Entrevista de Vanessa Silva Lima Morenti
Entrevistada por Bruna Oliveira e Luiza Gallo
São Paulo, 06/10/2021
Projeto Comunidade Zaki Narchi - Instituto Center Norte
Realizado por Museu da Pessoa
Entrevista n.º PCSH_HV1054
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 – Vanessa, pra começar eu queria que você dissesse seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Vanessa Silva Lima Morenti, minha data de nascimento é dia 1º de dezembro de 1992. E o local é Avenida Zaki Narchi, na comunidade.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Minha mãe é Maria Leite Silva Lima e meu pai, Benedito Morenti Filho, mas não o considero como pai. (risos)
P/1 – E o que sua mãe fazia?
R – Minha mãe era empregada doméstica.
P/1 – Como é que você a descreveria?
R – Essa é uma pergunta difícil. (choro) Desculpa. A minha mãe é a pessoa que me fez ser quem eu sou hoje, eu devo tudo a ela. Eu tinha dezenove anos quando a perdi, ela deixou meu irmão para eu criar, já faz dez anos que eu o crio. Minha mãe morreu com 44 anos, de infarto. Descrever a minha mãe é como descrever tudo na minha vida. O que eu sou hoje, a pessoa que eu sou, a mãe que eu sou hoje, a vida que eu vivo, acho que devo tudo a ela. Tudo foi ela que me ensinou. Hoje é difícil falar dela, por não ter mais, por sentir saudades, por não ter alguém que fale algo pra mim, às vezes, que me dê um conselho, ou até mesmo que brigue comigo, vamos colocar assim. É difícil, mas ela me ensinou que nada é impossível. Hoje eu crio as minhas duas filhas, crio meu irmão também porque, quando ela faleceu, ele tinha quatro anos e eu fiquei com uma responsabilidade que não era minha na época e hoje, graças a Deus, ela me deu força ali, me ensinou direitinho e eu consigo ‘tirar de letra’.
P/1 – E como é que é o nome do seu irmão?
R – Meu irmão é Rodrigo. O que eu crio é Rodrigo.
P/1 – Você tem outros...
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Entrevistada por Bruna Oliveira e Luiza Gallo
São Paulo, 06/10/2021
Projeto Comunidade Zaki Narchi - Instituto Center Norte
Realizado por Museu da Pessoa
Entrevista n.º PCSH_HV1054
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 – Vanessa, pra começar eu queria que você dissesse seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Vanessa Silva Lima Morenti, minha data de nascimento é dia 1º de dezembro de 1992. E o local é Avenida Zaki Narchi, na comunidade.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Minha mãe é Maria Leite Silva Lima e meu pai, Benedito Morenti Filho, mas não o considero como pai. (risos)
P/1 – E o que sua mãe fazia?
R – Minha mãe era empregada doméstica.
P/1 – Como é que você a descreveria?
R – Essa é uma pergunta difícil. (choro) Desculpa. A minha mãe é a pessoa que me fez ser quem eu sou hoje, eu devo tudo a ela. Eu tinha dezenove anos quando a perdi, ela deixou meu irmão para eu criar, já faz dez anos que eu o crio. Minha mãe morreu com 44 anos, de infarto. Descrever a minha mãe é como descrever tudo na minha vida. O que eu sou hoje, a pessoa que eu sou, a mãe que eu sou hoje, a vida que eu vivo, acho que devo tudo a ela. Tudo foi ela que me ensinou. Hoje é difícil falar dela, por não ter mais, por sentir saudades, por não ter alguém que fale algo pra mim, às vezes, que me dê um conselho, ou até mesmo que brigue comigo, vamos colocar assim. É difícil, mas ela me ensinou que nada é impossível. Hoje eu crio as minhas duas filhas, crio meu irmão também porque, quando ela faleceu, ele tinha quatro anos e eu fiquei com uma responsabilidade que não era minha na época e hoje, graças a Deus, ela me deu força ali, me ensinou direitinho e eu consigo ‘tirar de letra’.
P/1 – E como é que é o nome do seu irmão?
R – Meu irmão é Rodrigo. O que eu crio é Rodrigo.
P/1 – Você tem outros irmãos?
R – Tenho um do meio, que é mais novo do que eu, que o nome dele é Diego.
P/1 – Como é a relação com eles?
R – Com o Diego, hoje em dia, é um pouco mais afastada, por conta dele ter a família dele, já, cada um vive a sua vida, mas a gente tem uma relação boa. O Rodrigo, eu não digo uma relação de irmãos. A gente não tem essa relação. A gente tem uma relação de mãe e filho. Essa é a relação que eu tenho com ele. Quando precisa, todas as vezes, se ele faz algo de errado, eu estou ali pra repreender, pra mostrar o caminho certo, o jeito certo de fazer, o caminho certo a caminhar. É diferente da minha relação com o outro irmão. O outro, no caso, o Diego.
P/1 – Quando você era mais nova e ele era uma criança de quatro anos, como é que era?
R – Os primeiros dias, logo após a morte da minha mãe, foram muito difíceis. Ele pedia muito, chamava muito por ela e eu, na época, me sentia sem chão. Mas eu os tinha para cuidar, já tinha minha filha mais nova que, na época, tinha dois anos. E ele chamava muito por ela, pedia muito ela ali e foi um dos tempos mais difíceis pra mim. Eu não tive tempo de luto, porque eu tive que me manter forte, para cuidar dos meus filhos. Não digo meu irmão, porque eu não consigo usar esse termo. Cuidar deles. Então, eu tive que estar sempre um pouco mais dura, ali. Antigamente, há dez anos, foi uma das épocas mais difíceis da minha vida. Foi quando eu perdi a minha mãe, tive uma responsabilidade que dobrou. Essa minha responsabilidade com o Rodrigo, assim, no começo foi muito difícil, porque ele não me escutava, às vezes, eu falava uma coisa e ele não aceitava, mas com o tempo, ele foi entendendo que quem estava ali era só eu mesmo, até o dia que ele e a minha filha mais nova perguntaram pra mim onde estava minha mãe. E eu, coloquei os dois na janela e falei pra eles assim: “Procura uma estrela lá, a que mais brilha. Essa é a vovó”, falei pra Lara e pro Rodrigo que aquela era a minha mãe. Foi a partir desse dia que o Rodrigo parou mais de chamar por ela. E todo dia, à noite, eram todos os dias, durante um longo período, eles dois iam pra janela, um certo horário, davam boa noite, conversavam com as estrelas e depois iam dormir. O Rodrigo tem um sentido na minha vida, de força, que eu acho que, se eu não tivesse nenhum dos dois na minha vida, principalmente o Rodrigo, na época, eu não conseguiria. Tive um quadro de depressão, no começo, mas conforme o tempo passava, ou eu acordava pra vida, ou o que seriam dos meus filhos? E hoje, graças a Deus, não vou dizer que consigo preencher um lugar no coração do meu filho, porque eu consigo, mas eu sempre deixei claro pra ele que a minha mãe é a mesma dele, então ele me chama de mãe, hoje, mas ele sabe a diferença de eu ser mãe, com ela ser mãe, né? Acho que é isso.
