Projeto: Mulheres na Construção Civil
Entrevista de Sandra Valentim
Entrevistada por Bruna Oliveira e Genivaldo Cavalcanti
Entrevista concedida via Zoom (São Paulo/Governador Valadares),13/06/2023
Entrevista n.º: MNCC_HV008
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Mônica Alves
Revisada po...Continuar leitura
Projeto: Mulheres na Construção Civil
Entrevista de Sandra Valentim
Entrevistada por Bruna Oliveira e Genivaldo Cavalcanti
Entrevista concedida via Zoom (São Paulo/Governador Valadares),13/06/2023
Entrevista n.º: MNCC_HV008
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Mônica Alves
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Sandra, para começar eu queria que você dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Olá, eu sou Sandra Cristina Luciano, fica todo mundo perguntando: “E cadê o Valentim?”. Depois eu explico, o Valentim é da minha mãe, mas o nome de registro é Sandra Cristina Luciano. Nasci em 19 de setembro de 1979, em Ipatinga, Minas Gerais. Sou mineira.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Meu pai, Walter… nome completo? Meu pai, Walter Maximiano Luciano, como ele gostava de dizer: “Walter com W, Maximiano com x”. (risos).
Ele sempre falava. E minha mãe, Maria de Fátima Valentim Luciano.
P/1 – E você quer contar um pouco do porquê você chama Sandra e Valentim? Escolheu o Valentim?
R – Olha só, o Sandra, a minha mãe falou que na época tinha o Sidney Magal. Quem é contemporâneo meu, aí na faixa dos quarenta, dos trinta e poucos vai lembrar, quem é mais novinho não vai lembrar, mas ele é conhecido até hoje. Ele tinha uma música que falava: "É a cigana Sandra Rosa Madalena”. E a minha mãe adorava a música dele, ela conta: “É aí a minha filha vai chamar Sandra, vai chamar Sandra!”. Inclusive, ela pensava em colocar o nome Madalena junto, diz ela, que o nome seria Sandra Madalena. Até que uma amiga falou assim: “Oh, Fatinha…”. Minha mãe Fátima e chamam Fatinha. “Não coloca Madalena não, porque toda Madalena é sofrida. Coloca só Sandra”. E ela pronto, colocou Sandra. Só que, eis que lá atrás, quando eu nasci, a gente está em 2023, 43, quase 44 anos atrás, minha mãe me registra somente com o sobrenome do meu pai, Sandra Cristina, eles gostavam muito de colocar nome composto, e Luciano, que é um nome próprio, é um primeiro nome, mas que na família do meu pai virou sobrenome. E eu cresci com esse problema na minha cabeça. Era chamada na escola, era quando eu falava em algum lugar, “Qual o seu nome?”. “Sandra Cristina Luciano”. Luciana, né?” “Não, Luciano!’. Eu falava assim: “Mãe, você com sobrenome tão bonito, como que você não coloca Valentim no meu nome?” “Ah, na época não usava, usava só colocar o nome do homem, aquela coisa toda”. Enfim, me deixou sem o Valentim. Aí a gente anda anos, anos e mais anos, era… acho, quer ver? 2014. Em 2014, eu já estava no mercado de obras, fazendo gestão de obras e, na época, ainda, estou velha, precisei fazer um cartão de visita. E eu falava assim: “Cara, Sandra Cristina não vai ficar legal, Sandra Luciano também não vai ficar legal. Isso não está um nome forte”. E, na época, eu era casada, mas aí eu pensava assim, aí tem todo uma situação e eu falava assim: “Não, mas esse nome não é meu, mas ele não é 100% meu. Se acontece alguma coisa, esse casamento não dá certo, esse sobrenome vai virar um problema e tudo! Tiro ou não tiro? Porque eu já uso o nome”. E sou muito razão, então eu falei assim: “Vou usar o Valentim, Sandra Valentim, porque o Valentim é da minha mãe”. Aí nisso eu criei cartão de visita, as pessoas começaram a me chamar Sandra Valentim e, lá em 2017, eu criei minha rede social, sandravalentim_obras, e ficou. Então o Sandra Valentim é o nome artístico, o sobrenome é da minha mãe. Por uma questão de soar melhor, do nome que ficaria legal, eu o usei lá atrás, veio, veio e agora eu pretendo, não sei se ainda esse ano, mas eu já conversei com advogado, a preguiça maior é trocar os documentos todos, mas eu vou incluir o Valentim no meu nome, porque eu me sinto meio, eu me sinto, às vezes, meio estranha. Às vezes, em algum lugar, eu chego e me perguntam o nome completo, eu falo e a pessoa fica tipo: “E aí, cadê o resto?”. Aí fica olhando para mim. Já aconteceu algumas vezes, “Mas e o Valentim?". Eu falo assim: “Ah, deixa eu te explicar, ele é da minha mãe, ele não é meu não, ele é artístico!’. Aí eu brinco desse jeito (risos), vem daí o nome.
P/1 – E o que os seus pais faziam?
R – Oh, minha mãe era dona de casa. A minha mãe é bem assim… eu morei na roça até dez anos de idade. Eu nasci em Ipatinga, mas minha família é rural, é da roça mesmo, meus pais foram criados na roça. Meu pai era pedreiro, já na roça, ele trabalhava como pedreiro, casou com minha mãe, mudou para Ipatinga, quando eu tinha três mesinhos, eles voltaram para roça. A minha mãe ficava em casa cuidando de mim, depois de sete anos, o meu irmão nasceu e o meu pai ia trabalhar na cidade durante a semana. Então, minha mãe, dona de casa, vem de uma família bem ali do interior, bem aquela coisa que os irmãos saem para trabalhar, as mulheres ficam em casa. E o meu pai, pedreiro, essa é a ocupação que foi deles. A minha mãe se mantém dona de casa até hoje e o meu pai teve todo um processo aí na carreira, através da capacidade dele. E quando ele nos deixou, ele já tinha deixado de ser pedreiro, estava no ramo da construção, mas não era pedreiro mais.
P/1 – E como você descreveria eles?
R – Olha, a minha mãe é aquela leoa, calada, quieta, super discreta. Acredito que se a gente pegar os temperamentos aí, minha mãe deve ser do tipo fleumática, acredito eu, melancólica, ela é mais na dela, ali. Quem vê de fora fala assim: “Nossa, ela é tão calma, ela é tão assim”. Ela é tão frágil até, mas uma pessoa muito forte e uma pessoa com uma mentalidade além do seu tempo sempre. Apesar das limitações de onde ela foi criada, ela tinha uma mente de querer ir além, vou te dar um exemplo: A minha mãe era literalmente aquele ditado que muita gente detesta, considera machista, eu, particularmente, de verdade, não considero, acho que é uma das maneiras de enxergar, que é aquele, “Por trás de um grande homem, sempre vai ter uma grande mulher”. Acho que esse ditado mostra a força mesmo de uma mulher. E a minha mãe era a força por trás do meu pai. Meu pai é um cara extremamente fazedor, do fazer, inclusive, essa característica minha é total dele. E a minha mãe é aquela pessoa de bastidores, que estava ali: “Vai!’. Empurrando, “Não, você pode mais! Você dá conta!’. A minha mãe é essa pessoa, mas uma pessoa sempre muito cuidadosa, cuidou do lar, se dedicou a mim e ao meu irmão e sempre se dedicou à família e ao meu pai. Então, a gente tinha essas tarefas muito bem divididas, a minha mãe cuidava de casa, cuidava do meu irmão e de mim e o meu pai era o provedor, o cara que saía e ia trabalhar para poder sustentar a casa. Então era tudo assim, muito divididinho, daquela maneira bem arcaica, bem antiga, sabe? Que a mãe ficava com a educação dos filhos e cuidar de casa. O pai: “Não me chega, não resolvo, o filho é seu!”. Mas ele trabalhava e sustentava a casa.
P/1 – Você falou que você tem um irmão, é só um? E como é o nome dele? Como era a relação com ele na infância?
R – Olha só, eu sou meio que, às vezes, me considero, inclusive assim, hoje eu vejo alguns erros da minha parte, mas eu acho que é da minha essência fazedora, pela diferença de idade grande com meu irmão, eu meio que fui um pouco mãe dele também. E, hoje, olhando a situação de fora, eu penso assim: “Poxa, quando ele nasceu, eu tinha oito anos!”. Eu tinha oito anos, minto, sete anos, quando ele nasceu eu tinha sete anos. Então a gente tinha uma diferença de idade de sete anos. Eu tenho uma característica de ser uma pessoa mais na minha, eu sou sanguínea, que conversa e tudo, mas eu tenho um lado melancólico, eu gosto de ficar mais na minha, às vezes, eu não gosto muito de tumulto, aquela coisa toda. Imagina, coloque-se no meu lugar, você com sete anos, você tem esse comportamento de gostar do seu mundo, até um pouco egoísta diria eu, e durante sete anos é só você, e, de repente, aparece um menino, não era nem uma menina para eu brincar, era um menino! Então, de início, ele se mostrava uma ameaça, como aquele que ia atrapalhar tudo e, depois, ele virou meio que um boneco, era a pessoa que eu ia olhar. E a minha vida, ela é marcada por acontecimentos, eu sou resiliente, eu não vou falar de trágicos, eu acho a palavra muito pesada, são mais de acontecimentos muito fortes, que moldaram, com toda a certeza, o meu caráter, as coisas boas e, também, as cargas, algumas coisas ruins, com certeza todo ser humano carrega isso, vem disso. E o meu irmão não está mais hoje entre a gente, o meu irmão faleceu. Eu venho de uma história de vida, que o meu trabalho vem disso, de perdas sequentes, do meu pai, depois o meu irmão, eu explico depois melhor disso, mas o meu irmão, ele representou isso, de início aquela ameaça: “Nossa, vai atrapalhar o meu reinado aqui nessa casa!”. E depois ele virou, “Nossa, o meu bebê que eu tenho que cuidar”. E aí quando meu irmão estava com um aninho, minha mãe teve um aneurisma, minha mãe era muito nova, minha mãe tinha 28 anos, ela nos teve muito nova. Na época, se casava mais nova também. Minha mãe teve um aneurisma, minha mãe ficou 28 dias internada no Felício Rocho, um hospital referência em BH. No início, não sabíamos o que era, depois soubemos, foi um aneurisma que ela teve. E o meu irmão com um aninho… a gente morava a 350 km de BH, a roça, que é entre Caratinga e Raul Soares, região de café, região fria de Minas. E aí o que acontece? A minha mãe foi para o hospital, meu pai era pedreiro, largou o serviço e ficava por conta de ir visitá-la, de ficar dando uma assistência e ficamos eu e o meu irmão com a minha tia. Esse espírito, essa responsabilidade, ela veio, acho que uma preocupação muito grande com o meu irmão veio ali, acho que instintivamente, ali eu entendi que eu deveria suprir a falta da minha mãe, que a minha mãe não estaria ali e talvez ela nem voltasse. Com o tempo, a minha mãe foi desenganada pelos médicos, o tempo passou, 28 dias, ela ficou mais uns… aí fez uma cirurgia, teve que esperar dar uma melhorada para fazer a cirurgia. Passados sete dias da cirurgia, ela voltou para casa, mas ela voltou extremamente magra, ela não lembrava direito o que tinha acontecido naquele intervalo entre o dia que ela passou mal e tempo que ela ficou no hospital e o meu irmão não queria ela de volta, ele já estava acostumado com minha tia, começou a chamar minha tia de mãe. E eu tinha essa preocupação com meu irmão, nesse período que ela estava internada, mas, de certa forma, era um sentimento dúbio, eu lembro disso perfeitamente, era como se fosse um certo alívio, porque eu voltava ser só eu, porque durante sete anos era eu, aí depois ele apareceu, aí depois de um ano, ele saiu de casa de novo, foi morar com a minha tia, porque minha mãe estava entre a vida e a morte. Então parece que nesse período, eu fiquei meio naquela coisa, criança, né? Eu tinha oito anos, mas eu imagino e alguns sentimentos são muito vivos aqui comigo, eu imagino que eu tive assim, ao mesmo tempo, tristeza, era como se eu tomasse aquela vida minha sozinha novamente, “Poxa, eu tenho o meu mundo”. “Ah, mas triste que aconteceu isso com a minha mãe”. “Não, mas ele é meu irmão”. Então eu vivia um conflito. E quando a minha mãe voltou, graças a Deus um milagre! A casa vivia cheia na roça, porque as pessoas acreditavam que ela iria morrer e quando ela voltou, ela muito magra, eles acreditavam que ela não ia durar muito tempo, como eles falavam. E o meu irmão volta. Então, a alegria da volta da minha mãe, mas a responsabilidade do meu irmão volta para casa. Só que, desde muito nova, eu tenho um episódio que eu tinha cinco anos, depois eu te conto, o episódio da porquinha, você me lembra para eu não esquecer, que me trouxe um senso de responsabilidade muito grande. Então, quando eu vi que ele estava ali e eu sempre tive esse pensamento, carrego ele até hoje: “Se eu não posso mudar a situação, vou fazer o que me compete. Eu vou assumir a minha responsabilidade e vamos embora, vou fazer isso”. E quando ele voltou para casa, minha mãe sendo cuidada ainda, por pessoas que ajudavam ali em casa, eu comecei a ajudar a cuidar dele. E aí eu tenho certeza que esse cuidado, ali quando ele tinha oito anos e tudo, porque a minha mãe ainda estava em fase de recuperação, isso veio durante a vida praticamente toda, quando ele era adolescente, ele era mais tímido. E eu sempre gostei muito de coisa ligada a moda, de coisa estética, eu falava com ele: “Não, você é homem, mas vamos sair para comprar uma camisa bonita! Você tem que andar bonito e tudo”. Então eu mostrava as lojas legais. Então, eu fiz meio que um papel de mãe assim, com ele, sabe? E aí depois veio a fase adulta, depois que ele passou de dezessete, dezoito anos, a gente tinha uma relação próxima, mas não tão aquela coisa, tipo mãe, de quando eu tinha, de mais cedo. Então era uma relação okay, a gente convivia bem, uma relação próxima, uma família, como qualquer outra família. Hoje eu amava, amanhã eu brigava, ficava sem falar com ele um dia, no outro dia voltava, “Mano”. Aquela coisa de irmãos mesmo. Mas era uma relação boa, uma relação absolutamente normal na vida adulta. Ele, adulto, uma relação absolutamente de irmãos, total de irmãos que se amam, mas que foi pontuada aí pela infância dele e a minha também, por essa relação meio de cuidado que eu tinha por, de certa forma, eu me enxergar como responsável. Eu não me via como mãe dele, o sentimento que eu sempre tive em relação a ele é que eu tinha uma responsabilidade para com ele.
