Projeto Centro de Memória das Comunidades Quilombola de Paracatu
Entrevista de Maria José Lopes Ferreira
Entrevistada por Nataniel Torres (P/1) e Valdete de Fátima Lopes Brandão (P/2)
Paracatu - MG, 27/11/2021
PCSH_HV1777
P/1 - Qual o seu nome completo, sua data de nascimento e o lugar onde a senhora nasceu?
R - Meu nome completo é Maria José Lopes Ferreira. Minha data de nascimento é 28/11/53 e moro na comunidade de São Domingos, nasci lá também.
P/1 - E qual o nome dos seus pais Dona Maria José?
R - Meu pai era José Queiroz e minha mãe Carmem Lopes dos Reis.
P/1 - Seus pais são falecidos já?
R - Já.
P/1 - Quando eles estavam vivos com o que eles trabalhavam?
R - Eles trabalhavam mais era em roça, para os outros, e tirava ouro também.
P/1 - O pai e a mãe, os dois faziam isso?
R - É.
P/1 - Onde eles tiravam ouro?
R - Era lá no São Domingos, naquelas praias lá, antigamente.
P/1 - E como era esse período que eles tiravam ouro, dona Maria?
R - Desde pequena eles já tiravam, cresci vendo eles tirar o ouro.
P/1 - E como é que eles faziam?
R - Na época do garimpo, eles levantava de manhã e ia para tirar o ouro, porque era no caixote, bateia. E aí eles garimpavam assim.
P/1 - E quando a senhora era pequena via eles fazendo isso também?
R - Via muito.
P/1 - Ajudava?
R - A gente foi crescendo e foi ajudando eles também. A gente carregava areia, falava que era areia. Punha no caixote para eles lavar, aquela areia. Dali que era tirado o ouro.
P/1 - E tinha mesmo nessa época?
R - Tinha. Não era exagerado, mas dava para sobreviver.
P/1 - Aí vendia o ouro?
R - Vendia o ouro. Tinha vezes que ia cedo, tirava e vendia de tarde para comprar os alimentos para dentro de casa, era assim.
P/1 - E nessa época vocês conseguiam se sustentar só com o dinheiro do ouro, ou ainda fazia outros trabalhos por fora?
R - Fazia. Ia para as roças, trabalhar para os fazendeiros, essas roças aí da vida, e aí ia.
P/1 - E era roça do...
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Entrevista de Maria José Lopes Ferreira
Entrevistada por Nataniel Torres (P/1) e Valdete de Fátima Lopes Brandão (P/2)
Paracatu - MG, 27/11/2021
PCSH_HV1777
P/1 - Qual o seu nome completo, sua data de nascimento e o lugar onde a senhora nasceu?
R - Meu nome completo é Maria José Lopes Ferreira. Minha data de nascimento é 28/11/53 e moro na comunidade de São Domingos, nasci lá também.
P/1 - E qual o nome dos seus pais Dona Maria José?
R - Meu pai era José Queiroz e minha mãe Carmem Lopes dos Reis.
P/1 - Seus pais são falecidos já?
R - Já.
P/1 - Quando eles estavam vivos com o que eles trabalhavam?
R - Eles trabalhavam mais era em roça, para os outros, e tirava ouro também.
P/1 - O pai e a mãe, os dois faziam isso?
R - É.
P/1 - Onde eles tiravam ouro?
R - Era lá no São Domingos, naquelas praias lá, antigamente.
P/1 - E como era esse período que eles tiravam ouro, dona Maria?
R - Desde pequena eles já tiravam, cresci vendo eles tirar o ouro.
P/1 - E como é que eles faziam?
R - Na época do garimpo, eles levantava de manhã e ia para tirar o ouro, porque era no caixote, bateia. E aí eles garimpavam assim.
P/1 - E quando a senhora era pequena via eles fazendo isso também?
R - Via muito.
P/1 - Ajudava?
R - A gente foi crescendo e foi ajudando eles também. A gente carregava areia, falava que era areia. Punha no caixote para eles lavar, aquela areia. Dali que era tirado o ouro.
P/1 - E tinha mesmo nessa época?
R - Tinha. Não era exagerado, mas dava para sobreviver.
P/1 - Aí vendia o ouro?
R - Vendia o ouro. Tinha vezes que ia cedo, tirava e vendia de tarde para comprar os alimentos para dentro de casa, era assim.
P/1 - E nessa época vocês conseguiam se sustentar só com o dinheiro do ouro, ou ainda fazia outros trabalhos por fora?
R - Fazia. Ia para as roças, trabalhar para os fazendeiros, essas roças aí da vida, e aí ia.
P/1 - E era roça do que na época?
