as palavras até por questão de educação, e fazer essa pessoa de idade fazer o que você quer, né?
P/1 - E como é que foi lidar com esses funcionários mais antigos que o senhor conhecia desde criança?
R - Acho que a vida ensina a gente a ter um trato, né?
P/1 - E depois da faculdade?
R - Continuei na peixaria.
P/1 - E qual foi a opinião dos seus pais? Era um desejo deles?
R - Na verdade é o seguinte, nós tínhamos uma peixaria e quando eu estava no meio do curso de Administração de Empresas, surgiu a oportunidade de comprar outra peixaria. E a minha mãe me disse: "Você vai seguir no ramo ou quer continuar nos ajudando?". Eu falei: "Eu sei que o sonho de vocês é comprar mais uma peixaria, então, eu continuo no ramo de peixes".
P/1 - Eles acabaram comprando uma outra peixaria?
R - Compraram.
P/1 - Em que local?
R - Do lado.
P/1 - Então, começou a trabalhar o seu pai e a sua mãe numa barraca e o senhor na outra?
R - Eles praticamente me puseram, aí, eu comecei em 1980, julho de 1980. Praticamente com 19 anos eu estava cuidando do meu próprio negócio. Próprio negócio, não, porque o caixa era familiar.
P/1 - Em que sentido as responsabilidades aumentaram?
R - Eu acho que houve facilidade, que no momento que você começa a comprar num volume maior, você pode vender mais barato, então, isso ajudou bastante. E nessa década de 80, se vocês forem ver, em 86 nós tivemos um dos planos econômicos mais loucos, que foi o Plano Cruzado que você podia barganhar por uma quantidade maior, então, deu para você desenvolver melhor o comércio e aparelhar melhor também, né?
P/2 - E quais são as maiores vantagens e desvantagens de um comércio familiar?
R – Como eu te disse, não ter salário, eu acho que eu vou morrer sem receber o meu salário (risos). O desenvolvimento da colônia japonesa foram os grupos familiares, como eu disse logo no início. Era a pessoa que vivia da plantação que eram os verdureiros, os tintureiros, as mulheres conseguiram na década de 60, a maioria dos salões de cabeleireiros era de origem nipônica. Então, praticamente desenvolvimento... Porque você vindo para um país sem nada, sem nenhuma cultura, você tem o entrave da língua, da comunicação, e o pior, da alimentação. Você imagina a base da alimentação japonesa, o que era? Arroz, hortaliças, verduras cozidas e peixe. Chega aqui, você imagina a expressão de um japonês ver naquela época um pedaço de toucinho defumado, carne seca. Para eles, eles achavam que era até uma tentativa de envenenamento, porque para o imigrante naquele primeiro choque cultural, aquilo era uma carne deteriorada, né?
P/1 - Quando o senhor assumiu essa banca que a sua família comprou, o senhor já tinha mais de dez anos de Mercado da Lapa, né? Porque em 1980...
R - Vinte anos.
P/1 - Vinte anos. E o senhor notou algumas mudanças que ocorreram na estrutura do Mercado, na clientela, no bairro? Como o senhor descreveria as mudanças de quando o senhor começou a trabalhar lá até quando o senhor assumiu a barraca?
R - Aí, você começa o desenvolvimento dos grandes supermercados. Eu digo o seguinte, a minha sorte é que poucas pessoas conhecem peixe. Tanto assim no armazenamento... É um produto assim que você tem que usar tudo o que Deus lhe deu de graça, que é o tato, o olfato, o paladar e a visão. Porque eu acho engraçado algum cliente que vem e quer pegar no peixe. O peixe, no simples olhar dá para você saber, dá até para você saber... Um dos maiores problemas são as redes de espera; se a temperatura da água estiver muito quente. Se o peixe morrer nessa temperatura de água quente ele já começa a se deteriorar, ele não está estragado, mas começa a se deteriorar. Por isso que é muito difícil os pescados acima do Rio de Janeiro virem para São Paulo. Porque a temperatura da água de lá é muito quente, então, você já começa a ter um produto que não tem uma alta qualidade.
P/1 - É por esse motivo que o impacto dos grandes supermercados não afetou tanto a Peixaria São José?
R - Por enquanto acho que não (risos).
P/1 - E de que forma afetou os outros comércios?
R - É o que você até mesmo falou, é difícil você passar um comércio de pai para filho. São poucos comerciantes aqui em São Paulo que conseguiram.
P/1 - E a estrutura do Mercadão? Melhorou?
R - Se adequaram bastante, até com... Hoje nós temos a Secretaria Municipal de Abastecimento, e praticamente, apesar de ser municipal, você consegue ter um contato direto com o supervisor que conhece também da área, isso para nós é muito bom.