P/2 – Quantos anos você tinha, quando você a perdeu?
R – Dezenove.
P/2 – Você lembra de alguma atividade, de alguma história juntas?
R – Eu acho que são várias, mas uma, em si, foi quando ela descobriu que eu estava grávida da minha filha. (risos) Porque eu escondi a gestação da minha filha durante um bom tempo, quase quatro meses, usando alguns métodos que ela nem imaginava. (risos) Eu colocava esmalte, catchup no meu absorvente, enrolava e jogava no lixo, pra ela não descobrir que eu já estava grávida, na época. Só que aí, um belo dia, ela falou pra mim: “Você está muito diferente, eu vou te levar no médico”. E eu fui no médico com ela, no posto de saúde, cheguei lá e ela falou: “Quero fazer um teste nela, que eu tenho quase certeza que ela está grávida”. E aí eu fui fazer o teste. Na hora que eu fui fazer o teste, a mulher me deu o copinho e falou: “Faz xixi aqui, até mais ou menos essa linha aqui e aí você traz pra mim”. Eu fiz isso aqui de xixi, coloquei isso aqui de água, mas mesmo assim já não tinha como e eu acho que Deus falou: “Vai dar, mesmo aí”. Quando a mulher colocou dois palitinhos lá, já veio, já subiu aqueles dois pontinhos, eu já saí de lá apanhando horrores. Depois de um tempo ela falou que ia me colocar pra fora de casa, mas acabou que não fez, pelo contrário. Ela falava depois que a Lara nasceu que, se eu fosse embora, eu ia sozinha e a Lara ficaria com ela. Eu acho que essa é uma das últimas coisas que eu mais tenho recordação, em questão de serem um dos momentos mais marcantes que a gente teve junta. Foi bom e, ao mesmo tempo, não, né? Mas ela mostrou pra mim que eu tinha uma responsabilidade a partir daquele momento ali, quando eu fiquei grávida da minha filha. Então, ela sempre colocou pra mim: “A responsabilidade da sua filha é sua, não minha”. E teve outros, também, episódios que ela ainda, depois que a Lara nasceu, fez eu passar, mas eu acho que essa é uma das coisas que mais, às vezes, eu lembro.
P/2 – E seu pai, você chegou a conhecer?
R – Então, meu pai, na verdade, em si, eu conheci quando a gente veio morar pra cá novamente, porque a minha mãe morou aqui, nasceu, não, minha mãe é do nordeste, mas a minha mãe veio pra cá com a minha avó quando ainda era pequena e minha mãe engravidou do meu pai e ele não queria responsabilidade, só me registrou, mesmo, quando eu tinha praticamente três meses de vida, mais ou menos. Ela casou com o pai do meu irmão, que é o pai do meu irmão do meio. E ele que foi quem me criou. Então, foi quem eu considero como pai, desde que eu me conheço por gente, vamos colocar assim.
P/2 – Vocês tinham uma boa relação?
R – Sim. Até melhor do que ele com o próprio filho, no caso, o Diego. Eu, no caso, era bem mimada, ele passava mais tempo comigo do que com meu irmão. E a minha mãe sempre foi mais pro lado do meu irmão, mesmo.
P/1 – E como era o nome dele?
R – Do meu pai? Era Florisvaldo. Ele faleceu já tem mais de… eu estou com 28, ele faleceu tem vinte anos. Quando ele faleceu, eu ia fazer nove anos de idade.
P/1 – E você sabe a história dos seus avós?
R – Não muito. São poucas coisas. O que eu sei é que minha avó veio do nordeste, com a minha mãe e mais três irmãos homens, teve uma vida difícil na época, porque ela morou aqui na época em que ainda era favela, mesmo, barracos. A minha avó faleceu aqui já, também, em São Paulo, já tinham feito os prédios, quando ela faleceu. Minha avó morou aqui, o meu tio também, hoje em dia não mora mais, mas a família, minha mãe e os irmãos foram criados aqui.
P/2 – E quando você nasceu, você nasceu aqui na Zaki Narchi?
R – Nasci aqui.
P/1 – Você sabe algumas histórias que sua mãe, seus tios, sua avó contava, daquela época, daqui?
R – A minha mãe falava que aqui era um lugar muito perigoso, na época. Então, ela preferia não ficar muito aqui, porque falava que era um lugar bem perigoso, assim, que eles dizem, era um lugar que era bom de se viver em questão de segurança, do pessoal que mandava aqui na época, (risos) que eu não sei quem é, mas a minha mãe dizia que aqui, ao mesmo tempo, era como se fosse um pessoal que vive numa vida de periferia, mesmo que more numa comunidade. Eu não sei muito. Eu não ouvi muita coisa. Minha mãe procurava não falar muita coisa, logo após que a gente foi embora daqui, quando eu era bebê ainda, eu tinha três meses. Aí, quando meu pai faleceu, a gente retornou pra cá, eu ia fazer nove anos. Então, quando eu retornei, foi onde eu conheci o meu pai biológico, porque eu não sabia também quem era, não sabia nem que o pai do meu irmão não era meu. (risos)
P/1 – E como foi descobrir que não era o mesmo pai?
R – Olha, na época quando eu descobri foi uma sensação assim, eu não posso dizer nem de surpresa porque, pra mim, não fez muito sentido, mas eu fui conhecer o meu pai e nunca foi uma relação muito afetiva. A gente não tinha muito contato. E, pra ser bem sincera, eu nunca considerei como pai, porque não fez parte da minha vida, não viveu as dificuldades junto com a minha mãe, então pra mim não fez muita diferença.
P/2 – E onde você passou sua infância? Em que bairro?
R – No Lauzane.
P/1 – Você lembra da rua que você morou?
R – Sim. Eu cresci na Rua Alfredo Sade, ali no Lauzane, que é uma travessa da Conselheiro Moreira de Barros, descendo ali, uma ladeirinha.
P/1 – E como é que era a casa?
R – Era uma casa pequena, meu pai pagava aluguel, era jardineiro e a minha mãe empregada doméstica. Eles pagavam aluguel na época, a casa era um quarto, cozinha, banheiro e tinha um quintal, assim, fora.
P/1 – E você lembra, nessa época, o que você gostava de brincar?
