Memórias da Vila Nova Canaã
Depoimento de Kelly Cristina Santos Sliva
Entrevistado por Lucas Figueirêdo Torigoe
Paço do Lumiar, 23/10/2020
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número PCSH_HV955
Transcrito e revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Vou te perguntar o nome completo, a ...Continuar leitura
Memórias da Vila Nova Canaã
Depoimento de Kelly Cristina Santos Sliva
Entrevistado por Lucas Figueirêdo Torigoe
Paço do Lumiar, 23/10/2020
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número PCSH_HV955
Transcrito e revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Vou te perguntar o nome completo, a data de nascimento e onde você nasceu.
R - Meu nome é Kelly Cristina Santos Silva. Nasci em São Luís, minha data de nascimento é cinco de dezembro de 1982.
P/1 - Kelly, você nasceu em hospital?
R - Sim.
P/1 - Em que hospital?
R - Nasci no Benedito Leite, em São Luís.
P/1 - Quando você nasceu, como era a sua família? Você tem irmãos?
R - Eu tenho, nós somos seis. Cinco mulheres e um homem.
P/1 - E como é você nessa escadinha de irmãos?
R -
Eu sou a terceira das mulheres.
P/1 - Quais os nomes do seu pai e da sua mãe?
R - O nome do meu pai é Francisco e da minha mãe é Conceição.
P/1 - Como era a sua família? Você cresceu com eles até que idade, onde vocês moravam?
R - A gente morava em São Luís. Desde que eu nasci, a gente morava na zona rural da Vila Maranhão. Eu morei com os meus pais até os 22 anos, aí eu casei, tive minha primeira filha.
P/1 - Como era na Vila Maranhão? Os seus pais trabalhavam no quê? Como era a infância de vocês?
R - O meu pai trabalhava como caçambeiro. Nos finais de semana, ele trabalhava com o meu avô na lavoura, plantando, mas não pra venda, só pra consumo da família. E minha mãe sempre foi dona de casa, do lar.
P/1 - E você cresceu com seus irmãos todos ali.
R - Sim, com todos os meus irmãos. Quando a minha irmã foi fazer o ensino médio, ela foi morar com a minha tia porque lá era muito dificultoso pra gente pegar ônibus. Como ela estava entrando no ensino médio, ela queria uma coisa melhor pra ela. Minha mãe levou ela pra casa da minha tia. Ela ficou lá até completar o ensino médio, depois ela voltou pra casa.
P/1 - Você trabalhou na infância?
R - Não, nunca trabalhei na infância. Comecei a trabalhar depois que eu tive a minha filha, mas depois que casei fui sempre dona de casa.
P/1 -
Como era crescer na Vila Maranhão? Vocês brincavam do quê?
R - Nessa época, a gente não tinha brinquedos avançados, né? Meu pai não tinha condição, minha mãe muito menos. Eu era muito feliz na minha infância, a gente brincava demais, desde a hora que levantava. Se fosse estudar pela manhã, ia pra escola; quando voltasse, tomava banho, almoçava, fazia a tarefa da escola e depois era só brincar, até meia-noite.
P/1 - Até meia-noite?
R - Até meia-noite. (risos) Lá, nessa época, não tinha energia elétrica. Quando chegava a noite, aí os mais velhos contavam aquelas histórias até as tantas da noite. A gente ficava lá, ouvindo as histórias deles até tarde.
Não tinha televisão também. Quando a gente foi ter uma televisão, acho que eu já tinha uns quinze anos e foi preto e branca, ainda não era colorida.
P/1 - E que histórias seus pais e seus avós contavam pra você?
R - Era sempre as histórias que eles já tinham vivido na vida. Tinha um tio meu que contava sempre histórias de caçador. (risos)
P/1 - Você pode contar uma pra mim?
R - Era história de quando ele caçava, ia pra dentro do mato, aí começava a quebrar galho dentro do mato, ficava escondido. De repente, aparecia… Ele não falava que era lobisomem, falava que eram uns bichos que estavam lá. E todo mundo ficava naquele suspense, “o que será que eles viam?“ Aí ele contava que via mulher de branco. Era tipo uma história de terror, mas que todo mundo gostava de ouvir.
Essas eram as histórias do meu tio. As histórias dos meus pais eram só o que eles já tinham vivido, só o cotidiano deles que eles contavam.
P/1 - Contavam sobre o trabalho na roça, esse tipo de coisa?
R - Sim. E algumas das histórias a gente estava junto, porque a gente era criança e ia junto com eles. Meu avô sempre trabalhou na agricultura e levava a gente. No dia que a gente não estava brincando, a gente ia pra roça com ele, mas não era cansativo porque a gente não pra trabalhar. A gente dava aquela ajudinha, mas era o tempo todo brincando. Colhia o milho, mas era brincando. A gente comia lá todo o tempo. Na verdade, era muito gratificante porque não era cansativo pra gente.
P/1 - Você foi feliz nessa infância.
R - Muito. Sinto muita falta da minha infância. Hoje em dia, as crianças nem brincam, não tem aquele lazer. A gente tinha brincadeiras, brinquedos tão simples; hoje eu não vejo criança brincando com esse tipo de brinquedo. A gente fazia brinquedo de lata de sardinha, fazia aquele carrinho, brincava de xuxo, de peteca, mas era brinquedo de menino. (risos) Brincava de elástico, esconde-esconde… Era esse tipo de brincadeira que a gente tinha e era muito feliz. Ninguém sentia falta de outro tipo de brinquedo.
P/1 - Vocês tinham rádio nessa época?
R - Eu lembro que meu avô tinha. O meu avô por parte de pai, porque a gente morava junto
- o avô por parte de pai e o avô por parte de mãe. E eu me lembro muito do meu avô, porque ele gostava levantar já de manhã cedo pra escutar o rádio. O meu avô tinha, na minha casa não.
P/1 - O que ele ouvia? Você se lembra?
R - Era noticiário. Futebol, que ele adorava. Ele fez um time de futebol chamado Democrata. Ele que era o coordenador, o treinador, era tudo do time.
P/1 - Você gostava de futebol nessa época?
R - Gostava tanto que, além do time dos homens, ele formou um time de mulheres. Eram só primas. Eu joguei até uns 23 anos, por aí.
P/1 - Jogou bastante, então.
R - Joguei. (risos) Comecei a jogar com uns doze anos. Eu era a menor, ainda sou, né? (risos) Depois eu tive minha primeira filha, depois o segundo, aí foi ficando mais difícil pra acompanhar as outras meninas. Mas era ótimo. Até hoje elas têm um time, só eu que não vou. (risos)
P/1 - Em que posição você jogava, que você gostava?
