Entrevistadora - Então ia começar por pedir para te apresentares, para dizeres o teu nome, de onde é que és, a tua data de nascimento.
Rosa Silva - Pronto, chamo-me Maria Rosa dos Santos Silva, nasci em 1946, a 30 de setembro e… a data de nascimento… o sítio, nasci em Ramalde, portanto, so...Continuar leitura
Entrevistadora - Então ia começar por pedir para te apresentares, para dizeres o teu nome, de onde é que és, a tua data de nascimento.
Rosa Silva - Pronto, chamo-me Maria Rosa dos Santos Silva, nasci em 1946, a 30 de setembro e… a data de nascimento… o sítio, nasci em Ramalde, portanto, sou do Porto. Portanto, eu nasci em Ramalde numa casa… numa pequena… como é que… a casa rural, não é, portanto, nós tínhamos vacas, tínhamos bois, tínhamos aquelas coisas todas, nasci, e quando tinha para aí um ano fiquei muito mal e fui viver para… para a Rua dos Castelos, para casa de outro meu avô, aquilo era, a primeira casa era dos meus avós paternos e fui viver para a casa dos meus avós maternos, por uma questão de ter muita gente para estar à minha… à minha volta, porque acho que não me deixaram… quer dizer, não podia estar sozinha que podia… morrer, pelos vistos, não sei. Sei que depois estive lá até… até… mais ou menos aos dois anos, foi quando comecei a andar lá, comecei a andar, comecei… e a partir daí houve uma coisa, que eu ainda hoje… sinto, quer dizer que sonho muitas vezes, não é sonhar, é que aquilo foi uma realidade, portanto, a primeira noção que eu tive de diferença entre as pessoas tinha para aí dois anos, com uns primos que lá estavam e que me foram mostrar onde dormiam, porque aquilo era uma casa muito grande, era uma casa de lavoura, porque aquilo era muito grande, vocês hoje conhecem de certeza… o sítio, porque é… onde está o Hospital da Prelada, da parte de cima da Prelada, aquilo era tudo do meu bisavô, onde estão aqueles prédios todos, onde está lá aquilo tudo, era do meu bisavô e, portanto, havia muita gente ali e tinha as minhas primas, os meus tios, a minha avó, que morava lá tudo, portanto, muitas mulheres para tomar conta de mim. E quando chegou essa… naquela altura, apareceram lá uns primos, mais velhos do que eu, mas pequenos, que me foram mostrar onde eles dormiam e então era… no sítio onde o meu avô, o meu padrinho, que era o que estava agora na casa era… era… marido de uma irmã da minha avó, que… era onde guardava palha para os… para… porque havia vacas, muitas vacas lá em casa, e eles foram mostrar onde dormiam, que era uma coisa assim muito alta e cheguei lá ao cimo e vi uma coisa muito escura, a palha muito escura, e fiquei a pensar… quer dizer, naquela altura não pensei, pensei muito mais tarde… “o que é que… porque é que aquelas crianças dormiam ali?”, porque quando eu via cá em baixo até a Casa da Eira, que era muito mais… porque eram uns tios que ficaram a viver mal e iam passar de uma casa para a outra e… e sabes que aquilo nunca mais na vida me deixou… aquela casa, aquele… aquele preto daquela subida fiquei… com aquilo na cabeça… e depois mais tarde perguntei se de facto aquilo aconteceu ou não, porque podia ser da minha imaginação, mas não, a minha tia, a minha avó disseram que sim, que eles tesiveram ali, pronto. A partir daí, tornei a vir para minha casa, fiquei bem e fui para a minha casa de… Ramalde.
Entrevistadora - E vivias com os teus pais?
Rosa Silva - Na altura, vivia com os meus pais, mas… a minha avó, que também chegaste a conhecer, não sei se chegaste a conhecer tu, que viveu aqui comigo, era de um… era uma pessoa muito complicada e, portanto, fazia muito mal à minha mãe, quer dizer, tratava muito mal a minha mãe e a minha mãe queria sair dali, não é, portanto, depois arranjaram uma casa e ainda estiveram ali até eu ter cinco anos, mais ou menos, quando eles saíram, vieram viver aqui para Aldoar, porque era para aqui que eles queriam vir, portanto, vieram viver para Aldoar, mas para uma casa… que era assim aquela sala, imagina, aquela sala de entrada, onde tem uma cama e uma cozinha, não tinham sítio onde me meter, porque tinham o meu irmão pequenino, o meu irmão ainda não andava quando eles saíram de lá, portanto, eu fiquei lá. Eu era muito ligada ao meu pai, porque a minha mãe já não vinha para casa muito cedo, mas o meu pai vinha e… dava-me brinquedos, brincava comigo, tenho imensas fotografias tiradas pelo meu pai, era um homem, quer dizer, de muita presença para mim. Depois eles saíram de lá, ou seja, o meu pai e a minha mãe saíram dali e eu fiquei… senti muito, além de sentir muito, mas tinha uma tia, de vinte e poucos anos, com um namorado, que fizeram quase de meus pais, portanto, eu andava ligada sempre à minha tia, sempre atrás dela e adorava o namorado dela, prontos, era um… acontece que a minha tia era tuberculosa, pensavam que ela que estava bem e ela não estava, um dia estava… ela ficou em casa, devia estar mal ou não sei quê, e sei que, eu tinha cinco anos nessa altura, e a minha tia… eu estava ao lado dela, como eu andava sempre atrás dela, sentada à cabeceira da cama dela, ela estava acho que na cama e teve uma hemoptise, quer dizer, estás a ver uma criança de cinco anos a ver uma pessoa a ficar… a ficar sem sangue, eram baldes… eu vi aquilo tudo e ninguém se lembra que eu que estava ali, pois, e como ninguém se lembrou, na altura chamaram os meus pais e quando estavam a chegar aquilo tinha… aquilo hoje, aquela casa onde eu nasci hoje não existe, é um parque, hoje é um parque, tinha um rio que dividia a casa, a minha casa da casa do… dos outros… pessoas, e nesse rio puseram um passadiço e tu hoje podes andar no passadiço à volta do rio e tens uma… portanto, a casa, ainda bem, puseram aquilo tudo abaixo, mas conclusão, a minha tia ficou ali e o que é que acontece? Eu fiquei ali… quando ouvi dizer que os meus pais estavam a chegar, eu saí pelo portão e fui ter com os meus pais, sei que cheguei, aquilo tinha uma ponte, a ponte não se vê, era uma ponte muito bonita, foi uma pena terem coberto a ponte, uma ponte em pedra antiga, a ponte… e eles… o meu pai desmaiou na ponte, lembro-me disso, sei que alguém viu que eu que estava ali, pegou em mim e levou para casa do caseiro, que nós tínhamos dois caseiros, aquilo também era um coisa grande, ainda era um terreno grande e tínhamos dois caseiros lá e levaram-me para casa do caseiro, levaram-me para casa do caseiro, mas entretanto levaram a minha avó também e o que acontece? A minha avó estava aos gritos… normal… e eu estava no quarto do caseiro, dos caseiros e fiquei atrás da cama, havia um bocadinho assim, e eu ponho as mãos assim, a cabeça aqui e depois não sei de mais nada. Sei que nunca mais senti nada, nem se houve funeral, se houve pais quando vieram embora… não soube, foi como se tivesse… quer dizer, entrado em coma, pura e simplesmente, fiquei sem sentir dor de nada e estive assim durante muito tempo, muito muito tempo. Tanto tempo que a casa onde a gente vivia, aquilo tinha sido vendido, a casa onde a gente vivia foi… arranjaram uma casa para o meu avô, não, o meu bisavô que ainda era vivo, a minha avó e eu, que lá estava, fizeram uma casa na Casa da Eira para ficar para os meus avós e tornaram aquilo numa ilha, vocês conhecem as ilhas, ouvem falar, aquilo tornou-se numa ilha, a casa onde eu nasci, fizeram três casas, no andar de cima, no andar de baixo e a cozinha, que era uma cozinha muito grande, fizeram uma casa da cozinha, e nós passamos a viver na Casa da Eira, porque o contrato era enquanto o meu avô fosse vivo, o meu bisavô fosse vivo, ele tinha que ter lá uma casa e era a melhor casinha que lá estava, de facto, que os filhos eram… mas na Casa da Eira, pronto, eu vivi ali assim. Naquela fase não sei que se passou, olha porque a minha avó… não havia um livro naquela casa, não havia… não se lavava os dentes, começa por aí, tás a ver, quer dizer, como é que as pessoas eram, nada daquilo… não havia um livro, portanto, eu não sabia nada de nada. Aos 7 anos, os meus pais arranjaram uma casa maior e foram-me buscar para eu ir para a escola, para eu ir aqui para a escola, fui para a escola onde hoje é… a esquadra e, quer dizer, e a partir daí… e vim para aqui não falava, eu fui abusada sexualmente por uma rapariga lá e também tenho a impressão que fui mais alguma coisa, porque eu não sei, não sei mesmo o que é que se passou, naquele tempo que lá estive, entre os 5 e os 7, eu quase
com 7 anos, faz de conta que a minha… não há… a minha cabeça, além disso, fiquei com problemas, que ainda hoje os tenho, que são problemas, por exemplo, eu quero escrever qualquer coisa e de repente não sei escrever, só dou erros, portanto, quando eu vim para a escola primária não sabia nada, não é, começa por aí e começa porque… e de eu ser meia… eu acho que consegui nuns anos consegui debater muita coisa eu própria, porque eu fui para a primeira classe