P/1 - Condições de rede elétrica, fornecimento de água limpa, instalações próprias para o comércio?
R - A questão de água você tem um órgão competente, não passa pela Secretaria. Mas você tem uma reestruturação de parte elétrica, armazenamento.
P/1 - E a clientela, nesse período da sua infância até a abertura da sua própria barraca?
R - Graças a Deus, nós ainda temos aqueles clientes que... O Mercado da Lapa foi fundado, a abertura da portas foi no dia 24 de agosto de 1954. Eu ainda tenho clientes da década de 60, que vão lá ainda, falam, contam a história. Porque o vendedor também tem que ter um pouquinho... Acho que praticamente um analista, você tem que conhecer o seu cliente, saber todos os problemas e as vontades dos seus clientes. É uma coisa que você perde nas grandes redes, né?
P/1 - Você pode descrever a sua banca hoje? Como ela é, que espaço ela ocupa ali no Mercado?
R - É um espaço original, 30 metros quadrados. Hoje com as novas técnicas de captura e conservação... Eu acho que na década de 60 não deveria passar de 30 tipos de peixes, hoje, com as facilidades de importação, você chega num dia só a ter quase 60 tipos peixes, entre peixes, crustáceos, mariscos, camarões.
P/2 - E de onde vem o nome da peixaria?
R - Como eu disse meu pai chama Kiyoshi Katsuragi, e naquela época era difícil. Hoje todo mundo adora ter um nome diferente, né? E chamavam o meu pai de Zé, e no Ceagesp, você, por exemplo, não era David nem Lucas, era David da Lapa, Lucas da Vila Madalena, parecia coisa de escola de samba, né? Então, o nome do meu pai ficou "Zé da Lapa". E aí, apesar de meu pai... Minha mãe era uma católica fervorosa, meu pai também um pouquinho, né? Então, ficou Peixaria São José da Lapa, em homenagem a São José.
P/1 - Qual é o tipo de pescado tem mais saída?
R - Em São Paulo é a sardinha, a pescada branca e o cação.
P/1 - Dentre esses tem algum que o senhor prefira mais?
R - Eu digo até para os meus clientes, eu digo sempre o seguinte. Você já foi pescar alguma vez? Já foi pescar? Você nunca pesca o que você quer, a quantidade que você quer e o tipo que você quer. O pescador profissional é a mesma coisa. Digo até mais, os tradicionais restaurantes japoneses, o sushiman acaba de fechar a sua banca e vai comprar o peixe, ele só vai servir o que ele tem. Isso ficou um estigma por uns 30 anos que o restaurante japonês, o sushiman era uma pessoa austera que você não conseguia conversar. E é difícil, né? Hoje você tem o salmão, o salmão é um dos produtos mais fáceis de você trabalhar, porque a distância do cultivo... Vamos fazer assim... Você tem a criação do salmão, a fábrica para você industrializar o salmão e o aeroporto. Todas essas distâncias são feitas por avião porque o terreno no Chile é muito acidentado. Então, você pescou num dia, no outro dia está aqui, você embarca de caminhão, depois de cinco dias está em São Paulo. É a mesma coisa que estar pescando um peixe lá no Rio Grande do Sul que demoraria mais dois dias.
P/1 - Hoje tem alguma função na barraca que o senhor prefira?
R - Não, não.
P/1 - Como é a questão da compra do pescado hoje em dia? Na época do seu pai era aquele caminhão aberto, o Ceagesp, e hoje em dia?
R - Em termos de peixe fresco nós temos uma equipe. Eu tinha um padrinho que dizia o seguinte: "Silvio, não vai querer vir trabalhar 24 horas por dia que você vai ficar louco". Então, desde aquela época do meu pai nós temos uma equipe só de compra para peixes frescos. E os peixes congelados, até pela tradição da peixaria, nós temos os fornecedores certos, que sabem qual o tipo de mercadoria que nós queremos.
P/1 - E a compra é feita lá no Ceagesp mesmo?
R - Peixes frescos. Os congelados nós compramos diretamente do produtor.
P/1 - E o transporte do local da compra até o Mercadão é feito de que forma?
R - Nós temos veículos frigoríficos pra fazer todo esse transporte.
P/1 - Que são de propriedade da Peixaria São José?
R - Da peixaria. E hoje em dia você tem facilidade, se tem algum problema, você aluga um transporte.
P/1 - E qual é a importância de saber apresentar um produto ali, de disponibilizar os pescados?