R - Era capinar milho, arroz, esses trem, essas coisas assim. Trabalhava também em olaria, tinha vezes, era assim. E aí sobrevivemos.
P/1 - E tudo ali próximo da comunidade, dentro da comunidade?
R - Tudo dentro da comunidade.
P/1 - E como é que era a comunidade nessa época que a senhora era criança?
R - As coisas lá eram boas. Eu gostava quando a gente era mais jovem, eram boas as coisas lá. Hoje é difícil.
P/1 - Era boa por quê? O que tinha lá que você gostava?
R - A natureza, a gente tinha aqui uma cachoeira, a gente ia muito nessa cachoeira, tomava banho. Hoje não tem mais.
P/1 - Nessa época de infância a senhora ajudava os pais, mas estudava também?
R - Estudei um pouquinho.
P/1 - E como era essa época, como foi sua infância nesse sentido?
R - A gente ajudava os pais. A gente ia cedo para a escola, que a aula era de manhã e na parte da tarde que a gente ajudava os pais.
P/1 - E tinha escola próxima?
R - Tinha, era na sacristia da igreja lá de São Domingos.
P/1 - E ia professor para lá, como que era?
R - Ia professor daqui de Paracatu pra lá. E lá também tinha professores, mas na minha época já era professores aqui da cidade.
P/1 - Que ia para lá dar aula e depois voltava para a cidade?
R - É.
P/1 - Mas na comunidade também tinha professor, tinha gente que dava aula?
R - Tinha. Tinha uma senhora lá que dava aula, o nome dela é Malfisa, hoje pessoa mais idosa. Eles davam aula lá, nessa sacristia da igreja, para todo mundo lá da comunidade.
P/1 - E como a senhora era nessa época da escola, você gostava de estudar, não gostava, como é que era?
R - Até que gostava de estudar, mas só que depois a gente teve que sair para ir morar em roça, para ajudar os pais a cuidar dos irmãos mais novos. E ai foi indo assim.
P/2 - E nessa sacristia da igreja era um galpão?
R - Era aquela sacristia mesmo, que tem lá, só que hoje modificada. Era na igreja velha.
P/2 - Mas tinha espaço para colocar as cadeiras?
R - Tinha espaço. Tinha as carteiras, aquelas carteiras antigas, tinha lá, aí a gente estudava.
P/1 - Você falou que gostava mais tinha que ajudar os pais.
R - Eu larguei por causa disso, fui para a roça, mudamos para uma roça. E aí tinha que ajudar os pais.
P/1 - Os irmãos mais velhos acabavam cuidando dos mais novos?
R - Ajudando.
P/1 - A senhora teve quantos irmãos?
R - Ao todo eu tenho 16 irmãos, nós somos em 16 irmãos.
P/1 - Todos do mesmo pai e da mesma mãe?
R - Não.
P/1 - Estão todos vivos, dona Maria?
R - Estão, graças a Deus.
P/1 - Teve uma época que tinha um monte de crianças em casa, os mais velhos cuidando dos mais novos?
R - Exatamente.
P/1 - E dava certo, como é que era?
R - Dava, tinha que dar.
P/2 - Vocês não brigavam?
R - Não brigava, minha mãe e meu pai não deixava.
P/1 - Seus pais eram rígidos, dona Maria?
R - Era, eram bem bravos. Falou, tinha que obedecer.
P/1 - E os avôs, eram de lá também, ou vieram de outro lugar?
R - Eles moravam no São Domingos também.
P/1 - Por parte de pai e de mãe?
R - Não, do meu pai eu não conheço. Mas da minha mãe eu conheci, morava lá mesmo, meu avô, minha avó, tudo morava lá. Já estavam na comunidade.
P/1 - A senhora sabe que geração começou lá da sua família ou não? Os bisavôs também eram de lá?
R - Os bisavôs eu não sei.
P/1 - Mas você sabe que dos seus avôs para cá estava tudo na comunidade?
R - Tava tudo na comunidade.
P/1 - E todo mundo descendente dos Quilombolas de São Domingos?
R - É
P/1 - E quando chegou a época da adolescência, como é que era?
R - Eu sai para trabalhar fora, trabalhava aqui em Paracatu mesmo, casa de família.
P/1 - Porque a comunidade é próxima daqui, a comunidade está a uns 3km no máximo do centro.
R - Trabalhava e voltava de novo, vinha de manhã, voltava de tarde.
P/1 - Você ia a pé?
R - Era a pé e voltava, tudo era a pé.
P/1 - E na época as estradas já eram asfaltadas?
R - Não, era de terra mesmo.
P/1 - E você ia a pé todo dia para a cidade e voltava todo dia a pé para a cidade?
P/2 - Não tinha transporte?