R - Eu era lateral direito.
P/1 - Correr, né?
R - Correr. Era de ir pro ataque e tentar fazer gol. (risos)
P/1 - Tem time que você torce?
R - Flamengo.
P/1 - Você se lembra dos primeiros jogos que você viu do Flamengo? Como surgiu essa paixão pelo time?
R - Não. Eu acho que foi mais por influência, de achar bonito o pessoal todo torcendo, as cores do Flamengo. Chama a atenção da gente. Acho que foi mais isso, mas não sou muito de assistir porque eu sofro muito. Fico muito ansiosa, eu não gosto muito de assistir. Assisto um pouquinho, aí saio, vou pra cozinha, volto de novo. Eu não sou aquela fanática de assistir, chegar na sala e ficar assistindo porque eu não consigo mesmo.
P/1 - E você tem ou teve algum ídolo, alguma ídola no futebol? Quem você admirava jogando?
R - Não, assim não.
P/1 - E como era na sua infância, vocês acordavam a que horas? Como era o dia a dia?
R - A gente acordava acho que umas cinco e meia da manhã, porque o ônibus passava às seis e quarenta, sete horas. Se a gente perdesse esse ônibus, a gente não ia mais [pra escola], porque era muito distante. Às vezes, meu pai ainda chegava a levar, se ele ainda não tivesse ido pro trabalho, se não a gente ficava sem aula, então a gente tinha que acordar muito cedo pra poder tomar café, tomar banho e ir pra parada [de ônibus].
P/1 - Você ia com seus irmãos juntos?
R - Éramos nós todos juntos. Só tinha uma que não gostava muito de estudar, a segunda. (risos) Minha irmã não gostava de estudar. Semana passada a gente estava brincando sobre isso. Meu pai também não incentivava, Quando a minha mãe mandava a gente pra escola, quando um dizia - no caso, ela - “não quero ir hoje”, ele dizia: “Deixa a menina. Ela não quer ir.” (risos) Aí acabou que ela ficou nessa.
Ela repetiu umas duas vezes de ano, porque ela não gostava de ir pra escola.
P/1 - E como sua mãe, seu pai educavam vocês em casa?
R - Em relação à educação, meu pai nunca foi muito presente. Ele nunca ligou muito pra isso porque ele dizia assim… Pra ele, viver com pouco era bom. Só ele ser caçambeiro, botar comida dentro de casa já estava bom demais. A minha mãe sempre disse: “Não, isso não é vida.” E eu também sempre botei isso na cabeça. “Eu quero fazer cursos, eu quero ir além.”
Não que eu quisesse sair de lá. Eu saí porque foi circunstância do destino, mas se eu tivesse ficado lá, feito cursos, trabalhado, lá é um ótimo lugar pra morar, perto da casa da minha mãe.
P/1 - Como era nessa época o bairro?
R - É uma zona rural, tipo sítio. Era só um sítio, até meu avô dar um pedacinho de terra pra cada, o pessoal foi pegando, aí agora está tipo uma vilazinha, uma comunidade.
P/1 - E a casa de vocês era grande, pequena?
R - A minha casa tinha quatro cômodos. Era sala, cozinha e dois quartos, o banheiro [ficava] no quintal.
P/1 - Como era a escola em que você estudou? A primeira.
R -
A escola era boa. Não tinha o nome da escola, como tem aqui, UEB Nova Canaã, Escolinha Canaã. Era escola do município e escola do Estado. Comecei estudando na escola do município, que era educação infantil. Depois eu fui pro Estado e depois retornei pro município porque não tinha o primeiro, segundo e terceiro ano. Só até o quinto ano no colégio do Estado, depois do quinto ano retornei pra outra.
No ensino médio eu tive que estudar em outro bairro, mais distante, que era o Anjo da Guarda. Lá eu concluí o meu ensino médio.
P/1 - E ao longo dessas escolas todas, você tem alguma história que marcou na época, que você lembra até hoje?
R - Eu lembro. (risos) Foi no quarto ano, no colégio do Estado. Eu me lembro até hoje. O pessoal de vez em quando fazia um piquenique, a gente foi. Quando chegou na escola, eu fui contar que eu tinha ido pra praia e uma menina que era muito branquinha, dos olhos azuis… Eu cheguei na escola toda empolgada pra contar. Falei que a gente tinha ido pra praia, se divertido, um monte de coisa. Ela disse: “Mas eu nunca vi gente preta ir pra praia. E tu nem tá corada porque tu já é preta mesmo.”
Eu nem tive reação de dizer nada pra ela, não tinha aquele discernimento. Eu comecei a chorar. Meu colegas me viram chorar e foram contar pra diretora, aí ela chamou eu e a menina lá na secretaria. Ela ainda confirmou a história; a diretora falou um monte de coisa pra ela. Eu estava no quarto ano, mas me lembro como se fosse hoje. Essa é a minha trajetória de preconceito.
P/1 - E teve ainda mais casos disso depois, na escola?
R - Não que eu me lembre. Essa foi a primeira vez, mas ficou marcada na minha vida. Até então, eu nunca tinha sofrido nada em relação a isso. E até hoje, pra mim ninguém nunca chegou pra falar nada em relação à minha cor, mas naquela época doeu muito. Até hoje eu ainda falo assim, com… Foi muito doído pra mim ouvir aquilo. Comecei a chorar até chegar na sala da secretaria. Quando cheguei lá, comecei a chorar, ainda.
P/1 -
Aconteceu mais alguma coisa relacionada à escola que você lembra?
R - Não, eu lembro mais que a gente brincava. Não lembro de um fato que seja mais relevante.
P/1 - Tem algum professor que você lembra até hoje?
R - A minha professora dessa série, mesmo. Ela era ótima professora, gostava muito dela.
Quando eu estava no sétimo ano, tem outra história. (risos) Foi numa outra escola que chamava Cema, também na Vila Maranhão. Eu estava conversando com os meus colegas, a professora dando aula. Eu sei que eu estava errada, mas ela puxou a minha orelha e eu comecei a gritar dentro da sala. (risos) “Não puxa a minha orelha, a senhora não é minha mãe!” Comecei a chorar.
Eu também fui parar na secretaria nesse dia, mas nesse caso ela que foi… A diretora falou pra ela que ela estava errada, que ela não tinha que ter puxado a minha orelha, mesmo eu estando errada. Mas falou pra mim também e eu assumi que eu estava errada porque estava conversando nahora da aula dela.
P/1 -
Você considera que na época era uma aluna que bagunçava ou não?