e não sabia escrever nem sabia… ou seja, não conhecia os números, não conhecia nada e então quando eu comecei a na primeira classe, que é uma coisa que eu acho piada, porque… para fazer os números, eu tenho uns números horrorosos, tenho, tenho, é, a sério, então os números… o 3 eu não conseguia parar, tás a ver, era assim tuc tuc tuc tuc por ali fora e depois tapava, tapava com o papel… aconteceu-me isso, sabes, portanto, e a partir daí, fiquei… ainda hoje muito… gosto muito, estou sempre sozinha, gosto de estar sozinha e… tenho problemas mesmo, às vezes, não, tenho que sair, tenho que fazer as coisas, porque não posso ser assim, não é? Mas fiquei… quando vim morar aqui para Aldoar com os meus pais para ir para a escola primária… ficava… ou seja, vocês já não conhecem, não conheceste o Granja, ali na… era a mercearia do meu tio e eu ia para a escola e ficava ali em casa dos meus tios e… andava sempre atrás dos meus primos, mas não falava, os meus primos brincavam… E depois acontece uma coisa que eu hoje sei o que é, mas naquela altura não sabia… o meu tio era o regedor e depois foi… era o regedor da freguesia e depois foi o presidente da freguesia, quando passaram a presidentes, só em 74 é que ele saiu do lugar, quando houve eleições, e… naquela altura, ele tinha… a PIDE vinha saber informações e eu achava piada, porque eu não percebia o que era, nós andávamos a brincar em frente, que aquilo era ali bouça, tinha ali uma… não existia nada disto, não é, era tudo aqui atrás e… eles andavam a brincar e quando os meus primos, eu tinha um primo, que o conhecia e dizia assim “é vamos” e desaparecia tudo, sabes o que era, os miúdos desapareciam, ia tudo para dentro de casa, eles diziam que era os fiscais, “aí vêm os fiscais” e lá vinham todos para dentro de casa, depois é que eu me pus a pensar no que era quando o Álvaro Fragata me falou disso, assim, olha caraças era os… os fiscais era os gajos da PIDE, que iam lá fazer… informar… E então o meu tio era muito engraçado, o meu tio era salazarista, até tinha não sei quê, que era aquelas coisas, mas… nunca denunciou ninguém, nunca, só dizia assim “desapareçam que eles vêm aí”, o Álvaro Fragata e… havia aqui uma série de gente que nessa altura era… bastante ativa, que eu lembro-me disso, nas eleições do Humberto Delgado, daquela gente toda, eles iam ficar… onde hoje é o cemitério havia lá umas covas, eles metiam-se ali e estavam ali durante uns dias até… os gajos andarem por aí e depois se irem embora, nunca denunciou ninguém, era uma coisa que eu admirava, aquele meu tio, era nesse aspeto era um… mais, a filha foi candidata em 73, era a mais jovem, tinha 18, 17 ou 18 anos, foi a candidata jovem, vocês conheceram-na também, a Berta Monteiro, naquela altura… foi candidata e o meu tio tinha muita piada, não queria nem nada, mas nos comícios no Vale Formoso foi lá para trás para ver a filha, tás a ver, aqueles pequenos pormenores que a gente sabe, não é… e que é interessante, prontos, e passou-se, quer dizer. Comecei… a andar com os primos, que vocês conhecem, é o António Graça, o médico, eram os meus companheiros, era os meus amigos… andava sempre com eles e o Graça é que me levou para, no fundo, no fundo, que me ligou ao partido, porque… eu estava lá sempre em casa ou estávamos, eles vinham para aqui em São Domingo da Silva? ou eu ia para lá, passava lá férias com eles, íamos para as praias… eles estavam em Monte dos Burgos, não era assim muito longe, mas andávamos sempre juntos e foi ele que me levou, no fundo. Nunca mais me esquece que a primeira reunião foi na… que eu assisti, foi na República dos Lysos e… quando cheguei a casa, como deves perceber, eu não tinha estudos, não tinha nada, andava a trabalhar, cheguei a casa, tinha um dicionário e fui, dormia lá em baixo, peguei no dicionário para ver o que é que aquilo, muitas das frases que ouvi e que não sabia o que é que era, portanto, cheguei a casa e tive que estar a ver… o que é que aquilo queria dizer, pronto, para perceber. E a partir daí, quer dizer, eu já ia, fazíamos muitas coisas, mas nunca tinha ido a uma reunião… fomos numa altura um… uma… um São João fomos todos para casa da… da falecida mulher do Borges Coelho, lançamos balões com panfletos, aquelas coisas que se faziam, não é. Entretanto, quando fui, mais ou menos… a primeira pessoa que eu conheci foi ali o Edgar Correia, o Edgar que me levou, que eu conhecia daqui e que eu… nessa reunião dos Lysos conhecia o Edgar, conhecia essa gente, pronto. Entretanto, fui andando, fui… andei no Movimento das Mulheres, não fui para a juventude porque entretanto… liguei-me às mulheres, não é, e andei, quer dizer, em reuniões, aquelas coisas que a gente fez durante muitos anos e como dizia o Zeferino Coelho, que eu achava-lhe muita piada, “se a revolução se fizesse com tantas reuniões, já estávamos… [risos] com a revolução feita”, mas era verdade, havia tanta reunião, tanta… e eu ia sozinha, quer dizer, aquilo, não há ninguém ou, quer dizer, nunca conheci ninguém que pertencesse ao partido ou o que fosse… portanto, ia, nunca tive problemas de vir à meia noite, às vezes, o Zeferino esperava que eu me metesse no autocarro para vir para casa, outras vezes, quando era muito mais tarde vinha um outro amigo comigo e depois ia a pé, porque já não havia autocarros ou ficava aí… quer dizer, andei sempre sozinha e nunca tive problemas, mas neste tempo dos meus pais, a minha mãe sempre me mandou, porque ela não queria que eu ficasse em casa, porque eu gostava muito… ficava em casa sozinha, eles iam sair e não sei quê e eu ficava em casa e ela não queria, queria que eu fosse, porque sabia que se eu ficassse sozinha… quer dizer, ficava ali… houve uma altura que eu ficava muito mal, porque eu devorei livros, que é esta a questão, eu devorei livros.
Entrevistadora - Os teus pais tinham muitos livros em casa?
Rosa Silva - Não, os meus pais não tinham livros, tinham muito poucos. O meu pai era um homem que não era da… era da… era desse tempo, não era do tempo em que ele estava, porque era um homem que fazia teatro, era um homem que fazia desporto, era um homem que fazia tudo, que só havia aqui a Rádio Portugal ainda e ouvia-se a BBC e ele mandava pôr o copo em cima do rádio, que era assim que se fazia “anda, põe o copo em cima do rádio” e a gente ouvia, porque o meu pai… o meu pai andou na campanha do Humberto, não pode votar, havia muita gente que não podia votar e ele nunca percebeu porquê, portanto, eles não puderam votar.
Entrevistadora - Qual era a profissão dele?
Rosa Silva - Ele era empregado… comércio… era… na altura… era empregado dos Armazéns do Anjo, ali na Rua dos Clérigos, mas… e a minha mãe era uma mulher… quer dizer, que fez a 4ª classe quando eu fui para a escola, porque ela esteve em Lisboa, viveu em Lisboa, que o pai era militar, o meu avô era militar, quando o meu avô esteve em Lisboa, eles foram todos para Lisboa e vieram para o Porto mais já… a minha mãe tinha a 3ª classe e já não foi para a 4ª e foi trabalhar, portanto, ela começou a trabalhar ela não tinha 11 anos parece… e quer dizer até falecer, no mesmo sítio sempre.
Entrevistadora - Em que é que ela trabalhava?
Rosa Silva - A minha mãe era… a minha mãe era bordadeira, não era bordadeira, era a contramestra das bordadeiras, o que é que a minha mãe fazia? Era uma mulher muito inteligente, uma mulher que gostava da beleza, gostava de… olha eu fui muitas vezes com a minha mãe, aos sábados à tarde, que ela não vinha para casa, era eu que fazia tudo em casa, que ela não vinha com a minha avó… e ou ia para casa de alguém ou íamos passear, a minha mãe mostrou-me os azulejos todos da cidade do Porto, a minha mãe mostrou-me os monumentos, ela adorava… e o que é que ela fazia? Desenhava, e sabes o que é que ela desenhava? Ainda no outro dia mostrei a uma amiga que aqui esteve da Malásia, por acaso.. a minha mãe desenhava… primeiro começou… aos 11 anos andava a destruir a roupa, porque era na Candidinha Alves, que era a casa mais conhecida da cidade do Porto, naquela altura, para a gente… portanto, da elite da cidade e ela mais tarde… como desenhava muito bem, como tinha… passou para os bordados, mas não… quer dizer, bordava, mas muito pouco, o que é que ela fazia? Desenhava as coisas porque faziam-se lençóis, faziam-se vestidos, faziam-se… bordava-se vestidos, faziam-se… lingerie, e ela fazia, porque antigamente naquela época não tinhas uma fotocopiadora para aumentar os desenhos e ela de um pratinho assim fazia uma toalha com o mesmo desenho, fez… pássaros que tirava, que aquilo eram pequeninos, ela aumentava para o sítio onde era preciso fazer o desenho, e ela, portanto, ela adorava tudo o que era… cultura, não é, olha ela adorava a história de Portugal, lia as histórias, mas entretanto o que eu ia a dizer aqui… os meus pais não tinham muito dinheiro, não tinham, então o grupo, aqui este Grupo Recreativo de Aldoar tinha uma biblioteca muito boa e tem livros espetaculares, já tiveram uma exposição… no 25 de Abril ali no coiso, ali na Junta e eles alugavam, quer dizer, iam buscar com o carimbinho, traziam para casa e liam, eu li, os primeiros livros que li de… portanto… os portugueses daquela época, como é que se diz… agora não sei dizer, pronto, não interessa, li o Camilo… essa gente, os principais autores daquela… ali da… ainda tenho aí um livro que ficou, não sei como, que adoro lê-lo que é um brasileiro, que é da Diana Silveira, que é… a Selva, portanto, deu aqui à tempos deu uma coisa na televisão, por acaso, bem retratada, bem retratada do livro, bem, conclusão, aquilo passou… andei. Entretanto, tive o meu pai e a minha mãe doentes a falecer, a minha mãe com 42 anos e o meu pai pouco depois e fiquei… fiquei com a minha irmã, os meus irmãos e com a minha avó.
Entrevistadora - Eram quantos irmãos?
Rosa Silva - Éramos três, portanto, era uma irmã e um irmão.
Entrevistadora - Os dois mais novos que tu?
Rosa Silva - Sim, eu era a mais velha.
Entrevistadora - E era nesta casa que viviam?
Rosa Silva - Todos, vivíamos todos aqui.
Entrevistadora - Então os seus pais vieram para cá também viver nesse final de vida?