R – A gente brincava muito na rua. Nessa época, às vezes, até apanhava, por conta de não querer entrar pra casa. (risos) Brincávamos de esconde-esconde, amarelinha, aqueles Três Marias, aqueles saquinhos. Saíamos pra rua de final de semana umas oito, nove horas da manhã e, se minha mãe não viesse atrás, já com a chinela na mão, a gente não entrava, não. (risos) Teve algumas vezes que corremos deles e depois tomamos umas chineladas, (risos) mas foi um tempo bom.
P/1 – E você, nessa época, bem pequena, lembra de alguma comida, algum cheiro que lembrasse a sua família ou a sua infância?
R – Bolinho de chuva. (risos) E lembro até uma vez que minha mãe fazia umas ‘panelonas’, assim, umas bacias bem grandes, de bolinho de chuva. E aí, eu e meu irmão, a gente sempre acabava brigando, por conta disso. O meu irmão era muito comilão, comia demais e acabava deixando só um pouquinho pra mim. Aí, um dia, quando ele chegou em casa, eu estava comendo e só tinha uns quatro, cinco, mais ou menos e ele começou a brigar, queria me bater, a gente quase brigou, mesmo, de sair na mão, lutar e a minha mãe falou pra ele, assim: “Hoje você me paga. Ou você pára com isso, ou você vai ver”. Ela fez uma bacia de bolinho de chuva cheia - uma bacia roxa, não esqueço a cor da bacia – de bolinho de chuva e falou pro meu irmão: “Esse aqui é só seu. Você vai sentar aí e vai comer tudo, um por um. E, se passar mal, aí você vai ver”. (risos) Desde esse dia meu irmão nunca mais... minha mãe o fez comer quase praticamente a bacia inteira de bolinho de chuva. E desde esse dia pra cá, nunca mais a gente brigou por conta de comida, porque ela falava assim: “É uma coisa muito feia. Vocês não têm necessidade de brigar por comida”, isso e aquilo. Mas é uma coisa que até hoje, quando eu faço pros meus filhos, eu acabo lembrando o cheiro, o gosto. Ali, o modo de fazer, que nem ela fazia, lembra um pouquinho da infância.
P/1 – E quando você era pequena, você tinha sonho de ter alguma profissão, assim?
R – Sim. Meu sonho era ser veterinária. Até hoje é, mas faltam recursos para isso. (risos) Hoje em dia, com três filhos, é mais difícil ainda, mas eu tinha esse sonho.
P/1 – E lá em Lauzane, você já ia pra escola?
R – Sim.
P/1 – Como é que foi a primeira lembrança? Você tem a primeira lembrança da escola?
R – Olha, as lembranças que eu tenho da escola são mais quando a minha mãe ia levar a gente, a gente usava um uniforme... Eu, no caso, que era menina, uma sainha e uma blusa branca, o sapato tinha que ser branco também, na época ou era vermelho, eu não me recordo bem. Na época da Emei, estudei um tempo lá. Aí, foi mais difícil quando a gente veio pra cá, na verdade, porque lá a gente tinha um ritmo de vida. E aqui era diferente. Aqui já foi diferente. Mas lá eu lembro da época ainda da Emei, na escola também onde eu estudei, que foi no Marcílio Dias. Estive um tempo, também, em escola particular. Aí, quando meu pai faleceu, a gente foi pra escola pública, porque já minha mãe não conseguia bancar sozinha.
P/1 – E teve algum professor, alguma professora nessa época, que foi marcante?
R - Olha, pra ser sincera, eu até lembro um pouco da fisionomia dela, mas não lembro do nome. Era uma professora da primeira série, acho, se eu não estou enganada. Primeira ou segunda série. Ela era ‘fortinha’, usava óculos e falava pra mim que eu era uma das meninas mais bonitas da sala. (risos) Tipo: aquilo me enchia, né? (risos) É a única lembrança que eu tenho. O nome, às vezes, eu queria muito lembrar o dela, mas não me recordo, não.
P/1 – E como é que foi voltar pra cá?
R – Como que eu posso usar um termo? Não posso dizer que foi um choque, porque a gente nunca tinha vivido isso. Mas foi muito diferente voltar pra cá. Vir pra cá, você conviver, foi muito difícil, muito diferente. A rotina era diferente, porque a gente estudava. Primeiro, acho que até uns dois anos, continuamos lá. Então, pegávamos ônibus. Fazer novas amizades também foi muito difícil, em questão de outros convívios. Porque lá, a gente tinha um contato com um pessoal mais de classe média, assim, por mais que a gente não tivesse tanto, na rua onde a gente morava tinha bastante gente que tinha uma vida melhor, um custo de vida mais alto que o nosso, então eles viviam melhor. Mas não faziam diferença, por minha mãe ser empregada doméstica, meu pai ser jardineiro. Pelo contrário, sempre fomos tratados como iguais. E quando a gente veio pra cá... o meu irmão se enturmou muito rápido, mas eu não consegui me enturmar tão rápido assim. As meninas, mesmo, hoje, que são minhas amigas, as meninas que eu converso, falam pra mim que eu era metida, subindo a escada, cabelinho liso, curtinho, era tipo ‘patricinha’ e esse termo era usado entre aspas, nunca foi usado pra mim, por saberem que a minha mãe e meu pai não tinham uma vida fácil e aí me colocava no lugar das meninas onde a gente morava, me tratavam de uma forma, pra eu não me sentir diferente delas e aqui, no começo, eu me senti diferente. É uma coisa que, no começo, foi bem difícil. Mas depois de um tempo, a gente foi fazendo amizade. Hoje em dia, tem umas cinco, seis que não gostavam muito de mim que a gente se dá super bem (risos).
P/1 – E como foi crescer aqui, na Zaki Narchi?
R – Foi bom, (risos) porque na época, também, a gente brincava muito. A gente ficava muito tempo na rua. Minha mãe batia na gente, porque a gente chegava em casa suja de barro, tomava banho de chuva escondido. Foi uma época bem gostosa também.
P/2 – Era como, com quadra?
R – É, era assim, mas não tinha essas grades, era só um murinho. Aqui também, onde a gente morava, no [apartamento] 32, não tinha essas garagens, era tudo aberto, não tinha nada assim, era bem espaçoso, um lugar bem espaçoso.
P/1 – E tinha os prédios, já?
R – Sim, já tinha os prédios, quando a gente voltou, sim.
P/1 – E como é que foi a juventude? Como foi?