R - Não. Nunca fui de bagunçar. Minha mãe nunca foi chamada na escola. Nas vezes que tinha reunião, ela nunca falou nada, só de vez em quando, que [a reclamação] era mais [de] conversa. Era só isso, mas de bagunçar, de provocar as pessoas, não. Nunca fui.
P/1 - Tinha alguma matéria que você gostava mais durante esse tempo todo na escola?
R - Acho que a matéria [com] que eu mais me identificava era Filosofia, Sociologia, no ensino médio. Nas outras, nunca fui muito boa, não. (risos) Eu estudava mesmo essas matérias por estudar, não que eu gostasse. Eu sempre me identifiquei mesmo, já no ensino médio, com Filosofia e Sociologia.
P/1 - O que você acha disso? Por que isso aconteceu?
R - Não sei dizer por quê.
P/1 - Mas alguma coisa lhe chamava a atenção nessas matérias.
R - Acho que estuda muito a gente, fala muito da gente, do eu , de você, das pessoas. É muito de mexer com a cabeça da gente, a meu ver. A gente diz assim: ”Tá filosofando, é filósofa”, mas eu acho bonito mesmo, acho lindo as pessoas que são filósofas.
Era a única aula que eu prestava atenção no ensino médio, quando chegava o professor de Filosofia e Sociologia. (risos) Ele dava as duas aulas juntas. Eu ficava olhando pra ele, era a única aula [em] que eu não conversava. Eu me identifiquei muito com essa aula, tanto que algumas vezes eu fui em entrevistas de emprego e perguntavam o que eu queria ser. Eu botava todo o tempo que era [ser] filósofa. Mas eu não segui essa carreira.
P/1 - Esse professor dava aula como?
R - Ele era muito dinâmico, talvez seja por isso. Ele era espontâneo, ele rodava a sala todinha, ele conversava com um, pedia a opinião do outro, e era assim todo o tempo. Não chegava, sentava na cadeira e dizia: “Vocês vão fazer aquilo, aquilo e aquilo outro.” Ele sempre deixava a gente muito à vontade pra gente expor as nossas opiniões. E era o que a gente fazia. Quando as coisas vinham de dentro, do nada a gente começava a falar. Era uma aula boa demais.
P/1 - Em que período você começou a namorar, a ter essas questões amorosas?
R - Já no ensino médio.
P/1 - E como vocês faziam na época?
R - Nessa época eu ainda tinha medo de namorar, medo da minha mãe brigar comigo. Isso foi no primeiro ano do ensino médio. No terceiro eu estava com dezessete anos, aí eu comecei a namorar, porque eu tinha muito medo de mamãe brigar comigo.
P/1 - Ah, é? Brigar por quê?
R - Falar que não estava na época. Eu tinha vergonha também de dizer que eu estava querendo namorar com alguém. Quando alguém vinha dizer “eu quero namorar contigo”... Eu acho que nessa época a gente era muito criança, [com] uma mentalidade muito assim.
Não diziam namorar, [diziam] “eu quero ficar contigo”. Eu dizia “não, mamãe não deixa.” (risos)
Quando eu comecei a namorar, já foi logo pra casar. Namorei, casei, tive logo filho, fui morar [junto], aí pronto. Casei logo.
P/1 - Como você o conheceu? Ele é seu marido até hoje?
R - Não. Esse meu primeiro namorado era meu primo e eu não sabia.
P/1 - Ah, é? Como é essa história?
R - Ele morava no Anjo da Guarda e eu, na Vila Maranhão. Eu conhecia o meu tio [e]
era tio dele, o mesmo tio. A gente começou a conversar na escola, aí a gente começou a namorar.
Meu tio era motorista e ônibus e na praça onde a gente ficava depois que a gente saía da escola passavam os ônibus bem na frente. Aí eu falei: “Lá vai titio.” Ele falou: “Teu tio?” Eu disse: “É.” “Pois ele é meu tio também.” Aí a gente ficou: “Meu Deus, não acredito, que mundo pequeno é esse?” A gente não sabia, porque eu tenho muitos parentes. Mas não deu certo, porque só [por] um ano a gente namorou e pronto, acabou. (risos)
P/1 - E depois você encontrou uma pessoa com quem você casou.
R - Foi.
P/1 - Você quer falar disso?
R - Não. (risos)
P/1 - Mas você teve filhos.
R - Eu tenho três filhos. Com esse primeiro marido eu tive dois; agora eu casei de novo e tenho uma com esse atual.
P/1 - E até hoje você fica com os três filhos?
R - Nesse época de pandemia, sim, estou com os três, mas eu moro só com uma. Um morou comigo até 2017, parece que ele estava no quinto ano, estudando aqui na escola, mas eu trabalhava o dia inteiro e ele ficava em casa do jeito que ele queria - não fazia tarefa, não fazia nada. Falei com o pai dele e
o pai dele resolveu deixar ele na casa dele, mesmo.
Os dois mais velhos moram com o pai e essa mais nova mora comigo.
P/1 - Quais os nomes dos seus primeiros dois filhos?
R - Amanda e Luís Felipe.
P/1 - Como foi o dia do nascimento do seu primeiro filho?
R - Foi horrível. (risos) Quando a gente vai ter filho é horrivel. Vai pra maternidade, não está na hora, volta de novo, aí fica naquele negócio: vai pra casa, volta. Sofri uns dois dias pra ter ela; depois que eu tive foi só alegria. E quando eu fui ter ela, eu nem sabia se era menino ou menina, porque não dava no ultrassom. Quando eu nasci que eu fui saber que era menina.
É uma menina exemplar, estudiosa, muito carinhosa, atenciosa. Ela gosta de estudar. Hoje ela está na faculdade, ela faz Enfermagem.
P/1 - Ela tem quantos anos?
R - Ela tem dezenove. Fez dezenove agora, no dia trinta de setembro.
P/1 - E o Felipe tem quantos anos?
R - O Felipe tem quinze. Fez quinze em trinta de agosto. E a Camila tem onze anos, ela faz [aniversário em] dois de junho.
P/1 - Você se casou de novo, é isso?
R - Foi.
P/1 - É o casamento que você está até agora?
R - Sim.
P/1 - Como você conheceu seu segundo marido?
R - Ele trabalhava naquela área em que eu morava. Ele morava na [Vila] Madureira e eu não morava na Madureira, na Madureira [moravam] as pessoas que vieram pra cá. Ele morava lá e eu morava [como] vizinha dele. Um ano depois que eu me separei, eu conheci ele e a gente começou a namorar. Depois ele foi morar na casa da minha mãe comigo, de lá eu engravidei da minha filha que agora tem onze anos.