R - Tinha nada, tinha 1, 2 carros aqui em Paracatu, na minha época. Era novidade o carro.
P/1 - E nessa época como que era a estrutura da cidade, tinha hospital, como é que era a coisa?
R - Tinha um lugar que chamava Santa Casa. Foi de uns 40 anos para cá que fez o hospital. Tinha a Santa Casa que era lá embaixo perto, acho que vocês nem sabem onde é. Aí qualquer coisa que tinha, ia para lá. Era o hospital da cidade. Depois, foi vindo posto de saúde, coisa mais sofisticada.
P/2 - Então se vocês adoeciam lá na comunidade, vocês vinham a pé até a cidade?
R - Vinha a pé até o hospital.
P/2 - Doente?
R - Doente.
P/1 - E quando era para ter bebê, quando alguém tinha algum acidente, alguma coisa assim, tudo tinha que vir para a Santa Casa?
R - Tinha que vir. E depois que arrumou o hospital, tinha que ir para o hospital.
P/2 - E seus pais ganharam neném tudo aí no hospital?
R - A maioria em casa, tinha que ganhar em casa, porque não tinha carro para levar na hora.
P/2 - Ganhava em casa, as parteiras?
R - Parteira.
P/2 - E quem foi a sua parteira?
R - A minha, eu não sei.
P/1 - Mas quais as parteiras que você lembra da comunidade?
R - Minha vó era parteira, eu lembro muito bem.
P/1 - Qual o nome da sua avó?
R - Josefa. Ela ajudava nos partos.
P/1 - Era tudo em casa, ia ter bebê tinha que chamar uma parteira.
P/2 - Ganhava em casa. Mas já aconteceu de algum bebê morrer?
R - Não, eu não lembro. Todos saudáveis, nascia… eu não lembro de algum que morreu.
P/2 - E nem a mãe morreu?
R - Não.
P/1 - Nessa época de adolescência, como eram as festas, como eram os costumes do pessoal lá na comunidade?
R - Tinha lá festa de Santo Reis, que era na casa da minha avó. E aí vinha gente de muito longe, vinha gente a cavalo, dias antes para participar da festa.
P/1 - Sua vó dava pouso para os foliões?
R - Dava. E quando era na época da festa, 2, 3 dias de festa, era muito bom.
P/1 - Você chegou a participar disso?
R - Participei.
P/1 - E como era essa preparação da festa?
R - Minha vó fazia tudo, comida, fazia biscoito, doce, tudo isso ela fazia.
P/1 - E vocês colaboravam nessa época?
R - Todo mundo tinha que ajudar, nem que fosse um pouquinho, mas tinha que ajudar.
P/1 - E a festa durava alguns dias, porque os foliões ficavam indo de lugar em lugar?
R - É. A maior festa foi a Festa de Santo Reis, que era Folia de Reis.
P/1 - E a sua família tinha costumes religiosos, de rezas, e procissões?
R - Tinha demais.
P/1 - E como eram esses costumes, pelo menos de algum que a senhora lembra?
R - Tem a festa de São Domingos, Nossa Senhora da Piedade, que a gente saía em procissão. Tinha os festeiros, que eram pessoas mesmo lá do São Domingos, que participava também, eram os festeiros que falavam antigamente. E aí saía com a procissão rezando, até chegar. Saía e depois voltava de novo.
P/1 - A sua família fazia isso e a senhora faz isso até hoje, dona Maria?
R - Não, agora ficou mais diferente. Mas não é igual, é bem diferente.
P/1 - Os costumes que eram dessa época que a senhora era criança, era adolescente, mudaram muito?
R - Mudou, com certeza.
P/1 - O que mudou?
R - Não tem mais aquele entusiasmo, aquela coisa boa que as pessoas de antigamente tinham, hoje em dia as pessoas não se interessam muito. Você convida para uma coisa religiosa, pessoa não dá muita atenção, não dá muito valor e antigamente era bem fervoroso.
P/1 - Aí o pessoal todo da comunidade, quando tinha festa, quando tinha reza, todo mundo participava?
R - É, todo mundo ia antes. Antigamente lá ainda tem o terço, o mês de outubro é consagrado a Nossa Senhora, meu avô e minha avó que rezava o rosário, ainda era em latim, e eles não sabiam ler. E rezava a ladainha tudo em latim. E aí o mês inteiro, o mês de outubro inteirinho eles rezavam o terço na comunidade, até hoje reza, mas já é diferente, não é igual era.
P/1 - Quando adulta a senhora continuou fazendo esse trajeto de vir para o centro da cidade e voltar para São Domingos?
R - Continuamos assim, trabalhando, sendo domestica.