Rosa Silva - Não, não… na primeira, naquela casa que a gente estava ali em… na Rua de Vila Nova, eu morava na Rua de Vila Nova, numa casa muito pequenina, mas que para nós… tínhamos um quarto onde eu dormia e o meu irmão, depois nasceu a minha irmã, entretanto, o meu bisavô faleceu e a minha avó teve que sair da casa e a casa era enquanto o meu bisavô fosse vivo, ela não… tinha possibilidades, não quis ficar lá e veio viver connosco, ora, tu estás a ver seis pessoas numa casa que tinha dois quartos, e com a sala… que era mais estreita que isto, era uma coisa… tivemos que mudar de casa, e fomos para a Senhora da Hora, um ano, quando se deu esta casa vaga, foi o meu tio, ali o Granja, que soube e imediatamente foi pedir ao coiso e viemos para aqui viver, eu tinha 9 anos quando vim para aqui viver, a primeira vez, e a minha irmã era pequenina, era pequenina ainda. Ficámos aqui a morar, pronto, esses anos todos, entretanto, os meus pais faleceram e eu fiquei aqui sozinha, o meu irmão ficou extremamente traumatizado com a morte da mãe, foi, quer dizer, a gente toda sentiu, mas ele teve uma reação… andava no décimo segundo, no Liceu de… no D.Manuel, naquela altura e… não acabou, ficou com uma cadeira por fazer, o resto, e foi-se… voluntariar na tropa para sair daqui, foi para fora, ele andou aí em Lisboa, ele era alferes, parece, ou lá o que era, eu nunca percebi nada disso da tropa, é uma das coisas que sempre me meteu muita confusão, era alferes, e foi comandar um... ali para Espinho ou não sei quê, ou não, foi em Lisboa, em Lisboa, numa daquelas já com… aquelas coisas que eles fazem, aquelas provas, ele ficou… armas reais… e ele foi atingido, esteve oito dias em coma sem eu saber, no hospital em Lisboa, veio para o Porto, o Graça disse logo “não o deixem operar, porque se o operam nesta altura ele fica com a perna direita e não pode…”, então não deixou operar, aquilo… aquele material acho que saía, ele tinha assim a cara… tinha a cara toda cheia de estilhaços daquilo, entretanto, ele depois foi para a guerra, quer dizer, acabou por ir para Moçambique, veio de lá completamente… mal, veio de lá muito mal, completamente, porque… ele era alferes e ia num batalhão e ficou ele e um outro, o resto morreu tudo, e ele teve que trazer as coisas de um que viu morrer para a família, para a filha não sei quê, ele ficou completamente traumatizado… isto, ele veio em 73, se não me engano, ou foi antes do 25 de abril que ele veio. Entretanto, dá-se o 25 de Abril e eu vim para aqui, mas vim para aqui de uma forma que foi assim… o 25 de Abril… mas antes do 25 de abril, mas antes, ao início da festa, eu fui para a clandestinidade com o Ernesto, que vocês já conheceram, eu fui para a clandestinidade ali para… Ermesinde, não era Ermesinde, era Travagem, para uma casa para a Travagem que… a casa ficava para o lado do rio, tinha que se atravessar o Rio Leça, a linha, e o Rio Leça era ao lado e, portanto, fomos viver para ali e ao fim de oito dias ou não sei o quê a gente chegou ali como se fossemos um casal que fomos para ali viver, não é, ao fim de oito dias ou quinze, ele teve que ir para fora, foi para a União Soviética, foi lá para uma reunião qualquer e eu… tive que sair dali, não podia ficar ali, porque parecia mal, então estávamos em lua de mel, ele na União Soviética e eu ali na Trofa [risos] em casa de uns amigos, uns amigos eram extremamente simpáticos e os tipos… eram 28 de Maio, eu sei que estavam lá porque fomos dar uma volta e a polícia mandou-nos parar e eles ficaram muito aflitos, porque eu ia no carro, não é verdade e, entretanto [risos], de vez em quando iam lá os irmãos da Teresa Lopes, ora eu conhecia os irmãos da Teresa Lopes e nós… quer dizer, em manifestações, em reuniões, em não sei quê a gente encontrava-se todos e eu dava-me muito bem com a cunhada da Teresa Lopes, que era a que vinha aqui, e com a Cristina Figueirinhas que era a filha do… do dono da Livraria Figueirinhas, ela morava ali em Marechal Gomes da Costa num grande prédio, numa grande casarona, mas ela vinha sempre ter aqui comigo, para irmos as duas, eu gostava imenso da Cristina, conclusão… nós… já não sei o que ia a dizer com isto… ah nós lá montamos a casa, não é, a casa já estava montada quando eu fui para lá, mas eu nunca tinha visto uma casa com uma cozinha tão porca na minha vida, a sério, não tínhamos nada na cozinha, tínhamos tudo numa sala, que não se conseguia… eu raspava o lixo, já tinha sido limpo, segundo o que eles disseram, tinha sido limpo antes de eu entrar na casa, quer dizer, estivemos lá ainda durante uns tempos, onde se faziam as reuniões. Era na nossa casa que se faziam as reuniões que… clandestinas, vinham… vinha pessoal de Lisboa, com o Zé Carlos de Almeida… com o… mais tarde, com o… ai fogo, eu digo-te já, o Zé Carlos de Almeida e onde vinham os jovens que tinham, que iam lá para a reunião, pronto, era o Júlio, que vocês não conheceram, que saiu da clandestinidade há muito tempo depois foi… era cartoonista, fazia… ele, o Nelson Bertini, que foi muitas vezes a minha casa, o… o Martins, o Avelino Martins, sei que eram assim vários, um que vinha de Lisboa e que já não me lembra o nome… era um que eu não gostava nada, a sério, irritava-me aquele indivíduo, prontos, mas faziam-se as reuniões ali. E estávamos ali muito bem e, entretanto, o Júlio foi preso, o Júlio foi preso e sabia onde era a casa e como sabia onde era a casa… o Ernesto nunca mais lá ficou, acabou-se, e eu fiquei lá sozinha, na casa, portanto, eu tinha que estar sempre, até… à espera de se arranjar outra casa para a gente desaparecer dali e tinha que se fechar as mobílias, aquelas coisas assim que se fazem, pronto, arrumar aquilo tudo, e eu fiquei naquela casa. Eram três horas da manhã, um dia, passado uns dias… batem-me à porta [silêncio] e o que é que eu pensei… a gente ficava, com certeza já ouviste falar nisso, ficávamos com um bocado de álcool e fósforos, com os documentos que tínhamos em casa, para pôr o fogo… e eu fiquei a pensar “o que é que eu faço?”, bem, mas eu fui sempre assim um bocado com calma, nesse sentido, eu sou, sempre fui… era um bocado o que o Ernesto dizia “eu, às vezes, não percebo como é que consegues”, mas ficava, pronto, um bocado calma e… fui à porta, eu trancava as portas, não sei se te disseram isso também, portanto, as portas da rua, nós tínhamos uma parte de madeira para que enquanto a PIDE amassasse, conseguisse abrir a porta, aquela madeira não deixava, tínhamos uma tranca de madeira e ela… quer dizer, e eu meti e ouvia… “ó Sãozinha” e eu “ó Sãozinha? Espera aí”, isto era uma mulher “ó Sãozinha”, aquelas portas tinham um postiguinho, abri o postiguinho e vi, pronto, vi logo que não era, era um táxi com a Sãozinha e diz ela “ó Sãozinha”, era uma senhora que tinha chegado de França e que ia ficar na casa da Sãozinha, só que a Sãozinha já não morava lá [risos] conclusão, disse “não, eu sei que ela mora ali”, eu sabia que me tinham dito que ela morava lá para cima, que ficava mais para cima, mas não sei, não faço a mínima ideia, “ah desculpe e tal”, pronto, e eu fiquei “pronto, desta já me safei”
[risos]. Ao outro dia fui ter com o Ernesto, à praia, e estive-lhe a contar “olha passou-se isto assim assim”, “e o que é que tu?”, não podia fazer nada, quer dizer, eu não ia abrir a porta nem ia fazer. Fiz as coisas todas direitinhas, fui arranjar uma casa onde pudéssemos guardar a mobília… lá encontrei, agora passo muitas vezes por lá e acho piada, porque agora aquilo é uma clínica de veterinária, é uma casa que fazia assim redondo, e faz, e, portanto, é uma clínica veterinária nesta altura e… quer dizer, arranjamos para pôr lá as mobílias, porque não se podia levar a mobília connosco e lá fomos… [risos] Conseguimos, fomos, andamos em São João da Madeira, não, primeiro em Santo Tirso, não é, a uma série de sítios arranjar uma casa, pronto, conseguimos uma casa em Gondomar, uma casa que estava mais ou menos segura, muito porreira, onde se faziam também as tais reuniões com os jovens, com o Zé Carlos e com o… ai pá… como é que se chama o amigo? Já faleceu… era o amigo da Tengarrinha, o último marido da Tengarrinha… não era o pintor, não… era o outro [risos], pera aí… é da família da Helena Meira… como é que ele se chama… o Carlos Costa, fogo, caraças!
Entrevistadora - Então eram reuniões feitas com o Zé Carlos de Almeida…
Rosa Silva - E com o Carlos Costa. Acontece que… quer dizer, naquela casa houve lá imensas reuniões e depois aquela questão do Martins e… uma vez, foi o Ernesto, foi buscar, quer dizer, os amigos tinham que ficar quilómetros longos antes da casa e tinham que ir com os olhos vendados, não sei se também já te falaram nisso, eles tinham que ir com os olhos vendados e um dia que o Ernesto ia com o Martins e o Martins foi contra uma… um poste [risos] e eu, da outra vez, fui eu que fui buscar o… o Nelson Bertini, e o Nelson eu já conhecia há muitos anos, nós éramos amigos, andámos, fazíamos reuniões só, eram eles, aquela malta, o Sérgio, o Júlio, essa gente toda… que nós fazíamos as reuniões normais, não é…
e fui com o Nelson e achei muita piada, porque quando vi que era o Nelson deu-me uma vontade de rir, ele nem sabe com quem vai [risos] então eu lá o levasse e eu perguntei-lhe “olha lá e as tuas motas?” e ele ficou, eu sabia que ele que adorava motas, “ainda andas de mota?” e ele era assim “mas, fogo que raio… ando!”, “e está tudo bem?”, foi ali uma conversa com ele pelo caminho todo, que aquilo ainda era ali, até lá em cima à casa ainda era ali um bocado grande, quer dizer, quando subimos as escadas, aquilo era no 2º andar, no último andar, tínhamos que subir pela escadaria e depois só tirava a venda dentro de casa, quando chego a casa… quando ele me viu… ah… [risos], quer dizer, e não contava nada comigo ali, percebes, mas teve muita piada aquilo. Entretanto, nessa casa que estávamos muitíssimo bem nessa casa… foi quando eu fiz, eu trabalhava, eu fui das únicas mulheres dentro de casa que tinha tarefas, que era bater todos os documentos que vinham, a informação, numa… na máquina de escrever, portanto, não sei se vocês conhecem, era uma máquina dentro de uma caixa, toda forrada, para não se ouvir o barulho da máquina e… com aquele papel, de não sei quantas… de químicos para fazer não sei quantas cópias, [impercetível], pá, eram seis cópias, às vezes, a última quase nem se lia, mas prontos… e eu batia as informações todas e, digo-te uma coisa, uma das coisas que eu tinha que eu tenho pena de perder era esse tipo de informações, dos PIDE’s, de toda aquela gente… que emprestei para ler e nunca me entregaram e deixaram-me fugir aquilo, foi das coisas que eu nunca mais tive e que fiquei com pena foi disso, bom, e eu fazia essas tarefas, ia distribuir os Avantes aos camaradas que estavam na clandestinidade, ao Timóteo, ao… era o Timóteo e era o outro… era o tal que já não sei como o amigo se chamava, que era o tal amigo que também ia para lá… o Timóteo como… esse Júlio que foi viver para a casa do Timóteo quando… fugiu da prisão e foi viver para a casa do Timóteo, que ele vivia com a… a Sara, que era outra amiga, entretanto, o Júlio e a Sara fugiram e deixaram o Timóteo [risos], pronto, o que é que acontece? O Timóteo foi viver para minha casa, o Timóteo, desgraçado do Timóteo, esteve em minha casa uns meses sem olhar para a rua, não é, sempre dentro de casa, deve ter sido uma coisa… e depois eu ficava muito irritada, porque eu era muito organizada nas coisas e ele… punha fora e não sei quê, e eu ficava sempre aflita, se acontecesse alguma coisa eu não tinha tempo sequer para… e tinha sempre uma casa muito bem arrumada, porque um dia o senhorio entrou-me lá, não é [risos] e eu tive que deixar o senhorio entrar, e ele adorou a minha casa, não estava ninguém naquele dia, foi um fim de semana, o Ernesto estava em reuniões fora e eu estava sozinha e o senhorio bateu-me, eu tinha sempre a casa arrumadíssima, prontos, e com coisas muito engraçadas, porque… Quando fomos então para a casa, lá para… tivemos que ir comprar outras mobílias, fazer outra casa, comprar mobílias novas, aquelas coisas, olha era um quarto lindíssimo [risos], que são mil euros… mil escudos, naquela altura, eram escudos [risos] e que nós chegamos e estivemos a pintá-la, eu e ele, pintá-la de branco com um fiosinho castanho, tanto que quando se deu o 25 de Abril houve alguém que a quis, porque ela estava mesmo bonita, o raio da… portanto, eu tinha sempre a casa muito arranjada, e o senhorio entrou e andou a ver a casa, porque o senhorio estava no Brasil e veio… quis conhecer as casas, era um senhor que tomava conta e quis conhecer as casas e viu a casa, pronto, ficou tudo impecável e eu nunca tive esses problemas. Entretanto, havia ao lado… a casa eram três entradas, portanto, eram três… cada casa, cada entrada tinha dois andares, eu morava no do meio, na de cima morava um bancário, que era muito boa pessoa e nunca tive problemas com esses vizinhos e, num primeiro andar, morava uma senhora negra que era a dona do bar, que era ali… na Circunvalação, tinha aqueles bares antigos, onde os jogadores do Porto, pelos vistos, eram muito frequentes e ela contava muitas histórias, mas… um dia, com uma reunião lá em casa, cheio de gente… vai-me bater à porta e eu fiquei um bocado… o que é que ela queria? Queria… nós tínhamos garagem, queria que eu lhe alugasse a garagem, porque ela queria lá meter as coisas do bar no inverno ou não sei o quê e eu disse que não podia, quer dizer, que tinha que falar com o meu marido e tal… entretanto, ela começou a dizer que a gente estava lá ou que eu estava lá por conta de um velho e de um novo, ela era assim uma coisa um bocado esquisita… eu vivia ali naquela casa por causa, por conta de um velho e de um novo, quem era o velho? Era o Zé Carlos de Almeida e o novo era o Ernesto, ela via entrar aqueles dois homens ali tantas vezes… o Zé Carlos de Almeida ia lá muitas vezes… pronto. Entretanto, as coisas que a gente tinha que fazer numa casa clandestina era... ter a casa arrumada, era quando iam lá os amigos, principalmente, o Carlos Costa tinha que ir pôr um sinal na parede, longe, para ele entrar…
Entrevistadora - Quais eram os sinais que colocavam, lembras-te?
