E: Então qual é o seu nome, local e data de nascimento?
e: Sílvio Amaro [impercetível] Paulo, sou da Marinha Grande. Agora estou aqui, mas sou da Marinha Grande.
E: E data de nascimento?
e: 2 do 8 de 77, 46… 45! Tenho 45 ou 46, doutora? [gargalhada] Ah não, é em agosto, é agora em agosto, ...Continuar leitura
E: Então qual é o seu nome, local e data de nascimento?
e: Sílvio Amaro [impercetível] Paulo, sou da Marinha Grande. Agora estou aqui, mas sou da Marinha Grande.
E: E data de nascimento?
e: 2 do 8 de 77, 46… 45! Tenho 45 ou 46, doutora? [gargalhada] Ah não, é em agosto, é agora em agosto, faço dia 2 de agosto e vou fazer 46.
E: Um filho da revolução já…
e: É.
E: Na Marinha Grande… [risos] tem impacto, é verdade.
e: É.
E: Como se chamam os seus pais?
e: Maria Jesus… Maria Jesus [impercetível] para aí uma coisa… e o meu pai era Joaquim… Santos.
E: E o que é que eles faziam?
e: O meu pai teve no Ultramar, o meu pai morreu eu tinha 9 anos. Ele tava no Ultramar, era oficial e veio com muitos problemas lá de saúde. A minha mãe zarpou muito rápido, não sei se me tou a fazer entender? Bazou muito rápido. A minha mãe… eu tive só paí um ano a viver sozinho com o meu irmão, depois fomos… fomos viver com a minha avó, da parte do meu pai. A minha… a minha… a minha mãe… abandonar a gente, tá aqui um marco muito complicado de ultrapassar para mim, foi muito difícil, não foi nada fácil, mas, no entanto… esqueci-me da pergunta [risos].
E: E sabe qual era a origem da sua família?
e: Não faço ideia… não faço ideia mesmo.
E: Eram os dois lá da Marinha Grande?
e: Era tudo da Marinha Grande.
E: Tudo da Marinha Grande…
e: Era tudo de lá, eu é que fugi para o Porto, fugi nada… vim para o Porto. Depois veio a prontos… comecei a fumar charros logo a seguir… paí 11 anos, logo a seguir, paí mais ou menos… é assim, vocês não podem… tem que haver aqui uma cena que pelo menos 5 horas… 5 anos de… porque eu não tou muito equilibrado, percebe? Há coisas que eu ainda vou conseguir ir buscar e outras não… com a idade… com a cena muito específica. Comecei logo a fumar ganza, depois juntei-me paí aos 17 anos… tive 18 anos casado, 18 anos casado, tive a minha filha, mas foi quando eu comecei a consumir drogas pesadas, foi mesmo nessa altura. É, tenho 23 anos de drogas pesadas… sim.
E: Disse-me que tinha um irmão…
e: Tenho um irmão…
E: É o único?
e: … e uma irmã. Não, tenho uma meia-irmã, mas é irmã. Eles são todos irmãos, eu é que já não os vejo há não sei quanto tempo.
E: Eles ficaram lá?
e: Não, o meu irmão tá lá, a minha irmã tá aqui no Castelo de Paiva.
E: Ok…
e: Mas nós já não nos vimos há muito tempo…
E: E lembra-se de quais eram os principais costumes da sua família… quando era criança?
e: Muito desporto, muito desporto… os meus tios todos, tinha muitos tios, todos eles eram desportistas mais para o lado do futebol ou… que foi uma coisa que eu passei ao lado, tinha… jogava muito bem futebol e perdi-me… já tava a jogar futebol profissional quando… quando me pus nas drogas… ainda tava a… a… agora perdi-me… a jogar futebol!
E: A jogar futebol, lá na Marinha Grande.
e: Sim, em Leiria. Na idade comecei a… a consumir.
E: Hum-hum. E gostava de ouvir histórias?
e: Não! Não gosto de ouvir histórias, não gosto de ler… não gosto…
E: Não lhe costumavam contar histórias quando era…
e: Não. Nem à minha filha… não costumo…
E: Sim. E lembra-se da casa onde passou a sua infância?
e: Lembro… lembro.