R - A montagem do balcão você tem que até fazer o jogo de cores, de tipos de peixes. Porque o peixe, tem peixe que nessa posição é escuro, se você virar para cá, ele já fica escuro e branco. E se você virar de barriga para cima ele fica todinho branco. Eu estou falando da minha peixaria, né? Então, cada tipo de peixe tem uma apresentação.
P/1 - Isso influencia o cliente a comprar?
R - É, você vende uma mercadoria, assim como os pratos japoneses, você começa a comer pelos olhos, né? Pelos olhos.
P/1 - E o senhor mencionou a importância de saber cozinhar, de conhecer o peixe e saber cozinhar.
R - Porque cada tipo de peixe você tem o tempero, e como você fazer esse tipo de peixe.
P/1 - Então, é comum o cliente perguntar ao senhor como se prepara determinado peixe?
R - Sim.
P/1 - Esse é um diferencial que é preciso ter numa barraca?
R - Não digo um diferencial, porque eu posso dizer que eu não comi todos os tipos de peixe, né, feito de todos os modos. Mas no momento que você começa a conversar com seu cliente, o próprio cliente começa a passar a receita dele. E você começa também a ter aquela vontade de preparar o prato, então, isso é gostoso, né? Você começa a trocar figurinha com seu cliente.
P/1 - E quando foi que o senhor assumiu as duas barracas? Porque era uma sua e uma dos seus pais, né?
R - Sim.
P/1 - Quando você assumiu?
R - Até por questão da idade deles foi uma coisa natural, não uma ganância minha e nem uma preocupação deles.
P/1 - Em que época que foi?
R - Em 2000.
P/1 - E isso implicou em contratação de funcionários? Quais mudanças vieram a partir disso?
R - Não, porque meu irmão veio trabalhar comigo. Você começa a adequar o seu dia a dia, né?
P/1 - E com o advento de tecnologias novas mudou alguma coisa na função de estoque?
R - Totalmente.
P/1 - Como é que se dá hoje?
R - Até a comercialização. Você tem tipos de embalagens diferentes, você tem equipamentos frigoríficos praticamente automatizados que você controla a temperatura. Antigamente você não conseguia controlar a temperatura. Você tem uma temperatura para um pescado congelado, você tem uma temperatura para um pescado resfriado, e tem uma temperatura para o pescado fresco. Você não pode colocar todos em um só, né?
P/1 - E no caso da sua peixaria, o comércio é mais no varejo ou também por atacado?
R - 90% varejo.
P/1 - E no atacado, para quem o senhor costuma vender? Para que tipo de instituição?
R - Os maiores consumidores hoje são restaurantes e bares da região. Você tinha algumas cozinhas industriais, mas a maioria é de restaurantes.
P/1 - E a questão da entrega, como é? Tem uma embalagem especial por ser um produto consumido fresco?
R - Não, porque toda embalagem especial.. O consumo dos nossos clientes desses restaurantes é coisa assim pra uma semana. Então, por enquanto, eu não me vejo tendo de fazer uma embalagem que até altere o custo, né?
P/1 - E no caso desses restaurantes é o senhor que entrega o peixe ou eles mandam transporte?
R - Eu gosto que o cliente venha ver o peixe, sabe? É uma preferência que eu dou. Porque é difícil, você, David, me ligar: "Eu quero um camarão de cinco, seis centímetros. Eu quero um camarão vermelho". E a pior coisa é você ofertar uma coisa que a pessoa não está vendo, né? E às vezes você pode até ter um produto melhor, mas não com o que o cliente tá pedindo.
P/1 - Quem são os clientes do Mercado da Lapa hoje?
R - A Lapa cresceu muito, né? Eu não sei o número, não tenho dados quantitativos, de quantas pessoas moram na Lapa, mas o bairro da Lapa tem uma população flutuante, porque nós temos duas estações de trem e mais um terminal rodoviário. E há dados de cinco anos atrás: a movimentação era de 120 mil pessoas por dia passando pelo bairro da Lapa, Não estou dizendo que comprando na Lapa, mas essa população flutuante. E agora começou um aumento no desenvolvimento imobiliário na região da Lapa, né? Então, muda bastante a clientela, você tem um número maior... Há dez anos atrás você tinha um cliente que comprava para a família, hoje você já vê pessoas solteiras comprando para o seu consumo próprio, então muda bastante.
P/1 - O senhor enxerga uma mudança no tipo de cliente, moradores novos que não estão acostumados a comprar no Mercado da Lapa?
R - Apesar que sempre nós trabalhamos você... Você consegue ofertar vários tipos de produtos com vários preços. Então, nós começamos desde uma sardinha que hoje está custando na faixa de três a seis reais, até um camarão que chega a custar 145 reais o quilo. Então, você tem um diferencial muito grande.