P/1 - Mas nunca chegou a morar na cidade?
R - Sempre na roça, sempre lá.
P/1 - E depois a senhora casou?
R - Eu casei e continuei morando lá mesmo, lá no São Domingos, até hoje eu ainda moro lá.
P/1 - O marido é do São Domingos?
R - É do São Domingos.
P/1 - Vocês já se conheciam antes ou se conheceram depois?
R - A gente se conhecia antes.
P/1 - Foram criados mais ou menos na mesma época?
R - É, mais ou menos na mesma época. A gente era amigo, depois aconteceu o namoro, casou.
P/1 - A senhora tem filhos? Quantos filhos a senhora têm?
R - Tenho. Eu tenho 5.
P/1 - Qual o nome dos seus filhos, dona Maria?
R - O nome deles são Cassia, Simone, ngela, Míriam e Antônio Guilherme.
P/1 - E todos eles também nasceram lá na comunidade. Mas eles estão na comunidade hoje?
R - Tá, eles moram lá.
P/2 - Você já perdeu algum filho?
R - Já, perdi 2 filhos.
P/1 - Desses 5, 2 a senhora perdeu?
R - Meu primeiro parto foi gêmeo, era um casal, aí o menino morreu. E a última criança que eu tive, morreu também.
P/1 - Mas morreram bebezinhos?
R - Morreu no hospital, passou da hora de nascer, aí morreu.
P/1 - Nessa época já estava indo para o hospital?
R - Já tinha no hospital.
P/1 - Era qual hospital?
R - Esse mesmo, o municipal.
P/1 - Já tinha o hospital municipal, quando vinha ganhar bebê trazia para cá?
R - Aí já tinha mais condições.
P/1 - Mas aí não precisava vir a pé, vinha de carro?
R - Já vinha de carro.
P/1 - Vocês tinham carro na época?
R - Não, a gente pedia para pessoa da comunidade para levar. Quem tinha levava, fazia essa caridade.
P/1 - Os seus filhos conseguiram estudar na comunidade?
R - Porque lá é assim, estuda até a 5ª série, aí da 5ª série vem para cá, para estudar aqui. E aí eles vieram para estudar, mas não concluíram, todos, só 2 que concluiu o estudo médio, mas os outros não quiseram estudar mais.
P/1 - O marido trabalhava com o quê, dona Maria?
R - Trabalhava de tudo um pouco, era assim.
P/1 - Mas sempre na comunidade?
R - Na comunidade. Ele saía também. Tinha vez que fichava, em firmas que apareciam, era assim.
P/1 - E como foi a época depois que os filhos cresceram?
R - Aí cada um teve a sua decisão. Todos moram lá. Cada um tomou seu rumo, uma arrumou marido, outros não casaram, aliás, nem um deles casou, tá todo mundo junto e misturado.
P/1 - Eles têm muita diferença de idade?
R - Isso aí eu não sei dizer não.
P/1 - Nasceu um agora, outro 10 anos depois… quando era criança todos eles eram crianças?
R - Não, foi nascendo, tipo assim, 1 ano de diferença. Aí foi crescendo, um atrás do outro, cresceu tudo de uma vez, foi assim.
P/1 - Tinha uma época que tinha um monte de criança em casa?
R - Tinha.
P/1 - Como era a época que tinha um monte de criança em casa?
R - Era a coisa mais difícil.
P/1 - Então me conta o que acontecia?
R - A gente cuidar de criança não é fácil. E aí eu morava com a minha sogra, era 5 crianças da minha cunhada e 5 crianças minha, você pode imaginar a tragédia. Aí nós cuidar desses meninos, que coisa horrorosa, um pinta daqui, outro pinta dali, misericórdia!
P/2 - Você não tinha sua casa?
R - Não.
P/2 - Você morava com a sua sogra?
R - Morava.
P/2 - Os 10 filhos que tinha lá, da sua cunhada e sua, vocês conseguiam controlar os meninos na escola?
R - Controlava.
P/2 - E eles obedeciam?
R - Teimava muito, mas obedecia, tinha hora.
P/1 - E eles eram muito bagunceiros, dona Maria?
R - Bagunceiro mesmo.
P/2 - E ajudava em casa, cuidava na colaboração da casa?
R - Aí estou falando deles mais pequenos.
P/2 - Eles lavavam uma vasilha?
R - Quando foi crescendo, ajudava. Já mudou o jeito, aí já ajudava, cada um fazia uma coisa, lavava suas roupas e por aí ia.
P/2 - Você dava certo com a sua sogra?
R - Dava, graças a Deus.
P/2 - Porque diz que a nora não dá.
R - Graças a Deus, eu dava.
P/1 - E com as suas outras cunhadas?