Quando o pessoal veio de lá pra morar aqui, um ano depois a gente também veio morar aqui, na casa da mãe dele.
P/1 - O terreno era da família dele, lá na Vila Madureira.
R - Era da família dele.
P/1 - Você chegou a ir à Vila Madureira antes da remoção?
R - Eu fui, mas eu não conhecia ele ainda. Eu já ia lá porque tinha festejo.
P/1 - Festejo do quê?
R - De São Benedito, que a mãe dele fazia. Ela tem um Tambor de Crioula, aí ela sempre fazia festejo lá. Acho que é no meio de dezembro que ela faz festejo, todo ano. Quando ela veio morar pra cá, aí ela faz aqui o festejo de São Benedito. Inclusive, meu marido é Benedito. (risos)
P/1 - E como é esse festejo, Kelly? Conta pra gente como funciona, como é a festa.
R - Ela faz com as festas de Tambor de Crioula. Tem a reza, depois da reza tem as toadas de Tambor de Crioula que ela faz, e em seguida vem a festa. Ela dá almoço pra todo mundo que vem, pros dançantes. É uma festa aberta, ela só vende mesmo bebida, essas coisas, mas comida ela dá tudo.
P/1 - Quantos dias dura a festa?
R - Lá na Madureira ela fazia três dias. Aqui ela está fazendo só um dia, porque lá é zona rural, não tem esse negócio de tirar licença; aqui é um pouco mais complicado pra fazer festa de três dias. No máximo, ela fez aqui dois dias seguidos.
P/1 - Você acha bonito, você gosta?
R - Acho bonito, eu gosto. Eu dançava no Tambor de Crioula dela. Lá não, eu fui dançar quando ela veio pra cá. Eu, a Amanda, a Camila e o Felipe batem o tambor.
P/1 - Ah, é? Eles aprenderam também?
R - Aprenderam aqui a tocar.
P/1 - Você conheceu a Vila Madureira então pelo festejo, antes de você conhecer seu segundo marido.
R - É mais ou menos isso. Meu pai já ia pra lá com a minha mãe, depois eles levavam a gente também. Mas foi realmente através desse festejo que tinha lá.
P/1 -
Então era famoso o festejo de lá na região.
R - Era.
P/1 - Você está falando da dona Maria Isabel?
R - Isso.
P/1 - Além do festejo, você se lembra como era o bairro? Você chegou a andar por lá, pela Vila Madureira?
R -
Em que sentido?
P/1 - Se você pudesse descrever pra mim…
R
- Era tudo mato, como lá na minha casa. Tudo cheio de mato, só terra, e famílias bem humildes.
P/1 - Eles viviam de agricultura, de pesca?
R - Lá a minha sogra vivia de vender porco. Ela tinha criação de porco, muito porco ela tinha lá.
P/1 - E a dona Isabel ou alguém te contou de onde vem o Tambor de Crioula, por que é assim?
R - Ela contava que veio da sogra dela, do pai da sogra. Depois ela ficou cega e não tinha mais como fazer, aí ela passou pra dona Isabel. A mãe dela fazia o tambor. Como ela também não tinha mais condições, veio a falecer, aí dona Isabel tomou conta com a filha dela, Edileuza.
P/1 - É uma cultura indígena, africana? De onde vem isso?
R - O Tambor de Crioula é africano. Veio da África, era dança de negros.
P/1 - Você se lembra da época da mudança pra cá, como foi? Era mais o seu marido que estava vendo essa questão?
R - Ele também não morava lá. Ele ia direto pra visitar ela. Logo na época que ela estava mudando, ele já estava morando comigo, na casa da minha mãe.
Eu lembro mais ou menos como foi. Tiveram que indenizar, porque uma empresa se instalou lá, a MPX - na época era MPX, agora é Eneva. Ela se instalou lá e teve de deslocar as pessoas de lá pra cá. Arrumaram esse terreno aqui e trouxeram as pessoas.
P/1 - Você só chegou a vir aqui um ano depois da mudança.
R - Foi, um ano depois.
P/1 - Aí vocês vieram pra mudar mesmo?
R - Foi. A gente veio pra morar junto com a mãe dele.
P/1 - Como era aqui na primeira vez que você veio? Você se lembra?
R - Lembro. Na verdade, o que mudou… Quando eu cheguei, já tinha escola - a UEB, essa aqui ainda não tinha. O posto de saúde estava sendo construído, logo depois começaram a construir a delegacia. Só tinha a escola, na verdade, e as igrejas. As ruas sem asfalto, como estão até hoje. E o campo de futebol que construíram recentemente, está muito bonito.
As pessoas vieram pra trabalhar no polo agrícola.Todas as pessoas que vieram de lá ganharam um terreno - além das casas, mobiliário, ganharam um terreno pra trabalhar. Trabalharam lá, acredito que por seis meses, com uma bolsa que a Eneva deu e depois começaram a trabalhar por conta própria.
P/1 - Como eram as casas na época que você chegou, os muros? Como era a vila na época?
R - A maioria era de taipa.
P/1 - Aqui?
R - Ah, não. Lá [na Vila Madureira]. Pensei que fosse lá. Aqui não, não tinha muro, eram placas. Algumas casas ainda têm, não sei se vocês prestaram atenção. Depois o pessoal começou a construir muros.
As casas vieram mobiliadas e ao redor só vinham mesmo as placas.
P/1 - Eram pintadas por fora, as casas?
R - Eram, por fora e por dentro. Todas pintadas de branco.
P/1 - Como é que foi pra vocês? Vocês se adaptaram aqui? Foi difícil, foi fácil mudar pra cá?
R - No começo foi muito difícil, porque aqui não tem transporte. As pessoas que não têm transporte pra sair daqui… Não tem ônibus aqui, nessa área do Canaã; só tem umas vans que passam de vez em quando. O ônibus que tem é do bairro vizinho e também é difícil de passar. Eles não têm horário certo de passar também e quando passam, às vezes pegam uma rota diferente, aí as pessoas passam duas, duas horas e meia na parada, esperando no sol quente porque não tem nem parada pra ficar. É muito difícil.
Aqui também não tem comércio grande, tem uns pequenininhos. As pessoas têm que ir ao [bairro do] Maiobão. E é muito contramão aqui. Quem não tiver um carro, uma moto, sofre. Tem muita gente que sofre até hoje.
P/1 - No começo então vocês estranharam aqui.
R - Demais. Na Vila Maranhão, apesar de ser zona rural, tinha ônibus de trinta em trinta minutos. E onde a gente fazia compra era mais longe, mas se tornava mais perto porque tinha transporte e aqui não tem, aí complica. Pra trabalhar, ainda mais.