P/2 - Silvio, você comentou que existem certas especificidades na hora de colocar o produto no balcão, virar o peixe numa certa forma, até mesmo na limpeza do peixe existem certas exigências.
R - Certo.
P/2 - Os funcionários têm algum tipo de treinamento, ou é na prática, como é que é?
R - É na prática. Eu vou ser sincero, eu não consigo fazer um filé de sardinha. Numa peixaria, isso é impossível. Se você puser um funcionário das oito da manhã até às sete horas da noite, o máximo que ele vai conseguir produzir é dez quilos. Se torna um produto muito caro, muito caro e muito trabalhoso.
P/1 - E qual é a principal forma de... O senhor trabalha com dinheiro, com cartão de crédito, qual é a principal forma de receber?
R - Hoje a maioria é tudo cartão de crédito.
P/1 - Quando começou essa tendência?
R - Olha, com a facilidade que os bancos... O banco oferta o cartão e quem acaba pagando é o comerciante, né? Então, é uma facilidade para o consumidor, é uma forma de você até... Um atrativo... De você dar outras formas de pagamento para o cliente.
P/1 - E para o comerciante? É uma mudança positiva, negativa?
R - Eu acho que é a mesma coisa. O importante é você poder ofertar produtos, o giro de estoque fresco tem que ser diário, ele é muito rápido.
P/1 - O senhor comentou que tem muitos clientes antigos ali, né?
R - Tem. Tem bastante.
P/1 - É comum a Peixaria São José abrir uma continha para os clientes mais antigos?
R - Olha, pelo tipo de movimento é difícil você ter um freguês de caderneta. Até por questões práticas.
P/1 - Mas existe algum?
R - Sempre existem alguns. Mas muito pouquinho, muito pouco.
P/1 - E o que determina isso? A fidelidade?
R - A fidelidade, antiguidade.
P/1 - A Peixaria São José costuma fazer promoções para atrair os clientes?
R - As promoções são diárias, a variação de preço é diária. Eu não consigo, se você falar: "Olha, nós vamos lançar um folheto amanhã", eu não consigo colocar nesse folheto, eu não consigo. E você pode ver que dificilmente qualquer rede grande de supermercado, a não ser na época da Semana Santa, que você tem um volume maior de oferta, aí você consegue. Mas no dia a dia é difícil, é difícil. Até por questões do Código de Defesa do Consumidor. Você não pode fazer uma propaganda enganosa. Então, com é que eu vou quantificar uma coisa? Primeiro que eu não posso comprar muito peixe fresco porque se eu não vender, não tem o que fazer.
P/1 - O senhor falou da Semana Santa. Quais são os períodos que favorecem a venda do pescado?
R - O consumo de pescados, eu até brinco, se todo mundo fosse consumir peixe toda semana, não ia ter peixe no mundo para todo mundo. O desenvolvimento do consumo de pescados começou com a preocupação de todo mundo com a saúde. Eu digo até o seguinte, o alimento é um investimento para o organismo, você se alimentando adequadamente você até esquece o remédio. Então, o peixe deixou de ser aquele negócio que a turma fala que era pegajoso e mal cheiroso para ser um alimento saudável, né? Eu não conheço peixe que tenha agrotóxico, por enquanto eu desconheço, ou que tenha alguma química para crescimento.
P/1 - E os dias da semana que são mais movimentados ali no Mercado?
R - Mais nos finais de semana. Até o dia que você foi falar comigo, acho que foi uma sexta-feira, eu falei assim: "David, vem outro dia porque hoje...". Sexta-feira é o dia que se consome mais peixe, né? Todos os restaurantes ofertam mais peixe.
P/1 - Como o senhor falou, esse hábito de comer peixes é relativamente recente, né?
R - É recente.
P/1 - No caso, tem muitos tipos de pescados que as pessoas desconhecem, que podem ser considerados exóticos. Como é para apresentar ao público esse tipo de pescado que eles não conhecem? É feito um incentivo? Como é que é?
R - A maior dificuldade, como eu disse... Você não consegue atender todos os tipos de peixes, todos os desejos do seu cliente. Porque infelizmente, tirando salmão, a tilápia e os camarões de cultivo, você não tem, não existe quem tenha o total controle da sua produção. Até eu digo, que a maior base nossa é o varejo, porque você... Vou até um pouquinho mais longe, a pauta de exportação de pescados eu acho que não existe no Brasil. Existe alguma coisa de camarão de cultivo e esses peixes de cultivo. O peixe in natura, eu desconheço um volume muito grande, a não ser na safra da tainha para exportação. Porque infelizmente o restaurante quer um peixe todo desse tamanho, todo gordinho assim, e é difícil, é difícil de você produzir. Você pode me passar o pedido hoje de cem quilos, há casos que alguns restaurantes pediam cem quilos de um tipo de peixe, nós éramos obrigados a comprar 400 para escolher, porque a safra varia. Eu digo até, tem um caso muito pitoresco. Foi um dono que já teve uma rede de restaurante japonês muito grande, né? Ele veio me procurar na entressafra, eu falei assim: "Do jeito que o senhor quer, nem na safra eu consigo servir o senhor. É impossível". Nós temos outro dado, alguns peixes começam gordinho aqui e vão afunilando, e algumas pessoas só querem essa parte aqui, você imagine desperdiçar 70% de um peixe.