Rosa Silva -
Era um papel com qualquer coisa assim numa… numa… num canto de uma… como é que se chama… de uma parede onde a gente combinava e se aquele sinal, que ele tinha colocado, o pano, o papel ou qualquer coisa que lá estivesse, ele podia entrar. Um dia, eu fiz… que ele ia lá, o Ernesto tinha que ir para uma reunião não sei para onde, ele veio para Gaia, e nós saímos os dois e eu deixei logo ali o papelinho para o Carlos Costa entrar e o que é que eu fui fazer? Porque entretanto… o… Timóteo deixou… o Timóteo e não só, deixaram de me aparecer para recolher os Avantes e eu não podia estar com aqueles Avantes todos em casa, então da primeira vez lembrei-me de uma coisa que foi mexer os Avantes com… com lixívia para desfazer e água quente e metê-los pela casa de banho abaixo, sabes o que é que aconteceu? Entupi a casa de banho da vizinha de baixo [silêncio], pelos vistos, depois o Carlos Costa é que disse “ó rapariga, tu não podias fazer isso, porque aquilo fica como um cimento”, quer dizer, mas como a senhora da casa de baixo tinha duas crianças ela achou que tinham sido as crianças que foram lá pôr aquilo, que meteram para lá coisas e eu “prontos, desta estou livre” [risos], naquela. Entretanto, também naquela casa… uma vez fui buscar o Rui Pato, fui buscar a mala do Rui Pato ao centro de São Cosme, é… São Cosme ali, aquele largo do São Cosme, ali em Gondomar… e eu tinha que ir lá buscar a mala, portanto, ir para casa com aquela mala, pá, e fomos… eu não tenho força, nunca tive… a mala pesava, eu via-me aflita para chegar com aquela mala a casa, mas… lembrei-me agora desta, porque me lembrei de outra, antes do 25 de Abril… já ligada ao partido, disseram para ir buscar uma mala aqui para casa a… a Gaia e eu fui buscar aquela mala, era uma mala assim, o que é que… era uma daquelas fotocopiadoras antigas e a mala vinha, normalmente, sem nada e eu lembro-me que havia… [risos] o primeiro hippie que eu conheci na minha vida [risos] que era um jovem que era ali da Foz e que era assim meio maluco, mas tinha uma certa piada, ele queria… encontrou-me “ah eu ajudo-te a levar” e eu não queria, eles disseram “não deixes passar a mala para a mão de ninguém” e eu “não, não, isto é levezinho” e aquilo era pesado para caraças para mim, sabes, o que eu queria era vir embora com a mala… depois fiz muitos panfletos aqui em baixo, muitos, para manifestações, para São Joões, durante a noite, de manhã desfazia a cama para que a minha avó não percebesse que eu não tinha ido à cama, fazia… tomava dois cafés, fortes [risos] para aguentar o dia, se não, não conseguia.
Entrevistadora - Então tu tinhas que idade? Tu terminaste a escola… estiveste até que ano na escola?
Rosa Silva - Eu fiz até… olha, fiz, ainda bem, o único coiso, eu digo ainda bem… tinha para aí… 11 anos, porque eu repeti a 3ª classe e foi a minha sorte, sabes… eu digo perfeitamente que foi a minha sorte, porque a 1ª classe foi horrível não aprendi nada, a 2ª classe metade da 2ª classe fui para a Senhora da Hora, fiz metade numa escola, e a 3ª classe fui fazê-la para outra escola e acabei por fazer metade da classe, a 3ª classe para vir para aqui para fazer o resto da 3ª classe e a professora disse que eu não sabia, e não sabia, é verdade, eu dava erros que ainda hoje continuo a dar, mas pronto, agora nem é por isso, é porque, de facto, chega a uma certa altura… até falar, eu agora tou a falar pe pe pe até me admira, mas… eu tenho ocasiões que nem consigo falar, a pressão… aquela pressão que eu tive, aquela… aquele trauma que eu tive em miúda fez-me muito muito mal e, portanto, eu hoje falo e vou falando e tal, não é, mas… agora até falo demais, estou muito sossegada, muito calma [risos], não tenho nada que me chateie na vida, é verdade, portanto, até falo demais, mas pronto o que eu estava a dizer com isto é que…
Entrevistadora - Tinhas o 4º ano e depois?
Rosa Silva - Tinha a 4ª classe e depois fiz a 4ª classe, repeti a 3ª classe e a 4ª classe com uma professora espetacular, a professora lembro-me de a gente perguntar “o que era a política?”, a gente perguntou-lhe, e ela explicou de uma forma impecável, que era… olha, a política é tudo o que a gente possa… neste momento em que se a gente fizer qualquer coisa, pá, qualquer coisa, tu estares a dizer mal ou estares a dizer que não gostas disto ou daquilo… podes ser presa, podes ser aquilo, porque estás a favor ou contra o regime… por isso, a política é tudo o que a gente faz, dizia ela, todos nós, a nossa vida vai ser sempre em política, porque todos nós… as nossas atitudes vão… dizer se és contra ou és a favor ou… o que tens que fazer para sobreviver, ela explicou-nos isto, no fim da 3ª classe, e eu lembro-me que depois fui para a 4ª e ela… quer dizer, na 4ª ela dizia, quando nos estava a… a… já não és desse tempo, mas na nossa 4º classe a gente tinha que aprender os caminhos de ferro e os… e os… e os rios, e ela dizia assim “porque é que vocês precisam dos caminhos de ferro?” [risos] “e depois quando lá chegarem aquilo já nem há”, dizia ela, “e os rios? para quê? em vez de vos dar…” e então ela começou-nos a dar ou quase o primeiro ano da… do liceu, porque quando o meu irmão foi para o liceu, eu consegui explicar-lhe algumas coisas que ela naquela altura nos… matemática e não sei quê, porque nós não tínhamos nada, aquilo era horrível, a escola era horrível, eu até tenho ali um livrinho que até dá vontade de rir, que ensinavam até a limpar as cadeiras, ensinavam… não é, era isso, epá, é horrível, bem, mas conclusão vamos terminar, senão…
Entrevistadora - Terminaste a 4º classe então?
Rosa Silva - Foi, só.
Entrevistadora - E depois foste trabalhar, logo a seguir?
Rosa Silva - Quer dizer, andei aqui um anito de um lado para o outro, aqui em casa, aqui na vizinha a aprender a bordar, a aprender… e depois fui trabalhar.
Entrevistadora - Foste fazer o quê?
Rosa Silva -
Costura, porque era a minha sina, porque era assim, o meu irmão ia para o liceu, porque era um rapaz e era muito difícil arranjar um emprego, eu já sabia que ia trabalhar com a minha mãe para a Candidinha Alves, pronto, e depois a minha irmã queria ser cabeleireira, pronto, nós as raparigas era assim, tínhamos que arranjar uma coisa, porque não havia dinheiro para nós fazermos… para irmos estudar, não é, prontos e fomos porque não havia possibilidades e mesmo assim o meu irmão foi com muito sacrifício, não é, prontos, mas… depois andei a trabalhar, aos 11 anos fui para uma senhora, para o bairro onde morava a tua avó, ali o bairro da Previdência, fui para aí para uma senhora, que nunca mais me esquece, que era casada com um sujeito que tinha sido gente muito fina da Foz, mas que foi à falência e já viviam muito mal, não é, portanto… estavam ali a viver e depois eles foram para a Foz e eu fui atrás deles para a Foz, alugaram lá uma casa, que se via para o mar, por acaso, na Senhora da Luz e eu fui com eles.
Entrevistadora - Eras empregada doméstica?
Rosa Silva -
Não.
Entrevistadora - Ou o que é que fazias lá?
Rosa Silva - Fazia costura.
Entrevistadora - Era costura só para eles?