R – Meu Deus do céu! Dei trabalho pra minha mãe! Eu comecei tudo muito nova, na verdade. Tenho até medo de falar isso e minha filha mais velha escutar, misericórdia! Eu, com doze anos, já estava fugindo da minha mãe, para gente ir pros bailes da vida. As meninas iam, na época, pra uma ‘casa noturna’ entre aspas, porque era um baile que começava às cinco da tarde e acabava meia-noite. Era matinê que falava, na época. E eu ia escondido. Tinha vezes que eu esperava minha mãe dar uma cochiladinha, à tarde, me arrumava e ó, ia embora, isso quando eu não a trancava dentro de casa. Só que não curti muito a minha juventude, porque com dezessete anos eu já estava grávida da minha filha mais velha, hoje. A do meio. Já estava grávida, engravidei da Lara com dezessete anos. Comecei a namorar com o pai dela com quatorze, também escondido da minha mãe. Até que ele foi conversar com ela e foi aí onde a minha mãe também só faltou acabar comigo, mas ela falava que eu não ia ficar com meu marido, não, porque na frente dela eu falava que ele era feio. (risos) E ela falava pra mim: “Você não vai namorar com ele” e eu falava: “Mas eu não estou namorando com ele, só dei uns beijinhos e acabou”. Aí, nesses beijinhos, eu acabei ‘casando’ entre aspas e estou com ele até hoje.
P/1 – E como foi que você o conheceu?
R – Eu o conheci aqui mesmo, na comunidade. Eu jogava bola na época e ele sempre mexia comigo, sabe? Eu passava na rua, eu era ‘corpudinha’, cabelão ruivo e aí ele mexia e eu nunca gostava. Aí acabava xingando, falando pra ele que não, que não queria, isso e aquilo. Aí eu acho que, com o tempo, o modo de falar, a gente foi conversando, até que chegou o dia que a gente acabou ‘ficando’. No começo também era escondido, porque minha mãe não podia nem sonhar que eu estava ‘ficando’ com ele, que eu estava namorando e aí ele foi, depois de um tempo, pedir pra minha mãe e ela achava que eu não ia namorar com ele porque, pra ela não saber que eu namorava com ele, quando perguntava, eu falava que não, que ele era feio, que não ia querê-lo nem pintado de ouro, isso e aquilo. Ó hoje, casada já há um tempo.
P/2 – Você jogava bola?
R – Sim.
P/2 – E como era? Tinha time?
R – A gente jogava mais pra brincar. E quando tinha algum evento e tal, juntavam umas meninas e a gente acabava tirando uma brincadeira, no meio da quadra. Time para sair, para jogar fora, não. Era só por aqui, mesmo. Até tinha, das meninas, mas eu não fazia parte, não.
P/1 – E como foi se tornar mãe?
R – Meu Deus! Na época, um baque, porque eu não tinha terminado meus estudos ainda, eu estava acho que no primeiro ano do ensino médio... não, no oitavo ano do ensino fundamental II e foi quando eu fiquei grávida da Lara, da minha filha do meio. E quando eu engravidei da Lara eu tive dificuldades, até mesmo para terminar os estudos, para continuar estudando e a minha mãe ficava com a Lara o período da manhã, quando eu ia pra escola e o meu padrasto, quando dava mais ou menos umas dez e meia, onze horas, que era perto das últimas aulas, levava a Lara pra mamar e ela ficava comigo, até eu vir embora. Depois isso ficou mais difícil, aí eu parei os estudos, fiz o primeiro, terminei o primeiro do ensino médio e depois parei de vez, porque não consegui voltar a estudar. Aí, depois, com o tempo, com a tecnologia, você faz online, eu acabei terminando assim, mas foi uma época bem difícil ser mãe, ter responsabilidade, porque eu tive que escolher entre trabalhar ou estudar, porque eu precisava trabalhar, porque eu precisava criar a minha filha. Sabia que o estudo era essencial, mas já não foi uma coisa que ficou ali em prioridade na minha vida, porque a prioridade na minha vida, no momento, já era a minha filha. E a minha mãe é o que eu falei no começo: sempre colocou pra mim que a responsabilidade da minha filha era minha. A partir do momento que eu engravidei, então sempre foi minha aquela responsabilidade. Ela usava um termo de ‘quem pariu Mateus, que embale’. Então, ela sempre colocou pra mim que toda a responsabilidade da minha filha era minha, independente que fosse o mínimo, que fosse olhar enquanto ela estivesse dormindo ali, pra ver se ela estava viva, que nem muitas vezes eu cheguei pertinho, assim, pra sentir a respiração, pra ver se estava tudo bem e a minha mãe me colocou muito isso. Eu lembro de uma vez que teve um episódio com a Lara, que a Lara tinha refluxo e eu não sabia muito bem lidar com a situação. E nesse dia a minha filha colocou o leite até pelo ‘ouvido’, entre aspas, e eu chamei minha mãe. Eu dei, sabe aquele grito de desespero: “Pelo amor de Deus, mãe, me ajuda!” Ela falou: “Não. Você vai pegá-la assim, vai colocá-la deitadinha, vai bater nas costas dela, ela vai terminar de colocar o que ela tem pra colocar, pra fora e vai passar”, como se, sabe, fosse normal e eu estava ali, toda apavorada e eu fiz e hoje em dia, por isso que eu uso muito o termo de que ela fez eu ser a mãe que eu sou hoje porque, se ela não tivesse me ensinado desse jeito, eu acho que hoje eu não teria responsabilidade nem do meu irmão. E ela sempre colocou pra mim que a responsabilidade era minha: “Você quer sair?” “Eu vou ali, com as minhas amigas” “Você vai levar sua filha. Você quer comprar isso? Pensa que você tem que comprar um pacote de fraldas”. Não que ela não me ajudasse porque, na época, ela me ajudou muito, mas em questão de me colocar ali, na responsabilidade de me fazer a mulher que eu sou hoje, eu devo tudo a ela.
P/1 – Como foi ser mãe tão nova e depois, logo em seguida, perder sua mãe?