P/2 - E por se tratar de um ramo de venda de produtos perecíveis, como é que se dá por exemplo, quando um produto não sai, vocês abaixam o preço, como é que vocês fazem?
R - No momento que chega o pescado você sabe se vai durar, quantos dias vai durar, e aí que você começa a fazer o preço. E o cliente também sabe qual peixe tá mais fresco também. Infelizmente, ele pode sofrer variação no próprio transporte.
P/1 - Agora vamos falar um pouco de um outro lado dessa área comercial. O senhor mencionou que participou de associações. Como é que foi essa entrada em associações comerciais, quando começou e por qual motivo?
R - Praticamente começou eu indo a associações dentro do Mercado da Lapa. Existe uma Associação dos Comerciantes do Mercado da Lapa. Como meus pais não podiam ir, eu acho que eu comecei a frequentar com 13 anos. Então, para mim foi um aprendizado de você lutar, expôr as suas idéias, não só perante os comerciantes, mas inclusive aos poderes públicos, né? E com isso foi um passo, uma coisa assim que eu era o caçulinha na Associação Comercial da Distrital Lapa, né? Onde eu comecei a frequentar em 1988, em 1990 eu já era secretário. Devo ter sido secretário por cinco gestões.
P/1 - E quais eram as questões que o senhor debatia ali, que os comerciantes debatiam.
R - No Mercado da Lapa?
P/1 - Sim.
R - Um apoio maior governamental, porque queira ou não queria, o prédio é do município de São Paulo e praticamente você adequar toda a parte viária da região.
P/1 - E na Distrital?
R - Na Distrital Lapa você preservar toda essa região da Lapa.
P/1 - E depois de dois anos o senhor se tornou o secretário da Distrital?
R - Sim.
P/1 - Quais foram as suas atribuições lá?
R - Foi gratificante porque você tem um superintendente da Distrital, e você trabalhar ao lado de pessoas que tinham uma bagagem cultural e política muito grande. E há casos assim, através do Mercado da Lapa, e da Distrital Lapa, da Associação Comercial, de você chegar a ser conhecido de alguns governadores do Estado de São Paulo, de alguns prefeitos, de vereadores. E com isso você começa a fazer um rol de amizades que, queira ou não, você consegue defender a região da Lapa, né?
P/1 - E no que o senhor viu a necessidade de defender essa região? Quais foram as bandeiras?
R - A maior preocupação hoje da Lapa é o sistema viário, de você trazer o metrô aqui para a Lapa. E outra, se politicamente você não apresentar projetos, apresentar estudos, as deficiências da região, acho que a parte do orçamento da subprefeitura da Lapa começa a ser remanejada para outro lado. Então, você tem que dizer: "Você tem que recapear essas ruas, uma hora vai ter que aumentar a rede de esgoto". A própria iluminação da Lapa sempre foi deficiente, porque graças a Deus a região da Lapa é bem arborizada. Você pode ver até na rua aqui, você vê que apesar de não ser da região da Lapa, você vê várias árvores que acabam encobrindo a iluminação pública. Isso tem que ser adequadamente planejado.
P/1 - E essa preocupação com o bairro, é uma preocupação que é só da atividade comercial, ou é uma preocupação de um morador?
R - O lapeano é um bairrista, ele gosta de brigar. Aquilo praticamente é uma cidade do interior, então você gosta, a maioria nasceu, constituiu família, criou os filhos, continuou morando no bairro da Lapa.
P/1 - E o senhor ainda participa de alguma associação? Ou da Distrital?
R - Existem fases, né? Agora eu estou partindo para um outro tipo de associação.
P/1 - E da Associação de Comerciantes ali do Mercadão?
R - Ah sim! Isso a gente é atuante diariamente. Diariamente.
P/1 - E quais são as melhorias que o senhor acha que deve haver ali no Mercado?
R - O maior problema em qualquer lugar hoje em São Paulo é estacionamento. Eu acho que hoje o que deveria ser feito seria pela sociedade privada, mas sem uma adequação governamental, eu acho que você deixa uma região estagnada, né?