Quando eu comecei a trabalhar e vim morar aqui, eu fui demitida porque não tinha ônibus. Eu tinha que pegar o ônibus [às] seis horas, seis e meia. O ônibus, quando passava, passava cheio, não levava. E as vezes que eu pegava a van, ela ia no Maiobão primeiro, fazia um percurso muito grande até chegar no centro. Eu chegava [às] oito e quinze e meu horário era dez pras oito. Quando eu cheguei aqui, consegui ficar só mais dois meses no emprego. Quando eu saí, fui trabalhar no polo agrícola.
P/1 - Você trabalhava onde antes?
R - Eu trabalhava no centro, na Rua Grande.
P/1 - No Reviver?
R - Não, eu trabalhava ali na [Avenida] Magalhães de Almeida, depois eu trabalhei na Rua do Passeio. Eu trabalhava em loja.
P/1 - E vendia o quê?
R - Roupa, confecção.
P/1 - E como foi ir trabalhar no polo?
R - Eu também estranhei, porque eu nunca tinha trabalhado… Passar o dia todo no sol quente lá, plantando. Na verdade, era um pouco pesado porque a gente tinha que produzir. Quando eu ia pro meu avô era diferente, porque a gente ia mais pra se divertir, a gente era criança, e lá a gente tinha que produzir pra vender. Se a gente não produzisse, a gente não ia vender.
Foi um serviço bem árduo no começo, mas compensava quando a gente olhava as plantas bonitinhas - o quiabo que a gente plantava, o cheiro verde, a alface… Quando a gente via tudo crescidinho, bonito, era muito gratificante. A gente tinha que amarrar tudinho.
Era um pouco diferente porque eu tive uma vivência dessa pra consumo e depois eu fui trabalhar pra ganhar o meu dinheiro através desse consumo, dessas plantações que a gente fazia. Era um pouco cansativo, era um pouco árduo, mas no final era bem compensador. Até hoje tem pessoas que trabalham lá.
Eu saí de lá porque eu consegui outro emprego na área que eu trabalhava antes - não na área de confecção, mas numa secretaria. Trabalhei como secretária durante uns três ou quatro anos, lá no [bairro] Vinhais. Depois eu vim trabalhar aqui, no Canaã. Retornei pro Canaã pra trabalhar na escola, como secretária também, no administrativo.
P/1 - Na UEB?
R - Na UEB.
P/1 - Você está até hoje lá?
R - Agora eu estou aqui nessa escola, na educação infantil.
P/1 -
Trabalhava no que lá?
R - Lá eu trabalhava como secretária mesmo, na administração, aí eu vim trabalhar aqui. A gente saiu de lá porque [a educação infantil] se desmembrou; lá ficou só o ensino fundamental menor e maior e aqui veio trabalhar só a educação infantil.
Depois eu comecei a fazer a faculdade. Uma amiga minha [disse]: “Kelly, tu tá trabalhando aqui no administrativo, numa escola. Por que que tu não faz Pedagogia?” Eu falei assim: “Será?”
Eu já estava fazendo faculdade de Gestão Ambiental. Como eu comecei a trabalhar no polo, eu me interessei pela área. Na época foi cansativo pra mim, mas eu me interessei pela área, gostei. [Fiquei] trabalhando aqui e fazendo Gestão Ambiental. Aí ela falou: “Por que tu não para de fazer Gestão Ambiental e faz Pedagogia, já que tá trabalhando numa escola?” Fui até o final, mas como ficou faltando uma cadeira não fechei. Aí eu comecei na Pedagogia.
Quando eu estava há dois anos fazendo Pedagogia, fui pra sala de aula como estagiária em outra escola, em São Luís. Fazia todo dia esse percurso: aqui às sete e quinze da manhã, saía daqui às onze e meia, ia pro Santa Teresa, a escola lá no centro. Chegava em casa morta. No outro dia, de novo essa luta.
Passei dois anos fazendo estágio lá no Santa Teresa. No ano passado, no mês de agosto, a diretor da escola pediu pra sair pra trabalhar em outro local e teve essa mudança - da secretaria eu fui pra sala de aula, ser mesmo professora, não auxiliar como eu era na outra escola. Estou até hoje como professora.
P/1 - Na Santa Teresa?
R - Não, aqui na escola do Canaã. Na escolinha de educação infantil.
P/1 -
Desde agosto do ano passado?
R - Foi [em] agosto do ano passado.
P/1 - Eu me enganei. Você disse que era dona de casa e eu pensei: “Não foi o que falaram pra mim.” Falaram que você dava aula mesmo.
R - Desde agosto do ano passado eu vim pra sala de aula aqui, mas já estava há um ano na outra escola.
P/1 - Você está cursando Pedagogia ainda?
R - Já terminei.
P/1 - E como foi a faculdade pra você? Se deslocar até lá, o que você aprendeu… Como foi essa experiência?
R -
O deslocamento é como eu falei, tem que sair de casa uma hora, uma hora e meia [antes] pra poder chegar no local. E nem assim a gente chega, porque o ônibus demora muito. Como meu marido tem carro, ele acabava me levando. Pra voltar, às vezes eu vinha de ônibus mesmo. Pra gente sair daqui é muito complicado.
Mas a faculdade foi ótima, foi uma experiência muito boa. E trabalhar com criança é bom demais. Quando a gente gosta de criança, é muito prazeroso. A gente olhar todo dia aquelas crianças chamando a gente de tia, abraçando e beijando, é muito gratificante.
P/1 - Vocês dão aula como, dão já alfabetização?
R - Não. São crianças de dois a cinco anos. Não é alfabetização ainda, alfabetização é a partir do primeiro ano, com seis anos. É mais aquela coisa mesmo de brincar, ensinar são mais fundamentos, nada de alfabetização ainda, apesar de que tem algumas crianças bem desenvolvidas. Tem criança que já sai começando a ler palavras aqui. Teve várias crianças que já saíram lendo, escrevendo bem, com letra bem legível.
P/1 - E você fica feliz vendo isso?
R - Demais. Quando acontece isso a gente vai correndo pra Secretaria, pra cooordenadora ver o nosso trabalho, como ele está sendo. E os pais saem muito felizes.
A gente não espera, porque uma criança de cinco anos não é pra estar lendo. Quando eles começam a ler, a gente se emociona. É muito bom, muito prazeroso. No começo, que é transição de letra - a gente chama de “letra bastão”, que é a letra de forma, e [tem] a letra cursiva. Quando faz a transição de letras, eles choram, mas depois que eles começam a fazer, eles dizem: “Tia, olha aqui, eu consegui!” Aí mostram pra todo mundo na sala. É ótimo.