E: Como é que era?
e: Era uma casa… uma casinha, ainda hoje está de pé, ainda não caiu aquilo tudo, o meu irmão também toma conta daquilo, não caiu, não sei! Vamos lá ver, já não vou lá há tantos anos, também se caísse alguma coisa ele dizia-me! É a pessoa que eu até me identifico mais é o meu irmão, o meu irmão… eu olho para o meu irmão como uma figura paterna, porque eu na altura eu tinha 10 anos e ele tinha 14. Aqui nesta altura… é difícil este tempo parecer que faz alguma…, mas faz a diferença toda naquela idade, ele já trabalhava, eu ainda não, eu estudava… e pronto, mas é a pessoa que eu normalmente recorro, é. E ele a mim também, por vezes, não é, por vezes. É assim eu não sei se vocês estão a perceber que eu tou com o discurso meio distorcido…
E: Não, não…
E: Não, tá ótimo!
e: Não, mas isto está a acontecer por causa da situação de ir para o hospital… lembras-te? Às vezes, tenho que tar aqui um bocadinho a puxar para sair…
E: Mas está ótimo, é assim eu acho que todos nós a falar às vezes vamos para trás para a frente…
[impercetível – pessoas a falar ao mesmo tempo]
e: E pronto e… tem sido mais ou menos um bocadinho a minha vida. Depois estes anos todos drogas, pronto, foi a vida pa… para o galheiro. Agora tou aqui, vamos lá ver, por enquanto estou aqui, não é doutora? Há muitas coisas, muitos objetivos que eu tenho para fazer, mas não tou a conseguir, não tou a conseguir neste momento…, mas não é nada que não se faça! Só que neste momento não é…
E: Sim… e já vamos falar um bocadinho disso também à frente. Agora só voltando um bocadinho atrás, lembra-se da sua cidade ou do bairro onde cresceu?
e: Lembro, lembro. Não, lembro-me mais até é a aldeia.
E: Sim.
e: Que eu cresci numa aldeia, depois quando casei é que fui viver para a Marinha Grande. É paí a 7km… da minha aldeia até à Marinha Grande. Depois já tive a viver em Leiria, já… já corri tudo um pouco, tudo um pouco.
E: E quais é que eram as suas brincadeiras favoritas quando era criança?
e: [Risos] jogar futebol! Mas tinha outras, lá com as miúdas aquilo do elástico, da macaca, essas coisas todas, mas claro uma coisa era o futebol, tinha sempre… nunca fui assim de novas tecnologias, tenho o meu telemóvel, mas não… ainda não tou bem afinado para começar a trabalhar nas novas tecnologias, mas eu tou a ver já os anos a passar e depois não aprendo nada, mas pronto [risos].
E: E tinha muitos amigos?
e: Tinha, muitos. E engraçado, eu era o mais novo deles todos e eles acompanhavam-me a mim, não era eu a eles [risos], era mauzinho [risos], a sério era muito mauzinho e depois comecei a sair mais do que essas pessoas… a idade que elas tinham… eu comecei a sair antes de elas começarem a sair à noite, porque elas tinham pai, tinham mãe e eu como não tinha, tinha toda a liberdade do mundo, e foi o resultado disso… agora perdi-me, porque é que tava a falar mas pronto…
E: Dos amigos!
e: Ah dos amigos! Sim, muitos amigos, mas hoje em dia não acredito nas amizades… tive muito amigo, mas hoje em dia não, para mim a amizade não… não existe.
E: Porque é que diz isso?
e: Porque… a vida me tornou assim, tornou-me uma pessoa mais fria, mais cautelosa, é, a vida tornou-me assim.
E: E… andou na escola?
e: Andei, andei até ao 7º, depois andei agora, fiz aqui o 9º e comecei a fazer o 12º, faltava-me paí… 3 meses, mas não acabei, não acabei porque fiquei doente, eu tava num apartamento partilhado, fiquei bastante doente, tive que… prontos vim para aqui, tive que deixar o apartamento e vim para aqui e… pode repetir só?