R – Ser mãe nova é a questão, mais, eu acho que de abrir mão, tive que abrir mão de muita coisa. Teve muitas pessoas, também, que se afastaram, depois que eu engravidei da Lara. Amigas, que diziam ser amigas, que estavam comigo e se afastaram. Foi difícil na questão de conseguir um emprego na idade que eu tinha, na época, muito nova. Cuidar também, porque é uma coisa que, quando você está numa certa idade, eu acho que na idade dos dezessete anos, você quer sair, curtir, estar com seus amigos e eu não tive muita oportunidade de estar com eles, sem que tivesse com a Lara. Perder a minha mãe nova, já com uma criança de, na época, dois anos, hoje eu uso como um ensinamento, eu acho que Deus quis me mostrar que eu posso mais, que Ele não me deu um fardo que eu não possa carregar. Mas no começo eu confesso que houve dias de eu olhar e falar: “Não consigo mais. Não é pra mim, não vai, não consigo caminhar mais”. De olhar pro céu e falar: “Deus, me ajuda, porque está difícil caminhar”, com duas crianças, na época, tendo que abrir mão de muita coisa, pra estar com eles e muitas vezes não dando pra estar com eles, porque eu tinha que trabalhar, porque eu tinha uma casa pra bancar, eu tinha dois filhos pra criar. Mesmo meu marido me ajudando, uma pessoa sozinha, com duas crianças, não vai, tanto é que eu fui trabalhar de limpeza, já fazia unha, trabalhava num salão, mas aí, depois que minha mãe faleceu, eu não conseguia conciliar trabalhar no salão de beleza como manicure, que eu tinha horário pra entrar, mas não tinha pra sair e estar com meus filhos. Não conseguia fazer as duas coisas. Uma porque o tempo e o período que eu ficava no salão era muito tempo e o salário já não era aquelas coisas, então pra ter que sair, trabalhar e ainda pagar alguém pra ficar com eles, não tinha condição. Ou eu trabalhava fora, ou eu cuidava das crianças. E aí foi onde eu fui trabalhar de limpeza, numa empresa, de auxiliar de limpeza, trabalhei aqui no Corpo de Bombeiros da Marginal durante acho que foi um ano, mais ou menos. E daí a firma perdeu o contrato e tal. Foi onde eu consegui. Que nem eu falei, eu uso até hoje: eu tive que diminuir o que eu ganhava, pra passar mais tempo com eles, para estar mais tempo com os meus filhos. E daí, quando eu saí de lá, eu fui trabalhar no Bob’s, porque eu não tinha muita escolha, eu precisava trabalhar, eu tinha duas crianças pra bancar, uma casa, meu irmão também morava comigo, o do meio, a mulher dele e o filho dele também, morávamos todos juntos, no mesmo apartamento. Então, não tinha muita escolha. Então, eu fui pulando de galho em galho, fazendo uma coisa e outra. No Bob’s também trabalhei bastante tempo e aí foi um lugar também onde eu fui trabalhar, que eu não conseguia conciliar o tempo de ficar com eles e o período de trabalho, que eu entrava às três da tarde e saía onze e meia, meia-noite. Quando eu chegava em casa, eles estavam dormindo, já. Eu acho que a época mais difícil foi essa: a questão deles serem pequenos, de eu sempre ter que precisar da ajuda de alguém, pra me ajudar, alguém que os olhasse, pra que eu pudesse trabalhar, pra que eu pudesse dar o melhor pra eles.
P/1 – E você já tinha a sua filha mais nova?
R – Não. Engravidei dela logo em seguida.
P/1 – E como foi se tornar mãe de novo?
R – Mulher, foi um baque. Não queria mais filhos. Quando eu engravidei da Laura eu já não tinha nem como querer dizer assim: “Vamos fazer alguma coisa, procurar um procedimento...”. Não, ela já estava com quase cinco meses, aqui. Fiz exame de sangue, de urina e nada constava que eu estava grávida dessa bênção minha. Eu vim descobrir que eu estava grávida dela num ultrassom que eu fui fazer, que a médica falou: “Não, alguma coisa está errada, Vanessa, vamos fazer esse exame aí”. Eu fui fazer uma transvaginal, cheguei lá, o médico só faltou me engolir, porque ele falou pra mim: “A senhora está louca, você está grávida”. Eu falei: “Como grávida?” Ele falou: “A senhora está grávida”. Aí ele veio com a obstétrica, passou por cima, falou: “Você está grávida, já vai fazer quase cinco meses e é uma menina”. Já saí de lá sabendo que eu estava grávida. (risos) E que era uma menina. E, na época, quando eu engravidei da Laura, já estava um certo período, eu acho que uns seis, sete meses, sem trabalhar, só trabalhando em casa, fazia unha, cabelo em casa, mesmo. Atendia algumas clientes em domicílio. Não foi uma época muito fácil, não, porque ficou muita coisa só pro meu esposo. Ficou muita coisa pra ele sozinho. E aí, depois que a Laura cresceu um pouquinho, foi onde que a gente começou a conseguir que as coisas andassem, mas no começo foi difícil, muito difícil. Eu nem imaginaria que eu teria mais uma, com 22 anos, que foi quando eu engravidei dela.
P/1 – E daí, como que foi, em questão de trabalho?
R – Então, de lá pra cá, depois que a Laura nasceu, eu comecei a trabalhar agora, não trabalhei mais. Uma porque estava muito difícil, eu não consegui arrumar nada que fosse fixo e uma coisa que eu conseguisse conciliar entre as crianças, porque aí já eram três crianças e sair pra trabalhar, pra ter que pagar trezentos, quatrocentos reais pra ficar com eles, pra receber um salário-mínimo, é a mesma coisa de não precisar sair pra trabalhar, porque não ia pagar metade... eu ia trabalhar só pra pagar alguém que os olhasse e, dependendo do horário, era mais caro. Então, foi quando surgiu esse programa que eu entrei agora, que é o programa Mães Guardiãs, que eles chamam POT, que é Programa Operação Trabalho, que foi onde eu consegui... eu trabalho na escola que eles estudam, só que eu trabalho na parte da manhã. E aí o Rodrigo e a Lara estudam na parte da manhã e eu trabalho lá, das sete à uma da tarde, é um período bom, que eu consigo conciliar. O salário não é muita coisa, mas também é uma coisa que me ajuda, porque eu não preciso pagar ninguém pra ficar com eles e consigo dar tudo que eles querem, graças a Deus, mesmo sendo um aperto ali, aperta aqui e folga ali, a gente consegue dar um jeitinho e foi uma das melhores coisas que aconteceu. Pelo menos pra mim, sim. Num tempo onde as minhas clientes sumiram, com esse tempo de pandemia, eu já não estava trabalhando na frequência que eu trabalhava normalmente, no fluxo que eu costumava trabalhar, de ter as minhas clientes ali pelo menos uma vez por semana, cada cliente ali, fixa e quando eu comecei, agora, no começo desse ano, foi uma das melhores coisas, porque a gente, quando tem uma independência financeira, gosta de ter o seu dinheiro, de dar o melhor pros seus filhos, de ter uma vida melhor, de conforto, a gente acaba se frustrando, quando você não tem isso. Então, pra mim, foi uma das melhores coisas que aconteceu, sim.
P/2 - Como funciona esse trabalho?
R – Então, a gente faz a entrada, a medição de temperatura dos alunos. Eu trabalho no horário que estudam o fundamental II e o ensino médio. A gente faz a aferição de temperatura e aí o controle da máscara, porque eles normalmente ficam sem, deixam a máscara pra baixo. A higienização, também, das mãos ao entrar, ao sair da sala, ir no banheiro, voltar do intervalo. A gente procura fazer esse controle, para que nenhum aluno seja contaminado ou até mesmo, não que não aconteça, porque, às vezes, acontece de ter um caso suspeito, mas a gente procura mantê-los nos protocolos que hoje a gente tem que levar, entre aspas, para a vida.