P/1 – Pensando na sua infância, tem algum cheiro, alguma comida, alguma data comemorativa que lembra esse período?
R – Olha, não. Eu nunca parei para pensar nesses detalhes. Eu acredito que como uma forma de defesa natural, por ter tido episódios, eu passei assim, eu tive uma infância muito feliz, tá? Eu tive uma infância com muita abundância de amor, uma infância onde eu morava na roça, mas eu tinha acesso a tudo. Porque as outras colegas e tudo, era todo mundo filha de quem plantava café, o pai mexia com café e o meu pai era pedreiro, então meu pai, toda semana chegava com dinheiro em casa. Só que eu passei por períodos também difíceis, que foi a doença da minha mãe, depois a gente saiu da roça e mudamos para Belo Horizonte, que foi um período de muita adaptação e um período que eu sofri muito. Então acredito eu, que eu nunca fui aquela pessoa muito… eu não sou muito saudosista, muito apegada e fica aquilo: “Ah, mas eu lembro que… ah, como eu queria voltar”. Não, eu tenho assim, alguns episódios marcantes que eu lembro com carinho, por exemplo, esse caso da porquinha que eu te contei, que eu falei que falaria. Eu tinha cinco anos, a gente morava na roça e meu pai comprou uma porca, porco. Eu falo isso, porque eu convivo com gente que sabe o que é porco, o que é porca, o que é roça e convivo com gente que olha para mim, e eu vejo que a pessoa fala assim: “Gente, será de onde que fulano acha que vem a carne de porco?” Tipo isso, sabe? (risos) Eu pergunto por isso. Mas o porco lá, o bicho, o suíno mesmo, na roça. Meu pai comprou uma porquinha, chegou para mim, eu tinha cinco anos de idade, cinco para seis anos, cinco anos e meio eu acho, beirando os seis anos e falou: “Comprei essa porquinha e você irá engordá-la”. Abre os parênteses (porque naquela época os animais, muitos desses, principalmente os suínos até hoje, eles são tratados ali com milho, com lavagem, que é aquele resto de comida para engordar e depois que eles engordam, eles são abatidos para comida da casa, né. Para carne de lata, essas carnes aí que a gente tem na roça). E a minha função era engordar o porquinho, isso significava que eu tinha que dar comida para ele todo dia de manhã e à tarde, e que eu tinha que limpar o cocho dele. Cara, eu tinha seis anos! Eu tinha uma preguiça com aquela porca, eu olhava para aquela porca com vontade de matar aquela porca! Só que não podia, o meu senso de responsabilidade veio dali. Hoje eu sou assim, extremamente grata! Eu já fui, essa história da porca, eu nunca vou esquecer! Eu sempre fui muito grata, porque eu falo assim: “Cara, eu tenho uma responsabilidade!’. Já teve situação de eu falar: “Cara, eu devia ser menos responsável, porque eu tenho muita responsabilidade”. Mas eu tenho certeza absoluta que isso veio da porca, porque eu não podia matar a porca, meu pai tinha me dado aquela missão, eu não podia decepcionar e falar: “Eu não vou fazer!”. Só me restava cuidar da porca. Te falo assim, com um pouquinho de vergonha, mas eu era criança, tinha dia que eu levantava e não escovava os dentes, mas dava o horário da porca, lá ia eu, debulhar milho e levar para a porquinha. Missão dada, missão cumprida, a porquinha engordou, matamos a porquinha, comemos a porquinha e nunca mais ele me deu uma porca para tratar, mas ele falava, a minha mãe também, que a porca era para eu ter responsabilidade com as coisas. E funcionou, tá? Então, assim, esse episódio eu lembro muito e, às vezes, quando eu vou conversando assim, me vem outras coisas. E um outro episódio que eu gosto muito de lembrar, é que eu andava muito, parece que eu tenho 100 anos. Quando eu conto as histórias que eu estou contando, é algo tão antigo. Mas eu andava seis quilômetros a pé para ir para escola, eu estudava de manhã. E a escola começava às 07h da manhã, era uma escola pública, uma Escola Estadual, mas de freiras, de irmãs de caridade, uma escola católica e era tipo uma escola particular, tinha uniforme, tinha tudo, tinha umas regras mais rígidas e tudo. E eu tinha que chegar na hora, e eu ia a pé e voltava a pé todo dia. E em épocas de chuva, quando a gente tomava chuva, às vezes, época de chuva não levava sombrinha, era uma turma, eram vários primos, a gente ia nuns dez, indo e voltando. Eu, como eu te disse, eu não gostava de andar no meio de uma turma muito grande, eu preferia uns três, quatro, ali só. Mas quando chovia juntava todo mundo, aí chovia, aí a gente vinha, no caminho as minhas tias… porque meu avô é casado duas vezes, então tem tias, uma que é mais nova que eu e uma que é da minha idade, falava assim… a casa era muito cheia, eram muitos irmãos, oito ou dez irmãos, falava: “Nossa, chegar lá em casa, até minha mãe arrumar água quente para gente tomar banho…”. Porque ainda era… tudo a ver com obra… era de serpentina que esquentava o chuveiro, um método bem antigo, lá. “Aí vai demorar, a gente vai sentir muito frio”. Eu não, era uma sensação de alento, porque era só eu, meu irmão era pequeno ainda, era bem pequenininho, então ele não atrapalhava em nada. Eu chegava, quando chovia, a minha mãe tinha um sentimento de acolhimento comigo, essa sensação é boa assim… eu chegava já tinha água que ela tinha esquentado no fogão para me dar banho, tinha comida, tinha roupa quentinha. Então a gente tomava aquela chuva no caminho e aí chegava em casa, eu tinha oito anos, sete, depois oito, até nove anos, aí chegava toda molhada, morrendo de frio, aí minha mãe chegava. Então era uma sensação de acolhimento muito boa, porque aí tinha a água quente para tomar banho, ela me botava lá no chuveiro, jogava água, a gente chama banho de cavalo, quando vai jogando água assim, jogava a água, me secava e aí me dava, botava uma roupa, botava comida ali. Talvez, acredito que muito possivelmente essa sensação de acolhimento, talvez era uma busca de voltar a ser aquela filha única, que era só eu e que naquele momento as atenções eram todas voltadas para mim. Então, são esses sentimentos pontuais, que eu tenho. No mais, com os acontecimentos da vida, como uma forma de me blindar para eu não ficar lembrando dessas coisas e não ficar com esse saudosismo e pensando: “Poxa, mas o que aconteceu comigo. Olha o rumo que a minha vida tomou!”. Eu não fico buscando muito essas memórias, elas estão lá, muito boas, mas eu não as busco o tempo todo. Eu acho que até como uma forma de defesa minha, por tudo que já aconteceu.
P/1 – Eu fiquei na dúvida quando você falou que depois que você se mudou para roça, era outra cidade?
R – Deixa eu te explicar, vamos fazer aí, porque é muita história. Eu te falei, parece que eu tenho 100 anos, mas não é, tá? Estou com 43 ainda, vou fazer 44 (risos). Meus pais nasceram na roça, foram criados na roça e a minha mãe com dezoito anos casou com meu pai. Meu pai trabalhava com o pai dele de pedreiro e tudo, fazendo algumas coisas na roça, ele não gostava, como dizem eles, da lida da roça, da labuta da roça. Aí meu pai: “Vamos para Ipatinga?”. Minha mãe: “Vamos!”. Por que? A roça que a gente morava, que chama Santana do Tabuleiro, ela fica entre, ela fica naquele meio ali, Caratinga, Raul Soares e Ipatinga que fica no entorno. Aí eles foram para Ipatinga, aí lá, a minha mãe, depois de um tempo de casada, engravidou e eu nasci. Quando eu estava com três meses, a gente voltou para roça, aí eu morei na roça de três meses até os dez anos de idade. Então, eu morava nessa roça, perto de Caratinga, a minha infância foi toda lá. Eu nasci em Ipatinga, mas só nasci, com três meses, eu fui para roça e lá eu morei até dez anos de idade. Aí de lá, com dez, quase onze anos, graças a minha mãe empurrando o meu pai: “Não, a gente pode buscar coisa melhor”. Eu morei em BH, depois de BH eu morei em Vitória, depois voltei para Ipatinga e agora moro em Governador Valadares.
P/1 – Vamos voltar um pouco para essa infância? Eu queria saber quais eram as suas brincadeiras favoritas?