E: Sim, estávamos a falar da escola…
e: Dos amigos e da escola…
E: Sim, tem assim alguma primeira lembrança da escola?
e: Tenho! Um estalo! A sério… [risos]
E: Isso é que é pior.
e: Oh eu levava todos os dias! Levava, mas depois cá fora no recreio dava… ai não!
E: E teve algum professor que o marcou?
e: Não... a da chapada!
E: Exato [risos].
e: Não, mas olha… ela até é… neste momento é a presidente da câmara da Marinha Grande, é a Doutora Cidália, professora Cidália. Mas nunca mais, nunca mais falei com ela nem… batia-me muito ela, ela era assim bruta e agora não parece nada disso, parece uma meiguice. São das pessoas que eu um dia quero confrontar, quero entrar em confronto com elas…, mas vai ser um dia, esse dia há de chegar.
E: E como é que ia para a escola?
e: A pé, a pé, íamos todos a pé, aquilo não era muito longe… [impercetível] de minha casa até à escola, porque aquilo na aldeia… eu tive, eu tive o 5º, o 6º e o 7º foi por… por cassete, por… telescola, telescola! Tirei 3 anos assim e pronto era ali pertinho de casa, até vinha almoçar a casa e tudo. Já gamava vinho ao meu pai [risos], é verdade! Já gamava vinho ao meu pai.
E: E ia com os seus amigos? Ia a pé com os seus amigos para a escola?
e: Sim, sim, dois ou três, sim, porque aí está eu dava-me sempre… os meus amigos eram mais velhos do que eu, já trabalhavam, já… e eles, não sei porquê, sempre me fizeram as minhas manias todas, sempre me trataram bem, não sei porquê… [risos], se calhar porque era mauzinho [risos], era mauzinho, muito mau… agora já não sou, não é doutora?
Técnica: Não, é uma excelente pessoa.
e: Ah obrigado, obrigado!
E: [Risos] E já falou um bocadinho também sobre isso, mas quando é que começou então a sair sozinho e com os amigos?
e: Não, comecei logo, comecei logo que… ora bem, tinha… a minha mãe foi-se embora aos 10, depois tive a viver com a minha avó, a partir daí foi tudo “à lagardère”, o meu irmão não deixava faltar nada, a minha avó também não… prontos foi “à lagardère”, sempre a consumir, com consumos, ganza aí só ganza, só ganza, foram muitos anos só ganza, muitos…
E: E o que é que faziam quando iam sair todos juntos?
e: Normalmente, íamos roubar fruta [risos], era, normalmente, íamos… não, íamos às miúdas, mas eu praí ainda tava mais na idade de roubar fruta [risos].
E: E como é que era o seu grupo de amigos? Eram mais velhos…
e: Eram mais velhos, eram mais velhos do que eu… era… eram um bocadinho tendenciosos, eu falava certas coisas que por eles não faziam, não é, eu é que dava a volta “olha vamos fazer isto” e “vamos fazer aquilo”, “vamos carregar aqui”, “vamos carregar ali”, pronto…
E: Era você que tinha as ideias [risos].
e: Há muito tempo que não falava destas coisas…
E: Tem alguns momentos que se lembre assim com eles que o marcaram…?
e: Com os amigos?
E: Sim, pode ser bons momentos ou…
e: Tenho! Tenho bons momentos, tipo de… sei lá, então houve tantos momentos… houve, mas houve bons momentos que passamos, mas normalmente isso é… é visto bem agora, mas no passado não… não era. Estou a falar do álcool, é. Eu na altura já bebia, já bebia [impercetível], depois deixei de beber mesmo completamente e nunca mais tive problemas com o álcool, nunca mais, prontos, agora as coisas estão a andar da maneira que têm que andar.