P/1 - E o senhor mencionou que o Mercado da Lapa é um prédio público, né?
R - Sim.
P/1 - Então, para usufruir ali do espaço, quais são os contatos...
R - Eu vou voltar no tempo, eu acho muito engraçado. O terreno onde era o Mercado da Lapa seria uma das primeiras favelas da região. O que acontecia era o seguinte, a maioria dos comerciantes tinham que passar das suas residências para o Centro Comercial da Lapa. Então, o último vereador da Lapa, inclusive o nome de uma das avenidas principais, senhor Ermano Marchetti, os comerciantes reivindicaram que essa favela fosse desalojada. E ele disse o seguinte: "Não adianta desalojar e deixar o terreno vago. Não adianta fazer campo de futebol que vão fazer uma nova favela". E aí, se pensou de fazer um centro comercial de alimento. Aí começou a nascer o projeto do Mercado Municipal da Lapa. Agora, o dado mais pitoresco, que eu achei engraçado, foi o seguinte, todo remanejamento de favela você tem briga, discussão, confronto com a polícia. Esse daqui não, os próprios favelados ganharam um terreno numa região que até hoje eu procuro nos livros e não acho. E fizeram festa, soltaram rojões nesse dia do remanejamento, não teve confronto com a polícia. E aí, foi montado o Mercado da Lapa, no início foi difícil e depois começou a se desenvolver.
TROCA DE FITA
P/1 - A gente estava falando sobre esse espaço quando o Mercadão surgiu, né?
R - Sim.
P/1 - Eu queria saber como se faz hoje pra manter um espaço no Mercadão, quem administra?
R - No início, há uns três quarteirões, existia um Mercado Municipal muito pequeno, então, os primeiros espaços foram dados àqueles comerciantes que tinham comércio no Mercado Municipal próximo a essa nova construção. Hoje nada mais é do que um fundo de comércio, você adquire como qualquer ponto comercial.
P/1 - E tem uma administração ali?
R - Existe uma administração municipal. Existem normas sanitárias rigorosíssimas, se você for ver, de todo o tempo que eu estou lá.
P/1 - E o senhor mencionou essa vontade de fazer um estacionamento ali, né? Já tem um projeto para esse estacionamento?
R - Não, não. Não é um sonho ou um projeto. O que eu disse foi o seguinte, o problema da cidade de São Paulo são estacionamentos porque o número da população está aumentando a cada dia, e todo mundo hoje tem carro, né? Você vê a produção nacional hoje, o número de carros diariamente. Não é uma preocupação minha, do Mercado da Lapa, mas é uma preocupação até... Veja bem, eu acho que o centro de São Paulo, eu acho muito engraçado essas pessoas falarem assim: "Puxa, vamos lá na Argentina que tem museus bonitos, tem lugares bonitos". Espera aí, nós não conhecemos nem o Teatro Municipal, as formas arquitetônicas do Fórum, na Praça João Mendes, é muito mais rica do que em alguns países vizinhos. Até do próprio Uruguai. O que falta? Hoje, até com a construção de novas linhas do Metrô, pode ser que você tenha um desenvolvimento, mas a população ainda não se acostumou a fazer esse turismo metroviário aqui na capital.
P/1 - Senhor Silvio, apesar do senhor ter trabalhado no Mercadão a vida toda, qual diferença o senhor vê entre ter uma loja dentro de um mercado e ter uma loja de rua, se é que existe?
R - Hoje no dia a dia do paulistano é difícil você sair da sua casa para comprar só carne, só peixe, ou só comprar verduras. Então, o que nós passamos lá dentro do Mercado da Lapa é que um não é o concorrente do outro, um é o parceiro do outro. Se você atender bem o seu cliente no setor de verduras, ele vai ficar satisfeito e vai comprar carne no seu açougue, e se você atendeu bem, ele pode até me indicar para vir comprar peixe, o que nós fazemos.
P/1 - O senhor já sentiu a necessidade de fazer algum tipo de publicidade?
R - Nós fazemos nos jornais de bairro, né?
P/1 - E o senhor vê algum impacto na clientela?
R - Nós sempre fizemos isso.
P/1 - E como é que o senhor acha que a sociedade vê o comerciante hoje?
R - Até de uma forma pejorativa, como eu disse. Não uma forma pejorativa, mas as pessoas estão esquecendo do relacionamento até humano, de ambas as partes. Tanto do comerciante, e pior ainda, do funcionário do comerciante, né? É praticamente impossível eu atender a todos os meus clientes, eu tenho meus funcionários e o fator humano é difícil, tanto da parte do funcionário como do cliente.