Rosa Silva - Não, não, era costureira para fora e estava a aprender. Entretanto, ela tornou a vir para o bairro, saiu de lá e veio novamente para o mesmo bairro, mas eu já não vim, porque nessa altura… ah entretanto, no meio disto tudo, quer dizer, o meu pai estava sempre doente, o meu pai passava a vida nos hospitais, porque ele tinha… depois é que se soube o que era, era epiléptico, mas ele tinha um tumor na cabeça que lhe fazia… naquela altura, não se detetava e mesmo acho que não podiam fazer nada no sítio ou não sei quê, acho que aquilo era horrível, tinha casinhos em que ele andava aqui e só dizia “ai filha, eu só queria era bater com a cabeça, rachar a cabeça”, que as dores eram tantas que ele dizia isso. Entretanto, quer dizer, os meus pais… fui para a Candidinha, mas antes de ir para a Candidinha, porque a minha mãe não queria que eu fosse para lá antes dos 15 anos e porquê? Porque se eu fosse para lá antes dos 15 anos, eu tinha que andar a distribuir roupa na rua, ou seja, com as caixas enormes, às vezes, até às tantas da noite a levar os vestidos e as coisas às senhoras… e a minha mãe não queria, e como ela não queria, só me queria meter lá aos 15 anos. Entre este tempo fui… estive… para aí 3 meses em Riba d’Ave, em casa dos Ferreiras de Riba d’Ave, porque a minha tia era lá costureira e eu fui para lá ajudá-la a fazer os vestidos e umas coisas para um casamento lá de uma sobrinha, depois vim, e não tinha emprego, fui pedir emprego ali a uma… a uma casa… a uma fábrica que existia ali ao início… onde hoje… ali ao início da Senhora da Hora, aqui na Senhora da Hora, na Circunvalação, onde é hoje a Estelle ou que é que é aquilo, quem vai para o Continente, aquela casa ali, prédio grande, mas no início era uma fábrica, e eu fui lá pedir e os senhores disseram que naquela altura não tinha, não tinham para meter ninguém nem nada, entretanto, eu peguei e fui à Ambar, vocês isso conhecem de nome, pelo menos, fui à Ambar e expus o meu… ó… era Jaime Balbedo, nunca mais me esquece, que era um gajo do teatro que trabalhava… que era o que tratava do… do… do pessoal e eu fui lá, pedi e disse “olhe, o meu pai está assim, está outra vez no hospital”, porque ele passava a vida no hospital, quer dizer… “e precisava de um emprego” e não sei quê e eles “sim senhora”, deram-me, fui para lá fazer aquelas capas que vocês conhecem que tem o… elefante, que tem não sei o quê, que tem aquelas coisinhas à volta… e era eu que fazia aquilo assim às voltas… e depois estava lá, aquilo não era nenhuma… profissão, não é, e o Jaime Balbedo, porque eu estava muito caladinha, não falava e estava ali e fazia aquilo… o Jaime Balbedo achava que eu devia ter uma profissão e então levou-me para fazer carteiras de senhora, que também se lá faziam, fazia-se tudo lá, fazia-se carteiras de senhora, fazia-se imensas coisas, faziam-se… e tinha uma tipografia, na parte de baixo, eram tipógrafos e não sei quê… e ele levou-me para a beira das carteiras, epá, aquilo para mim foi uma coisa horrorosa, aqui em casa nunca ouvi dizer uma asneira, percebes, os meus pais nunca disseram uma asneira nem ninguém e quando eu ouvi assim “merda” sinceramente chorei, porque era uma asneira para mim enorme, vou para ali e era cada palavreado pá… eu fiquei completamente… porque, entretanto, havia as mulheres que estavam a fazer as carteiras, eu estava a aprender a fazer as asas das carteiras, primeiro, e havia indivíduos à frente, que já nem sei que secção era, porque aquilo tinha muitas secções, a secção ao lado já não sei, sei que eram homens e aquilo o palavreado entre os homens e as mulheres, eu ficava… olha eu vinha de Riba d’Ave com… aquilo… os meninos eram tratados por você, todos nós nos tratávamos, nunca se tratava ninguém por tu… e ali com aquela gente, que, por acaso, digo que foram extremamente simpáticos comigo e eu estava lá quando se deu… a invasão de Timor e… eles tinham um rádio amador e, à noite… eu ia ver televisão com eles para a sala da televisão e davam-me café e não sei quê… a coisa da rádio era ao fundo da sala da televisão, eu lembro-me de no fim sair e vir dizer isso, lembra-me perfeitamente daquela história, foi a primeira vez, quer dizer, que ouvi e depois começou-se… quer dizer, estás a ver, eu vinha ali daquela casa cheia de truques e não sei quê e vim para ali ouvir aquele palavreado todo foi uma coisa… eu andei ali mais tempo… e depois fui procurar, por acaso, outro sítio para ir… e fui ali na… Pinheiro Manso, do lado de lá, agora já não existe, já não existe nada, havia uma fábrica que era… que se fazia… coisas para bebes, os chambrinhos e aquelas coisas… e fatos de banho, por aí fora… então eu fui lá pedir e o sujeito meteu-me, e eu fui ter, foi a única pessoa a quem eu fui dizer, fui ter com o Jaime Balbedo e disse-lhe “pá, eu não me sinto bem, portanto, isto não é para mim, eu vou ter uma profissão”, agradeci-lhe por ele me ter deixado lá entrar, que estive lá ainda uns meses, “mas arranjei outro sítio onde eu me sinta melhor, porque aqui de facto com este palavreado eu não consigo”, então fui trabalhar ali para aquela fábrica, o que é que acontece? Era tdo io do Sá Carneiro, o dono da fábrica, era um velhote… abusava das miúdas… fez-me isso a mim também, apalpou-me os peitos… havia lá uma miúda que era uma miúda de 12 anos e que parecia que tinha para aí 15, tinha um corpo maior do que o que tu tens hoje, epá, aquela miúda… e ninguém, naquela altura ninguém fazia queixa, não é, naquela altura ninguém fazia queixa. Entretanto, eu fui então para lá para o lado de uma senhora que me adotou, no fundo, que foi isso… [risos] pôs-me ao lado dela, eu estive ao lado dela, eu como estava sempre caladinha fazia, porque aquilo era para pôr umas fitinhas nos chambrinhos e a gente estava ali a coser as fitinhas, aquilo tinha por [impercetível], tínhamos que fazer não sei quantas por dia, portanto, aquilo ali… portanto, havia uma jovem que não fazia, que não sabia… então ele chamou-me, quer dizer, chamou-a a ela e chamou a mim para ver como eu fazia, como eu… entretanto, essa senhora era mãe de um jovem que foi jornalista, que tu tens hoje a rua, ali… em frente ao CLIP há uma rua, que de repente não me lembro do nome dele… era o filho dessa senhora… às vezes levava-me a casa comer com ela, ela morava num sítio estilo ilha também, mas eram umas pessoas muito simpáticas, conclusão disto tudo… já me perdi… no meio disto, onde é que eu ia? Conclusão, era na casa de Gondomar…e então essa gente de Gondomar começou a dizer que eu que estava ali por um indivíduo novo, um velho… e a gente começou a ver… e por causa da senhora, porque era ela que inventou, e a senhora de cima era uma excelente pessoa, nunca tive problemas com ela, também falava pouco, não é, mas um dia quando estávamos a fazer um desses livrinhos, eu tinha batido uma coisa sobre a Paz, eu e o Ernesto estávamos a fazer um desenho para pôr numa capa muito bonita, que estava… quer dizer, pus uma coisa ao fogão, era um fogão a gás e esqueci-me daquilo… cafeteira, aquecer água para fazer uns cafés… opá a cafeteira ficou a meio e foi a senhora do lado que me veio chamar… que bateu nas paredes, porque aquilo… o gás saiu e a cafeteira ficou a metade, esquecemo-nos daquilo, pura e simplesmente… entretemo-nos com aquilo e nunca mais pensamos… conclusão desta história, quando o Ernesto saiu teve-se que sair outra vez dali… teve que andar de um lado para o outro atrás de casa, portanto, andamos atrás de casa e… acabamos por ir para São João da Madeira, em 6 de abril de 74, imagina… mas entretanto, o que é que eu estava a contar? Os Avantes… eu não contei o resto da história dos Avantes, a história dos Avantes, a primeira vez foi isso, uma segunda vez, fomos levá-los… amassamos e não sei o quê e fomos levá-los a uns caixotes do lixo a Melres, assim muito longe, fomos levá-los e metemos no caixote do lixo, a terceira vez, a terceira vez… ele ia para Gaia e então resolvemos e fomos até ao Freixo no autocarro, ele saiu e foi a pé e eu também saí com ele e fomos a pé por ali fora e eu levava dois sacos, um saco cheios de Avantes, para quê? Porque queria me desfazer deles e ia atirá-los ao rio, ele foi-se embora e eu fui muito calma… entretanto, olho para todos os lados, não vejo ninguém e chego à beira do rio e tumba atiro e nisto não sai uma sujeita lá de uma quelha, que eu não sabia que existia… mas que entretanto eu venho para me meter no autocarro, que ia do autocarro a pé até certo ponto, e… a mulher entra no autocarro e diz àquela gente que estava a meter uma criança ao rio [silêncio], estás a ver, portanto, a situação… o que é que eu faço? “Não era nada, o que eu fui deitar ali era lixo” não disse o que era, disse que era lixo “atirei… não devia fazer isso, mas olhe apeteceu-me e atirei o lixo”, entretanto, como eu já tinha posto o papel para… o que é que acontece? “o que é que eu faço?”, pensei eu, porque a mulher não se calava, dizia que eu que tinha atirado uma criança ao rio… bem, eu meto-me no autocarro e tal… em vez de seguir, cheguei ao Freixo e sai e em vez de ir para Gondomar, entrei para Campanhã, para o outro lado, andei ali a dar voltas e voltas… entretanto, o Carlos Costa veio, o Ernesto já estava em casa, entretanto o Ernesto chegou, o Carlos Costa viu o sinal e foi, ai, não, minto… eu cheguei antes do Carlos Costa, foi isso, e eu fui para casa… quer dizer, andei ali a dar voltas e depois lá fui até casa, e depois cheguei a casa e estava aflita e disse ao Ernesto “aconteceu isto assim assim” e depois… “o que é que tu fizeste?”, “eu andei a dar voltas e não vim…”, já me tinha acontecido isso uma vez que fui comprar papel a Álvares Cabral, andava em Álvares Cabral e vejo um gajo que eu conhecia, porque eu antes de vir para a clandestinidade, estive em Caxias, no bairro dos guardas, portanto, aconteceu uma coisa muito engraçada e conheci alguns PIDE’s.
Entrevistadora - Porque é que foste para lá?
Rosa Silva - A minha irmã casou-se com um… ai… com um guarda da prisão de Caxias, queres melhor? [risos] A minha irmã casou-se com um guarda, aconteceu aqui uma desgraça, eles estiveram cá em 71, nos fins de 71, e estiveram cá a fazer uma exposição com uma série de
bestial que eu conheci, tenho aí fotografias deles com quem andei e que… porque pensavam, sabes como é, naquela altura, naquela altura e nesta, quando vêm uma rapariga, e agora nem tanto, quando vêm uma rapariga sozinha, ir à noite e andar com este e com aquele, quer dizer, acham que é tudo outra coisa, não é, pronto, e nós… eu comecei-me a dar com aquela gente e fizémos… e andei com eles a montar a exposição, era gente tudo das artes gráficas, tenho ali um livro com essa gente toda, com o que fizémos ali na Bolsa, pronto, no… como é que se chama… naquele… no… na Bolsa que a gente vai ver… o Palácio da Bolsa, prontos, tem aquela sala lindíssima e nós estivemos lá a montar uma exposição e foi… e depois andaram lá a montar esta exposição, que era gente de Lisboa, que era da escola e da Gulbenkian que andaram a montar essa exposição aqui, portanto, eu conheci imensa gente porreira… e que depois então a gente ia à noite… os meus pais nunca me impediram, mesmo quando eles eram vivos, o sair à noite, nunca tivemos esses problemas, porque eles sabiam que a gente se comportava e que a gente, pronto… e nessa altura, quer dizer, houve um dos meninos que eram de lá, começou a andar com a minha irmã e engravidou-a, pura e simplesmente, e ela teve que casar, e ela casou, ele veio buscá-la e casou, teve de ir para lá, ele era filho de um guarda… entretanto, nessa altura, quando eu lá fui, fui antes, ela casou no início de 72 em Fevereiro e eu em Abril fui para a clandestinidade, na altura, eu fui lá antes para… para dizer que ia para a França, que ia uns tempos para a França e… estava lá quando houve uma explosão, porque… não sei se conheces Caxias, Caxias tem a prisão e tem o hospital de Caxias do outro lado e o bairro fica a meio, no meio entre aquelas duas, acontece que… houve uma explosão na… na… no hospital, onde estava o Guilherme Costa Carvalho, o filho da Herculana, onde estava o Dias Lourenço e estava mais gente nossa e foi na ala onde eles estavam, mas não foi… porque eles fizessem nada nem nada, porque eles nem saíram do sítio, porque entretanto o… lá o sogro da minha irmã era guarda na cadeia e ele pediu que não aguentava… os gritos, as… portanto, as torturas que faziam, ele pediu para passar para o lado da cadeia e ele estava do outro lado, e eu digo que se aquilo não tivesse acontecido eu tinha ido visitar o… o Guilherme Costa Carvalho, porque tinha-lhe pedido e ele era capaz de me meter lá dentro, porque ele era um homem… o filho mais novo recebia o Avante lá em casa, recebeu sempre o Avante lá naquela casa, portanto, era um homem… quer dizer, era o trabalho dele, mas não… e a mulher ia levar, muitas vezes, comida às presas e, portanto, no meio daquilo tudo houve a explosão e o que é que fizeram? Vedaram o bairro todo, portanto, nós para sairmos tínhamos que dar o bilhete de identidade ou o meu cunhado é que tinha que dar para poder sair e entrar ali para a casa e, portanto, aquilo ia dar ao bairro e depois tem o portão de Caxias, na entrada, e ele ia dar… a volta ao carro sempre ali à beira do portão e foi-me mostrar um dos PIDE’s mais… naquela altura, era o Gonçalo… agora não me recordo do nome dele, mas aquela cara ficou-me. Um dia eu andava… porque andavam atrás do Ernesto nessa altura… ali em Costa Cabral e à beira do… do
hospital… como é que se chama… lá em cima… o hospital… que era dos malucos, pronto, já não sei, tu sabes, estás a ver onde é. .
