Eu nasci, eu sou ludovicense, eu nasci em São Luís do Maranhão. Uma ilha, capital do Maranhão, no nordeste brasileiro, embora tenha muita gente que diga que São Luís do Maranhão está mais para o norte do que para o nordeste. E nasci, digamos, no auge dos festejos juninos, que é no dia vinte e dois de junho. Uma data muito especial para os festejos juninos. Eles têm uma aura muito especial para o nordeste, onde os festejos são muito fortes. Então, ter nascido nessa época me faz, eu acho, uma privilegiada. (risos)
A minha família tem também algo que é muito peculiar: ela é de uma origem da cidade, do espaço urbano. Meu pai se orgulhava muito, porque ele tinha nascido no Centro da cidade. Quando os centros das cidades eram lugares que as elites moravam, né? Isso em todo o Brasil, aqui em São Paulo, enfim. Então, era essa relação e a relação que a gente tinha como ele contava quem eram os nossos avós. A gente tinha uma só foto de uma avó nossa, acho que duas fotos da nossa avó paterna, que ela era filha de português. Meu avó paterno, que era um homem negro, de pele escura, da minha cor. Até um pouco mais escuro, que a gente chama de retinto, né? E as nossas... os avós maternos também, pessoas negras e, com certeza, com cruzamentos aí com indígenas. Mas mesmo a minha avó paterna sendo filha de português, a gente não carrega nenhum tipo de memória ancestral de Portugal, digamos assim. Então, a nossa experiência é uma experiência negro-africana e indígena, na nossa família.
Ah, são conexões muito fortes, porque eu acho que, como quase toda família negra, brasileira, numerosa, nós somos uma família muito gregária. Eu sou a quinta, de seis filhos. Então, era essa relação, né? De um respeito, de pais mais velhos, muito gregários.
Era uma casa simples. Uma casa muito modesta. Era uma infância, uma casa modesta, mas que tinha algo que hoje está cada vez mais raro: a gente tinha quintal e um quintal com terra, né?...
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Eu nasci, eu sou ludovicense, eu nasci em São Luís do Maranhão. Uma ilha, capital do Maranhão, no nordeste brasileiro, embora tenha muita gente que diga que São Luís do Maranhão está mais para o norte do que para o nordeste. E nasci, digamos, no auge dos festejos juninos, que é no dia vinte e dois de junho. Uma data muito especial para os festejos juninos. Eles têm uma aura muito especial para o nordeste, onde os festejos são muito fortes. Então, ter nascido nessa época me faz, eu acho, uma privilegiada. (risos)
A minha família tem também algo que é muito peculiar: ela é de uma origem da cidade, do espaço urbano. Meu pai se orgulhava muito, porque ele tinha nascido no Centro da cidade. Quando os centros das cidades eram lugares que as elites moravam, né? Isso em todo o Brasil, aqui em São Paulo, enfim. Então, era essa relação e a relação que a gente tinha como ele contava quem eram os nossos avós. A gente tinha uma só foto de uma avó nossa, acho que duas fotos da nossa avó paterna, que ela era filha de português. Meu avó paterno, que era um homem negro, de pele escura, da minha cor. Até um pouco mais escuro, que a gente chama de retinto, né? E as nossas... os avós maternos também, pessoas negras e, com certeza, com cruzamentos aí com indígenas. Mas mesmo a minha avó paterna sendo filha de português, a gente não carrega nenhum tipo de memória ancestral de Portugal, digamos assim. Então, a nossa experiência é uma experiência negro-africana e indígena, na nossa família.
Ah, são conexões muito fortes, porque eu acho que, como quase toda família negra, brasileira, numerosa, nós somos uma família muito gregária. Eu sou a quinta, de seis filhos. Então, era essa relação, né? De um respeito, de pais mais velhos, muito gregários.