E: E quando é que começou a trabalhar então?
e: Comecei a trabalhar com 13 anos, nas obras, com 13, no Alentejo, em Serpa, Serpa, Évora… depois mais um bocadito à frente foi quando assinei um contrato profissional de futebol e… e deixei de trabalhar nas obras, pronto, ganhava bem, tava bem… e prontos foi isso, foi um bocado isso.
E: Hum-hum. E como é que foi esse trabalho lá no Alentejo?
e: Foi altamente, foi altamente! Rebentei com as mãos todas, então com 13 anos, coitado, o moço ali, coitado… [risos] mas foi muito fixe, foi muito fixe, era um grupo muito porreiro, o meu patrão, o outro pedreiro e o outro servente éramos muito unidos, muito fixe mesmo, passei lá cenas e Serpa, especialmente, aquilo, não sei se conhecem, mas aquilo é tudo em… tipo Óbidos, com pedra e… tem assim altos corredores de pedra, aquilo é bué de lindo, bué de lindo mesmo, é um sítio que eu ainda tenho que ir, espero bem que sim! Um dia destes… tenho que ir…
E: E ficou lá mais ou menos quanto tempo, consegue-se lembrar?
e: Ai…
E: Foi até ao contrato profissional de futebol?
e: Eu acho que foi, era isso que eu tava a pensar, eu penso que sim. Eu assinei o contrato com 15 anos… profissional, tinha 15 anos.
E: E foi lá no Alentejo também?
e: Não, não, foi aqui, foi aqui.
E: Aqui no Porto?
e: Não, Marinha Grande, Marinha Grande. Depois da Marinha Grande, assinei o contrato profissional no Atlético Clube Marinhense e depois do Atlético Clube Marinhense eles compraram um passe, o meu passe à… a União de Leiria comprou o meu passe, é. E depois andei lá até conhecer a maldita… até conhecer a maldita heroína, é.
E: Como é que foi essa experiência de ser jogador profissional?
e: Foi muito bom, é aquilo que eu… é assim ainda hoje vejo os garotos ou assim… ou às vezes aí a falarmos e… quando eu tou a falar com alguém assim acerca disto eu nem… eu nem tento explicar bem à pessoa aquilo que eu jogava, mas jogava tão bem, como passei ao lado de uma carreira que poderia ter sido tão boa… quando me lembro daquilo que fiz está desgraçado, fico mesmo mal, isto é uma das coisas que me metem mal, porque… sabe-se que na vida do futebol ganha-se bem, não se ganha mal, eu já na altura tava com 200 contos, por mês, era dinheiro, e prontos…
E: Teve outros tipos de trabalho depois desse?
e: Tive, tive… trabalhei, fui chefe de turno… depois quando… pus-me nas porcarias, depois consegui tirar, sair das porcarias com tratamento, fiz um tratamento de um ano na Comunidade Vieira e Paz em Fátima… e agora tou-me a perder… porque é que me tá a fazer essa pergunta?
E: Estava a perguntar sobre os trabalhos que teve… portanto, depois de ser jogador…
e: Ah! Abri um café, abri um café com a minha mulher, abri um café com ela na altura e fui para chefe de turno numa fábrica de flocagem… trabalhava muito, 12 horas por dia e depois ainda ia para o café, pronto, trabalhava bastante, mas se me perguntassem os anos que eu tive felicidade na minha vida são esses, são esses! Foi quando eu consegui estar estável, não consumia, não, não… não consumia nada, conseguia tar lá no café sempre a ajudar a minha mulher, conseguimos pôr uma empregada…, mas prontos olha onde isto já lá vai, já lá vai…
E: E depois disso teve mais alguma experiência de trabalho? Depois dessa fase…
e: Tive, tive, tive. Então eu… [risos]
E: [Risos] Pode contar!