Entrevistadora - O Conde Ferreira.
Rosa Silva - O Conde Ferreira, pronto, andavam ali naquela zona e eu fui comprar papel a Costa Cabral, havia um sítio onde a gente ia comprar o papel, o senhor já sabia e tal, que era amigo, eu vou… e saio do autocarro e começo a andar por Costa Cabral fora e vejo aquele homem, atrás de mim, e eu assim “será que o homem sabe?” andei, andei, andei… resolvi andar para trás, tipo para uma casa e meti-me lá numa casa, tive para aí meia hora, dentro da casa, à espera a ver se o homem ia embora, quando saí já não vi, vim para baixo, comprei o papel, fui por aí a cima… e o Ernesto já estava a ficar aflito, sozinho, “o que é que aconteceu?”, “olha aconteceu isto assim assim não podia vir para casa nem sair dali”, não é, porque nessa altura tinha havido aqui uma série de prisões de jovens e que denunciaram o Ernesto… a pasta, a pasta do Ernesto, que era do meu tio [risos], que era ali do meu tio, que me tinha oferecido [risos] e eu tinha levado a pasta e era ali a pasta do meu tio Granja, conclusão, e, portanto, eu cheguei a casa e ele já estava a ficar, pronto, nessa altura… não aconteceu nada, não é que na altura do… da criança, eu cheguei a casa muito aflita, entretanto chega o Carlos Costa e… dizia o Ernesto “e agora?”, “ah já lá está”, “o sinal como é que vamos fazer?”, “agora, para já”, quando o Carlos Costa chegou estivemos a analisar… a situação, a ver se a saca de plástico onde eu tinha se tinha alguma coisa dos supermercados lá do sítio, não tinha, era uma saca branca, felizmente, nem que fossem lá prontos não sabem de onde é que vai a saca, pronto, aquilo passou-se, mas eu era conhecida, em Lisboa, depois do 25 de abril, após o 25 de abril, antes do 25 de abril e quando cheguei, a primeira vez que me apresentaram, foi… a menina que pôs a criancinha ao… rio [risos], uma criancinha ao rio, passado, quer dizer, entretanto tivemos que sair daquela casa, por causa das senhoras e fomos… arranjamos a casa em São João da Madeira, no dia 6 de abril fomos viver para São João da Madeira. Na semana seguinte ou duas semanas a seguir era a Páscoa, foi na Páscoa, a gente não podia ficar em casa, porque parecia mal, toda a gente abria a porta ao padre e a gente não ia abrir ao padre, então fomos passar o dia, que estava um dia espetacular, por acaso, fizemos um picnic numa praia, de Espinho para lá, por acaso já não me lembro do nome da praia, a ver se hei de ir ver, não hei de ir naquele comboinho que tem muita piada, aquele comboinho, já várias vezes estive para lá ir, mas um dia destes hei de ir mesmo naquele comboinho para ver como é que é São João da Madeira, aquele comboinho de Espinho a São João da Madeira, e… saímos ali e passamos ali a Páscoa, não é, prontos, viemos… e nessa altura o Ernesto “vai acontecer qualquer coisa, não sei o quando, mas vai”, disse-me ele no dia 6, naquele dia, portanto, viemos para cá, aquilo passou-se e nós nessa altura ainda não tínhamos contacto com ninguém, tínhamos passado para lá no dia 6 de abril, ainda ninguém sabia onde ele estava nem nada. No dia 25 de manhã, vou comprar pão, saio de casa, morávamos atrás da Fábrica Oliva, não Singer, era Singer, ou era Oliva, era Singer, parece, era Singer ou não… era Oliva, que é portuguesa, morávamos atrás da fábrica das máquinas de costura e eu saio e vou ao largo onde eu ia… onde eu ia comprar pão, ia às compras, fui comprar e estava a padaria fechada, quer dizer, eu não fui às nove da manhã,eram para aí dez horas ou coisa parecida… em cima passavam os cabos elétricos e a rádio ouvia-se muito mal, lá naquela zona, era terrível, nós… o Ernesto ainda estava a dormir quando eu cheguei, e eu fui comprar e via tudo a fugir, tudo a fechar portas, eu não percebia… “ai aconteceu uma coisa na rua, há uma revolução” então as fábricas estavam a fechar lá, as portas dos estabelecimentos estavam a fechar e estava tudo a fugir, não sei porque, estamos em São João da Madeira [impercetível], conclusão, eu cheguei a casa “ó Ernesto há aqui qualquer coisa que se está a passar, porque olha a fábrica… os trabalhadores estão a vir embora, na Oliva, os trabalhadores” já não sei mais de que outra fábrica “está a enviar o pessoal todo para casa, e está tudo a fechar”, ligamos o rádio, foi quando ouvimos, quer dizer, arranjamo-nos e tal e fomos para o centro para ver televisão, a gente não tinha televisão, fomos para o centro ver a televisão. Entretanto, a gente não sabia o que é que havia de fazer, se ficávamos em casa, para onde é que haviamos de ir, não é, porque não tínhamos nada e então ficamos… andamos ali. No dia 1 de maio, eu não vim, porque eu estava grávida da minha primeira filha, estava no fim do tempo, quase, e não vim e o Ernesto veio, no dia 1 de Maio, parece que foi, parece que foi no dia 1 de Maio que ele veio ver, ou não… não, veio no 1 de Maio só, ver o que é que se passava, encontrou essa tal Sara, encontrou mais não sei quem “ah e está tudo?”, o Zé Carlos de Almeida, pronto, aquilo ali viu-se que… Passado dias ele foi para casa, eu vim para minha casa, viemos para esta casa, ficamos aqui a viver e… ele foi lá desmontar a casa, ele com o… o marido da Helena Neves, a jornalista, foram os dois lá desfazer a casa e garantir… quer dizer, acabou-se aquela casa e ficamos aqui, pronto.
A primeira vez, eu estava grávida então o Carlos Costa, como eu era muito magra, e sou, eles disseram “não, ela não vai às primeiras reuniões” quando ocuparam a… Aníbal Cunha eu não fui, fui só a uma reunião mais tarde, eu achei muita piada, porque ninguém daqueles meus amigos… que nós lembramos, aquela gente toda sabia que eu estava na clandestinidade, nenhum, quer dizer a não ser, depois o… o Nelson, que veio para o Porto, mas aquela gente não sabia, quando eles me viram grávida a entrar pela casa dentro [risos] quer dizer, ficou tudo muito admirado, quer dizer, ninguém supôs que eu tinha estado na clandestinidade, prontos, e a partir daí tive… a minha filha e tal, tive aqui, entretanto, ela adoeceu, teve aqueles problemas todos e faleceu e acabou, prontos. Lá continuamos, não é, eu a partir daí fiquei na sede de Aníbal Cunha… passei à… porque eu não tenho, como devem reparar, naquela altura ainda era pior, eu não conseguia falar para muita gente, não conseguia dar esclarecimentos… e até porque há várias coisas… a mim me custaram a entrar e ainda hoje me custam a entrar, que eu não estou bem de acordo, mas prontos não tenho nada que reclamar, mas há coisas que nunca… não sei, que nunca entraram prontos… e… e acabei por ficar, porque era para ir para o MJT, onde estava o Ernesto, onde estava aquela gente toda, mas viram que eu não tinha… não tinha capacidade para andar na rua e não sei quê e fiquei na… na tesouraria e a partir daí tive sempre… eu era…. era… administrativa, no fundo, era uma pessoa administrativa daquele partido, não é, mais nada e, quer dizer, passou-se, aqueles tempo… aquela gente toda na Aníbal Cunha e eu fiquei por aqui, acabou-se, reformei-me [risos] e… sinceramente, com alguma mágoa de algumas coisas que se passaram… no tempo, não é, porque as pessoas estavam… quer dizer, eu não fiz nada para me reformar e ainda bem, quer dizer, eu não fiz nada, eu queria-me reformar, só que eu… eu não tratei de nadinha, alguém tratou, queriam que eu viesse embora, portanto, trataram de tudo para eu me vir embora, pronto, e acabou-se. Quer dizer, acabei, fiquei por aqui… uma das coisas que eu nunca mais, a não ser uma vez que fui com a tua mãe, nunca mais fui à Festa do Avante, porque a Festa do Avante para mim era para trabalhar e para estar, não é… porque eu estava… acontece-me mesmo muitas vezes num sítio onde está muita gente eu sinto-me só e sinto-me mal, não me sinto bem com muita gente e na Festa do Avante, às vezes, para mim era uma coisa, era um certo suplício, porque ficava… quer dizer, eu estava dentro de um stand, quando comecei a ficar quase sozinha dentro de um stand a trabalhar e aquilo… às vezes entravam por um lado e saiam pelo outro e eu não conseguia, não aguentava às vezes… não me sentia bem pá, sentia-me só, sentia-me mal no meio daquela multidão toda, depois deixei de ir, agora… talvez… este ano não, mas um dia destes hei de ir outra vez, mas não, com calma, mas porque… ou estar lá ou estar, quer dizer, sentia-me… só e sentia-me mal no meio de muita multidão, mas eu era muito nova e a primeira festa de família, porque havia muitas festas, a minha família era muito grande, da parte da minha mãe era muito grande, da parte do meu pai não conhecia ninguém, da parte da minha mãe era muito grande e éramos… a primeira festa foi ali na mercearia, quando a minha prima foi… ficou, se formou e fizeram-lhe uma grande festa, epá, e eu era miúda, tinha… 10 anos para aí…portanto, naquela altura, 10, 11 anos, epá, eu lembra-me do Graça, o mais novo, o homem da… Anabela me bater, porque eu queria fugir para casa sozinha, não queria lá estar no meio daquela gente, era gente a mais, quando eles faziam, olha, no Carvalhido faziam-se muitas festas de família, mas aquilo eram festas enormes com… nós tínhamos uma garagem, a casa era muito gira e tinha uma… tinha uma garagem grande, onde guardavam duas camionetas em que os meus primos trabalhavam e ficou… montávamos mesas para caber a família toda e aquilo era um suplício para mim, só ia lá para ajudar, pronto.
Entrevistadora - Era uma ansiedade estar nesse local… desde pequenina que eras assim…
Rosa Silva - Sim, sim, sempre. E eu estou convencida que foi daquele trauma, daquele trauma enorme de… infância.
Entrevistadora - Eu vou voltar um bocadinho atrás, portanto… tinhas esse trabalho enquanto costureira, não é, e… começaste a envolver-te mais na política por causa do teu primo que te começou a dar também alguns livros… conversas… e a levar-te para algumas reuniões. Como é que depois foram essas reuniões? Como é que foi esse contacto? E depois como é que… como é que vais para a clandestinidade? Ou seja, quem é que te propõe ir para a clandestinidade… de que forma… que identidade é que assumes… como é que foi?