Era uma casa simples. Uma casa muito modesta. Era uma infância, uma casa modesta, mas que tinha algo que hoje está cada vez mais raro: a gente tinha quintal e um quintal com terra, né? Ele não era... a gente tinha dois pés de abacate, tinha pé de limão, tinha pé de goiaba, tinha pé de banana, banana que depois não teve mais. Mas, assim, a gente cresceu com dois pés enormes de abacate, com dois pés de goiaba, com pé de mamão. Então, a nossa infância, embora tenha, era uma casa simples, modesta, mas uma casa com quintal, com frutas.
Olha, eu sempre costumo dizer que o racismo, se ele existe, para a pessoa negra ele é pra sempre, né? Então, eu nunca gosto de localizar uma situação de racismo. Seja na infância ou na adolescência. Porque eu costumo dizer que nós somos derivados do racismo. Não é? Então, quando eu digo: “Olha, na minha infância, naquele dia, na escola, eu sofri isso”. Parece que eu estou dando ao racismo uma qualidade que é episódica, que aconteceu uma ou duas vezes na minha infância. Não. Ele é, na vida de qualquer pessoa negra, de qualquer mulher negra, uma constante. Então, a minha vida toda é atravessada pelo racismo. O que eu quero dizer com isso? Eu quero dizer que, com isso, a gente não viveu a vida, que eu fui infeliz? Não. Nós tivemos uma infância feliz, uma família feliz, conquistas etc, mas quando eu estou querendo dizer que o racismo me atravessa é: tudo o que eu sou é fruto do condicionamento que o racismo impõe para as pessoas negras no Brasil, né?
Então, a gente tem assim, digamos, um atravessamento que passa pelas escolhas, pela invisibilidade da gente em algumas áreas. E eu sempre estudei em escola privada, em escola particular, que é onde está uma classe média, né? E a gente via que, ali, você sempre acabava sendo excluída. Seja das manifestações culturais, das danças de determinadas festas, danças ou de você não ser vista como alguém capaz de escrever bem. Eu sempre gostei de escrever bem. Então, as pessoas diziam, eu tinha... que depois ela se tornou muito amiga, né? Dizia: “Mas não foi você que fez essa redação”. Porque ela pediu para fazer em casa. A gente levou a redação para a escola. Aí ela achou, eu tinha treze anos, que aquela redação era muito sofisticada para uma menina de treze anos. Então, ela me fez, ela me deu um outro tema, eu fiquei na escola até tarde, porque ela não acreditava que eu tinha feito aquela redação. Aí eu fiz uma outra redação, só eu, sozinha na sala. Quando ela leu, ela falou assim: “Nossa, mas a sua redação tem uma... já tem uma sofisticação. Você já sabe bem articular frases. Seu tópico frasal”. Então, são essas questões todas que a gente vê. São os atravessamentos aí do racismo.
Olha, eu gostava, eu sempre fui assim, o que a gente chama de... nem chama mais, né, mas chamava na época que eu estudava no ensino médio, de “CDF”. Então, eu sempre gostei muito de ler, porque, como eu falei, as nossas férias eram longas e a gente não viajava. Então, eu passava três meses das minhas férias lendo muita literatura. O que tinha, né? O que chegava. Porque na escola que eu estudei, a gente sempre tinha de ler livros de literatura, então comprava. Às vezes meu pai comprava, na banca, um ou outro livro de literatura. Então, era às voltas com muita leitura, na...
Eu tinha... era uma coisa assim: eu gostava muito de ler, de literatura. Mas também gostava muito de cálculo, de matemática, de física, eu me dava bem. Então, eu fiquei assim, entre os quatorze, quinze anos, eu pensava: mas o que eu quero ser? Será que eu quero mais ir para a área da escrita ou da matemática? Tanto que eu dizia assim: “Não. Acho que eu vou fazer Engenharia”. Mas, à medida que eu fui, no ensino médio, tendo contato, porque aí, no momento, era uma escola privada, voltada, o colegial voltado para o vestibular, você é muito testado naquilo. E eu falei: “Não, eu gosto da área de exatas, eu me dou bem, mas realmente o meu lugar é o lugar da escrita, do texto”, né? E foi assim que eu escolhi o Jornalismo.