R - Também.
P/1 - Vocês não tinham brigas?
R - Na hora de dar banho eu dava nos dela, ela também dava nos meus, era assim, a gente ia controlando assim.
P/1 - E era bom que uma colaborava com a outra e ajudava, porque era muita criança.
R - Muita criança mesmo, parecia uma creche.
P/1 - Você lembra de algum caso, de alguma coisa que aconteceu nessa época de infância? Eles iam para cachoeira tomar banho?
R - Na cachoeira não, não deixava, porque era criança. Aconteceu uma vez, eles iam para escola, eles eram muito teimosos, passaram por um mato, não sei como foi esse mato, porque era longe, já estava longe da gente. Uma cobra enrolou no pé de um deles, da Simone, e ela fala para mim que foi Nossa Senhora do Rosário que tirou a cobra da perna dela, que ela gritou “Nossa Senhora do Rosário!” e Nossa Senhora tirou a cobra da perna dela.
P/1 - E quando eles começaram a trabalhar, como é que foi essa época?
R - Cada um veio trabalhar também, em casa de família, até hoje ainda trabalha em casa de família.
P/1 - E os filhos foram trabalhar onde, dona Maria?
R - O meu filho? Eu só tenho um. Ele trabalha, mas não tem um emprego fixo, trabalha, se aparecer trabalho, mas não tem ainda um fixo.
P/2 - E você ainda tem o seu esposo?
R - Não! Sou viúva.
P/1 - O marido morreu nessa época ou depois dessa época?
R - Os filhos já eram grandes, já tinham crescido. E aí ele adoeceu e faleceu.
P/2 - Morreu do que?
R - Ele tinha problema de Diabetes, essas coisas, aí foi complicando tudo.
P/1 - Ele foi tendo vários problemas de saúde. Nessa época vocês estavam sozinhos em casa ou tinha algum filho morando com vocês?
R - Tinha filho morando.
P/1 - Até hoje tem filho que mora com a senhora?
R - Tenho 2 filhas que moram comigo.
P/1 - Ele faleceu no hospital ou em casa?
R - Ele faleceu no hospital de Brasília, porque mandaram ele para lá, eu fui junto, quando ele faleceu já foi lá.
P/1 - Nessa época a senhora não estava sozinha, porque estava em casa, mas tinha que ir para Brasília para visitar ele?
R - Era para acompanhar. Eu fui como acompanhante, aí fiquei lá os dias, naquele maior perreio, passando as dificuldades. A gente que está acompanhando é difícil, porque chega lá você não tem nem como dormir, nem como descansar, você tem que ficar preso ali, junto com aquela pessoa.
P/2 - Você viu ele morrendo?
R - Não! Ele morreu na sala de cirurgia.
P/1 - E comida, como é que fazia nessa época?
R - Eles davam uma comida lá.
P/1 - Conseguia comer, mas não tinha conforto nenhum?
R - Não dava para dormir direito, tinha vezes que você estava sentado naquelas cadeiras, parecendo aquelas cadeiras de bar, aí eles chegavam, tomavam aquela cadeira, falava que outra pessoa estava precisando, tinha que ficar em pé.
P/2 - Ele morreu lá no hospital de Brasília, qual hospital?
R - De base.
P/2 - Você conseguiu trazer ele pra cá, morto?
R - Hunrum
P/1 - Aí ele foi enterrado aqui?
R - Foi enterrado lá no São Domingos.
P/1 - Lá na comunidade mesmo?
P/2 - E foi difícil você trazer ele para cá?
R - Não, porque eu pagava o plano funerário, está pago até hoje, porque a única certeza que a gente tem da vida é isso aí. Então eu falei, eu vou pagar, porque eu não sei do dia de amanhã. Então comecei a pagar, aí paguei um bom tempo, de repente aconteceu, eles foram lá, buscaram, eu nem fiquei sabendo de nada.
P/2 - Você tem netos?
R - Tem bisneto
P/2 - Neto e bisneto. Quantos netos você tem?
R - Eu tenho acho que 4, 5.
P/2 - E quantos bisnetos?
R - Só um.
P/2 - É mulher ou homem?
R - Homem.
P/1 - É um bebezinho?
R - É
P/1 - Esse mora com a senhora?
R - Mora não, mora com a mãe dele, lá no mesmo lote onde eu moro.
P/1 - Mas tá próximo da senhora?
R - Sim.
P/1 - E os netos, têm idades variadas?
R - Meus netos estão com 21, a outra com 23, parece. E tem o mais novo que está com 15.
P/1 - E tudo moço já.
R - Já está tudo grande.
P/1 - E eles conseguiram estudar também?
R - Esse de 15 está estudando. A mais velha conseguiu estudar, fez o ensino médio.