P/1 - Tem algum aluno ou aluna que já te marcou nesse período, que você se lembra, que vem mais a carinha dele pra você?
R -
Eu tenho agora, porque esse ano a gente quase não teve contato com as crianças. Foi até o mês de abril, se não me engano. Tenho dessa escola e da outra escola também. Tenho três alunos que são muito marcantes.
P/1 - Por quê? Quem são eles?
R - É o Ian, porque ele é muito marrento e chorão. (risos) Apesar de tudo, ele é muito inteligente. Tem o Railan também, que sempre chegava dormindo na sala. Eu perguntava: “Railan, por que tu tá dormindo?“ “Porque eu fui dormir tarde, tia. Eu nem queria vir pra escola. A minha mãe que me mandou vir pra escola, mas eu queria ficar era dormindo.” (risos) Mas chegava todo o tempo conversando.
E o Diego, que brigava muito com a prima dele, que ele diz que é tia dele, uma coisa assim. Eles brigavam muito na sala. A prima dele era muito inteligente - ele também, mas pra escrever…
O Ian já escrevia mesmo bem. O que a gente colocava no quadro, uma letrinha, uma sílaba, ele já falava.
Fora as outras crianças. Se for falar tudo, são trinta alunos. (risos) Mas eles se destacavam por isso, pela maneira deles serem. Ao mesmo tempo, tinha uns que eram agressivos, mas depois chegavam pra gente e abraçavam, beijavam e diziam “eu te amo”. A gente fica assim: “Meu Deus..” Uma criança chegar assim pra gente e dizer que ama é muito gratificante. E abraçavam a gente bem forte. Apertar e dizer “te amo” é bom demais.
P/1 - Você teve filho que estudou na UEB?
R - Eu tive, o Felipe. A Camila só estudou um ano lá.
P/1 - E como é ter um filho que estudou aqui mesmo, na Vila Canaã? Você acompanhava?
R - Acompanhava. A escola é ótima. Acompanhava ele sempre lá. Ele estudou do segundo até o quarto ano lá. A experiência foi boa, a Camila também estudou lá.
P/1 - De onde você acha que surgiram, ou pelo que você sabe, as demandas da vila pela Casa de Cultura, pela rádio, pela associação? Por que vocês escolheram essas coisas em específico pra existir aqui?
R - São as coisas que mais necessitam, que é educação, saúde e segurança. E foram as coisas realmente que de primeiro a Eneva colocou aqui, graças a Deus, porque no começo, quando eles ainda estavam construindo o posto de saúde, a gente tinha que se deslocar daqui pra Pindoba. É uma comunidade vizinha e a gente não era bem recebido lá. Eles diziam que a gente não era pra ser atendido lá, era pra ser atendidas as pessoas da comunidade. Aí seu Zacarias foi lá, conversou com o responsável de lá pra eles poderem atender a gente. Aí foi que eles começaram a atender.
Depois começaram a construção do posto de saúde. Depois que botou aqui ficou muito bom e agora já está melhor porque até exame já estão fazendo, não faziam. E a delegacia também, pertinho de casa.
P/1 - Então, na verdade, hoje você acha que acontece o contrário com o pessoal da redondeza que vem pra cá?
R - Vem. Eles são muito bem recebidos. Semana passada mesmo ou retrasada, a gente estava conversando sobre isso, que a gente era praticamente expulso do outro posto, enquanto agora a gente recebe de braços abertos. E não tem esse negócio de ser só pessoa daqui, não. A minoria são pessoas daqui; a maioria são pessoas da redondeza, de áreas vizinhas que vêm pra cá, pra fazer consulta, exame. São muito bem recebidos, ninguém nunca tratou mal ninguém aqui.
P/1 - Como foi aprender as coisas no polo agrícola? Vocês tiveram alguma aula, algum treinamento?
R - Sim, de vez em quando eles faziam treinamento. Tinha um agrônomo e ele estava todo o tempo ensinando a arar a terra, como preparar a terra, a colheita... Tudo ele fazia com a gente. Era demarcado por equipe, eram várias equipes. Ele andava aquela área toda lá e de vez em quando o pessoal da Eneva também ia lá, fazia reuniões, dava sugestões. Eles sempre deram muito apoio pras pessoas no polo.
P/1 - Vocês aprenderam outra forma de plantar também, né?
R - Foi. Agora teve… Acho que [teve] curso recente pro pessoal que ficou lá. Eles já tiveram outras capacitações pra fazer… Já tem até uma casa de farinha lá. Teve alguns progressos - tem irrigação, tem tudo lá. Pra quem gosta mesmo dessa área de plantar, vender, tem um projeto também que eles fazem pra vender pro governo, pras prefeituras. Eles também vão vender direto na feira.
Tem pessoas que vivem mesmo de lá e não reclamam. Dizem que gostam mesmo, que não desistiram. Outras pessoas… No meu caso, eu trabalhei em outra área porque eu queria ganhar um pouco mais. (risos) Ficar o dia todinho no sol não é bom. A gente ficava o dia todo no sol plantando, essas coisas. Não é legal, não.
P/1 - Conta como foi seu envolvimento com a rádio. Quando começou isso?
R - A rádio foi um tempo atrás. Veio um professor também, na verdade foram duas pessoas, o Toni e… Esqueci o nome do outro. Teve o Júnior também. Teve uma equipe, na verdade, que de vez em quando ficava diversificando - um dava um curso, o outro dava outro curso pra gente. Capacitaram a gente de uma forma ótima. Foi muito boa, muito proveitosa também essa nossa passagem pela rádio.
P/1 - E que curso deram pra vocês?
R - Ensinaram a gente a mexer nos equipamentos, em tudo. Ensinaram a melhor forma da gente se comunicar com as pessoas, aquela coisa toda de rádio.
P/1 - Ensinaram a fazer programação?
R - Roteiro, script, tudo.
P/1 - Quanto tempo demorou esses cursos? Quanto tempo
demorou pra rádio inaugurar?
R - Eu não lembro de quanto tempo ficou esse curso. Veio o Toni, fez um curso com a gente, aí veio o Odinei também, fez um curso com a gente, e teve um outro que eu não me lembro, acho que o nome dele era João. E o Fábio também deu um curso pra gente. Eu não sei quanto tempo foi, essa duração não me recordo.
P/1 - Você estava no dia em que a rádio foi inaugurada?
R - Não. Eu participei já na segunda equipe. Foram duas equipes: a primeira, logo que inauguraram… Eu trabalhava fora, era mais pra quem tinha disponibilidade de ficar de manhã, tarde ou noite. Era um dos três horários. Eu não tinha nenhum porque eu chegava do serviço à noite.