R – Eu adorava… gente vai parecer aquela pessoa super assim: “Gente, fulano era super egoísta”. Eu adorava brincar sozinha. Mas eu brincava com grupo também, eu gostava. Com os primos, como eu morava na roça, tinha um monte de pé de goiaba, muito pé de goiaba, tipo, tinha a casa do meu avô, que existe a casa ainda, é uma fazenda, aquela casa grandona de roça e a 300 metros dali era a nossa casa. É uma casa, ela existe até hoje, tirei fotos lá há pouco tempo, a casa onde eu nasci, onde praticamente eu fui criada até os dez anos de idade. Então quando a gente voltava da escola, isso eu já estava com sete, oito, nove anos, época de goiaba então, aqueles pés de goiaba que tinha, aquela mata de goiaba, era muita, era tipo uns cinquenta pés de goiaba, a gente parava e ninguém almoçava, ficava todo mundo: “Sobe no pé de goiaba, desce do pé de goiaba”. Eu sempre adorei fruta, talvez eu goste de fruta por isso. A gente subia, aí tinha pé de jabuticaba, eu sempre gostei de brincar com os meninos subindo. Então eu gostava disso, dessa brincadeira conjunta. Gostava muito de brincar de boneca, gostava de fazer batizado das bonecas, aí juntava minhas primas, aí tinha um padrinho, a madrinha da boneca, a minha mãe fazia comida para gente poder recepcionar no batismo da boneca, então eu gostava muito de brincar. Então, em grupo, eu gostava muito dessas brincadeiras, era o batismo da boneca, era a gente ficar subindo em pé de goiaba, em pé de fruta e, às vezes, de pique esconde, de correr também no quintal, como era roça, dava para esconder bastante. Mas gostava também de brincar sozinha, eu me entendo, é okay comigo, é uma característica que eu tenho até hoje. Gostava de ter as bonecas ali, gostava de organizar as roupas delas, criar modelos para minha mãe costurar, minha mãe costurava essas roupinhas para as minhas bonecas. Então, era essa brincadeira que eu gostava.
P/1 – E quando você era pequena, você tinha sonho de ter alguma profissão específica ou isso não passava pela sua cabeça? Só queria brincar naquela época? Como era?
R – Curioso que você está me perguntando agora, é uma coisa que nem eu, juro, nunca tinha parado para pensar. “O que eu queria ser?”. Eu venho de uma família que não tem a tradição da formação superior de uma profissão, era meio que as mulheres ali donas de casa, os maridos trabalhavam na roça ou eles iam pra cidade, para poder trabalhar, igual o meu pai trabalhava de pedreiro, alguma coisa assim. Eu sempre gostei muito de estudar, sempre gostei muito de ler, adorava ler. Então eu fui aquela típica criança, um sonho latente desde sempre, eu nunca tive. Eu era aquela criança que hoje eu queria ser, criança mesmo, ali bem novinha, não queria ser nada, só queria levar minha vida ali, amava a Xuxa, tinha coleção de fotos da Xuxa. Aí bem criança, a única coisa que eu queria era ser cantora. Queria ser cantora, eu queria ser artista, eu queria aparecer na televisão. Quis ser paquita também, agora você falando, eu lembro que eu ficava arrasada, porque as paquitas eram todas loiras, eu com esse cabelo escuro, eu pele mais escura também, negra. Não dava! Eu ficava muito frustrada. E aí eu queria ser cantora, aí depois eu vi que não dava também, porque a voz de taquara rachada total, e a minha mãe meio que destruiu o meu sonho de infância, porque ela falava: “Você não canta bem não!’. Eu falava: “Meu Deus”. Era isso que eu queria até dez anos de idade. Depois com dez anos de idade, aí eu já pensava em algumas coisas variadas, Jornalismo, Psicologia, Direito, mas não era nada assim: “Eu quero ser isso”. E aí fui só estudando, cumprindo o que todo mundo estava cumprindo. E te confesso que a minha faculdade de Direito… então assim, eu vivi entre aquele mundo completamente fora da minha realidade, a ilusão, aí tive aquele intervalo onde eu não pensei em nada efetivamente e, depois, eu fui no que era mais propício para mim, que era Direito, porque eu venho de uma família que não tem tradição, eu sou a primeira neta, a primeira filha assim, entre os irmãos, que têm uma formação superior. Então eu ficava pensando: “O que eu vou conseguir fazer? O que tem a ver com a minha área de Humanas?”. Eu tinha certeza o que eu não queria, área de Exatas, misericórdia, não é para mim, sei fazer conta? Sei! Dois e dois, quatro, 12x12 = 144, vou até aí, passou disso já me perturba a cabeça, não gosto não! Eu sei o suficiente para eu me virar nesse mundo. Então quando eu estava com 22, acho que foi com 20, 20 anos, 20 para 21 anos, eu vim morar em… aí meus pais… a gente já tinha passado todo esse processo de mudar de cidade e tudo mais, aí meus pais já moravam em Valadares, eu trabalhava, eu tinha terminado, na época, era Ensino Médio. Não sei como se chama hoje, que é o terceiro ano, quarto ano, não sei como que se chama, eles têm ali o nono ano e depois do nono ano, pula para aqueles três anos ali, que é pré-vestibular. Enfim, na minha época se chamava científico, você vai fazia um curso técnico, por exemplo, de Contabilidade ou de Magistério, para dar aula ali para as crianças, ali até a terceira, quarta série, ou você fazia o científico, que você não se formava em nada, mas você tinha uma noção de tudo. Então ali, eu tinha quatorze anos na época, quatorze para quinze anos, eu não queria Contabilidade, área de Exatas, não quis ser professora, porque não era minha vibe e aí eu falei: “Não, eu vou fazer o científico e depois eu faço um vestibular”. Como eu não sei, porque eu vinha de uma família que ninguém fazia isso. “Mas eu vou fazer!”. E aí, com 21 anos, eu vim para Valadares, eu terminei o científico que é o terceiro ano, trabalhei em loja como vendedora e aí depois eu vim para Valadares. Aqui em Valadares, eu trabalhei como secretária em uma agência e aí eu falei: “Não, eu vou prestar o vestibular. Vestibular para quê? Direito”. Aí eu pensava: “Não, Direito!’. E aí fiz Direito e acredito que foi uma ótima faculdade que eu fiz, me abriu os horizontes, me abriu a mentalidade, incrível! Mas uma coisa eu sempre pensei, eu queria fazer alguma coisa onde eu fosse bem sucedida, porque apesar de vir de uma família simples, de uma família com uma condição simples, eu nunca passei fome. Não venho, eu tinha uma condição simples, uma família mais humilde, mas nunca passei fome e nada disso. Mas eu achava que eu podia ir além, que eu podia ter mais, que eu podia ter um carro maravilhoso igual outras pessoas tinham, que eu podia ter a roupa da moda, que eu podia…eu sempre gostei muito dessas coisas ligadas à moda. Então eu não sabia exatamente o que fazer, mas eu sabia o que eu gostaria, como que eu gostaria que a minha vida fosse no futuro.
P/1 – E pensando um pouco atrás, ainda na escola, tem alguma memória de alguma situação que você passou na escola que foi marcante? Ou de algum professor que marcou essa trajetória?
R – Ah, tem. Tenho várias histórias, desde as que eu amava até as que eu odiava (risos). Vamos começar pelas que eu odiava, eu sou muito pequenininha, eu tenho 1,50m. Eu falo assim, outro dia mesmo me perguntaram: “Você tem 1,50m mesmo?”. “Ah, não me espreme muito não, que se você espremer demais, deve ser 1,49m, por aí, mas a gente arredonda para ganhar um pouquinho, né?”. Eu estava brincando com uma pessoa que comentou comigo. E eu sempre fui a menor da turma, sempre fui a menorzinha. Então eu vim, como eu falei, dessa escola de formação católica, que era Irmã de Caridade, aí a gente cantava um Hino Nacional, hasteava a bandeira, era uma vez por semana, subia, a bandeira ficava meio mastro, tinha um momento lá da bandeira que subia e era isso e desfile de Sete de setembro que tinha. E como é que era a danada da fila? Por ordem decrescente, do maior para o menor. Eu sempre fui a última, eu odiava aquele negócio! Era aquilo, por causa do meu tamanho. Outra coisa, detestava brincar de Educação Física na escola, porque era jogo coletivo, era voleibol e queimada. Gente, o voleibol era um desespero para mim, era um trauma! Porque eu era pequena e as meninas eram grandes. E quando rodava o time que eu ficava na rede? Não, traumatizante, nunca vou esquecer! Mas também tinha a parte onde eu era boa, sabe? A gente tinha um teatro na escola, que a gente fazia, tinha uma apresentação que era tipo, eles faziam um diálogo. E aí quem quisesse participar se oferecia. E as pessoas que estão dispostas a falar na frente, se apresentar, são sempre minoria. Então, eu sempre me colocava à disposição e eu sempre era escolhida. Nossa, e eu adorava! Porque eu não tinha vergonha e, depois da apresentação, as pessoas elogiavam: “Gente, ela fala muito bem!”. Eu era novinha, “Que gracinha!”. Meu avô ficava me elogiando para minha mãe, porque ia lá assistir: “Você viu que bonitinha que ela fez?” Eu adorava aquilo. E eu lembro de uma professora, ela foi minha professora na primeira, na segunda série, e aí acho que para a terceira ela saiu, ela se chamava Dona Selma. Gente, ela era muito carinhosa! Minha primeira professora. E passava as lições. E aí eu lembro que na época eu sempre tive muita facilidade com a área de Português, de Humanas e tudo, mas eu sempre dei conta do resto, a prova de Matemática eu ia bem. E eu lembro que tinha um menino que estudava com a gente, tadinho, ele não conseguia, e tinha uma arguição que tinha que perguntar e quando tinha que ir lá para o quadro, lá na frente escrever, e ela perguntava e eu ficava com uma dó dele, que eu falava: “Gente, a resposta é tão fácil!”. Era tipo: “Escreve aí para mim, dois e dois é quanto?”. Ela botava a continha e ele tinha que ir lá para o quadro e escrever na frente a resposta. Ele não conseguia e eu ficava olhando aquele negócio e não conseguia entender como ele não aprendia, criança, né? Hoje, a gente consegue entender perfeitamente que cada um tem uma habilidade ou a forma de ensinar, às vezes, conta, que cada um, às vezes, ele não era bom naquilo, mas com certeza tinha outras habilidades incríveis em outra aula. Mas imagina para criança? E a tensão que era aquilo para ele. Quando chegava a minha vez, eu ia toda serelepe, ia lá e fazia o meu. Mas eu nunca fui aquela criança que ficava assim: “Ih, você errou! Ih, você errou!”. Não, eu sempre tive esse respeito, eu tinha dó dele, na hora do meu, eu me envaidecia, mas era eu me envaidecer contidamente. Eu ia lá, fazia o meu, colhia os meus louros, colhia os meus elogios e sentava bonitinha lá. Então assim, eu tenho muita recordação bacana daquela primeira, não sei se primeira infância, porque eu acho que primeira infância é quando você está mais novo, mas nova. Na minha época, não tinha aquela coisa de pré primário e tudo, só quem estudava na cidade, que era de família com condição melhor. Eu já entrei na primeira série, então aquela primeira, segunda, terceira, até quarta série, nossa, muita, muita, muita recordação boa, foi muito legal! E era uma escola que era perto de onde morava a família inteira, na roça, então eu estudava com o primo, com tio, então era uma extensão da família, literalmente.
P/1 – E quando você se muda para Belo Horizonte, o que motivou essa mudança? E eu queria saber qual foi a primeira impressão quando você chegou em Belo Horizonte?