e: Eu fui, eu fui… a minha profissão agora é soldador, na soldadura há muita saída e eu tive a trabalhar na… na SK, ali em Valongo, tive lá uns tempos a soldar, foi o tempo em que tive em tratamento, 1 ano e meio… já fiz o curso de empregado de mesa e bar, onde eu… no 9º ano, pronto tenho feito assim umas coisinhas. Agora é assim sinceramente tou um bocadinho mais estagnado neste momento, mas não é culpa de ninguém, é só minha, é só minha esta… esta coisa, estou meio parado no tempo, mas acho que isto tem mais a ver com o neurológico… uma pessoa às vezes não é… a vida não é fácil, a gente vai chegando a uma idade, fumar tantas ganzas, tanto isto, tanto aquilo… chega-se a um momento que a cabeça faz tilt e a minha tá a fazer um bocadinho, tá a fazer um bocado, mas pronto. Eu não tinha estes cortes, estes cortes que eu tenho de memória, eu não tinha, nem nada! Conhecem a música do [impercetível]?
E: Acho que não…
e: [Impercetível]… há de ver, fui eu que escrevi a letra, é assim, foi na prisão, muito… tem muita… tem muita asneira, é só asneirada ali, ele tava preso comigo e eu é que escrevi, onde é que eu conseguia fazer isso agora?
E: E teve algum período de desemprego?
e: Tive, tive, tive… isto não foi tudo seguido, não, não foi tudo seguido… é há altos e baixos… é como eu digo, para cá, desde depois daquilo do futebol as coisas não… nunca mais… e casar e depois… nunca mais aconteceu coisas normais, desta normalidade.
E: E, portanto, depois muda-se aqui para o Porto, isso foi em que altura mais ou menos?
e: [Risos] eu já tive, já fui, já vim…, mas eu agora desta vez, desta vez já tou aqui no Porto, ora bem, já fiz um tratamento de 1 ano e meio, aqui no Porto já, e tou aqui há… 6 ou 7 meses aqui no Albergue, mais ou menos, a distância que… que eu vim para o Porto outra vez. Porque uma pessoa aprende a mexer-se no Porto, há coisas no Porto que a gente consegue fazer que lá em baixo não se consegue, não se consegue fazer, aqui é diferente, não é? Eu já digo que sou mais nortenho que do sul.
E: E lembra-se da primeira vez que… que fez essa viagem, que saiu da cidade onde nasceu?
e: Ah foi para vir para um apartamento, para aquelas… como é que se chama doutora? Aquelas associações de andar aí a pedir na rua?
Técnica: Tipo a Cais?
e: De andarem a pedir na rua… associações, não é comunidade… são associações que a gente… andam a dar 50 euros por dia, não é? E andamos a pedir para eles, andei a correr isso tudo assim, é. Foi a primeira vez que eu vim para o norte foi aí, foi, com a Sofia, é.
E: E como é que foi a primeira impressão quando chegou cá?
e: Não gostei muito, não gostei muito, mas depois pronto… achei uma cidade muito escura, uma cidade muito escura, já conhecia Lisboa e Lisboa é só luz e eu chego aqui e pronto…, mas pronto, depois acabei por… por gostar e estou e gosto, gosto não é a questão de gostar, é a questão que tem que ser, tem que ser assim, não é? Não há outra maneira de fazer as coisas neste momento, não há como. As pessoas que minimamente vão falando comigo também não… não preenchem muito mais, não preenchem muito mais [risos]. E estou a falar do meu irmão, mexe muito comigo, mas… não estou a gostar de atitudes dele ou melhor não é as atitudes dele, até são as minhas, não é? Ele depois dá-me na cabeça, pelas minhas atitudes, o rapaz até nem tem culpa nenhuma [risos], tem um bocado tem, tou a brincar, tem um bocado, mas pronto.
E: E… e que dificuldades é que – se sentiu – quando chegou cá? Quais é que foram as primeiras dificuldades que encontrou…?
e: Não, não senti, não. Agora já sobrevivi na rua há tanto tempo, andava na rua, que… acabei por me habituar rápido, adaptei-me rápido.
E: Ao bocadinho mencionou que foi casado ou que é casado…
e: Fui, fui, fui…
E: Foi [risos]. Como é que conheceu a sua ex-mulher?
e: Não sei… não me lembro bem, éramos miúdos. Não sei, assim a data certa, não sei, mas éramos miuditos, praí 18…
E: E lembra-se de como é que começou o namoro? Como é que foi essa fase?
e: [Risos] Não, não me lembra assim muito bem, sinceramente, sei que íamos lá para um bar, que era para onde a gente costumava ir, para um bar que era… em São Pedro… conhecem? São Pedro de Moel? Tem as piscinas, tem lá uma discotequita com um barzito e depois era aí que íamos à noite.