P/1 - Desse tempo que o senhor tem essa vivência no comércio, bastante tempo, quais são as mudanças que o senhor acompanhou, que o senhor observou?
R - Infelizmente, o trato do cliente com o comerciante. Você vê assim, 40% das pessoas já saem praticamente agressivas de casa, né? Outro dia eu estava até vendo uma reportagem de uma psicóloga, que pode ser até esse ritmo de competitividade que nós temos. A pessoa esquece que se tratar bem o vendedor ela vai ser muito bem tratada também.
P/1 - E com essa recente disseminação da cultura japonesa, da culinária japonesa, o senhor notou alguma diferença no impacto de vendas, uma curiosidade maior por parte dos não-descendentes de japoneses?
R - Olha, eu agradeço essa transformação, até você, né David, porque você também é descendente de japoneses. Porque como eu te disse, eu sou de uma geração pós-guerra, a palavra japonês era pejorativa. Hoje já não, hoje eu vejo o trato com as minhas filhas, com os amigos, os descendentes nipônicos um trato melhor, totalmente diferente de como eu fui tratado na escola. Eu tenho encontro da turma de colégio, eu falei assim: "Eu não vou, naquela época lá, me tratavam mal, não me chamavam pelo nome, agora também não vou" (risos).
P/1 - E no seu comércio especificamente, você nota a presença muito grande de pessoas não descendentes que não tem esse hábito de comer o peixe...
R - O senhor imagina eu sempre gostei de sashimi, o sashimi é o peixe cru condimentado com molho japonês, e o sushi é aquele que vem com arroz. E as pessoas falam: "Nossa, japonês, você come peixe cru". Com aquela cara pejorativa e de nojo. Pô, então, você era magoado porque estavam falando de um prato que você gostava e chamando você de japonês pejorativamente. Hoje já não, hoje, você se torna assim um gourmet, né? Um chef de cozinha, porque perguntam: "Nossa, como é que se faz esse peixe? Como é que corta?". As pessoas esquecem que limpar um peixe é uma arte, preparar um sushi, um sashimi também é uma arte. E o melhor de tudo, é uma arte saudável para o organismo, né?
P/1 - E falar um pouco ainda dessa atividade comercial, como é que é o seu dia a dia hoje, como é o seu cotidiano?
R - Olha, já foi pior, né? Até pela idade a gente sossega. Mas eu fazia parte da Associação Comercial de São Paulo Distrital Lapa, Rotary Clube São Paulo Lapa, fui diretor de escola de samba.
P/1 - De qual escola de samba?
R - Camisa Verde e Branco. Porque quando nós compramos essa peixaria que meus pais compraram, já havia um cliente muito antigo, né? E eu só não comecei a frequentar a escola de samba em 1980 porque esse meu amigo que era o presidente da escola de samba Camisa Verde e Branco, Carlos Alberto Tobias, ele queria que eu fosse sair na comissão de frente da escola. Eu não tinha nada que ver. Só depois, em 1996, a esposa dele, que era a dona Magali do Santos, que foi presidente, ela começou a me levar para a escola de samba, e foi uma coisa muito gratificante porque eu consegui fazer uma ala só dos meus amigos da Lapa, inclusive até influenciando o samba-enredo do ano de 2001, que nós homenageamos o grande indigenista Orlando Villas-Bôas, não só ele como toda a sua família.
P/1 - Como é a sua relação com a escola hoje em dia?
R - Até por questões de voltar a estudar eu tive que me afastar um pouco, porque há três anos atrás eu terminei um curso de Direito, e o curso de Direito toma muito tempo. Esse curso de Direito não é nada assim para eu trabalhar na área, mas hoje em dia até um comerciante tem que conhecer de leis. Eu acho um absurdo nem todos advogados conhecerem o Código de Defesa do Consumidor, e o comerciante aqui em São Paulo é obrigado a ter o livro pra apresentar para o cliente. Eu acho absurdo.
P/1 - E o que o senhor gosta de fazer nas suas horas de lazer?
R - Olha (risos), hoje eu tenho outro hobby. A região da Lapa é perto de um outro lugar, que eu digo que é sagrado, que se chama Estádio Palestra Itália, que é o Palmeiras. Então, minha hora de lazer é ir lá conversar com os amigos. É uma área verde muito bonita por enquanto, estamos em construção, mas é uma área verde muito bem preservada dentro da cidade de São Paulo, e praticamente da minha casa até o Palmeiras eu levo, de domingo, uns sete minutos.
P/1 - O senhor gosta de fazer compras? Além de ser comerciante, o senhor gosta de fazer compras?
R - Muito pouco, eu deixo a cargo das minhas filhas hoje. Tirando roupa, né, que é muito pessoal, mas as compras eu deixo.