R – Olha, Belo Horizonte para criança, para idade que eu tinha, foi uma experiência digamos que, não vou te falar trágica 100%, tive muita experiência boa, mas eu falo assim, para as minhas memórias, para minha autoestima, para a maneira como eu me via, Belo Horizonte foi punk. Por que o que acontece? Belo Horizonte foi a grande ruptura entre… hoje se fala muito na bolha. E eu, literalmente, vivia em uma bolha. Repare, de família simples, mas que morava em uma roça que tinha energia elétrica, que o pai ia para cidade trabalhar, a minha mãe cultivava algumas coisas ali perto de casa, o meu avô mexia com plantação de café, não era um grande cafeicultor, mas colhia café, então tinha aquelas festas de comemoração. Então, para aquele padrão ali onde você vive… então assim, esses conceitos são muito relativos, porque: “Ah, fulano é rico”. Em referência ao quê? Ao mundo? Em referência ao bairro? Em referência à rua que ele mora? Em referência a ser comparado aos Emirados Árabes? À Dubai? Eu atendo clientes de alto padrão, alguns clientes que eu olho e falo: “Meu Deus, fulano está agindo desse jeito, porque acha que tem dinheiro demais. Vou levar ele lá para Dubai”. Porque eu já fui para Dubai e é uma coisa assim, megalomaníaca, que você vê e você fala: “Meu Deus, o dinheiro não tem limite, né?”. Então, assim, quando a gente fala em uma infância simples e tudo, tem que ficar muito bem marcado isso, porque até dez anos de idade, era uma infância com simplicidade, mas muito rica! Pai, mãe. Meu pai por ser pedreiro, ele vinha com aquele dinheiro para roça, ele não tinha o gasto que se tinha na cidade, não pagava aluguel e tudo, então a gente tinha uma vida mais abundante. Eu tinha tudo quanto era roupinha de marca que surgia, que achavam bonita, eu não tinha todas, mas minha mãe ia na cidade mais perto, que era Caratinga e comprava, eu colecionava discos da Xuxa, eu tinha bota original da Xuxa, na época. Então essa foi a minha infância. Aí primeira infância, depois veio meu irmão, que meio que quebrou isso de eu ser sozinha, mas continuamos tendo as coisas. Só que por um lado não era bom e era pesado para minha mãe, hoje eu consigo ver isso, porque a gente morava na cidade, meu pai ficava a semana toda fora, ele ficava a semana toda trabalhando na rua e chegava na sexta-feira. E aí a minha mãe falava o seguinte, depois eu fui vendo aquilo, ele trabalhava e ela ficava aguentando o rojão sozinha, cuidando de filho, ficava sozinha a semana inteira. Ele vinha final de semana, aí pagava o que tinha que pagar, organizava o que tinha que organizar, fazia as coisas e segunda-feira começava tudo de novo. Domingo à noite ele ia, ela passava uma semana sozinha de novo. E é o que eu te falei, meu pai era muito fazedor, muito trabalhador, mas minha mãe com a mente pensando lá no futuro. Ela começou a pensar como seria a criação dos filhos, foi essa falta constante do meu pai, ela era casada, ela tinha um marido, ela tinha casa, ela tinha filhos, mas ela não tinha esse marido do lado dela para ajudá-la. Então eu lembro dessas conversas e ela falando com ele: “Que a gente vai com você. Família é para ficar junto, família é para as pessoas acompanharem umas às outras. Então eu vou com você para a cidade”. Então isso foi uma ruptura muito grande, porque determinou que a gente estaria junto ali, como diz: “Na saúde e na doença”. Todo mundo junto como família, mas determinou também a saída dessa bolha que a gente vivia e que eu vivia. Então quando eu cheguei em Belo Horizonte, o meu pai foi trabalhar de pedreiro com um cara, com alguém conhecido que já morava em BH e indicou, esse cara deu um serviço de pedreiro com meu pai e falou com ele: “Oh, o aluguel aqui é caro”. Era um bairro bom, na verdade não era nem a grande BH, era Contagem, era um bairro muito bom. E, hoje, eu fico olhando e falo assim: “Cara, era surreal aquilo”. Era um bairro muito bom, chamado Eldorado se eu não me engano, é um bairro de classe média, acredito eu, talvez nem seja, eu nunca parei para pensar sé é um bairro de classe média mesmo, talvez nem seja, talvez nem seja classe média alta, talvez seja classe média baixa, mas para os padrões que a gente tinha, estava muito além do que a gente podia, a gente tinha uma casinha na roça e, na cidade, a gente não tinha nada, morava de aluguel. Aí meu pai e minha mãe alugaram um cômodo de comércio, esses que tem aquelas portas que giram, e lá puxavam aquela porta grandona, olha para você ver, acordava de manhã, era em uma avenida, ficava passando um carro o dia inteiro, tinha que ficar olhando o meu irmão, para o meu irmão não ir para rua, e era um cômodo de comércio. Então virava e mexia, alguém passava e olhava lá embaixo, só que lá dentro estava um sofá, uma cama, uma cozinha, um fogão e uma cortina separando onde era a cama e o banheiro. Então assim, foi horrível, eu sentia vergonha daquele lugar que eu morava. E eu estudava perto dali e era uma escola, digamos que é era uma escola pública, é uma escola pública, mas digamos que é uma escola pública onde quem frequenta é de um bairro muito bom, então os meus colegas todos tinham muito mais, eu estava muito aquém da condição financeira que todo mundo tinha. Se fosse hoje, eu ia falar que eu sofri um bullying terrível, eu não conseguia me encaixar naquele meio ali, eu não conseguia, eu não tinha roupa para acompanhar aquelas meninas, meu pai não tinha um carro para ser igual os pais daqueles meninos, eu não tinha uma casa igual, eu nunca consegui me encaixar ali. Eu não me lembro bem, é o que eu te falei, essas memórias, quando elas não me fazem muito bem, eu lembro de umas coisas, mas eu não fico puxando. Mas eu acho que a gente morou lá uns… eu acho que não chegou a um ano, não me recordo agora o tempo, mas foi menos de um ano, eu tenho certeza disso. E a minha mãe com um esforço… qual que era um intuito disso? Acompanhar o meu pai, onde ele ia, a família dele também tinha que ir. Entendo ela nesse sentido, só que a gente saia do conforto que a gente tinha na roça, para viver uma vida que era bem mais puxada. Então ali eu não me encaixei, não me encontrei, não foi uma experiência legal nesse cômodo. Depois de lá, a gente mudou para um outro local, era um bairro mais simples, mas nesse bairro mais simples a gente tinha uma vida legal, mas eu andava muito para ir para escola e lá o meu pai conheceu, tinha uns vizinhos que gostavam muito de jogar, jogavam baralho. Aí meu pai jogava baralho lá nesse lugar que a gente morava e, às vezes, ele trabalhava a semana inteira, pagava conta, o que sobrava meu pai ia jogar valendo dinheiro. Aí eu escutava briga em casa por causa disso. Então assim, eu era muito nova, eu tinha onze anos, imagina, dez para onze anos, então eu era muito nova. E ali era bom o local, estavam okay os vizinhos, mas meu pai estava envolvido com aquilo ali. E essa coisa de vício, é uma coisa muito DNA, eu li um livro que se chama O Poder do Hábito, que eu acho aquele livro incrível! Eu acho, ele é um livro grosso, mas eu acho que ele explica muito bem essas coisas, o ser humano é um ser de hábitos. E o meu pai, quando meu irmão ia nascer, faltavam trinta dias para o meu irmão nascer, meu pai largou o álcool, porque meu pai era alcoólatra, alcoólatra mesmo! Nunca bateu na minha mãe, nunca bateu em mim, nunca xingou, nunca deixou faltar nada em casa, mas nada disso desconfigura o fato dele ser alcoólatra. Ele era o cara que trabalhava de segunda a sexta, eu te falei, ele ia, às vezes, ele trabalhava e, a maioria das vezes, era na cidade, ele trabalhava de segunda à sexta, mas, às vezes, também ele trabalhava lá na roça, ia fazer a casa de algum fazendeiro, sempre de pedreiro. Aí o meu pai trabalhava de segunda à sexta, chegava, entregava o dinheiro para minha mãe, para minha mãe cuidar de casa e ele ia para o bar, lá ele ficava de sexta até domingo. Ele não ficava direto, ele ficava de sexta até 23h, 00h, chegava em casa dormia, no outro dia acordava cedo e ficava o dia inteiro no boteco, chegava à noite, dormia, domingo, o dia inteiro no boteco. E aí, em algum casamento, algum aniversário na roça, meu pai bebia até quase cair e eu via aquilo. Acredito que até hoje eu não bebo, eu não gosto, não bebo mesmo! Experimento um espumante, um vinhozinho, pouco, mas não gosto, acredito que tenha uma ligação com isso. Eu sempre tive trauma de perder o controle das coisas, de um dia chegar aquilo. E o meu pai tinha essa tendência a vícios, por que? É o que eu falei, o ser humano é um ser de hábitos. Então ele teve esse problema com álcool e lá em Águas Claras, que é o nome do bairro em Contagem, ele começou com esse problema com o jogo. E a minha mãe muito ali, aquela leoa olhando, ela identificou, ela identificou quando estávamos na roça e não era legal para família a gente ficar separado… minto, vamos voltar, quando o meu pai era alcoólatra, a minha mãe grávida, faltando um mês para o meu irmão nascer, a minha mãe falou com ele que já não dava mais para sustentar aquela situação, que ele era alcoólatra, que ele tinha que tomar uma decisão na vida dele ou não daria para a gente continuar. Ele decidiu, parou de beber, nunca mais bebeu, nunca mais tocou em álcool. A vida seguiu, a minha mãe… passou o episódio onde a minha mãe teve o aneurisma, minha mãe se recuperou, ficou perfeita, não teve problema nenhum e tudo, não ficou sequela nenhuma, meu irmão seguiu. Eu com dez anos de idade, eu com dez anos, a minha mãe percebeu que aquele arranjo de família não estava legal, meu pai trabalhando fora e voltando no final de semana. Aí fomos todos com ele para a cidade, fomos para Belo Horizonte, ali a minha mãe percebeu que não estava bom, não estava feliz naquela escola, não estava legal onde a gente morava, “Vamos mudar”. Mudamos para um outro bairro, lá estava tudo indo okay, mas aí minha mãe identificou mais uma vez que o meu pai estava se envolvendo com uma coisa que não estava legal naquele momento e, a longo prazo, ia fazer um estrago muito maior. Aí a gente volta a morar na roça, a gente voltou a morar na roça de onde a gente saiu e moramos mais um ano, talvez. Talvez eu perca um pouquinho nas datas, porque foram espaços pequenos aí, mas tudo isso aconteceu entre dez anos de idade e onze para doze anos, essa mudança toda, essa coisa de ir para BH, voltar, depois ir para Vitória, foi nesse espaço aí de dez, até uns doze anos. Mas foi isso, minha mãe sempre ali por trás, arquitetando e observando para ver o… arquitetando no bom sentido. Observando para falar: “Opa! Eu preciso redirecionar essa família aqui, porque no caminho que está não tá legal não”.
P1 E na adolescência, como foi esse período? Como você se divertia? O que você fazia nessa época? Tem alguma lembrança?