Rosa Silva - Foi muito engraçado, quer dizer, eu vou ser muito sincera neste momento, que é isto, eu fui para a clandestinidade, não é que eu não dissesse que não ia, mas… para fugir daqui, porque já estava cansada, os problemas que a minha mãe sentiu com a minha avó eu estava a começá-los a sentir, quer dizer, eu estava a ficar… já não aguentava e, portanto, aquilo foi um refúgio… e foi melhor estar na clandestinidade, durante aqueles dois anos, que depois quando vim para cá… foi, outra vez, a mesma saturação, porque a minha avó tinha um feitio muito mau, era muito egoísta, era… causava-nos bastantes problemas e eu lembro-me que nós viemos para aqui viver e o Ernesto viveu ainda aqui comigo durante uns tempos e eu… muito sinceramente gosto muito do Ernesto como um bom amigo, somos muito… eu tenho uma grande amizade por… mas não tinha um amor, não era aquilo, prontos, nunca foi, era uma grande amizade, um grande respeito mútuo entre os dois, e quando viemos viver para aqui… a minha avó começou a fazer aquilo que fazia com a minha mãe, a mim e a ele, fui dar com ela a revolver os bolsos dele, durante a manhã levantei-me e lá estava ela a procurar… eu não sei o que é que ela, era dinheiro, era… tinha a mania de revistar tudo, percebes? E aquilo causava-me bastantes problemas, além de que em relação ao Ernesto eu pensava numa coisa, sempre pensei, é isto: ele foi um jovem que foi para a clandestinidade muito cedo, que não viveu a vida dele, eu vivi, eu digo que vivi, eu tive uma vida do caraças, para dizer a verdade, eu frequentei… boates, frequentei coisas… todas as noites saía, às vezes, não é, mas é verdade, eu fiz isso… e ele não fez, não é, ele foi para a clandestinidade muito cedo, além de que eu acho que era um suplício viver comigo, porque… eu não tinha… ou seja, ele gostava de ser… picado, não é, e eu não era capaz de o fazer, pus-me a pensar “ele vai estar aqui a viver o quê?”, não é, e um dia, a Joana já tinha 3 anos, fomos passear e eu propus-lhe, assim, à noite, um dia destes, vamos passear à noite, vamos dar uma volta e eu propus-lhe… a separação e ele ficou… “não, é assim, tu tens que viver a tua vida”, porque ele tinha que viver a vida dele, a vida dele não era a minha, não é, ele tinha que viver a vida dele e eu vivia a minha, pronto, cada um para o seu lado, somos amigos, eu posso dizer que se ele teve três natais que não veio aqui a casa foi muito, de resto o natal tem sido sempre aqui em casa, com uns, com outros, ou aqui ou em casa dele, sempre os natais juntos com os miúdos… e depois com o Bruno, sempre andamos… nunca tive problemas com ninguém com quem ele vivesse, como não tinha que ter, nem tinha que ter nada, porque ele é que sabe da vida dele, eu é que sei da minha, não é, prontos, é isso. E… e depois também nunca liguei muito a estas questões de… andas com este, andas com aquele, quero lá saber, com ninguém, quando eu às vezes até penso, com a Maria José, eu às vezes até penso… com quem é que ela morou, às tantas já sei com quem é que ela morou, mas nunca, tás a ver, e eu ia lá. Olha, as primeiras tarefas do partido foi no Carvalhido, em casa de uma amiga, e fomos fazer uns postais com a… a Angela Davis, não é a Angela Davis, a… uma americana que esteve presa, lembras-te? Prontos, as primeiras tarefas que eu fiz foi, primeiro, que eles me mandaram foi fazer os postais e então fui eu, ali aos Lóios, mandar fazer os postais naquela, que ainda existe, a papelaria onde eu mandei fazer os postais, e eu disse que era uma cantora, quer dizer, o pessoal não conhecia, dizia que era uma cantora e eles lá me fizeram os postais e eu… no dia em que tive de ir levantar os postais fui lá levantar e eles “tem que esperar um bocadinho”, fecham a porta e eu assim “não me digas que… o que é que eu vou fazer?”, estava assim, sabes como é, estava a perguntar o que é que eu faço à minha vida, se eles [risos] sabem quem é… mas não, lá me trouxeram a caixa com os postais [risos] e eu “que alívio”, foi por acaso [risos], fui levá-los lá aquela… à casa do Felgueiras, que era a casa do Joaquim Felgueiras, fui lá levar e lá estivemos depois com os carimbos… de formação de letras, não sei se vocês conhecem, devem conhecer, havia uns carimbinhos, umas letrinhas, depois a gente tinha as letrinhas, formávamos as frases e depois… numa… numa coisa de carimbo, não é, e depois fazíamos a frase atrás e distribuímos, a primeira tarefa foi essa, e nunca mais me esquece que ainda aí… um jovem, um indivíduo impecável que era baterista, também conheci muitos… eu não sei como é que fui parar a sítios… ainda hoje não consigo perceber como [risos], mas conheci imensos conjuntos na altura da minha juventude e conheci esse jovem [risos] que era de um conjunto, nem sei o nome, prontos, mas íamos… aos domingos, íamos para a Foz, tinha carro, nós íamos para a Foz ali para a praia… ele como gostava muito de mim, porque ele tinha um defeito no pé e tinha um… tinha um… quer dizer, tinha um problema com ele, pronto, com aquele defeito para ele era, aquilo nem se via, não é, não tinha os dedos dos pés, que tinha deixado na bicicleta… mas para ele aquilo era… prontos, e ele foi-me levar a casa do Felgueiras [risos], nunca mais me esquece isso, “hoje não vamos, que eu tenho uma tarefa a fazer”, mas não disse o quê, “vamos a um amigo e tal” e fui fazer aquilo.
Entrevistadora - Mas como é que entraste no partido? Ou seja, foi através dessas reuniões? Quem é que te deu… deram-te uma ficha para a mão? Como é que foi essa entrada e o teu envolvimento?
Rosa Silva - Opá, eu acho que… eu acho que… que nunca meti ficha nenhuma.
Entrevistadora - Foi só através das reuniões que foste tendo?
Rosa Silva - Quer dizer, fui indo, fui indo, fui indo… entretanto, conheci… ah eu depois de sair da Candidinha Alves, porque aquilo… após o 25 de abril, não é, não eu já não estava lá, minto, antes do 25 de abril, eu de 70 e… no início de 72 fui para lá para trabalhar num escritório tratar de uma revista de pombinhos, fui tratar da revista de pombinhos, quer dizer, não era para isso que eu ia, era para atender o telefone, mas eu detesto os telefones e como detestava os telefones, o senhor… por acaso, o… o dono dessa tipografia, de uma pequena tipografia, que era quase, era a que fazia mais coisas para… ai, para a Porto Editora, era um tipografia pequenina onde a Porto Editora ia fazer imensas coisas e… aquilo nem era uma tipografia, mas acima de tudo fazia caixas para… caixas para… de estojos para várias coisas e eu fui para lá trabalhar, porque havia uma amiga, uma rapariga que saiu, que foi trabalhar para o vinho do Porto, e eu fui tomar o lugar dela, que ela é que tratava da revista dos pombinhos e eu fui tratar… e como ele viu que eu não gostava, pôs a minha irmã ao telefone, que ela estava lá e eu fui tratar da revista e pagava os salários, era eu que pagava os salários… ajudava a fazer faturas, quer dizer, aprendi ali algumas coisas…
Entrevistadora - Que depois te deram jeito para a profissão a seguir, não é… foste funcionária do partido…
Rosa Silva - A partir daí, quer dizer, sim, depois fui para funcionária do partido, aqueles dois anos fora, quando regressei… tínhamos um camarada que era espetacular, que tinha estado na clandestinidade que era o… Manel Duarte, que era contabilista, era contabilista dos Cafés Cristina, era contabilista da Marilux, parece, e que estava no partido, ele é que, esse sim, esse é que me ensinou tudo, foi impecável aquele homem, eu adorei aquele homem, era impecável e a maneira como ele ensinava, como eu não tinha bases, não é, eu tinha que perceber por mim própria como é que havia de fazer aquilo, porque o que eu sempre quis saber o porquê das coisas, não o fazer por fazer, percebes, e como eu queria perceber o porquê das coisas, comecei a fazer… a imaginar como é que eu podia fazer aqueles t’s que ele me fazia, não, aqueles t’s, aquelas regras da contabilidade… pronto, e eu gostava daquilo, gostei daquilo e ainda… trabalhei com o POC, com aquilo, eu gostava mesmo daquilo, portanto, mas também…houve outras coisas que eu não… que se passaram, prontos, mas que não interessa neste momento.
Entrevistadora - Mas como é que surgiu a oportunidade de ires para a clandestinidade? Como é que foi essa passagem? Como é que foi sugerida… por quem foi sugerida…?
Rosa Silva - Olha, foi sugerida, quer dizer… foi sugerida por alguém… foi o… não sei se foi o meu… se foi o… o Edgar, já não me recorda, o Edgar disse que havia de vir um amigo vir falar comigo, que havia de me encontrar ali em… não é em Costa Cabral, na outra rua… já não sei o nome da rua… e eu não conhecia nada para ali, sabes, eu só conhecia esta zona, portanto, tive que ir de mapa… ver o sítio onde tinha que ir ter com o amigo e… isto, sabia que era aquele dia e tal. Um dia estava ali a falar com a vizinha do lado e quem passa? O Zé Carlos de Almeida com… o Pisco, como a gente lhe chamava, que é o… ai agora não me recordo o nome, mas prontos… ele passou e o coiso cumprimentou, o Jorge Pisco cumprimentou, porque
a gente conhecia-se e eu olhei para aquelas pessoas, eles passaram, pronto, quando me vou a encontrar… era o Zé Carlos de Almeida [risos] e diz ele assim “ah tu estavas assim”, “pois estava [risos] eu também te vi”, quer dizer, começou por aí, percebes, foi assim, uma coisa, porque, de facto… E antes quando eu trabalhava nessa tipografia… aqui não, era na rua… como é que se chama aquilo… da Restauração e, por trás, mais atrás da tipografia, era só andares, tem uma igreja muito bonita e eu, às vezes, comia e ia dar a volta pela igreja e tal, andava a passear, para fazer horas para entrar e um dia eu andava a passear e quem é que eu vejo? O Edgar Correia com a Zé Ribeiro e fiz de conta que não os conheci, primeiro, pensei logo assim eles andam aqui a passear, nem nunca disse nada de nada, não tinha nada que dizer, mas foi isso, sabes, eles foram… nem sei quem é que me disse, não faço a mínima ideia agora, não me lembro, lembro-me de ser o Zé Carlos de Almeida, que me veio propor, portanto… quer dizer, a gente fazia muitas reuniões, é como te digo, a gente fez muitas reuniões, deste, daquele, de… sei lá. Ah e eu também fiz parte, fiz parte da… do Socorro aos Presos Políticos, também… também meti-me nessa e eu não falava muito [risos], mas fazia volume a ir falar com os advogados [risos] quando… quando era às prisões e não sei quê, eu assisti a várias reuniões e houve uma reunião que eles… que me custou um bocado por isso… o… como é que se chamava… o professor… o… que foi professor da universidade, que ainda ontem estive a olhar para ele, que estavam a mostrar… o Lopes, como é que ele se chama? Lopes, Lopes, Lopes… ai poça mãezinha do céu… bem, estás a ver, estás… que foi professor da Universidade do Porto muito tempo… e bom, foi do comité central do partido, fez imensas reuniões ali na Boavista… conhecia a mulher, que eles moravam ali na… na Boavista, pera aí caramba… e ele não ouvia… então estavam a falar e eu estava ao lado dele e tinha que estar a dizer o que se estava a passar, sabes, custou-me tanto essa reunião, entretanto… porque a Helena Medina tinha um… tinha um jeito muito engraçado de falar, ela metia tudo “porquê” ou “o quê” no meio de muitas frases, a pequena frase e “o quê”, “o quê”, tinha sempre aquela… era uma coisa aflitiva, às vezes, as reuniões com ela era assim uma coisa [risos], mas prontos e então nessa altura eu tive com o… qualquer coisa Lopes carago, agora veio de repente e depois passou, bem.