P/2 – E como é o contato com essas crianças?
R – Olha, eu não vou negar que, às vezes, é difícil. Eu acho que, pra mim, é mais difícil com o fundamental II, por conta deles estarem na pré-adolescência, acharem que são os donos da razão. O ensino médio eu consigo levar um pouco melhor, consigo falar na língua deles, ali, a gente conversa, troca algumas ideias e tal, eles até brincam, às vezes. Tem uma turma do ensino médio, que diz que vai almoçar na minha casa a qualquer custo. Tipo: uma turma de uns nove marmanjos, aí. Menino, menina, que dizem que vão comer na minha casa e que, se eu sair da escola, eles vão fazer um abaixo-assinado. (risos) Foi uma das experiências que eu nunca tive, mas uma das coisas que eu gostei bastante, que é estar com eles. Estar vivendo ali, no mundo onde a gente já passou, mas vê que hoje é tudo diferente. Se você souber levá-los, você vai longe.
P/2 – E essas clientes são daqui, da Zaki?
R -Tenho algumas aqui também.
P/2 – E como foi com a pandemia? Caiu muito?
R – Muito. Praticamente 100%. Vamos supor que eu atendia, no mínimo, umas cinco, seis clientes por final de semana, num sábado. Abaixou pra nenhuma cliente. Ou uma cliente por semana, uma cliente por mês. Abaixou muito, a questão de ter as clientes ali, não tinha como você querer fazer uma promoção, porque não dá, a cliente não vai sair de casa, porque o medo de ficar doente era maior e eu tenho algumas também que são já de idade, essas que não tinha cogitação, mesmo, em vir fazer a unha ou até mesmo eu ir até elas, porque tem algumas que eu vou em domicílio, mas ir até elas também era uma hipótese que não entrava, não estava em cogitação.
P/2 – E você tem algumas clientes há um tempão, já, né?
R – Sim.
P/2 – Há muitos anos. Como é essa relação com elas?
R – Posso dizer hoje que uma relação de amizade, mais, mesmo. A gente não usa mais o termo como cliente. Tem algumas que eu falo assim: “A minha amiga vai vir fazer a unha agora”, não sei o quê. A gente não usa mais o termo cliente. É mais... criamos um vínculo de amizade com o decorrer do tempo.
P/1 – Vanessa, pra você, como é morar aqui, hoje?
R – Hoje? Pra mim, não vou negar pra você que, se eu tivesse uma oportunidade de ter uma casa que os meus filhos tivessem espaço, seria melhor. Mas a minha mãe dizia: “A gente só pode ir até onde Deus quer”. Então, pra mim - hoje, eu já não moro mais com o meu irmão, a gente já não mora mais na mesma casa, eu, meu irmão e minha cunhada - é mais, mesmo, assim, vou usar um termo: um sentido de gratidão. Por ter a minha casa, pelo lugar onde a gente mora, porque todo mundo conhece todo mundo, um lugar onde eu sei que vai ser muito difícil que aconteça algo com os meus filhos, porque todo mundo conhece todo mundo, principalmente a minha mais nova, que me dá uns perdidos, mas é um lugar, pra mim, muito bom de se morar.
P/1 – Como é criar seus filhos aqui?
R – Não vou negar que hoje ainda está, ainda consigo puxar a cordinha e falar: “Volta, porque aí não”. Eu não sei como vai ser daqui pra frente, eu não sei dizer o futuro dos meus filhos, mas em questão de lugar, eu acho que vai ser difícil. Não vou dizer pra você que não, porque eu acho que tem gente que fala assim: “Amizade não influencia ou algo que vê não influencia”, eu não sei, eu coloco isso pros meus filhos, que eles não têm que ser influenciáveis por ninguém, mas não digo que o lugar faça isso. Eu acho que em qualquer lugar tem, mas se eu tivesse oportunidade, não terminaria de criar meus filhos aqui. Não por uma questão de ambiente, não. Pelo contrário, aqui é um lugar muito bom de se morar, é perto de tudo, as crianças têm lazer. As crianças têm liberdade de ir e vir, de brincarem, de fazer tudo e é um lugar onde seu filho sai pela porta e você sabe que ele vai voltar. Eu digo mais, por conta de... como que eu posso te dizer? Eu vou usar um termo que vocês me entendam: querer o melhor pros meus filhos, a mãe é sempre muito protetora, sempre quer o melhor e o que eu quero pra vida dos meus filhos é o infinito, vamos colocar assim. Eu quero que ele seja o que eu não tive a oportunidade de ser. E se for aqui dentro, se não for aqui, se tiver que ser fora daqui, isso só Deus sabe, mas eu acho que da forma que eu venho educando os meus filhos, que muitas mães aqui educam os seus filhos também, acho que eles têm um futuro, assim – a nossa comunidade, né? – bem legal. Ainda mais o que a associação vem fazendo, também, pelas nossas crianças. Então, acho que vamos ter aí muitas crianças que vão ser futuros médicos. Esse é o meu pensamento. (risos) Meu filho fala que quer ser biólogo. Então, o que eu quero deles, mesmo, é que eles sigam o que eles querem e pra eles irem pro caminho certo e caminharem ali, onde eu tentei colocá-los, (risos) da melhor forma possível.
P/1 – E como é ajudar na associação?
R – Ah, difícil. Ainda mais com essas nossas crianças. É difícil, porque eu sou voluntária. Eu digo difícil na questão da gente querer fazer o melhor pelas nossas crianças e, muitas vezes, não conseguirmos isso. Por falta de uma ajuda, ou por falta de recurso, às vezes. A gente procura fazer, pelas crianças da comunidade, tudo que os pais não tiveram, o que eu não tive e hoje em dia a gente consegue bem. A gente tem algumas parcerias - a gente, não, o Ed, na verdade, eu sou só uma voluntária – a gente faz pelas nossas crianças, porque eles são o futuro da nossa comunidade. Tem muita criança aí, acho que em torno de, chutando aí, por alto, umas duas mil crianças, mais ou menos, aqui. Acho que por aí. Não é menos que isso. (risos) Então se, a cada cem delas, sair algum ali com uma profissão, com uma faculdade, eu acho que isso é mais gratificante, acho que nada paga um trabalho voluntário, do que você ver uma criança que você teve ali, que você conseguiu ajudar em um projeto, numa atividade, em algo e ela voar pra fora e falar assim: “Eu consegui”. Eu acho que é muito gratificante, acho que é isso que a gente quer pra comunidade, mesmo: que, a cada dia que passa, a comunidade fique melhor.