R – Ah, tenho. Adolescência eu já estava Vitória, eu falo Vitória, mas, na verdade, é no Espírito Santo, eu morava no que hoje a gente chamaria de comunidade, mas era um bairro muito simples, formado por invasões. Hoje fala-se muito nas invasões, por exemplo, que todo mundo conhece é o MST, que ocupa essas terras agrícolas e tudo, mas eu morei em um lugar, que a gente foi para o Espírito Santo, para Vila Velha, e aí falaram: “Oh, tem um bairro aqui que você pode alugar uma casa com um preço muito bom e tudo”. E para lá nós fomos. Era um lugar onde as casas eram doadas pelo… agora eu não sei se é o Estado, se é o Governo Federal, não faço a menor ideia, mas eram casinhas dessas placas que são usadas em muro comercial de concreto. Era uma sala… eram dois cômodos e um banheiro e eles davam, davam um terreninho, um pedacinho de terra lá, como dizia o meu pai. Mas era um lote com uma casinha que eram dois cômodos e um banheiro. A gente foi morando de aluguel, na verdade, morando de aluguel não, minto, a gente foi morando com um primo, em uma casa dessa, e o que acontece? Eles ficavam, vamos supor, era um grande loteamento, hoje o lugar chama Terra Vermelha, anos, anos e anos que eu não vou lá. E assim, contando é meio surreal, eu falo: “Gente, olha o que eu já passei!”. O que já aconteceu, né? Mas a gente chegou e fomos morar com um primo, saimos ali de Vitória e falamos: “Não, vamos, porque…”. A minha mãe: “É na cidade que a gente tem que ir, que eu tenho que criar esses meninos”. Porque a minha mãe vislumbrava um futuro melhor. E aí nós fomos morar com esse primo, eu já tinha doze anos, quase, e ali o meu pai estava de olho, fez cadastro, porque ia sair uma nova remessa de casa nesse loteamento, que o Governo daria, poder público. Aí não sei qual Governo, estadual ou federal não sei, mas que essas casas seriam doadas. Só que alguém avisou para ele que o pessoal ia invadir essas casas, que eles não iam esperar o dia da doação, porque quando doa não é todo mundo consegue, eles têm os preferidos. E aí meu pai foi e invadiu uma casa dessa, meu pai invadiu, minha mãe ficou lá dando apoio. E é aquela coisa, eu não vi de perto, porque eu só ouvia, tá? Eu ficava na casa com a minha mãe e tipo, vamos supor que a 1 km daqui é onde estão as casas, no bairro mesmo, e onde está invadido, aí meu pai passou, acho que mais de semanas lá. Aí ficou, depois eles deram um documento e deu certo, a primeira grande… o primeiro imóvel que ele conseguiu lá na cidade era isso. “Sandra, você para pra pensar se isso foi legal, se isso não foi?”. Não me diz respeito, eu não paro para pensar se fez certo, se não fez, se era aquilo, não penso de verdade nisso, nem passa pela minha cabeça. E ali foi minha adolescência, nesse bairro, um bairro pobre, extremamente pobre, que hoje a gente chama de comunidade, mas um bairro onde eu passei a minha adolescência inteira, ali eu estudei, ali a gente ia para Vila Velha. Mas eu te confesso que eu sempre tive um incômodo muito grande em morar, em viver determinadas situações e morar em determinado local, lá em BH eu tinha um incômodo muito grande de morar nesse lugar, nesse cômodo de comércio onde os meus colegas escola abusavam de mim, no sentido de fazer um bullying comigo, se falar abusar vai parecer um outro termo, então assim, só para entender, onde os meus colegas faziam um bullying comigo. E aí de repente a gente mudou para o Espírito Santo, a gente voltou para roça, da roça a gente ficou só uns seis meses e voltou para o Espírito Santo. Me incomodava morar naquele bairro que era tão pobre. O nome Terra Vermelha é porque quando chovia, era terra mesmo, não tinha asfalto. Eu estudava nesse bairro mesmo, mas se a gente precisasse, qualquer coisa que ia fazer tinha que ir em Vila Velha. E eu tinha uma prima que morava em Itapuã, uma prima mais distante, de frente para a praia, então aquilo ali para mim era o que eu almejava. E eu via que a minha mãe pensava isso, a minha mãe não almejava exatamente aquilo, mas ela achava que a gente ia ter que ir galgando, ia ter que ir trabalhando para gente chegar ao ponto de morar num lugar legal, ter uma casa legal, uma vida mais digna, essa coisa toda. Mas eu vivi, então assim, foi tudo muito picado, eu vivi dos doze até os… de onze para doze, até quase quinze anos ali, quatorze anos, a gente morou ali três anos e pouco. Aí a minha mãe, eu lembro até hoje, falou com meu pai: “Olha, a gente mora aqui, é legal, mas eu acho que a gente tem que ir em busca de algo melhor”. Ela não gostava, tinha muita marginalidade, muita coisa ruim perto, ela tinha muito medo, eu lembro que ela falava: “A Sandra é okay, mas o Ju tá crescendo”. Que era o meu irmão. “Então acho que a gente precisa procurar um lugar onde a gente consiga dar uma criação melhor, aqui é muito perigoso”. Porque tinha tráfico de drogas, muita bandidagem, aquela coisa toda. Meu pai sempre permaneceu um cara muito trabalhador e um cara que sempre escutou muito o que a minha mãe falou, mas ela tinha os argumentos, ela não acordava e decidia, “Ah, vou mudar daqui”. Não, ela era muito embasada no que ela falava, era uma coisa muito pensada. E aí eu tinha umas amizades ali, mas eu sempre tive esse problema em me fixar muito por causa dessas mudanças. As pessoas… eu percebia que as pessoas tinham amigos, que eles conviviam com eles desde o pré primário, desde a primeira série, desde a quarta série e eu sempre me senti meio deslocada no meio de todo mundo, por quê? Só até… eu considero aí nessa linha do tempo, que até os nove anos eu convivi com a minha turma, a partir dali eu era sempre uma que estava chegando depois, lá em BH, em Contagem, depois em Vitória, aí fiquei um tempo, era bem adolescência. Aí com quase quinze anos voltamos para Ipatinga, aí voltamos para Ipatinga e aí foi o período que eu mais vivi a minha adolescência, eu saía, tinha amigos, meu pai colocava um horário para eu chegar em casa. Comecei a trabalhar com quinze anos, foi meu primeiro emprego, trabalhei em uma loja, eu trabalhava e estudava. Nunca fui baladeira, tinha um pouco de preguiça, sabe? Eu falo que hoje eu estou velha, mas eu sempre tive espírito velho, sempre gostei mais de coisas durante o dia, mas saía o final de semana, tinha amigos, gostava. E ali era uma vida de adolescente normal, namorava, nunca fui namoradeira demais, sabe? Cada dia com o namorado diferente? Mas estava sempre com umas paqueras diferentes, ali e tudo. Foi uma adolescência bem típica mesmo, nada de muita revolta, aquela coisa: “Ai, dá problema, droga, álcool”. Não tive isso, nada disso. Eu sempre fui aquela adolescente mais normal, dentro do padrão, mas sem os índices de rebeldia.
P/1 – Sandra, e na época da faculdade você chegou a exercer a profissão de alguma forma? Fez algum estágio ou ficou por ali mesmo?
R – Estágio eu fiz. Estágio eu fiz. Eu entrei na faculdade de Direito, não foi pensando em advogar, eu pensei na faculdade de Direito para fazer concurso público, acredito eu que por ter vivido toda essa instabilidade dentro da minha casa, eu procurava estabilidade, virei empreendedora, olha, para você ver, que coisa! (risos) Então eu fiz faculdade de Direito pensando em fazer concurso público. E aí eu trabalhei numa loja quando eu tinha quinze anos. Depois, eu trabalhei sendo auxiliar de professora, aí depois eu vim para Valadares e trabalhei como secretária numa agência, aí fiz faculdade de Direito. Quando eu entrei na faculdade, eu fui trabalhar em uma academia, uma academia onde eu entrei como secretária, recepcionista, e depois eu virei gerente dessa academia, sempre foi uma característica minha, eu entrava em alguma coisa para fazer, em algum lugar para trabalhar, e daí a pouco eu estava com um cargo um pouco a mais. Eu nunca fui a pessoa que esperou receber para fazer, eu sempre fiz para depois ver se eu… nunca fui pensando em promoção, eu falo muito com os meus alunos, com a minha audiência no Instagram e tudo, que é o “Servir com excelência. Se vamos fazer, vamos fazer bem feito”. No mínimo, você vai entregar o melhor que você pode e as consequências disso vem. Então, nessa academia, eu virei gerente, o horário era ótimo para eu trabalhar e estudar. Fiz a faculdade, mas no final tinha a parte de estágio, fiz o estágio no Fórum, em uma Vara Criminal. Tinha dia que eu gangorreava em cima daqueles processos, dessa altura, pô, eu trabalhava à noite, eu ia dormir 00h, aí 7h… é isso… não, minto. Nessa época do estágio, que eu gangorreava lá, eu abria a academia 6h da manhã, eu ia dormir 23:30, 00h, 5h da manhã eu acordava, 5h da manhã eu acordava! E aí ia trabalhar, trabalhava na academia até 1h da tarde e ia para o fórum, imagina se eu ia conseguir me concentrar em cima daquele calhamaço de processos. Mas enfim, dava uma cochiladinha e voltava para os meus processos. Fiz muita petição para o promotor e trabalhei na Promotoria Criminal. E aí terminei minha faculdade, depois fiz um estágio na própria faculdade, no núcleo cível. Te confesso que criminal era mais instigante, triste, mas em termos de instigar para trabalhar, era mais interessante, mas nunca tive objetivos na advocacia. E aí eu pensei: “Vou terminar minha faculdade e vou começar a estudar. Só que sempre trabalhei e eu me dedicava muito ao trabalho, o trabalho sempre consumiu muito e eu comecei a estudar para concurso. E aí eis que em 2000, eu terminei a faculdade no final de 2006, né. 2007 eu descansei um pouquinho, olha a ideia, descansar depois terminar a faculdade! Hoje a minha cabeça é outra. E nem novinha assim eu estava. Mas enfim, eu fiquei ali uns seis meses sem fazer nada, só tá trabalhando, aí comecei a estudar para concurso. Aí estudei ali em 2007 e 2008, comecei a me preparar no final de 2008 para o concurso que ia ter do TRT, Tribunal Regional do Trabalho, estava estudando, era a nível médio, não precisava ter superior, mas um salário muito bom, e ali eram 60 questões da prova, primeira etapa da prova, estava muito animada! Na época, eu estava noiva, era gerente da academia, já morávamos em Valadares, a mudança para Valadares a minha mãe sempre impulsionando o meu pai. Lá atrás, quando a gente morava em Terra Vermelha, no Espírito Santo, em Vila Velha, meu pai vendeu aquela casa que foi invadida, ele fez várias melhorias, ele trabalhava à noite e trabalhava final de semana, então ele vendeu bem. Fomos para Ipatinga, moramos lá em Ipatinga, ele vendeu essa casa com preço bom. Depois ele veio para Valadares, em Valadares ele comprou um lote e teve um boom no mercado de Valadares, em um bairro onde ele comprou um lote e valorizou demais! E foi aí que ele conseguiu, a gente conseguiu morar em um tão sonhado lugar legal, que a gente morava. Então por que isso? Para contextualizar, que aí no final de 2008, eu tinha terminado minha faculdade, eu estudava para o concurso, a gente estava… o meu pai foi fazendo imóvel e vendendo, porque aí ele virou construtor, fazia e vendia, a gente estava em véspera de mudar para a nossa casa própria no bairro que a gente queria. E eis que eu comecei a estudar, estava indo muito bem estudando, eu falei; “Cara, vou deixar para estudar Regimento Interno faltando uma semana para a prova”. Faltando uma semana para a prova, meu pai foi diagnosticado, passou mal, meu pai que era construtor, meu irmão trabalhava com ele, foi diagnosticado com câncer, um câncer raro em estágio terminal. Eu estava acompanhando-o no momento que o médico falou tudo o que poderia ser. E ali, de repente, o meu mundo deu uma desmoronada, sabe? Meu mundo deu uma desmoronada, por que? Eu tinha terminado a faculdade, eu estava em busca do meu sonho que era o concurso, eu fiz essa prova, eu descobri a doença do meu pai era uma terça, no domingo era prova, eu lembro até hoje. Descobri, minto, na segunda. Ele passou mal no final de semana, foi internado domingo, na segunda-feira eu descobri o que era o problema, a gente descobriu que não tinha jeito. Eu ainda tentei estudar nessa semana, porque eu tinha a prova, mas não dei conta, das 60 questões eu acertei 53, quem entrou no concurso público, quem entrou nas vagas foi que fez 57, eu errei… ou seja, das 60 eu errei 7, faltaram quatro, minto, eu fiz 54 questões, faltaram três para eu entrar, as três que eu errei, Regimento Interno que eu deixei para estudar na última semana e não consegui. Então assim, eu nunca exerci Advocacia, nunca foi minha intenção, não é uma frustração, o concurso público também, que eu queria muito eu não consegui, mas eu não sou: “Ai se eu tivesse”. Não deu, paciência, vida que segue e acredito que não era para ser, acredito que o meu caminho tinha que ser trilhado de uma outra forma. Mas te falo que o Direito, ele me abriu muitas portas, ele me ajudou muito, ele foi importantíssimo e ele me dá um astro de conhecimento, de vida. Eu falo que quem aprende, não depende. O conhecimento ele te abre um horizonte de oportunidades, ele te apresenta mundos jamais imagináveis. Eu fico imaginando essa era da internet hoje, as pessoas, inclusive, têm que ter cuidado, porque às vezes se abre tantas opções, que a pessoa fica naquele zig zag ali e não sabe no que que se concentra. Mas a faculdade de Direito, “Ah você se arrepende?”. De forma nenhuma, inclusive eu recomendo, eu falo que quem tem já uma faculdade, tem gente que adora estudar, quer ter um segundo curso, faça Direito, que ali você vai mudar e vai abrir sua mente para muita coisa aí na vida. Então, assim, não é uma frustração, não exerci, mas é um aprendizado absurdo e com certeza foi um ótimo investimento que eu fiz.