Olha, eu fui a primeira. Nós somos seis filhos. Eu fui a primeira - eu sou a quinta, né? - da minha família, a entrar no vestibular. Então eu passei, eu fui a primeira, então foi uma festa, eu me lembro que meu pai tocou... comprou foguetes, tocou no bairro, foi aquele mico todo, né? Mas tinha até - eu não sei se isso se manteve - uma tradição em São Luís, no meu bairro, em São Luís em geral, de você... o pai, ele comprava foguetes e tocava. E era bem cedo, quando saía, assim, o resultado, você acordava e, na época do vestibular, você dizia: “Ixi, quem passou no vestibular?”, porque eram os fogos. Então teve e foi uma imagem... não é uma imagem da infância, mas é uma imagem da adolescência, muito emocionante: os fogos, quando eu passei no vestibular. Porque é isso, você se sente muito importante, né? Fogos só para você (risos). Foguetes. Aí eu passei. Não fiz cursinho, nem nada. Fui do ensino médio, direto para a universidade. E, para mim, foi uma experiência, eu era uma das mais novas da minha turma. Porque é isso: eu entrei com pessoas que já tinham tentado pela terceira vez, gente que já trabalhava, né? Que já estava no mercado.
Então, quando eu entrei, a minha entrada na universidade coincidiu com a minha entrada no movimento negro. Um pouco antes, no ensino médio, eu já tinha pessoas militantes que eu admirava e que eu já transitava, né? Tinha um bloco que até hoje existe, chamado Centro de Cultura Negra, no Maranhão, que congregava muita gente. As pessoas saíam nesse bloco afro, no carnaval e depois militavam no Centro de Cultura Negra, porque esse bloco era do Centro de Cultura Negra. Então, a minha relação já com o mundo racial negro, veio a partir daí e quando entrei na universidade, isso ficou mais estreito para mim, né? Mais forte. E com a questão, com o tema da questão racial e de gênero, a minha, também, vinculação com o curso, foi se dando a partir desse lugar, né? Pensando, o meu TCC foi uma análise de um programa policial sobre a imagem do negro. Então, eu já fui construindo todo o meu horizonte profissional, associando a isso com o meu horizonte político. Com o meu ativismo, com a minha forma de ver o mundo. Então, foi fazendo essas associações. Então, minhas escolhas jornalísticas foram, se deram muito a partir desse lugar.
Eu gosto muito de dar aula. Eu acho que, quando a gente olha uma aluna nossa escrever e dizer: “Oh, ‘prof’, virei mestra, virei doutora”. Quando as pessoas seguem... e não é só o caminho acadêmico, seja o caminho profissional, seja... e quando elas te retornam, pode passar dez anos, e dizer assim: “Olha, aquela aula que você deu, foi fundamental”. Então, eu acho que é uma... é o que todo professor gosta de ouvir e se emociona, né? Então, para mim, essa devolutiva, de algumas alunas e alunos, é o que mais me motiva, mais me alegra.
Eu acho que, olha, tem várias coisas assim, mas em termos de afeto, são os cursos que eu dei e aí, na época das paulinas, né, nos rincões do país. A gente foi para Manaus, para o Amazonas, para as populações ribeirinhas, pessoas que moram, literalmente, em cima dos rios, né, no Amazonas. Então, eu acho que foi... é uma das lembranças, dos trabalhos que eu fiz, que eu guardo, assim, com muito afeto, com muito carinho, porque é desafiante, mas é aquilo: é onde você realmente se sente professor, né? Você viajar para dar oficinas de comunicação para populações ribeirinhas, para pessoas que têm... materialmente, com muita deficiência e dar cursos na área de comunicação, isso eu guardo, essas experiências, assim, como, se não a principal, uma das principais da minha vida.
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