P/1 - Hoje tem escola lá na comunidade para ensino médio, algo que vá além?
R - Lá não tem escola mais. Essa que fez o ensino médio, ela estudou no Alto do Açude, que lá tem até o ensino médio.
P/1 - E quando começou a ter ônibus, quando começaram a asfaltar, como que a comunidade se mobilizou?
R - Uai, foi bom demais, que ajudou, passou a ser bem melhor, bem mais acessível as coisas.
P/1 - Hoje tem ônibus na comunidade?
R - Hoje tem.
P/2 - Por que não tem escola lá?
R - Porque as mães achou por bem não por os filhos lá, na escola lá, uma fala uma coisa, outra fala outra, que não ia por, que as professoras não ajudava, uma coisa tipo assim…
P/2 - E os políticos ajudam lá na comunidade?
R - Muito não. Ajudar como dever ser ajudado, não.
P/1 - A senhora acha que porque a comunidade está perto da cidade, mas também está um pouco distante e é uma das poucas comunidades Quilombolas que ainda as pessoas moram, ainda é a região de origem da comunidade. Como essa comunidade é tratada?
R - Eu acho que ela é tratada muito… ela podia ser mais bem tratada, mas não é, a gente precisa das coisas. Para você ter uma ideia, a comunidade de São Domingos que abastecia Paracatu, que a gente plantava as coisas, trazia as coisas para vender aqui, não tinha esses supermercados, sacolão. Aquelas verduras que tem no sacolão, a gente levava tudo para vender e era na cabeça, não tinha nada para levar não, carro.
P/1 - Vocês cultivavam lá e traziam para vender aqui na cidade?
R - Toda coisa que dava lá, vendia aqui na cidade.
P/2 - E hoje, tá fácil vender?
R - Não tá fácil, porque sacolão, supermercado, põe as coisas para vender, não vende não.
P/1 - Não tem como competir com o produto?
R - Não tem, uai.
P/1 - E quando é que parou essa coisa?
R - Parou quando apareceu esses sacolões, supermercados, porque não tinha.
P/2 - Foi bom por um lado, mas para vocês conseguirem dinheiro foi difícil?
R - Foi, nossa!
P/2 - Tirou o meio de vocês venderem.
R - Exatamente.
P/2 - E vocês vendem lá ainda?
R - Lá aonde? No São Domingos?
P/2 - É, vende coisa lá ainda?
P/1 - Ainda tem produto?
R - Agora não tem mais.
P/1 - Vocês não estão conseguindo produzir para vender, por exemplo?
R - Para vender. E aí se trouxer para vender, se vender é muito pouco, porque tem muitas opções, aí já viu como é que é.
P/1 - E aí o que vocês fizeram para sobreviver?
R - A sobrevivência era o garimpo.
P/1 - Mas aí uma época também não tinha mais o garimpo, o que vocês fizeram para sobreviver?
R - Como estava te falando, eu ia para roça para trabalhar, outras roças, outras fazendas, para trabalhar, era assim. Aí o pai ia roçar, capinar, fazer isso para sobreviver.
P/1 - E era aí que trazia um pouco de sustento para a casa?
R - É.
P/1 - Mas vocês também se ajudavam na comunidade, era uma comunidade unida?
R - Era, graças a Deus, e é. Quando precisa da comunidade, sempre ela está ali para ajudar a gente.
P/1 - Vocês também ajudavam no terreno dos outros?
R - Ajudava na medida do possível, no terreno do outro não.
P/2 - O pessoal de hoje eles plantam lavoura, eles plantam o que para eles cultivarem?
R - Lá no São Domingos? Acho que é nada. Que ninguém tem coragem, hoje eles estão um bando de preguiçosos.
P/2 - Não tem mais coragem?
R - Se mostrar para eles uma enxada, eles adoecem na hora, não é igual antigamente.
P/2 - Eles não obedecem os pais?
R - Não, como é que obedece? Agora é um tal de por veneno, toda coisa eles jogam veneno, que antigamente era capinar mesmo, pegar na enxada, hoje em dia põe veneno, isso e aquilo, mata não sei o quê.
P/2 - E planta os quintais, faz plantio?
R - Pega o que está plantado, se alguém plantou, aí pega.
P/1 - São os quintais das pessoas que estão lá na comunidade, é um espaço menos?
R - É, não é uma lavoura, mas se a pessoa tiver coragem...
P/2 - Isso que eu estou perguntando, se a sua família ainda cultiva no quintal, ainda planta uma banana, uma mandioca?
R - Não, tudo é comprado.
P/1 - Mudou total a cultura do lugar.