P/1 – E como começa a sua história com a Construção Civil?
R – A minha história com a Construção Civil, acredito que de uma maneira inconsciente, de uma maneira, não digo inconsciente, mas uma maneira que não me afetava diretamente, começou lá quando o meu pai casou com a minha mãe. O meu pai é pedreiro, o meu avô também fazia umas coisas de pedreiro e tudo mais. A vida seguiu e por ver o que era uma vida de um pedreiro, das esposas de pedreiros, dos filhos de pedreiros, eu sempre quis algo diferente para mim, por isso a busca pela faculdade, eu o ver falar: “Eu posso ter uma vida. O que eu tenho que fazer para ter uma vida melhor e tudo?”. Acesso a mais coisas, né, os acessos. E aí a vida seguiu, quando foi, conforme eu falei, quando foi fevereiro de 2009, março de 2009, o meu pai pedreiro, depois virou encarregado, mestre de obras, quando chegou em Valadares, ele se transformou em construtor, ele era o cara que fazia a própria obra e a minha mãe, por de trás, sempre incentivando. Então você vê que ela é essa pessoa de bastidores, que vai empurrando, e ele, o fazedor. E aí de repente o meu pai virou construtor, começou a construir para vender. Só que sempre foi passando, foi dando certo, tanto que quando meu pai faleceu, a gente estava em véspera de mudar para nossa casa em um bairro que hoje é considerado um dos bairros mais valorizados que tem aqui em Valadares. Meu pai descobriu que vinha de um processo de emagrecimento, faz exame, vai no médico, vai no outro, quando foi em março de 2009, 21 de março de 2009, salve engano, meu pai foi internado dia 20, dia 21 de março descobriu que estava com câncer, o médico me falou, eu estava acompanhando-o. Minto, não foi dia 21, acho que dia 02… foi dia 07 de março, 07 de março, 08 de março, porque é isso mesmo, dia 08 de março, início de março, porque 21 dias depois o meu pai veio a falecer com um câncer no estômago. Eu vivi duas situações de perda de pessoas, de uma pessoa que esteve doente e que a gente foi vivendo o luto dela até o momento que ela se foi e de uma pessoa que estava aqui agora e de repente não está mais. Se me perguntassem hoje: “Qual que é pior?”. Ambas são difíceis! Eu prefiro pensar do lado menos ruim de cada situação, eu penso que ele morreu tão rápido, descobriu um câncer, 21 dias depois. Ele morreu dia 29 de março, então foi dia 08. Ele foi internado dia 07, dia 08 descobriu o câncer, 21 dias depois ele faleceu. Acredito que isso privou ele de sofrimentos, isso foi mais leve para o final da vida dele, tinha que ser assim. Eu acredito muito nessa coisa da crença, de Jesus, de Deus mesmo, dessa coisa bíblica mesmo, sabe? Que você tem um tempo na terra, tem um momento de plantar, tem um momento de colher, tem um momento de ficar aqui e tem um momento que você vai para uma outra vida que não é aqui. É isso, você vai para um outro estágio e aqui para mim acabou. E aí o que acontece? Ele morreu em março de 2009. Aí o meu pai morreu e deu aquela sacudida, porque foi o primeiro momento em que você ouve falar que fulano morre, que as pessoas adoecem, que as pessoas sofrem acidentes, mas é tudo muito... parece muito longe, parece que aquilo acontece com o Zé, com a Maria, com o João, mas com você não, é tudo muito distante da sua realidade. Até que o meu pai é acometido por esse câncer e morre assim, um homem de 52 anos que trabalhava, estava muito bem, não estava tão bem nos últimos dois meses, mas ainda estava trabalhando, fazendo consulta, achava-se que era uma depressão, de repente, descobre um câncer que não tem o que fazer mais, a vida acabou e ele morreu. Quando ele morreu foi um misto de tristeza, de alívio pelo sofrimento que ele deixou de ter, de angústia agora, mas a vida segue, felizmente ou infelizmente é o curso natural da vida, as pessoas vão e outras pessoas ficam. E aí meu irmão tinha 22 anos na época, meu irmão… aí eu não lembro muito bem, 22, não sei se ele ia fazer… é isso mesmo, ele tinha 21 e ia fazer 22 ou tinha 22 e ia fazer 23, é isso. Não sou muito boa com essas datas, tem que voltar e ficar fazendo conta aqui e a gente vai demorar demais, mas é isso mesmo, 22 ou 23. Aí o meu irmão trabalhava com ele. Meu irmão não quis estudar, nunca gostou, mas trabalhava com meu pai e tudo. Meu irmão continuou, eles tinham começado três casas para vender em um lote que eles tinham comprado e assim aconteceu, meu irmão continuou com a obra, só que passados quatro meses da morte do meu pai, o meu irmão veio a falecer. Meu irmão saiu, era uma sexta-feira, meu irmão trabalhou o dia todo, meu irmão saiu às 09h da noite e não voltou, de madrugada, o telefone tocou, ele tinha cochilado no volante, “Ah, será que ele bebeu?”. Não, autópsia, ele não bebia, ele não fumava e nesse dia ele tinha consumido churrasquinho e refrigerante. Ele cochilou, tinha acordado muito cedo, obra vai-se muito cedo, tinha jogado bola que ele gostava, ele cochilou no volante, tinham mais duas pessoas com ele. Por isso, que para mim, é aquele momento que a pessoa vai, as duas pessoas que estavam com ele não sofreram praticamente nada, ele morreu na hora, teve traumatismo. Ele estava em uma caminhonete do meu pai, a barra bateu aqui na cabeça dele, o Samu já o socorreu sem os sinais vitais, já. Isso era de sábado para domingo. Quando meu pai faleceu, meu pai e meu irmão trabalhavam juntos, eu trabalhava, eu me preocupava em fazer para mim, vestir e andar, a moto que eu tinha, casa, comida e roupa lavada eu tinha em casa. Quando meu pai morreu, a vida seguiu, deu uma abalada, mas ela seguiu na mesma direção. Quando meu irmão morreu tudo mudou, foi um giro de 360 graus, eu falei, tipo, parei e falei: “Cara e agora?”. Éramos eu, meu pai, minha mãe e o meu irmão, em quatro meses, éramos eu e minha mãe, a família foi dizimada, metade da família foi. E para acabar de completar, a gente tem uma história, a minha história é zero linear, ela é muito cheia de curvas, de altos e baixos, e o meu irmão ele tinha uma namorada, a namorada engravidou. E ela era filha de uma família adotiva que não a aceitou como grávida, eles não casaram e a minha mãe havia trazido ela para morar com a gente. E o neném tinha nascido, o meu pai era apaixonado com o neném, morávamos todos juntos, “Ah, a gente vai mudar para casa nova agora, aí a gente vê tudo, como que vai ser, se o Ju casa ou não casa. Vamos ver como é que vai ficar depois”. Mas ele e ela já não estavam tão legal, eles já estavam vivendo na mesma casa, o neném tinha um ano e eles estavam naquela fase meio termina e não termina o relacionamento. Quando meu pai morreu, o neném serviu de um alento para gente, sabe? E morávamos… era a família, eu, minha mãe, meu pai e meu irmão, morreu meu pai, mas a gente tinha os dois agregadinhos, que também eram família, que era a minha cunhada e o neném. Quando passou os quatro meses, meu irmão de 22 anos, saiu de casa numa sexta-feira e não voltou, o meu espírito, o meu senso de responsabilidade, ele gritou na hora, falou: “Cara, o que vai ser de nós agora? E esse bebê?”. Inclusive, eu fiz terapia, depois de muitos anos sobre isso, porque eu assumi toda aquela responsabilidade, fui, escolhi o que tinha que escolher, escolhi o caixão e olhei tudo para o velório. O primeiro momento que eu chorei, foi quando eu cheguei na funerária e eu tive que escolher qual caixão que eu queria, e se ia ter frase em cima ou não. Eu comecei, na hora que eu comecei ali, eu me permiti cair, chorar e desabafar, porque há quatro meses, eu estava escolhendo para o meu pai, mas do meu pai eu meio que esperava, era sofrido, mas era um alívio, do meu irmão não, cara! Ele tinha saído na sexta-feira e ele não voltou. Mas como eu não podia fraquejar, porque pior do que eu perder meu irmão, é minha mãe perder um filho, eu pensava nisso, sempre pensava nela, como que ia ser. Acredito que essa coisa de proteção, é até desde de quando ela veio do hospital lá, quando eu tinha oito anos, eu falava: “Nossa, tadinha. Tão fraquinha, como é que ela vai olhar meu irmão?”. Dali eu ajudava muito. E aí ali eu me permiti, eu chorei, eu desabei! Eu tinha um noivo, na época, ele me apoiou muito. E aí fiz o que eu tinha que fazer, a burocracia, meu irmão foi sepultado no domingo. Quando foi na segunda-feira, eu estava no canteiro de obras, porque tinham ficado três obras, elas estavam com menos de 1 metro, tinha feito fundação e elas estavam começando. E ali eu fui para o canteiro de obras. Eu te falo o seguinte, em nenhum momento, em nenhum! E aí eu falo assim, sem medo de estar errando nisso, além da decisão, você tem que ter uma mentalidade muito focada em uma coisa, é a sua mente, é o que você pensa que vai te levar onde você vai chegar. Em nenhum momento eu parei, assim, “Cara, e se não der certo?”. Eu não parei para ver… eu gosto muito das histórias bíblicas, eu falo que inclusive, mesmo que as pessoas não sejam cristãs, leia a Bíblia, a Bíblia tem histórias que te dão lições de vidas incríveis! A história de Davi é uma delas, eu tenho certeza que Davi pequenino, se ele tivesse olhado para Golias e se tivesse começado a pensar: “Cara, ele é muito grande! Ele dá dois, três de mim, eu não vou conseguir, eu não tenho arma para ele”. Ele tinha desistido, ele tinha perdido antes de começar. Naquele momento, na segunda-feira, após a perda do meu irmão, eu tinha uma família, que ao meu ver dependia de mim, minha mãe nunca tinha trabalhado, minha cunhada trabalhava numa casa de família, ajudando a senhora, mas ela fazia uma mão para ela. Como que eu ia fazer? A obra era o meu Golias, eu era Davi e instintivamente eu só fui, e com a minha capacidade. Hoje as pessoas me perguntam: “Nossa, você é mulher, você não parou para pensar no preconceito?” Nada, eu só fui e fiz. Porque eu tinha duas opções, eu ia sentar na beirada do meio fio e começar a chorar pelo acontecido ou ia ter que tomar uma decisão. E eu penso o seguinte, há situações que me travam? Claro, mas há situações que você não tem muita escolha e naquele momento se eu decidisse parar, as consequências iam ser muito piores, ia ser muito pior. E a minha mãe precisava de mim, ela precisava ver alguém forte, alguém se movimentando, eu não me permiti, porque seriam duas pessoas a parar. E ali na segunda-feira, meu irmão morreu no dia 25 de julho, dia 27 de julho de 2009, eu estava pela primeira vez em um canteiro de obras, como a pessoa responsável pela obra e como a pessoa que foi mais do que 10 minutos na obra. Se eu tivesse ido na minha vida toda 10 minutinhos na obra do meu pai, por umas três ou quatro vezes foi muito, era um… eu não me meto onde não é para mim, eu deixo para lá, não era pra mim, eu não tinha nada a ver com aquilo, deixei aquilo pra lá. Agora a partir do momento que a obra virou responsabilidade minha, eu entrei. Então foi dia 27 de julho de 2009, foi quando eu entrei dentro do canteiro de obras, lembro até hoje, estava com uma bermuda, de chinelo, pensa? De chinelo, uma camisetinha e aí foi o meu primeiro contato efetivamente na obra. Cheguei, fiz uma reunião com todo mundo, falei: “Olha, vocês sabem a tragédia que aconteceu”. E por isso que eu te falo, sabe? O Direito, ele me ajudou muito com conhecimento de leis, com conhecimento de muita coisa, a academia que eu trabalhava, nada nessa vida é por acaso, nada é em vão, eu era gerente, então isso me deu muita noção de gestão, de liderança. Então eu chamei todo mundo e falei: “Olha, eu preciso de vocês, vocês precisam de mim, porque se vocês não forem trabalhar para mim, vocês vão trabalhar para outra pessoa, mas nesse momento eu preciso mais de vocês. Eu não entendo, eu preciso aprender tudo”. E de lá para cá já se vão, o que? 2009, né? Quatorze anos, né? Quatorze anos completam agora em julho, que eu estou aí no universo das obras.