Entrei na segunda equipe. Quando
ela foi inaugurada, eu não estava.
P/1 - E na segunda equipe quem estava lá?
R - As pessoas? Éramos eu, Patrícia, Cleonice, Thalia, Tamires, Rafael… Quem era mais? Valentim. Eram essas pessoas.
P/1 - Você ficava em que horário?
R - Eu ficava à noite, de seis.
P/1 - O que você tocava lá, como era a programação da noite?
R - Era mistura, tocava mistura. O nome do meu programa era Extravaza. Eu tocava axé, forró, o que as pessoas pediam. Eles ligavam, a gente tinha um telefone pra eles ligarem e pedirem músicas. Fazia algum anúncio, algum comércio daqui, a gente anunciava.
P/1 - Você ficava quantas horas por dia?
R - Era uma hora só. Não tinha como ficar muito tempo porque já entrava outra pessoa. Intercalava, de manhã ficavam duas pessoas, à tarde mais duas ou três. A rádio não funcionava o dia inteiro porque cada um tinha um compromisso. A gente trabalhava como voluntário. Tinha outra forma de ganhar o nosso dinheiro, outro emprego, e vinha pra cá no horário que a gente estivesse disponível pra botar pra frente a rádio.
A gente deu uma parada porque os equipamentos, as caixas lá fora danificaram.
P/1 - De chuva, de…?
R - Com chuva, sol, aí danificou tudo. Deu uma parada. Estamos esperando o que vai acontecer, como vão arrumar os equipamentos pra gente voltar.
P/1 - Depois de você, do seu programa, quem vinha?
R - Era Rafael e às vezes a Tamires. Um dos dois.
P/1 - E o programa deles era como?
R - Não me lembro. O de Valentim era mais música evangélica. Ele é evangélico.
P/1 - E o de Cleonice?
R -
Era mais culinária. Mas ela não ficava só, ela ficava com… Ou ela vinha com Tamires… Elas revezavam com ela pra ajudar. Thalia ou Valentim. Mas o dele era mais pela manhã.
Ela falava as notícias do polo agrícola - até hoje ela trabalha no polo, a Cleonice.
P/1 - E Patrícia?
R - Patrícia era mistura também. Era mais pop, sertanejo.
P/1 - E qual a frequência da rádio?
R -
Não lembro.
P/1 - Tocava mais aqui nas caixas mesmo.
R - É, porque eles ainda iam colocar essa frequência. Quando eles iam fazer essa mudança, iam levar pros outros bairros, danificou as caixas, aí não funcionou mais.
Não ia ficar só no bairro, queriam botar pra mais lugares, aí não teve mais como.
P/1 -
A rádio tocava só nas caixas ou dava pra acessar de outra forma?
R - Não, só nas caixas.
P/1 - Como era? Você andava na rua…
R - A gente escutava nos postes, só.
P/1 - Como você fazia a locução, você se lembra? Como você fazia as chamadas?
R - Eu lembro. (risos)
P/1 - Você pode fazer pra gente um pouco?
R - Só um pouquinho. (risos)
“Boa noite, está começando mais um programa Extravaza, com Kelly… “ Mas a gente tinha uma vinheta, depois eu começava a falar. Aí falava um pouquinho da comunidade, depois eu colocava as músicas. Parava um pouquinho, baixava o som, aí falava outra notícia… A gente pesquisava as coisas na internet pra falar também. Era desse jeito.
P/1 -
Vocês comentavam o quê? Notícia política, do bairro?
R - Política, saúde, quando ia ter alguma reunião aqui também. Se tivesse alguma programação no posto de saúde, tudo a gente falava. Dava um pouquinho de dicas de beleza, de tudo um pouco. (risos)
P/1 - Você se lembra de alguma polêmica que aconteceu na rádio, de algum causo que aconteceu quando você estava lá?
R - Não. Pelo menos quando eu estava, não.
P/1 - Nenhum problema.
R - Não. (risos)
P/1 - Tinha programa de fofoca, essas coisas?
R - Não.
P/1 - E durante o tempo que funcionou aqui, que você estava lá, você acha que ajudava a comunidade, que guiava um pouco?
R - Acho que sim, ajudava sim porque tinha muita gente que estava chegando do serviço e não escutava o que o Valentim tinha falado de manhã, tinha feito algum aviso e de tarde ouvia. Chegava à noite, já sabia do que ia acontecer na comunidade no final de semana - as ações sociais que tinha, que tem, são várias ações sociais que eles fazem e às vezes a Eneva ajuda nessas ações.
Todo o tempo tem ação social aqui. Quando não tem patrocinador, vai pela associação mesmo. A associação que dá um empurrão, que incentiva.
P/1 -
E hoje você está então com o Benedito.
R - Sim.
P/1 - O que você espera pro seu futuro? Qual o seu sonho pessoal hoje?
R - O que eu quero hoje mesmo [é] a minha fílha [se] formar. Quero ver ela formada, quero ver ela trabalhando, quem sabe aqui no posto de saúde. Ela vai ser
enfermeira, se Deus quiser.
O meu objetivo hoje é esse, trabalhar pra investir nela. Não que os outros não sejam minha prioridade também, mas como ela já está na faculdade ela precisa de uma força a mais. Faculdade é um pouco mais pesado, aí eu estou focando muito nela, a Amanda.
P/1 - O que você acha da comunidade? Ela está unida, está desunida? Como que está hoje?
R - Acho que ela está engajada uns 30%. Não é 100%. Se fosse, acho que teria mais evolução aqui, mas não. Nem todo mundo é unido. Um tanto que puxa prum lado, outro tanto puxa pro outro, aí fica aquela coisa. Se todo mundo se envolvesse na mesma causa, acho que as coisas andariam mais rápido, tudo seria bem mais desenvolvido. Mas não acontece isso aqui, não.
P/1 - Se você colocar num saldo a relação da Eneva com a comunidade, como você vê isso?
R - Ela já ajudou muito, a Eneva, mas ela não trouxe pra cá o asfalto. Tinha no projeto, mostraram aqui pra comunidade tudo asfaltado e até agora esse asfalto não veio.
É como eu te falei: quando tem algum projeto aqui, que a Patrícia pede - ela é a presidente da associação - o que eles puderem ajudar, eles ajudam. Mas em relação ao que foi dito no início e até agora não foi cumprido foi o asfalto. Quando começa o período de chuva aqui, a gente não consegue nem sair de casa. Quantas vezes eu não saí de casa com uma sacola nos pés, porque é muita lama.