R - Mudou, porque quando tinha as pessoas mais velhas, o homem com h maiúsculo, era tudo plantado, o quintal tinha tudo, mandioca, abóbora, você procurava achava, quiabo. Tudo que é coisa que você pensasse. Agora, depois da minha geração, da minha não, depois do meu filho para cá, é muito difícil plantar.
P/2 - Que só comer o que tem?
R - É.
P/2 - Cultivar não?
R - Não.
P/1 - Por isso que mudou totalmente a cultura, vocês ainda vem de uma cultura que aproveitava as coisas que vinham da terra. Agora esse pessoal dessa cultura de agora dependem do comércio que vem de fora.
P/2 - Os seus netos ganham algum benefício do governo para ajudar os pais?
R - Não, benefício não ganha.
P/2 - Uma bolsa família, hoje é Bolsa Brasil.
R - Tem aquele negócio, Bolsa Escola.
P/2 - Pois é, Bolsa Família.
R - A é, eu não sei.
P/2 - Não é você, seus filhos, o benefício que o governo dá para pessoas carentes.
R - Eles receberam lá, algumas vezes.
P/2 - Mas tem que estar na escola.
R - Então não é isso, eu não entendo
P/1 - O bolsa família é, você tem que estar na escola, para você receber. Tem que provar que a criança está indo na escola. Eles tiveram algum benefício, mas não era esse?
R - Não, era outra coisa do governo também, esses dinheiro que o governo dá, eles pegou.
P/2 - Ela está falando agora com a pandemia. Eu estou falando sem pandemia.
R - Não. Agora ganha uma cesta.
P/1 - Mas aí não é do governo?
R - É da escola.
P/2 - Da escola? Deve ser a merenda deles.
R - Não sei.
P/2 - Deve ser a merenda que eles merendam lá, com a pandemia deu para os alunos. Mas agora acabou, porque a escola já começou.
R - Já começou, exatamente.
P/1 - E nessa época de pandemia foi mais difícil, então? Porque vocês estavam tudo isolado e como a dona Val tá contando agora, a escola acabava ajudando com a merenda que estava lá parada e dava essa cesta.
R - Dava essa cesta.
P/1 - Como foi esse período de pandemia?
R - Eles continuaram trabalhando, as meninas. E que eu não trabalho mais.
P/2 - A senhora é aposentada?
R - Já! Aí eles lá continuaram trabalhando assim mesmo.
P/2 - A senhora é aposentada do seu marido?
R - Sou de viúva.
P/2 - Graças a Deus é pouco, mas já ajuda. É o garantido. Você não faz bico nenhum não?
R - Às vezes eu faço um doce para vender, faço uma pastel para vender, vai indo desse jeito.
P/1 - Esses doces são doces típicos ou doces mais modernosos?
R - É o típico mesmo.
P/1 - Me conta desses doces?
R - Não sei se você chegou a ver uns coqueiros que tem lá no São Domingos. A gente faz daquele.
P/1 - Faz um doce de coco fresquinho.
P/2 - E os mané pelado, faz?
R - Faço.
P/2 - Nós comemos o mané pelado daqui, foi de lá da fábrica?
R - Não sei se é da fábrica, mas eu fiz um mané pelado.
P/1 - Esses doces típicos a senhora aprendeu com quem?
R - Com a minha vó.
P/1 - A vó já fazia esses doces e foi com a vó que a senhora aprendeu?
R - É, ele fazia, a gente ia para lá, quebrava aquele tanto de coco e aí ela fazia o doce para a gente. Tem o doce de baru também, não sei se vocês já ouviram falar.
P/1 - Não, como é esse doce de Baru?
R - Ele tem a castanha também, aí faz da castanha dele. Aí põe ele para torrar, tira a casca da castanha dele e soca, tem o pilão, ou então o liquidificador, aí a gente bate e faz.
P/1 - Ele vira uma pastinha?
R - Ele fica triturado.
P/1 - Vira uma farinha?
R - É.
P/1 - Aí faz um doce com essa farinha?
R - É! E é muito saudável.
P/2 - E você vende para o sustento da família?
R - Eu vendo também.
P/1 - O que a senhora vê que a comunidade tem de diferente hoje em relação ao que ela já foi?
R - Nem parece Quilombola, uma tristeza. Eu fico olhando, tem hora. Entrou muita gente diferente, gente que a gente nem conhece. Que antigamente, era só duas famílias, né Valdete? Era Lopes e a Ferreira, acho que tinha. E aí poucas casas, muitas coisas que tinha de antigamente, dos escravos, lá para cachoeira a fora, foi tudo detonado, tudo destruído. E aí aquelas coisas bonitas que tinha na comunidade, a cachoeira, sumiu tudo, secou a água, aquele córrego bonito, ali naquela ponte, corria uma água linda e maravilhosa, hoje não tem. Ali perto daquela ponte, não sei se você viu, aquele tanto de casa, não é da minha época, foi agora que compraram aqueles lotes, fez aquelas casas, tudo diferente.