P/1 – Sandra, quais foram as suas primeiras dificuldades no trabalho?
R – A falta de entendimento. Você trabalhar com algo que você não sabe como acontece, é extremamente difícil. Eu considero que eu entrei no canteiro de obras, por mais que eu tivesse feito uma faculdade na área, a sensação era a mesma, porque você ia saber a teoria, mas e na prática, como acontece? E o problema é que o ser humano, naturalmente, se ele percebe que o interlocutor, que a outra pessoa, que o chefe não sabe muito, ele meio que dá uma folgada, ele meio que se aproveita da situação. Agora, imagina se essa pessoa é uma mulher, em um mercado que há quase… um mercado predominantemente masculino. Então assim, a minha postura foi muito firme, a minha busca muito rápida por compreender e a minha imposição no sentido: “Olha, eu preciso da ajuda de vocês, eu preciso aprender, mas eu sou a dona”. Tipo, é uma imposição, sem você ser um ditador, você entende? É a minha forma, isso vem da época que eu fazia gestão, que eu era gerente da academia. Então, eu tenho certeza que essa minha postura me ajudou, mas não me fez não passar pelas dificuldades. Não saber como lidar com diversas situações, não entender o que era o certo de se fazer na obra e a falta de dinheiro. Porque o meu pai tinha falecido, meu pai trabalhava na obra e em obra não tem jeito, o que movimenta a obra é dinheiro, não tem outra coisa, tem que ter conhecimento, mas sem dinheiro não vai. Então, a falta de conhecimento e a falta de recurso financeiro para seguir com a obra, foram as duas maiores dificuldades que eu passei ali.
P/1 – E durante esses anos na Construção Civil, eu sei que foi uma longa trajetória, mas tem alguma história muito marcante de alguma obra que você vivenciou?
R – Olha, cada obra tem um significado, então tem alguns… não existe assim, não tem uma grande história, mas tem várias histórias, por exemplo, são pontuações aí, é como eu falei, não é uma linha reta de forma nenhuma, ela é uma linha com diversas nuances, paradas, curvas e assim, são contos que marcaram. Em 2009, eu assumi essas três casas que o meu pai tinha comprado o terreno e o meu irmão iniciou, então estava com um metro de construção. Então essa primeira casa, hoje para mim ela marcou, porque eu falo: “Cara, como que eu dei conta?”. Deus me capacitou demais. Até eu olho e falo: “Putz, Deus me capacitou muito!’. Mas a partir dali, em 2013, quatro anos depois, teve uma primeira obra que me marcou muito, por quê? Eu comecei a perceber que a grana não ia ser, porque a obra pra vender você tem que ter um calção, você tem que ter um caixa bom para você, por exemplo, fazer duas, deixá-las em stand by, trabalhando o mercado para fazer mais duas. Eu não tinha esse caixa. Então veio a primeira obra de alto padrão, eu trabalhava no médio padrão, casas boas, mas com acabamentos mais simples, menores, sem piscina, sem banheira, nada disso. 2013, então são alguns pontos, em 2013 eu peguei a minha primeira obra alto padrão, nunca tinha feito também, mas de novo eu não olhei o tamanho do gigante e falei: “Não, eu vou. Eu já sei o básico, a espinha dorsal da obra eu sei e essa aí eu vou nos detalhes”. Então em 2013. Depois, em 2017, não foi efetivamente uma obra, mas foi uma atitude que eu tomei, mediante a uma obra, mediantes às obras, que era um momento de crise ali em 2015. Aí em 2017 eu decidi que ia abrir um Instagram, ir para as redes sociais, para mostrar as minhas obras, então foi um momento marcante ali para mim. E a partir daí, eu acho que todas as obras foram importantes, todas as obras fizeram muita diferença para mim, mas esses dois pontos especiais, esses três pontos assim, vou falar quatro, porque tem mais um eu falo muito mente, de mentalidade, tem muito a ver com isso. Meu primeiro ponto então, minha primeira obra, eu não sabia nada! E hoje eu olho e falo: “Meu Deus, o senhor me capacitou, obrigada!”. O segundo ponto, que é essa obra de alto padrão, que marcou minha entrada nesse universo alto padrão, tá? O terceiro ponto, que não é a obra efetivamente, mas que marcou minha entrada na rede social, eu entrei despretensiosamente para mostrar o meu trabalho e o quarto ponto, tem a ver com mentalidade e ele é lá da época que as obras…, mas é uma coisa que eu trouxe, que eu avalio isso até hoje, lá da época das obras para vender. A gente estava fazendo dois apartamentos pilotos, uma garagem embaixo para aproveitar o lote e dois apartamentos em cima. Fazendo esses apartamentos, eram dois casais, era um casal de senhores, a senhora já passando de 70 anos e um casal bem mais jovem, na faixa dos 30, 30 e poucos anos, mesmo apartamento, praticamente os mesmos acabamentos, pouca diferença. Gente, o apartamento da senhora, parece que ele nunca acabava, todos os problemas ele deu! O apartamento do casal, tudo assim, certinho, data tal faz isso, faz aquilo, entrega, não teve problema nenhum. O apartamento da senhora foi tão problemático, assim, coisinhas acontecendo, o piso que ela escolheu… a gente escolheu um piso, ela resolveu trocar o piso que chegou, depois de instalado ela viu que ele estava com manchas. A fábrica trocou, mas a fábrica troca o piso, eu tive que arrancar, eles só aceitaram trocar o piso! Eu arranquei o piso todo. Um monte de dor de cabeça. No final eu falei: “Não, agora ela vai mudar. Agora ela muda!”. Na segunda-feira, marcado para entregar as chaves para ela no sábado de tarde, na época, isso já tem uns 10 anos, mais ou menos, uns nove anos deve ter. Na época, o menino foi lá fazer uma limpeza, eu sempre muito cuidadosa: “Vou limpar tudo, finalizar tudo, organizar para entregar a chave para ela”. Ele foi fazer uma limpeza, na hora que ele está terminando, ele fazendo um rejunte, ele ao invés de pôr um calço na porta de vidro para ela não bater, ele a deixou solta, veio um vento e pah! A porta virou mil pedaços, ela demorou mais de 30 dias para mudar. E aí por que que isso marcou? Porque isso eu levei para a vida! Eu lido com muita gente, eu lido com pessoas, eu lido desde o pé lá da pirâmide, que é o povo muito simples, até o povo com muita grana, passando por todo mundo. Gente que é rico de dinheiro, mas que é pobre de espírito, gente que é pobre de dinheiro, mas é rico de espírito, gente que é pobre de espírito e de dinheiro, gente que é rico de espírito e de dinheiro, todo jeito! E o que ficou de lição disso eu nunca esqueço; todo o cliente, toda pessoa que é reclamona demais, toda pessoa que é pessimista demais, toda pessoa que é cricri demais, tudo dá errado! A energia negativa que a pessoa carrega. Toda vez que eu converso com um cliente, que o cliente é reclamão e eu percebo, eu falo: “Não reclama não, não fica não, agradeça a Deus, você tá realizando um sonho, fazer sua obra”. Por mais que eu lido com alto padrão, hoje eu administro obras para terceiros, eu falo com eles, porque essa energia, esse negócio de você ficar muito reclamando, puxando isso, só atrai. Então isso é uma coisa que me marcou muito nessas obras aí.
P/1 – E como o seu trabalho funciona hoje?