E: E do seu casamento, do dia do seu casamento, como é que foi?
e: [Risos] eu já tava à espera desta!
[gargalhada]
e: Foi no dia do meu casamento que eu comecei a consumir drogas, pesadas, foi no dia do meu casamento, sim senhor. Mas já há muito tempo, já andava com… com o meu cunhado a oferecer-me e eu sempre a resistir, tipo eu dizia – o irmão dela também é tóxico – “como eu te vejo a ti, não quero tar assim como tu” e lá lhe dava uns trocos. No dia do meu casamento, ele veio falar comigo e eu “olha tá bem, vamos festejar” e eu nunca tinha provado aquilo, “vamos festejar” e fomos. Passei o casamento todo a vomitar-me [risos], a sério, e eles a pensar que era álcool, a minha família.
Técnica: Ou que tava nervoso. [Risos]
e: É verdade, isto foi verdade. Eles pensavam que eu tava tomado, o meu irmão e… [risos], ya.
E: E tem… tem filhos?
e: Tenho uma filha, com 18 anos, vai fazer 18 anos, vai fazer em maio, em maio não, em… em novembro, é escorpião, é em novembro.
E: Como é que ela se chama?
e: Maria João.
E: E foi fruto desse casamento?
e: Diga?
E: Se foi fruto desse casamento?
e: Foi, foi, foi… foi o único casamento que eu tive. Os outros foram emprestados [risos].
E: E como é que foi ser pai?
e: Oh foi… foi bom, mas… muito complicado. Eu logo à partida tive alguma complicação, porque… a minha mulher tava no hospital, teve a menina e tava eu a ir ver a menina e telefona-me o… o telemóvel a dizer que a minha avó tinha morrido e foi a minha avó que me criou e… e aquilo foi ali um choque, mas depois eu consegui, andei assim 2 ou 3 dias mal, mas depois tive que pensar “não, não posso pensar assim, tenho que pensar pelo lado positivo, olhe que a minha avó tenha ido para dar a vez à minha filha”, prontos aí foi… foi, foi assim que eu fiz. A Maria João dá-me uma trabalheira, que nem acreditem. Nem fala para mim agora, nem tão bem a ver o que é que tá para ali.
E: Ela vive aqui, aqui?
e: Não, não… tá lá, tá lá, tá, tá com os avós e com a mãe. Eu já não estou há uns tempos com ela, já há uns bons tempos que eu não estou com ela. Ela tirou-me das redes sociais, você é que pode fazer uma ligaçãozinha para ela me atender, não sei se atende…
Técnica: Agora?
e: Não, agora não [risos].
[Gargalhada]
Técnica: Claro, quando a gente descer a gente pode tentar fazer sim.
e: Ela tirou-me das redes sociais. Já viu, isto não se faz… a um pai! Não, teve razões para isso… ela tava um bocadinho chateada comigo e tem razão… mas ela tá bem, ela… a vida para ela tá impecável. Os avós é só dinheiro, tão cheios de dinheiro e ela lá vai… mas também ela não é de portar-se mal, não é de portar mal. Ela só porta-se mais mal é comigo. É, é, a sério, ela não aceita muita coisa minha, mas prontos, é o que é. É assim, tem razão e não tem, porque aqui tá a fazer a jogada da mãe, ou seja, a mãe é que mete o disco a rolar, porque… foi desde que eu me chateei com a mãe que ela deixou de falar para mim, foi há pouco tempo, eu já tava aqui. Tive uma chatice com ela, com a minha ex-mulher, porque ela tava-me a pedir umas coisas a mais que eu não tenho que dar e ela nunca mais falou para mim, a minha filha, nunca mais. A mãe eu também dispenso, mas… a minha filha… uma pessoa fica um bocado magoado, mas… é assim. Nem sempre se pode ficar, nem sempre se pode ter razão, não é? É um bocado isso. Se uma pessoa pudesse voltar atrás, ui… e se eu voltasse atrás? Dizem… as pessoas costumam dizer “ah não mudava nada”, não mudavam o quê? Eu mudava tanta coisa, se me pudessem… assim uns anitos, não era preciso muitos, uns anitos para trás… mas isso não acontece, não é?