P/1 - E quando o senhor faz essas compras o senhor costuma ir aonde?
R - Eu continuo sendo bairrista, eu vou nas lojas da região.
P/1 - Então, agora umas perguntas bem mais pessoais. O senhor hoje é casado?
R - Casado.
P/1 - Quantos filhos têm?
R - Três filhas, Silvia, Regina e Vitória.
P/1 - E o senhor já mencionou que não gostaria que elas assumissem a peixaria, né?
R - Não.
P/1 - No caso, o que o senhor gostaria que elas fizessem?
R - A Silvia... Foi muito gratificante eu fazer o curso de Direito porque aos 16 anos eu levei ela para assistir a uma aula. Porque aos 16 anos é difícil você escolher uma profissão, então, eu a levei para assistir a uma aula, e ela gostou, então, está no quarto ano de Direito, deve seguir a carreira. A Regina, do meio, tá fazendo um curso, vai iniciar agora um curso de Nutrição. A terceira, eu gostaria que ela fosse atleta, tem todo o potencial para isso.
P/2 - O senhor comentou que foi na peixaria que o senhor conheceu a sua mulher. Como é que foi?
R - O pai dela tinha uma banca, um açougue em frente. E o dia a dia, hoje tem um horário mais maleável, mas naquele tempo, praticamente trabalhávamos de domingo a domingo, e como eu lhe disse, o Mercado da Lapa era uma família porque a gente estava junto todos os dias. Ainda continua, um vai na casa do outro, sai para jantar junto, almoça junto.
P/1 - E no caso, por qual motivo o senhor não gostaria de passar a peixaria para as suas filhas?
R - O comércio já está se tornando uma atividade muito difícil, principalmente no ramo de pescados. E eu vejo que a captura de pescado começa a diminuir. Eu até digo o seguinte, eu, como entendedor de pescados, a comercialização de pescados no mundo inteiro deveria ser de congelados. Por quê? Você acabou de produzir aqui e já congela. Existem produtos hoje que você está em alto mar, acabou de sair da água, depois de uma hora e meia ele está embalado e congelado para consumo. Você tem um aproveitamento maior. No mundo inteiro você acaba jogando fora peixes não comerciais na ordem de 40%, é um desperdício tremendo. Eu vejo clientes que vieram da Índia, e a maioria do pessoal daqui de São Paulo não gosta da cabeça do peixe, e ela é rica em cálcio. Você acaba jogando isso fora. Você tem vários peixes que a produtividade na limpeza começa a diminuir. Uma pescada branca, se você for fazer filé, de um quilo você vai aproveitar meio quilo. A merluza você aproveita 38%. A tilápia você aproveita 32%. Então, estamos falando de quilo por quilo e você começa por toneladas e toneladas. Outra, você começa a gerar um lixo num volume monstruoso, né?
P/1 - Nesse caso então, o senhor pensa em passar a Peixaria São José, vender?
R - Eu vou deixar a cargo do meu irmão, vai ser uma preocupação dele (risos).
P/1 - Quais foram as lições que o senhor tirou da sua vida no comércio? Para sua vida pessoal, familiar?
R - O contato humano, sincero, gera uma amizade, sabe? Você vê vários clientes, é gostoso você... A palavra confiança é uma palavra difícil, né? Mas você sente quando o cliente tem confiança em você. Eu tenho clientes que me pedem assim, como eu disse, a produção de peixe é diária, mas não é constante. Então, clientes que me passam pedido para o próximo mês, que na hora que entrar aquele peixe eu congele para ele e peça para ele vir retirar. Esse contato humano é gostoso no seu dia a dia.
P/1 - O que o senhor achou de ter participado dessa entrevista desse projeto?
R - Eu relutei porque eu não conhecia o projeto, o senhor passou num dia que estava um movimento, mas eu falei assim: "É uma oportunidade também, é uma terapia para vocês e para mim também, né?".
P/1 - Tem alguma coisa que a gente não perguntou, mas que o senhor gostaria de falar? Que o senhor acha que está faltando falar...
R - Olha, desse projeto, se vocês forem fazer na Lapa, existem pessoas assim com uma bagagem cultural bem maior que eu, então gostaria de passar o nome dessas pessoas para vocês depois. Existem pessoas ali que tem um potencial cultural, de amizade, muito grande. Eu não gostaria que ficassse só, como o senhor falou, por enquanto só tem eu da Lapa, mas tem pessoas magníficas que eu gostaria que vocês conhecessem.
P/1 - Então, em nome do Museu da Pessoa a gente agradece muito a sua participação.
R - Eu que agradeço.
P/1 - Muito obrigado.
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