P/2 – Como surgiu o seu interesse em começar o voluntariado?
R – Eu acho que é mais a questão de ter vivido uma vida um pouco mais confortável lá atrás e ver que nem todo mundo tem essa oportunidade. Não que aqui não tenha crianças que tenham uma vida confortável, mas eu digo assim: a gente, quando vem da periferia, quando você vem de uma comunidade, eu já adulta, com duas crianças, quando eu fui trabalhar nessa empresa, não podia dizer que eu morava aqui, porque muitas das vezes, dependendo de onde você vai, não te aceitam no trabalho, por conta do local onde você mora, o endereço. E eu acho que isso tinha que ser mudado, porque nem sempre, dentro da comunidade, tem pessoas ruins. Eu acho que pessoas ruins tem em qualquer lugar. Não só dentro de uma comunidade. E é isso que muita gente não consegue enxergar, às vezes: que, dentro da comunidade, o que mais se tem, é gente boa. São crianças que precisam só de uma oportunidade, para mostrar o seu melhor, ali. E eu acho que é mais isso, mesmo: querer o melhor pras crianças, ou até mesmo para todos os moradores da nossa comunidade. E pra mim também.
P/1 – E o que você mais gosta daqui?
R – O que eu mais gosto? Ai, acho que são as amizades. O pessoal daqui é muito acolhedor. Se você estiver precisando de algo, bater na porta da vizinha: “Me arruma uma xícara de café aí”, ela vai te dar um pacote de açúcar e assim, trocando totalmente, por conta que a gente pede uma coisa e eles dão uma coisa, mas junto com uma coisa, vem outra. Eu acho que é mais isso mesmo: o carinho que a comunidade tem com quem você conhece. E o lugar também, é bom de se morar, é perto de tudo, é acessível, tem hospital, mercado, tem o pessoal também que vende aqui as coisinhas, aqui perto e a gente acaba sempre sabendo pra onde ir: eu quero comprar isso, eu vou aqui; eu preciso disso, eu vou ali. Acho que longe daqui ia sentir falta de muita coisa. Às vezes, falo que quero sair, mas acho que lá no fundo, não. (risos)
P/1 – E o que você mudaria aqui?
R – Eu acho que primeiramente a área de lazer das crianças. Eu acho que é um ponto que precisa, sim, de uma atenção maior, que é a área de lazer das crianças que, principalmente o parquinho, ali, uma parte que está bem destruída ali e as crianças gostam de ter um lugar pra brincar. Às vezes, a Laura fala pra mim: “Mãe, vou no parquinho”. Eu olho pra ela e falo: “Filha, que parquinho?” Porque o balanço está quebrado, não tem um escorregador, uma gangorra, nada, porque está quebrado. Então, eu acho que é mais essa questão: se eu pudesse mudar, eu mudaria a questão de lazer das crianças.
P/2 – Que atividades que você ajuda, aqui?
R – Então, eu, aqui, na verdade, faço um pouco de tudo. Quando tem leite, a gente vai entregar. As marmitas, normalmente, como eu trabalho durante a semana, de segunda-feira a sexta-feira, eu venho no sábado e no domingo para ajudar as meninas. Uma entrega de cesta básica, a gente vem também. Aí junta a equipe das meninas todinha e a gente vem, coloca sempre como uma ação das Meninas Superpoderosas porque, se não fosse a gente nessa Casinha, o negócio não andava. E a gente faz sempre isso, sempre junta todo mundo, aí nos reunimos que nem agora, vai ter a festa do Dia das Crianças, então, querendo ou não, você está escalada pra trabalhar, pra estar lá. Você vai se divertir, mas ao mesmo tempo, vai passar um monte de raiva, (risos) mas é uma coisa que me supre. Eu coloco, falo muitas vezes: se eu não fizer um trabalho voluntário na comunidade onde eu moro, onde mais eu vou fazer? Então, eu acho que é uma coisa que eu gosto bastante e, se não fosse aqui, faria em outro lugar.
P/2 – Você consegue tirar aprendizado desse contato com as pessoas que moram aqui?
R – Tirar o quê? Não entendi.
P/2 – Aprendizado.
R – Sim, muito. Às vezes, a gente fica nervosa com uma pessoa que fala uma coisa ou outra, mas uma palavra de uma pessoa que fala assim: “Nossa, que Deus abençoe você, que Deus guarde a sua família, te dê em dobro, porque eu não tinha nenhum arroz na minha casa, pra comer” e a gente conseguiu ajudar ou até mesmo com uma marmita, quando eles pegam a marmita, eles falam: “Que Deus abençoe você, sua família”. Então, você vê que aquilo ali é de coração. Então, você acaba vendo que, às vezes, um problema que você tem é pequeno, perto do problema dos outros.
P/1 – E como é o seu dia a dia, atualmente?
R – Meu Deus do céu! Meu dia a dia é corrido. Normalmente, eu levanto às cinco e quarenta, seis horas da manhã, vou trabalhar, porque eu tenho que estar no serviço às sete, faço a entrada das crianças, depois da entrada das crianças, tenho que colocar todo mundo pra dentro da sala, aí trabalho, até uma hora da tarde, fico na escola até uma hora da tarde, quando eu chego em casa, à uma da tarde, às vezes, quando tem alguma ação aqui, eu consigo ajudar, eu venho, para ajudar as meninas. Quando não, eu vou atender alguma cliente ou sempre tem algum serviço de casa pra fazer, na parte da tarde. Por volta de umas cinco e meia, seis horas, eu vou buscar a minha mais nova na escola, limpo casa, lavo roupa, aqueles serviços de dona de casa, porque nós trabalhamos fora, mas nós temos o serviço em casa, para fazer. E aí, depois, minha filha, deu sete horas, oito horas da noite, eu tomo um banho, vou dormir, (risos) porque eu estou cansada, já não quero nem olhar quem está na janela.
P/1 – E o que você gosta de fazer nos seus horários de lazer, quando você tem?
R – Meu Deus, você quer saber disso, mesmo, moça? Quando eu tenho horário de lazer, eu gosto de tomar minha cerveja, escutar minha música e relaxar. Eu falo pro meu marido que eu preciso relaxar.
P/1 – Que música você gosta de ouvir?
R – Eu sou eclética, eu gosto de tudo: sertanejo, forró, funk, de tudo.
P/2 – E o que a Zaki Narchi representa, na sua história?
R – Eu acho que boa parte da minha vida, porque eu nasci aqui, eu fui embora, eu voltei e aqui estou eu de novo. Então, acho que boa parte da minha vida a Zaki Narchi, a comunidade tem muito a dizer, assim: um cantinho e outro ainda não me viu (risos), mas tem muito a dizer por mim, pela minha vida.
