Meu nome é Maria Bernadete Bortolan Gasparotto, sou bisneta de imigrantes. Quem veio da Itália mesmo, foi meu bisavô Domenico Scarpa, em março de 1896. Vieram de Cavarzere, ele, minha bisa e três irmãos do meu nono Natale – que nasceu um ano depois em Piracicaba – tio André, tio Ernesto e tio Giuseppe. Meus bisos vieram para ensinar a plantar cana na Fazenda Funil, e se instalaram na Colônia Carandina, que foi onde meu nono conheceu minha nona, Matilde Crivelaro, que morava no São Bento. Como presente do casamento dos dois, meu bisavô, Marino Crivelaro, deu o pedaço de terra que temos até hoje, isso vai já pra cem anos. A família e a terra Eles tiveram dez filhos, uma delas é a minha mãe, que ficou lá com meu nono para ajudar a criar os irmãos, porque tinha dezesseis anos quando minha nona, ainda muito jovem, faleceu. Nessa época, só uma irmã era casada, o resto era solteiro ou criança ainda. Minha tia Terezinha tinha dois anos, o tio Nelo com três ou quatro, minha mãe teve que dar duro junto com meu nono pra conseguir criar aquela criançada. Quem ficou no sítio depois de casada foi a minha mãe, também o tio Nelo e o tio João, todos morando juntos na casa grande, até que meu nono veio a falecer. Os outros irmãos conforme iam casando, iam vendendo a parte deles do sítio e cada um foi viver a própria vida, uns ali por perto do sítio, outros na cidade, em Limeira também. Esse pedaço de terra era onde plantavam um pouco de cana, milho, arroz, feijão, todo nosso sustento. Tínhamos vaca, porco, galinha e era onde a gente vivia, a molecada ia para roça brincar, ia pra beira do rio fazer peraltice. Depois que crescemos, eu e meus irmãos, quando voltávamos da escola, íamos para roça ajudar. Fui criada e me casei lá no sítio, o sítio Serra Velha, só saí quando fui morar com meu marido. O sítio era puro barulho de italiano, porque quando juntava dois, ou três de nós, parecia que tinha cinquenta. A minha...
Continuar leituraMeu nome é Maria Bernadete Bortolan Gasparotto, sou bisneta de imigrantes. Quem veio da Itália mesmo, foi meu bisavô Domenico Scarpa, em março de 1896. Vieram de Cavarzere, ele, minha bisa e três irmãos do meu nono Natale – que nasceu um ano depois em Piracicaba – tio André, tio Ernesto e tio Giuseppe. Meus bisos vieram para ensinar a plantar cana na Fazenda Funil, e se instalaram na Colônia Carandina, que foi onde meu nono conheceu minha nona, Matilde Crivelaro, que morava no São Bento. Como presente do casamento dos dois, meu bisavô, Marino Crivelaro, deu o pedaço de terra que temos até hoje, isso vai já pra cem anos. A família e a terra Eles tiveram dez filhos, uma delas é a minha mãe, que ficou lá com meu nono para ajudar a criar os irmãos, porque tinha dezesseis anos quando minha nona, ainda muito jovem, faleceu. Nessa época, só uma irmã era casada, o resto era solteiro ou criança ainda. Minha tia Terezinha tinha dois anos, o tio Nelo com três ou quatro, minha mãe teve que dar duro junto com meu nono pra conseguir criar aquela criançada. Quem ficou no sítio depois de casada foi a minha mãe, também o tio Nelo e o tio João, todos morando juntos na casa grande, até que meu nono veio a falecer. Os outros irmãos conforme iam casando, iam vendendo a parte deles do sítio e cada um foi viver a própria vida, uns ali por perto do sítio, outros na cidade, em Limeira também. Esse pedaço de terra era onde plantavam um pouco de cana, milho, arroz, feijão, todo nosso sustento. Tínhamos vaca, porco, galinha e era onde a gente vivia, a molecada ia para roça brincar, ia pra beira do rio fazer peraltice. Depois que crescemos, eu e meus irmãos, quando voltávamos da escola, íamos para roça ajudar. Fui criada e me casei lá no sítio, o sítio Serra Velha, só saí quando fui morar com meu marido. O sítio era puro barulho de italiano, porque quando juntava dois, ou três de nós, parecia que tinha cinquenta. A minha mãe falava bastante em italiano com a gente, xingava bastante principalmente, mas o meu nono era uma pessoa de bondade extrema, tudo que a gente ia fazer de malandragem, peraltice com que minha mãe às vezes ficava brava, com meu avô era diferente, era difícil de tirar a paciência do nono, era muito tranquilo. Quando ele ia para algum lugar e nós falávamos que íamos junto, a minha mãe falava que não, ele nos levava mesmo assim. A gente adorava andar de charrete, ficar dirigindo, mas o pai e a mãe não deixavam, porque era perigoso. O nono deixava. Quando minha mãe ainda era viva, principalmente quando a gente era mais criança, a casa do sítio estava sempre cheia, era muito bonito, isso já não acontece hoje. Meus tios, todo domingo, iam lá em casa pedir benção para minha mãe como se fosse mãe deles, e era muito alegre. Ela fazia