P/1 - Esse povo que foi chegando depois não era descendente de Quilombola, não tem nada a ver?
R - Não, aqueles lá não.
P/2 - Por que que entrou?
R - Isso eu não sei. Alguém vendeu.
P/1 - Esses lotes começaram a ser vendidos, eles começaram a construir casas. Agora tudo que vai fazer na comunidade eles fazem parte também?
R - Não, eu acho que eles não participam de nada que é dos Quilombos, acho que não.
P/2 - E tem algum benefício por que é Quilombola?
R - Não. Estou falando dessas coisas que acontece na comunidade para os Quilombo, eu acho que eles não participam. É só para os Quilombos mesmo.
P/1 - Os Quilombolas se organizam hoje lá no São Domingos? Tem algum tipo de organização?
R - Organização como assim?
P/1 - Quando vocês vão decidir alguma coisa que é para o benefício de vocês, vocês se reúnem, associação, alguma coisa?
R - A gente tem associação, tem a presidente que reúne a gente para decidir o que deve ser feito. E aí ela ajuda a gente lá.
P/1 - E você percebe se tem alguma melhora acontecendo?
R - Quando tem qualquer projeto pela RPM, a gente vai para ver se a gente agrada daquela coisa. E aí as decisões ficam tomadas lá naquela hora, lá na organização. A nossa presidente é muito esforçada, ela luta mesmo pela comunidade, é uma benção de Deus para nós.
P/1 - Alguns desses costumes, as festas, por exemplo, alguma foi preservada?
R - Já não acontece mais.
P/1 - Não tem mais nenhuma dessas festas do passado lá na comunidade?
R - Tem, tem a dança da caretagem. Sai também a Folia de Reis e tem também as Festas Juninas, tudo tem ainda, mas tudo diferente, não é mais…
P/1 - Como eram essas festas de antigamente? Mas ainda tem, ainda é alguma coisa da cultura que ficou.
P/2 - Para você o passado era melhor do que o presente?
R - Eu acho, outros não acham. Só do verde que tinha, aquelas coisas lindas e maravilhosas que tinha, a gente vê na imagem da cabeça da gente. Eu acho tão triste, porque era tão bonito, tão lindo, e hoje a gente olha ali só vê um deserto. Acabou o São Domingos, a comunidade não acabou, mas acabou nesse sentido das coisas boas que tinha. Você ia no morro, pegava uma mangaba, pegava um pequi, você pegava tudo que tinha ali naquele cerrado, que Deus plantou, deixou, que era de comer, a gente pegava, comia, vendia também. Hoje em dia, é difícil, você não pode nem entrar.
P/2 - E o que você acha da mineradora Kinross, ela traz benfeitoria para a comunidade ou você acha que a Kinross não está sendo boa para a comunidade?
R - Vou falar sobre as bombas, porque aquelas bombas são terríveis, tem hora que a casa balança toda, você pensa até que é um terremoto. Então é triste, toda 16h, não sei se é 16h ou 16h30, não tenho bem certeza, essa bomba explode lá, mas pelo amor de Deus, o telhado sacode tudo, até as janelas. Agora em termos de benfeitoria é uma coisa que deixa até a desejar, porque no sentido dela, da RPM, isso aí não é mais que obrigação dela fazer, ajudar a comunidade, eu acho. Por causa dessas bombas, desses balanços que dá ali. Fez benfeitoria, mas também...
P/1 - Porque tem essa questão da mineradora, das comunidades todas que a gente está trabalhando, a mineradora é a mais próxima da comunidade.
P/2 - Você acha que ela poderia fazer mais?
R - Eu acho! Pelo estrago que fez na nossa coisa lá. Isso que faz aí, pra ela é café pequeno. Se ela quisesse fazer mais, ela faz, eles fazem, podem fazer. Porque dinheiro eles têm. Então eu acho assim uma tristeza.
P/1 - O que a senhora achou de contar a sua história de vida para o Museu da Pessoa.
R - Achei bom, porque a gente fica entendendo melhor as coisas.
P/2 - Você já conhecia essa casa?
R - Não, nunca.
P/2 - Essa casa aqui é da Kinross.
R - Pois é, nunca tinha vindo aqui.
P/2 - Bem vinda.
R - Obrigada.
P/1 - A gente agradece a entrevista que a senhora deu, muito obrigado por ter contado a sua história de vida para a gente.
R - Muito obrigada vocês também.
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