E: E como é que descreve a sua vida hoje? Aqui na cidade no Porto.
[silêncio]
e: [Risos] Como é que descrevo? Estou… não sei, não… como também é assim, agora tenho estado mais reservado, tenho estado mais por aqui, não tenho saído… mas… se me perguntasse se eu gostaria sair daqui, saia. Não é que não goste do Porto, não é que não goste, gostava de ter outra solução, o problema aqui não é o sítio onde eu estou, é a falta de soluções que eu arranjo para mim mesmo para fazer isto, não é? Essa falta de soluções que encontro em mim é muito difícil, porque… porque não dá como, não há como, quando a gente se sente impotente, que é o meu caso neste momento, tou aqui, tou a ter esta reunião, participo nas coisas, tento participar nas coisas, mas o que é certo é que… pronto, perdi-me, tou todo perdido já.
E: Estava-lhe a perguntar como é que é a sua vida aqui hoje.
e: No Porto ou no Albergue?
E: No Porto, para já no Porto.
e: No Porto… aquilo que eu tou a fazer neste momento fazia… o que faço aqui, fazia noutro lado qualquer. Não é a cidade que me define… agora, claro, o Albergue já é outra coisa, já… é assim, a gente queixa-se muito, é verdade, eu também me queixo, isto é normal, não é? O que é certo é o que nos dá quarto e… e… e comida, essa é que é a verdade, contra mim tou a atirar, atenção, não tou a pisar o pé de ninguém, eu piso o meu também, agora prontos… razoável.
E: E quais são as coisas mais importantes para si, hoje?
e: A minha filha, sempre, até pode tar 4 ou 5 anos sem falar para mim, é a minha filha.
E: E tem sonhos? Quais são os seus sonhos, neste momento?
e: Não é sonhos, é mais objetivos.
E: Objetivos sim…
e: Objetivos?
E: Hm-hm.
e: Tenho, tenho… tenho alguns. A minha namorada é brasileira também, mas está no Brasil, mas para ela vir para cá, tenho de dar outros passos, tenho de tar eu bem, se não tiver eu bem, como é que vou fazer? Nem pensar… eu para agora sei lá, eu tou tão parado no tempo… tou muito parado no tempo, não… não sei muito bem o que é que… [silêncio] tavamos a falar do que?
E: Estávamos a dizer dos seus objetivos para o futuro…
e: Ah sim objetivos… pois, não, sair daqui, lógico, é um objetivo muito grande, trabalhar, só porque… aqui está, eu sei que só assim é que vou conseguir ter a relação que está à minha espera, porque se eu não arranjar trabalho, não arranjar isto, não arranjar casa… não vale a pena, porque não vai resultar, não resulta, tem de se fazer muito mais do que isso para resultar, porque isso tudo eu já fiz e não resultou.
E: Como é que foi contar a sua história?
e: Fácil [risos], não, fácil não é, como não as conheço, não é, não conheço as meni… as doutoras?
E: Meninas [risos].
e: As meninas. Uma pessoa fica mais coiso, mas, não, mas tá-se bem, não… eu o que me tá coiso é… tirar-me aqui a cabeça… perco a memória…
E: Não, não se preocupe…
e: Não me preocupo, se eu não me preocupar, já viu? Tenho que me preocupar, tou… tou… tenho 45 anos e já tou a perder a memória? Ah pois… [risos]
E: [Risos] Quer acrescentar mais alguma coisa?
e – Tenha uma excelente segunda-feira.
E: Obrigada [risos].
e: De nada, obrigado eu.
E: Obrigada!Recolher