pão, queijo, manteiga, aquelas taxadas de doce no fogão à lenha, uma coisa que não existe mais. Eu e minha irmã tentamos fazer como a minha mãe fazia e a gente não consegue. Minhas tias mais velhas fazem algumas coisas assim, mas não adianta, não preenche como o da nossa mãe. Era uma família de muitos primos, aquela anarquia de molecada, brincar de esconde-esconde pelo meio dos pomares, fazer balança, aí caíam, choravam, dali a pouco voltavam a brincar, brincadeiras sadias, não tinha disputa como em muitas famílias grandes – já não tem mais muita família grande, mas tem muita disputa ainda. Era muito gostoso aos domingos, nas festas de natal, na Páscoa, sem presente, sem chocolate, porque a gente nem sabia o que era isso, mas era o dia de fazer festa, de tomar refrigerante, vinho, era o dia que tinha vinho. Os homens não bebiam muita cerveja, nem tinha geladeira pra isso, e o domingo era o dia de fazer aquela macarronada mais caprichada. Matavam vários frangos, leitoa. Tinha muita alegria. E em volta da mesa, eram aquelas panelas de macarrão com molho e o frango. Muito pão “cufe”. Essas comidas que italiano tem mania de fazer no taxo, que não dá pra fazer em pouca quantidade, que tempo bom! Era minha mãe que tomava conta da mesa. Fazia polenta, fazia aquelas paneladas de doce, paneladas de tudo. A gente aprendeu a fazer a massa do macarrão com ela, não fica igual, a gente acaba comendo, mas fica diferente. E minha mãe sempre ali, aquela bondade, aquele jeitinho, fogão à lenha e as panelas... Fé e devoção Mas não era só comer e beber vinho, tinha que rezar o terço. O nosso passeio era ir à missa, não na da cidade, não tinha como a gente vir, só quando era fora da safra, porque tiravam a carroceria de cana e colocava a carroceria que nos carregava. Ia muito para a Igreja de Santa Bárbara, no bairro Nova Campinas, capelas mais próximas do sítio, e não via a hora de ter uma quermesse. A gente também gostava de rezar o terço, não pra rezar o terço, mas pelas brincadeiras da molecada que havia depois que acabava o amém. Todo mundo brincando de “pata choca”. E das brincadeiras vinham as paqueras, que viraram muitos dos casamentos que aconteciam lá no sítio. Fazíamos procissão pra chover. Todo o mundo em procissão para dar banho no São Benedito, porque daí não chovia muito. Lavar o santo no rio, imagina? Meio dia, fazíamos procissão até uma encruzilhada pra jogar água nela, isso pra chover. A gente era criança e fazia na inocência, na pureza, a gente tinha uma fé muito grande. Minha mãe era muito devota de Nossa Senhora Aparecida, sempre rezou muito. Eram essas coisas que estavam dentro da gente, “mês tal vai ter terço”, o maior gosto da nossa vida era saber que ia ter terço, a gente ia a pé, no escuro, farolete eram poucos os que tinham, mas a gente iluminava o caminho com vela, e atravessávamos o pasto, a pinguela, e ia rezar. Não queríamos nem saber se estava chovendo, se estava frio. A gente sabia que esse era um modo de conversar com as pessoas. Não tinha telefone, então a gente saía e ia fazer visita nas casas. Ainda não tinha energia elétrica, só em uma casa ou outra. Quando alguém ficava doente, “olha, fulano está doente, vão lá rezar um terço na casa dele”, e íamos, a gente cresceu em volta da igreja. Depois até íamos para quermesse, mas primeiro todo o mundo tinha que rezar, fazer a procissão do santo, senão de jeito nenhum. Cotidiano em torno da mesa As meninas eram educadas pra cozinhar, bordar, costurar e saber cuidar da casa. Minha irmã mesmo, passou três vezes na fila da cozinha e eu passei uma vez só, ela cozinha muitíssimo bem. Era assim, de sábado, depois que a gente acabava de lavar a casa, às vezes minha mãe falava: “hoje é dia de fazer bolacha de nata”, aquela bolacha que tinha muito leite, muita nata e sal amoníaco, que eu vinha comprar na vila, no seu Antônio Jorge, o falecido Dóia. Às vezes era ele que vinha até o sítio, aparecia de charrete, parava e perguntava para minha mãe se era pra trazer pão, ou o que ela precisasse, e ele trazia e anotava na caderneta. Lá eu pegava tantos pães bengalas e o sal amoníaco, porque o resto das coisas havia em casa, o trigo, a banha, e a gente passava a tarde fazendo. Nesse meio tempo a mãe fazia pão também. Isso era sagrado, todo sábado ela fazia cinco, seis pães. A gente só comprava o que não tinha mesmo no sítio. Manteiga, por exemplo, a gente aprendeu a fazer na mão, não tinha como bater se não com o garfo. Quando veio a energia, acho que em 1970, passou a ter liquidificador lá em casa. Nossa! Batendo no liquidificador, a manteiga ficava pronta em um instantinho. Fazíamos o doce de mamão. De manhã, a gente cortava e deixava de molho, depois ralava. Meu pai também comprou, um