A prefeitura vem, passa a máquina, aí baixa um pouquinho, arruma. Começa a chover, vem aquela cratera toda, um poço de lama. Fica horrível.
A primeira rua quem asfaltou foi uma empresa que estava trabalhando aí, uma empresa de asfalto, mas até agora a Eneva não se pronunciou em relação a isso.
Estava faltando a quadra, que eles fizeram agora há pouco, foi inaugurada já esse ano, e agora falta o asfalto.
P/1 - Você chegou a ver o EJA [Educação de Jovens e Adultos] acontecendo na UEB?
R - Cheguei a ver.
P/1 - As pessoas da comunidade foram alfabetizadas?
R - Algumas sim. Era a minoria, porque era à noite. Geralmente, quem ia pra lá eram os mais velhos. Às vezes dava duas, três pessoas. E os professores faltavam muito à noite, demais. Eram professores de outra comunidade, de outras localidades, que vinham dar aula aqui e faltavam demais. Vinha um adolescente, dois; às vezes tinha só um aluno na sala de aula, acho que foi por isso que parou. Não teve como continuar sem aluno.
P/1 - Como você vê o futuro da vila, do polo? O que você espera, o que você deseja?
R - Eu espero crescimento, né? Espero que tenha ônibus.
Lá no polo eu espero que as pessoas consigam se engajar naquela área, que eles consigam crescer, viver de lá como tem pessoas que já vivem de lá, tiram seus sustento e um bom dinheiro. Mas outros acho que precisam de um pouco mais de incentivo pra poder continuar. Teve pessoas que deixaram de mão porque não deram mais conta.
A Eneva deu um suporte, aí depois ela deixou que as pessoas andassem com suas próprias pernas; foi aí que foi dando uma quebrada, uma diminuída. As pessoas foram largando. Mas que é uma boa área pra plantar, pra se cultivar, ela é. E aqui, se tiver transporte, vai melhorar muito pra gente. Vai ser ótimo.
P/1 - Você se imaginou professora na vida, antes?
R - Não. (risos) Quando eu era adolescente e criança, a profissão que não vinha na minha cabeça era professora. Eu dizia: “Eu quero ser outra coisa.” Vinha secretária, alguma coisa executiva, mas não professora.
Foi quando eu comecei a trabalhar na escola. Até então, eu ainda não queria ser professora. Eu gostava de estar ali na secretaria, gostava de fazer aquele serviço da secretaria. Quando eu chegava na porta da sala de aula, que eu ia deixar algum documento pro professora, pegar alguma assinatura, eu olhava aqueles meninos gritando… Dizia: “Nunca que eu quero ser professora.”
(risos)
Foi quando eu comecei, essa amiga me deu a ideia de fazer [Pedagogia]. Eu disse: “Vou fazer por fazer, mas acho que eu não vou pra sala de aula, não.” Queria ser outra coisa, mas não professora. Pedagogia é bem abrangente, a área, mas não pra ir pra sala de aula.
Minha amiga me deu esse incentivo, eu fiz, e a minha professora da faculdade perguntou se eu não queria fazer um estágio na escola que ela trabalhava. Eu disse que queria, aí eu fui e pronto, me apaixonei pelas crianças. As crianças [eram] muito doces, com aquela coisa toda com a gente. Um abraça, um beija… Tinha até ciúmes de pais com a gente. (risos)
Acabei sofrendo um pouco com uma mãe que ficou com ciúme, de tão apegadas que as crianças eram comigo. Uma criança começou a me chamar de mãe, aí a sala inteira começou a me chamar de mãe. Quando chamavam na frente dos pais, eu ficava morrendo de vergonha. Quando não estavam na frente deles, [era] tranquilo. Depois teve uma mãe que foi na secretaria. A professora titular me falou que a mãe foi lá e perguntou por que a criança estava me chamando de mãe. Eu disse: “Eu não pedi que ela me chamasse de mãe, ela que começou a chamar.”
Quando ela vinha, já me olhava de longe e dizia: “Mãe, mãe!” Eu dizia: “Melissa, não pode. Eu sou só a tia da sala.” Ela dizia: “Não, é minha mãezinha.” A mãe dela ficava com o olhão desse tamanho pra mim. (risos)
Eu conversei demais com ela. “Não é pra me chamar de mãe.” Ela disse: “Tá bom.” Aí quando ela chegava, ela falava [baixinho]: ”Tia, só pra nós duas, viu? A senhora é minha mãe sim.” (risos)
Era muito bom, até hoje eu tenho contato com as crianças da outra escola. Com pais, com mães, eu tenho contato. Nunca me largaram de mão e nem eu largo eles.
P/1 -
Como você vê a escolinha pra comunidade? É importante…
R - É muito boa. É bom demais, porque eles não têm que sair daqui pra outro lugar. E aqui antigamente era só a partir de três anos, agora a gente já pega com dois, dois anos e meio. Já é uma adaptação pra elas pra irem se enturmando, terem aquela referência.
Tem pais que não gostam porque ficam com pena de deixar aqui, eles ficam chorando. Pensam que a criança não vai aprender nada aqui, mas aprende sim. Tudo quanto é movimento, coordenação motora… O pai às vezes não entende. “Vou botar meu filho na escola pra aprender o quê? Ele tem dois anos e meio.” Tem pessoas que colocam só com quatro anos porque dizem que a criança não vai aprender. Vai sim. O olhar de um pai é um, de um professor é outro. Qualquer rabisco diferente que a criança faz a gente entende, o pai não entende. Ele pensa que é só um rabisco, mas não é. Pra gente tem muito significado, vai além do rabisco.
P/1 -
Isso que você falou é interessante, de manter as crianças na comunidade. Você acha que isso fortalece, as crianças se conhecerem, crescerem juntas...
R -
Fortalece sim, é muito bom.
P/1 - E como foi pra você contar um pouco da sua história?
R - Foi uma boa experiência. (risos) Quando eu estou com as minhas colegas, a minha filha fala assim: "Mãe, a senhora fala muito.” Eu digo: “Eu não percebo que eu falo, não.” Ela diz: “A senhora fala. Quando a senhora começa, não quer mais parar.”
Pra falar de mim, eu acho ótimo. Gosto de falar de mim. Se tem uma coisa que eu gosto, é de falar. (risos)
P/1 - Tá certo, Kelly. Muito obrigado pela presença, pelo tempo. Foi ótimo.
R - Eu que agradeço. Foi um momento muito especial, com ótima companhia. Foi bom contar um pouco da minha experiência, da minha vivência, do que eu já vivi, do que eu vivo agora. Foi muito satisfatório.
P/1 - Muito obrigado.
R - De nada.Recolher