P/1 – E quais são seus maiores sonhos?
R – Eu acho que o meu maior sonho é que os meus filhos cresçam, tenham a profissão deles, que sejam grandes profissionais, que eu veja os meus filhos crescerem, que Deus me dê oportunidade de criar, de ver os meus filhos crescerem, com fé em Deus ver os meus netos, não cedo, mas ver os netos. Hoje em dia o meu sonho é esse. É ver os meus filhos bem e a comunidade também. Eu acho que, antes de Deus falar assim: “Eu vou te levar”, eu quero ver que a comunidade cresceu, sabe? Que ela expandiu, que a gente conseguiu fazer o que a gente tinha em mente.
P/1 – A gente está chegando no fim, tem só mais duas perguntas, a primeira era que eu queria perguntar se você quer contar alguma coisa que eu deixei passar, que a gente não perguntou, ou deixar alguma mensagem.
R – O que deixou passar eu acho que nada, mas minha mãe tinha um dizer que nada, na vida, é fácil, ainda mais quando você está dentro de uma comunidade. E, se você está numa comunidade, se você, um dia, for fazer parte de uma comunidade, seja sempre a melhor. Ela sempre colocou pra gente que a gente tinha que ser melhor, independente de achar e falar assim: “Eu já fiz o que eu podia fazer”. Não. Você sempre pode fazer melhor. E eu acho que a questão de ser melhor não é você se achar melhor do que ninguém. É você dar o seu melhor, você fazer o seu melhor para que você, lá na frente, possa olhar pra trás e falar assim: “Eu não fiz aquilo porque eu fui fraca”. Não. Sempre dê o seu melhor. Era isso que minha mãe falava pra mim e eu acho que é por isso que eu estou aqui até hoje.
P/2 – Se você quiser pensar um pouquinho, mas qual sua primeira lembrança da sua vida?
R – Da minha vida?
P/2 - De novinha.
R – A primeira lembrança da minha vida? Eu não posso dizer a primeira lembrança, mas uma segunda, que hoje, pra mim, condiz muito no que eu sou: a minha mãe sempre foi muito rígida em relação à educação. Ela sempre mostrou pra gente que existem dois lados a seguir: o lado bom e o ruim. E uma vez, eu fui na casa de uma amiga minha e eu juro pra você, eu peguei vinte e cinco centavos, em cima da mesa da vizinha e fui pra casa. Na época, com vinte e cinco centavos comprava alguma coisa. Cheguei em casa com o bolso lotado de bala e a minha mãe perguntou pra mim onde foi que eu tinha arrumado dinheiro pra comprar aquela bala. E eu falei pra ela que meu pai tinha me dado esse dinheiro. Quando eu disse pra ela que meu pai tinha me dado esse dinheiro, logo em seguida meu pai entrou na porta, olhou pra mim e falou assim: “Quem te deu, Vanessa, esse dinheiro?”, aí eu travei e fiquei quietinha, não falei nada. Aí minha mãe falou: “Onde você estava?” Eu falei: “Eu estava na casa da Bianca”. Ela falou: “Na casa da Bianca?” Eu falei: “É”. Ela: “Foi lá que você pegou esse dinheiro, né?” Parece que mãe, às vezes, sente quando a gente está errado. E aí, nesse dia, eu apanhei de uma forma como se não houvesse amanhã. E o meu pai sempre colocou pra mim, ele falava pra gente e nesse dia ele falou em alto e bom som, enquanto ele me dava uns tapas: “Eu estou criando uma mulher e eu não quero nada além disso. O dinheiro que você pegou, você vai devolver as balas que você comprou e você vai lá devolver pra ela porque, se você não devolver, aí você vai ver o que eu tenho pra você”. No caso, em outras palavras, ele falou: “Você vai ver o que eu vou fazer com você”. E daquele dia eu tenho, até hoje, isso comigo: que a gente jamais pode mexer em nada que não seja seu, nem que seja um fio de cabelo que esteja ali, não é seu, não põe a mão. E eu tenho pra mim que, se ele não tivesse me ensinado assim, eu não seria quem eu sou hoje, não teria a vida que eu tenho, não teria o prazer de levantar cedo e trabalhar, não teria o prazer de olhar pros meus filhos e falar assim: “Eu posso repreender vocês nisso, porque eu nunca fiz isso, ou porque eu fiz e, da vez que eu fiz, eu fui repreendida”. Eu acho que antigamente eles tinham um modo de nos educar um pouco mais rígido, mais bruto, mas que, pra mim, não sei pra outras pessoas, foi essencial, porque eu não vou negar que tive algumas oportunidades e, se não fosse isso, eu acho que eu não ‘estaria aqui’, entre aspas, hoje. Tive oportunidade de fazer muita coisa e não fiz, por conta de que sempre veio essa lembrança na minha cabeça. E minha mãe sempre dizia: “Antes eu bater em você, do que você apanhar na rua”. Então, eu não sei o termo que ela quis dizer, apanhar de quem ou ser quem. Mas hoje eu sou o que sou, por conta da forma que eles me educaram. Não faço o mesmo com os meus filhos, mas procuro mostrar pra eles de uma forma, hoje, um pouco mais sensata, de que tem, sim, dois caminhos: o certo e o errado. E foi assim que eu aprendi, depois de uma bela surra. (risos) Hoje eu dou risada, mas apanhei muito. Que a vida te dá oportunidades e te mostra caminhos diferentes, vai de você escolher o certo a seguir. Acho que é isso.
P/1 – O que você achou de dar entrevista hoje, pra gente? Contar sua história.
P/2 – Lembrar um pouco…
R – Eu acho que muita coisa veio, em questão de relembrar o que a gente não gosta muito, por conta de falta, eu não gosto muito de tocar muito no nome da minha mãe, de falar o que minha mãe era pra mim, não gosto muito, mas foi bom, acho que pra mim foi bom relembrar, contar um pouco da minha história, teve coisa também que eu nem lembrava. (risos) A questão, mesmo, da Lara, é uma coisa, de quando eu fiquei grávida, fazia muito tempo que eu não comentava com ninguém. Eu acho que, na verdade, só minha mãe mesmo sabia. (risos) Que depois que já não tinha nem graça, mais, que eu expliquei o que era que eu fazia. Mas foi muito bom, uma experiência diferente. E uma sensação, assim, de alívio, sabe? De poder conversar, poder mostrar. Desculpa por ter chorado. (risos) Mas foi bom. Gostei bastante.
P/1 – Muito obrigada!
R – De nada.
[Fim de Entrevista]
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