R – Eu falo que eu sou a pessoa que dá tranquilidade para o meu cliente, que trabalha para faturar o dinheiro que ele vai fazer a obra. O que acontece? Eu trabalho com gestão de obras. Eu nem ouvia falar isso lá atrás, só que quando eu comecei a vender, eu falo muito do: servir com excelência, entregar o melhor que você puder, sempre! Isso sempre vai te dar frutos, no mínimo, no mínimo, você vai ter uma consciência tranquila de que você fez o melhor que você podia. Quando eu fazia obra para vender, isso nunca entrou na minha cabeça, do cara, porque a obra é para vender, ele vai fazer gambiarra e entregar para o cliente. Pô, o dinheiro do cliente é diferente? Não é! E obra não é um negócio de uma blusinha, que eu até brinco, não é uma blusinha que você compra e fala: “Aí, não tá dando, eu não vou vestir!’. Você tenta, sabe? Acontece, a gente que é mulher sabe, você tenta e fala: “Cara essa não dá, essa roupa não dá! Ah, paguei R$ 300,00, mas vou perder, eu não quero, não gosto!”. Casa não é assim, são milhares e milhares, milhões de reais que é igual a gente trabalha hoje. Então eu sempre caprichei muito! E às vezes para vender essas casas, o corretor não vendia, mas falava assim: “Oh, Sandra. Meu cliente perguntou se você não administra a obra dele? Porque eles estão querendo construir, mas não tem ninguém que olhe a obra, toca a obra”. É a palavra que eles usavam. Até que um afilhado da minha mãe falou comigo: “Sandrinha, você entende muito de obra e por você ser mulher, você é muito detalhista, suas obras são muito bem feitas, elas têm um padrão de qualidade de altíssimo nível! Está cheio de médico, empresário, gente aí com projeto, mas precisa de gente para olhar a obra, gente que não sabe nem para que lado que começa a obra. Por que você não faz?”. Eu, “Não!”. Estava na minha zona de conforto. Meu lado melancólico queria ficar lá quietinha, ninguém me amolando. Aí, eis que uma amiga foi construir e aí me chamou, falou: “Ah, eu só faço a obra, se for com você”. O marido médico, ela com uma clínica grande também. E eu peguei para poder administrar. Então esse trabalho que começou em 2013, ele só começou, porque ele é derivado, ele é uma derivação das obras que eu fazia. Eu parei de fazer obra para vender. E hoje o trabalho que eu faço é esse, hoje eu me divido em duas. A Sandra no físico, ela é a Sandra que administra a obra, o Zé, o João, a Maria e o Pedro eles tem um projeto que o arquiteto fez, tem um estrutural que o engenheiro fez, eles têm um lote, eles querem construir, eles têm grana para construir, mas e quem vai administrar essa obra? Aí alguém vai falar: “Ah, um mestre de obras”. Não! O mestre de obras, ele é o cara técnico ali dentro da obra, da parte prática, ele é o técnico da parte prática. Eu sou a pessoa que entendo da parte prática, eu tenho uma bagagem, do alto padrão, eu entendo muito, eu sou a pessoa que dá uma consultoria para o cliente: “Olha, você vai colocar um ar condicionado. A arquiteta colocou esse ar..”. “Ah, Sandra. Mas por que ela pôs esse? “Ela pôs esse, por causa disso e disso. Tem essa e essa marca. Esse você pode escolher”. E fico ali dentro do canteiro de obras, virando para o pedreiro e falando: “Isso não está legal. Isso aqui precisa ser refeito”. Eu faço o cronograma, “Olha, a sua obra começou hoje, daqui X dias, ela concreta uma laje, daqui tantos dias, a segunda laje, daqui X tempo, o reboco e eu te entrego daqui um ano, na chave para você morar. Eu faço orçamento de material, eu faço com lista de pagamento, eu cuido de toda a parte burocrática e a parte técnica de supervisionar a obra. Então, eu faço literalmente a gestão da obra, meus clientes são… minhas obras são de alto padrão, naturalmente, a forma de eu trabalhar foi me nichando e me levando para isso. Então, para os clientes alto padrão, “Ah, mas você não faz uma casa média?”. Faço total, mas geralmente, a pessoa que vai fazer uma coisa mais simples, quando eu apresento o orçamento, às vezes, ela vai falar: “Não, não dá para mim”. Mas faço qualquer coisa, faço até a casinha do cachorro se me chamar, tá tudo certo. E além do físico, eu me envolvo muito com o trabalho digital, que é a rede social que eu criei lá em 2017. Para fazer um portfólio do meu trabalho e hoje ela virou uma extensão do meu trabalho. Eu te falo que ela me ocupa aí…a gente está passando por um processo de mudar algumas coisas, então hoje exatamente, ela me ocupa ali uns 30, 35%. Mas ela me ocupa uma média de uns 40% aí, 60% a obra física e aqui 40% do meu tempo de trabalho para rede social, que é onde eu faço postagem, eu mostro as minhas obras, mas que eu tenho uma turma de alunos de um curso online também, que faço, onde os meus alunos predominantemente são mulheres. E são engenheiras e arquitetas que querem entender como a obra acontece na prática e que me veem como uma representante, uma mulher que entrou para dentro do canteiro de obras e deu certo, que se impôs, porque eu falo que: “Contra o conhecimento, não há preconceito que resista!”. Mas o fato é que por isso, a gente que é mulher precisa se empenhar e se dedicar muito mais, porque eu te falo tranquilamente que com a metade do meu conhecimento, um homem chegaria no mesmo local, mas a vida é assim, “Ah, mas isso não é justo!”. A gente não está falando de justiça, a gente está falando do que é! Então se eu tiver que estudar uma, duas, três, dez vezes mais, vamos embora, vamos estudar e vamos sobressair! Porque aí eu uso também a minha condição de ser mulher como uma vantagem, falo: “Gente, a gente que é mulher, somos detalhistas”. Os homens que me perdoem, mas a gente é mais apegada aos detalhes, eu entendo o que uma mulher vai pensar quando ela entrar em uma casa, eu falo com os maridos, eu falo: “Olha, não discute não, porque imagina depois, vocês entrando nessa casa e essa mulher reclamando com você daqui cinco anos, que ela queria uma por uma cor de piso e você não quis?”. Ai: “Você sabe, né? Você é mulher também”. “Exatamente, eu sou mulher também”. Então assim, eu uso isso tudo ao meu favor hoje para esse lida, esse trato com os meus clientes e na rede social eu mostro tudo isso. Então, eu tenho hoje também os meus alunos, tenho todo o meu trabalho no universo digital.
P/2 – Bom, Sandra. Eu vou fazer as perguntas finais para você. Elas são um pouco… não são tão profissionais, elas são mais pessoais, tá bom?
R – Sim.
P/2 – Primeiramente, fora do trabalho hoje em dia, o que você gosta de fazer?
R – Amo viajar, conhecer lugares. Sempre gostei, acho o máximo! Conhecer outras culturas, entender como outras pessoas pensam, porque eu não acho que o que eu penso é lei, que o que eu penso é certo. Tanto que eu falei uma coisa aqui sobre a minha a minha fé, é cristã. Eu acredito em Deus, em Jesus e na Bíblia, mas respeito as pessoas que não tem essa crença, mas olha, leia, por exemplo, a Bíblia, porque lá tem ensinamento que é para todo mundo, eu tenho essa visão. Eu fiz uma visita na Turquia às quatro e pouco da manhã, eu escutava tocando o sino para o pessoal fazer as orações e aí isso me leva a pensar em outras coisas: “O que é a disciplina, o que é a fé, o que é o comprometimento com as coisas”. Então eu adoro isso. Então eu amo viajar e eu concílio. Restaurante, amo conhecer restaurante, coisa diferente, mas também sou a pessoa que adora ficar em casa, assistir Netflix, ler um livro, adoro ler, adoro entender de cultura, essas coisas. Eu falo que eu tinha que ter duas vidas para eu conseguir fazer os cursos, ler todos os livros e fazer tudo que eu queria fazer.
P/2 – E quais são as coisas mais importantes para você hoje?
R – O que eu tenho de mais importante na minha vida, indiscutivelmente, é a fé que eu tenho. A fé que eu tenho, a minha crença de que tem Deus, que é muito maior que tudo, que rege o mundo. Porque isso me trouxe até aqui, senão já tinha caído pelo caminho em todas as vezes, em todos os problemas que eu tive. E não é sobre isso, é sobre você se reinventar, sobre você entender que eu não fui a única escolhida para passar por problema, problema todo mundo tem todo dia, acontece, só que se você não tiver uma motivação maior, você não dá conta de chegar lá na frente. Então, hoje eu te falo, que o meu lado espiritual, a minha fé é o que eu tenho de mais importante, indiscutivelmente! E depois disso vem a família. A minha mãe, eu hoje não sou mais casada, sou divorciada, mas pretendo me casar de novo, tá? Mas minha mãe, o meu sobrinho, que é filho do meu irmão que faleceu, que hoje está com quinze anos, é importantíssimo para mim, a mãe dele casou de novo, hoje, ele tem um irmão que vai fazer oito anos, que é igual um sobrinho para mim. Então é a minha fé, tá? A crença que eu tenho em Deus, a minha família e o meu trabalho. O meu trabalho é muito importante, eu tenho certeza que através do meu trabalho, através das redes sociais, eu não vou falar para as pessoas só de obra, vou falar para as pessoas de vida, do que é você ter fé, do que é você ter é um propósito na sua vida. Então, são essas três coisas aí que são mais importantes para mim hoje.
P/2 – Quais são os seus sonhos para o futuro, Sandra?
R – Olha, quero conhecer vários países ainda, quero conhecer vários. Quero viver mais para o digital do que para as obras físicas, mas não quero deixar as obras físicas. Eu quero continuar, provavelmente eu vou voltar, é o meu sonho voltar para a obra para vender, lá atrás quando eu comecei… Eu continuo gerenciando obra para cliente e vou voltar nas obras para vender, voltando a empreender nesse ramo, fazendo obras para vender, tá casada, ter um filho ainda, ter saúde e minha fé firme para eu poder seguir.
P/2 – E qual legado você gostaria de deixar, Sandra?
R – O servir com excelência. Tudo que você pegar para fazer, faça da melhor forma, da melhor maneira que você puder fazer, para você não ter arrependimentos ou, no mínimo, se você se arrepender por algum instante, você vai falar: “Mas eu fiz o melhor que eu pude, da melhor maneira”. E isso cabe em tudo, absolutamente tudo da vida. Eu te falo pelo trabalho, porque isso te leva para outros patamares, e para pessoa que passou por perdas igual eu passei, a minha mãe fala uma coisa que eu levo para mim, sabe? Que eu carrego a mesma coisa, ela fala que ela cumpriu a missão dela, que ela cumpriu a missão com o meu pai e ela cumpriu a missão com o meu irmão, que ela não tem arrependimentos de coisas do tipo: “Por que eu não fiz? Por que eu não tratei fulano melhor naquele momento? Por que eu não me doei mais naquele momento ali? Por que eu fui daquela forma? Por que eu deixei de falar com fulano naquele momento?”. Então eu uso isso para vida, a minha mãe com esse pensamento dela e eu penso isso, eu falo: “Ela não tem arrependimentos em relação ao meu pai, em relação ao meu irmão, não tem grandes arrependimentos”. E nas obras também, eu já passei por inúmeras situações difíceis dentro de canteiros de obras, já tive muito problema, já tive aqueles momentos que eu durmo achando que nunca mais vou para obra, e acordo e falando: “Estou indo para obra, está tudo bem”. Mas eu nunca deixei de fazer o meu melhor, de servir com excelência, entregar o melhor que eu pude. Então o grande legado é esse senso de responsabilidade que a minha porquinha, lá atrás, me trouxe, que nada mais é do eu servir com excelência, eu fiz o melhor que eu pude para porca, eu cumpri a minha missão ali. Então esse é o legado.
P/2 – Então vamos para a última pergunta, Sandra. O que você achou de contar um pouco da sua história pra gente hoje?
R – Ah, achei incrível! Eu estava pensando, eu falei assim: “Cara, que legal! Qualquer pessoa que quiser saber o que eu penso, porque assim, foi um bate-papo bem legal e assim, são minhas impressões, eu revisitei coisas que eu nem pensava, até falei: “Gente, depois eu preciso guardar isso como uma relíquia”. Porque é da minha história, das minhas impressões de vida. A gente é o resultado do empilhamento de experiências que a gente vai vendo. Então o que eu sou hoje, até hoje nesse momento, está tudo explicado aí nessa entrevista. Eu achei muito legal! Achei muito legal e de repente uma pessoa também, que me vê ali na rede social e queira se aprofundar mais, porque ali são recortes. A pessoa vê um recorte da minha vida, eu mostro determinada coisa que eu quero. Então aqui a pessoa entende mais o que é a essência do ser humano. O que é humano, o que é a pessoa, vida real. Achei incrível! Fiquei muito honrada e foi muito prazeroso contar e revisitar toda minha história. Me senti naquele túnel do tempo desses programas de televisão, onde revisitava ali, eu lembrei até dos cenários, foi muito legal!
P/2 - Bom, então em nome do Museu da Pessoa, a gente agradece muito a nossa conversa de hoje!
R - Eu que agradeço, obrigada!
[Fim da Entrevista]Recolher