tempo depois, uma maquininha de ralar queijo, aí facilitou, a gente ralava mamão nela também. Aqueles pudins de mandioca, que delícia. Mas o nosso forte era o doce de abóbora, que ficava apurando no fogão à lenha. A polenta também não podia faltar. No começo, era feita na panela de ferro, mexendo até cozinhar e despregar do fundo da panela, era assim, paneladas de polenta com frango. Não tinha outra coisa, era polenta com frango e queijo ralado. Minha mãe fazia e acabava queimando os braços. Depois aprendemos a fazer a polenta de panela de pressão, que era muito mais fácil. Colocava, largava uma hora lá cozinhando e já estava pronta. A comida era arroz, feijão e muita carne de porco, muito frango. Carne de boi não, porque nós não criávamos boi pra matar, eram só as vacas de leite, mas porco sempre tinha, e frango, toda semana. Mas a minha mãe tinha um quê de apurar muito o doce. O doce de banana mesmo demorava de três a quatro dias pra ficar pronto, começava dar a fervura, depois ia pra parte de trás do fogão, a mãe continuava fazendo a comida e ele ficava lá, dois, três dias, até ficar bem vidradinho, e eu falava pra ela, “por que deixar a gente tanto tempo com vontade de comer?”, às vezes a gente raspava o que estava na beirada da panela, comia escondido, e ela falava que não podia, se não cozinhasse direito, o doce embolorava e não aguentava. O de abóbora era a mesma coisa. Tinha a época de fazer o súgoli, um manjar de laranja azeda, não me lembro mais qual era a laranja, parece que era laranja cavalo, uma laranja só, mas não era tão simples. E também o mânigui, que é uma polenta doce com trigo, que cozinhava bem e naquelas panelonas, era uma forma de estarem todos ali, reunir todo o mundo para conversar. Os italianos tinham o costume de fazer tudo junto. O mânigui era feito na época de milho verde, em que se faz também pamonha e curau. Era o tipo de receita que juntava todo o mundo em volta das panelas, porque demorava, então tinha que ter bastante gente pra fazer. A Itália é em volta da comida, os italianos adoram cozinhar e bastante, para bastante gente, fazer pouca comida não é muito da nossa origem. E de algum jeito isso continua na família, a minha filha Giovanna cozinha muito bem, e às vezes ela fala: “mãe, vamos fazer tal coisa que a vó fazia?”, mas hoje em dia o paladar da molecada já não é como o da gente, tem muita novidade para eles verem e comerem. A Giovanna gosta de inventar na cozinha, ela começa do jeito que eu ensinei e aprimora, sofistica na era da informática. Cheiro de saudade Contar essas histórias faz vir o cheiro das receitas da minha mãe e tem cheiro e sabor de saudade, por mais que a gente tente não sentir saudades, meu nono não volta; minha nona, não a conheci. A minha mãe foi uma coisa absurda, na cozinha, em tudo, como mãe, como pessoa, acho que todo mundo tem a mãe como referência, mas eu tenho ela como uma heroína. Mas não é saudade triste, é uma saudade de amor que tem cheiro de colo e terra. A gente tem que dar valor às coisas que teve e tem na vida e saber que tudo isso veio da terra. Mas às vezes, me intriga pensar como dez crianças foram criadas só com aquelas coisas que tínhamos ali, meu nono sozinho, e o quanto minha mãe aprendeu com ele, porque ela praticamente não teve mãe. Todo ano era um filho novo, ela estava praticamente o ano inteiro com uma criança no colo, e mesmo assim a gente conseguiu, e isso tudo tem gosto de saudade, mas uma saudade de amor mesmo... Na época de semana santa, os meninos amarravam o Judas, e tinha um vizinho do Carrari que era terrível. Uma vez ele falou que ia ficar de butuca a noite inteira, porque o Zequinha, os irmãos dele e outros moleques do sítio adoravam colocar Judas na casa dele, e todo ano ele caía. Dessa vez ele ficou a noite inteira esperando para pegar os meninos, e a hora que ele acordou tinha um Judas sentado no trator dele e ele já sabia que era coisa dos meninos. O Zequinha se mudou pro sítio quando eu tinha oito anos e ele onze. A gente se conheceu na reza, se encontrava na escola e fomos crescendo juntos. Os irmãos dele se casaram com as meninas do sítio e as irmãs também, viraram uma panela só. Depois de muito tempo a gente começou a namorar, já com vinte anos, não foi namorico de adolescente, e estamos juntos até hoje. É engraçado pensar como a comida pode ser um jeito de lembrar da família. Não em uma receita específica, é mais o momento do pessoal na cozinha, em volta da mesona, preparando o mânigui, cada um pegando um punhadinho da massa, fazendo rolinho... E todo mundo comia. O mânigui e o doce de laranja são o que mais tem cheiro da nossa família. Edição de texto por Heyk Pimenta
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