Entrevistadora - Mas então como é que foi? Eles disseram que ias para a clandestinidade com uma identidade… qual foi a identidade que assumiste?
Rosa Silva - Eu é que assumi a minha identidade. Era Luísa, e porquê? Vocês já leram ou algum de vocês já leu “Os Subterrâneos da Liberdade”? Não? Se tu quiseres, um dia empresto-te para leres. Portanto, “Os Subterrâneos da Liberdade” é a clandestinidade no Brasil, portanto, é escrita pelo… que escreveu a “Gabriela, Cravo e Canela”...
Entrevistadora - Jorge Amado.
Rosa Silva - Prontos, estou a ficar maluca… [risos] o Jorge Amado e é a história dos clandestinos na… eu gostei imenso de ler aquilo, pronto, e esse livro foi-me emprestado antes, muito antes, do 25 de abril por um jovem estudante que eu só vi a primeira vez e última, que fui buscá-lo ali à Rua de… Camões…. os… para ler, porque entretanto os livros que eu lia, ao bocado perguntaste-me isso, e eu não te respondi… os livros que eu lia, eu vou te dizer porquê, porque quando da UNICEF, do início da UNICEF, meti-me, era sócia também, agora não sou, mas pronto… porque quando vim para a clandestinidade depois deixei e depois nunca mais lá fui, quer dizer, vou lá, mas… e as coisas todas que eles fazem… os meus primos que tinham dinheiro compravam os livros, eu trazia para casa e depois levava-os, portanto, eu li uma coleção de livros espetaculares, não é, vários… e depois há um livro que o meu primo aparece… ao princípio a gente não percebia nada, mas quer dizer… que é “O Atalho dos Ninhos de Aranha”, que nunca mais esqueci na vida, é uma história passada na 2ª Guerra Mundial em Itália na… na invasão pelos fascistas em Itália e que é… uma rapariga que se prostitui com os soldados e o irmão que é um pequenito de 16 anos, enquanto os soldados deixam… para ir com a rapariga para o quarto, ele rouba-lhes as armas e vai guardá-las num coiso para… é um livro, quer dizer, aquela história nunca esquece, porque é de facto, um livro muito interessante naquele aspeto e prontos e li muitos livros, olha li… o Jorge Amado tenho a sensação que li todos naquela época… imensos… imensos livros, pronto, imensa coisa que eu li, pronto.
Entrevistadora - E isso foi motivando, por um lado, a ideologia e, por outro lado… depois o que deu origem ao teu nome então… foste buscar a esses livros?
Rosa Silva - A esse livro.
Entrevistadora - Eras Luísa quê?
Rosa Silva - Luísa só, para os camaradas era Luísa. Nas casas clandestinas tinha que mudar o nome, porquê? Porque quando eu fui para a clandestinidade levei lençóis meus, de cama, e os meus lençóis têm o monograma, o RM, tinha que ser Rosalina ou Rosário ou o caraças, tinha que ser aquilo, porque se não parecia mal, não é, porque não era, ela chama-se Luísa não pode ser… [risos], portanto, as casas clandestinas… eu punha os lençóis a secar e tinha que ter um… as pessoas viam, então era… na coisa acho que era Rosalina, Rosalina… na primeira casa e a segunda… a terceira nem cheguei a ser nada… [risos] era Rosário, era Maria do Rosário, ali na outra casa com as coisas, mas naquela casa era giro, porque olha ia comprar peixe a um peixeiro, que mais tarde foi funcionário do PCP, pronto… quer dizer, nem eu sabia, estava ali, ele andava a vender peixe na rua e eu ia comprar o peixe lá no largo e mais tarde… encontrei-o a ser funcionário do PCP, já na Aníbal Cunha, foi depois do 25 de abril, eu não me lembro do nome dele, e também já deixou de ser funcionário há muitos anos e mora ali para o norte, não sei para onde.
Entrevistadora - Mas recebeste um bilhete de identidade para cada uma dessas identidades?
Rosa Silva - Não, nunca tive bilhete de identidade, eu…
Entrevista - Nunca tiveste? Então mas o Ernesto tinha… era porque ele é que saia mais?
Rosa Silva - Tinha, é, ele tinha que sair, tinha que sair para fora, eu não, não precisava, eu estava dentro de casa, não é, o meu papel era estar dentro de casa, não é, a receber as coisas, ou fazer… eu saía, é verdade que saía, prontos, mas… não tinha… era guardar a casa, a função das mulheres era guardar a casa. Entretanto… e não sei se alguém te falou disso, é uma pena, disso é que eu tenho pena de não ter aqui para vos entregar, isso eu vos dava, dava quer dizer… para vocês… que era o jornal das mulheres que estavam nas casas, ou seja, das… das… das raparigas e mulheres que estavam nas casas, faziam um jornal e que depois era distribuído pelos camaradas, em que… portanto, contavam as suas histórias, contavam o que é que faziam, o que é que não faziam… ajudavam nas… na questão económica, não é, como é que se havia de fazer, como é que não se havia de fazer, porque não havia dinheiro, não é, tinha muito pouco dinheiro. E um dia nessa casa ali em Gondomar eu fiquei doente, o Ernesto foi para fora e eu fiquei doente, com uma infeção enorme que não podia andar e estava lá no 2º andar e… tinha que vir ao último andar, porque de manhã havia uma padeira e o leiteiro que deixava o pão e o leite, eu tinha que vir cá em baixo e ao fim de semana metia o dinheiro na saca para o homem tirar… e eu naqueles dias arrastava-me pelas escadas abaixo à espera que ninguém visse, vinha cá em baixo buscar o leite e a partir daí… estive vários dias a tomar leite e a comer pão, não podia fazer mais nada, entretanto, tive que pedir ajuda à vizinha de baixo, à tal rapariga que tinha duas crianças e eu… tive que lhe pedir ajuda, se ele me ia buscar, porque eu já não aguentava e eram dores horríveis, e ela… então eu estava lá em casa, ela foi-me buscar as coisas, entretanto, chega-me ao meio dia, chega-me a casa com um prato de batatas fritas com um ovo a cavalo, um bife com ovo a cavalo, eu já não comia há dias, aquilo soube-me… [risos] estás a ver o que é, era um ovo estrelado com um bife e batatas fritas [risos] o que eu não comia há tantos dias, portanto, aquilo passou-se e eu fui, consegui andar, num sacrificio enorme, fui da casa, que tinha que descer um monte, que era no início do monte que ia para Valongo, a casa, eu desci, dei a volta para ir para a Câmara de Gondomar e estava um médico, a coisa de um médico… a… o sinal de um médico e eu disse “olhe, passa-se isto assim assim, tem que fazer aqui qualquer coisa, porque eu não posso andar”, o homem lá me esteve a ver, o homem ficou apavorado, a primeira vez que me [impercetível], porque aquilo era uma coisa inchada cheio de pus, olha, foi para a cara do homem, foi para a bata, foi para todo o lado… tudo, o homem ficou todo sujo [risos] foi impecável, o homem, saí dali e não tinha nada… ai que horror, aquilo foi uma coisa… foi mesmo muito… mas ele depois mandou-me tomar umas injeções e então a senhora de baixo, às vezes, ia comigo aos bombeiros tomar as injeções, por acaso, ela foi impecável a rapariga, era um casal novo muito, muito simpático, nunca tivemos problemas com eles, foram sempre impecáveis, mais, o Ernesto até teve uma coisa muito engraçada [risos] ele era… lá na casa… tivemos que montar uma coisa de estilista para fazer… projetos, era uma… como é que se chama…
Entrevistada - Um cavalete.
Rosa Silva - Um cavalete, sim, e a gente tinha ali o cavalete para fazer… ora a senhora tinha visto e o rapaz também era estilista, mas não sei de quê, de outra… e foi pedir, que estava doente, foi pedir a ver se ele lhe podia fazer… [risos]
Entrevistadora - O desenho.
Rosa Silva - O desenho, que ele não podia [risos], e ele disse “ah mas eu não sei fazer, não sou…”, teve que se safar, não é [risos]. Entretanto, aquela família, eram jovens muito jovens, tinham duas miudinhas, tinham montado a casa, mas não pagaram nada e foram lá e levaram-lhes tudo, quando eu saí de lá eles já não estavam lá, tive pena, ele desenhava… tenho um quadro feito por ele, que ele me ofereceu, quando eu estava grávida, ofereceu-me a cestinha das coisas das filhas, encheu-me lá com as coisas das bebés, a mim, por acaso, foram uns simpáticos, quer dizer, eu tive muita pena deles, levaram-lhes tudo, tudo, sabes o que é tudo, a televisão, os móveis… eles não tinham pago nada.
Entrevistadora - E o Ernesto já conhecias quando foste viver para a casa com ele?
Rosa Silva - O Ernesto.. espera aí… olha, o Ernesto é assim, nós fizemos nessa altura de reuniões de jovens, nós fizemos… fizemos o dia internacional da mulher, se não me engano, era ali… no Padrão, onde se fez várias coisas no Padrão, e fizemos um encontro em Caminha, em casa do pai… deste sujeito que foi, Alfredo… Maia, em casa do João Maia, porque ele tinha uma casa lá e que a gente ia para lá aos fins de semana, a casa do João Maia, e… a primeira vez que eu vi o Ernesto, que não os conhecia, nem nunca falamos, quer dizer na na na na, na na na na, quer dizer, fazíamos coisas separadas, mas andávamos ali, foi na casa do João Maia, vi aquela cara, mas. Entretanto, numa das… dessas organizações ali, o Ernesto estava com várias pessoas, onde andava também o Pedro Batista, que ouviste já falar do Pedro Batista, nunca ouviste? Era um… era um indivíduo, era um esquerdista e que… portanto, mas naquela altura gritava por liberdade sexual, era assim uma coisa muito interessante e encontrava-me… ele morava aqui, em frente ao [impercetível] [risos], também já faleceu… era professor, já faleceu, novo, faleceu muito novo e… então nunca me esquece que eu levei a minha irmã e uma prima, uma prima [risos] e o Ernesto dançou muitas vezes com a minha prima [risos], mas eu conhecia aquela cara, pronto. Um dia quando o Zé Carlos de Almeida disse vamos… atravessamos o rio naquele barquinho [risos] para o lado da Afurada e foi na Afurada que eu vi o Ernesto e eu conheci a cara, eu disse “bem, esta cara não me é estranha”, pronto, ele também não se lembrava de mim, quer dizer, não se lembrava de mim, mas eu conheci a cara, lembrei-me dele, principalmente, por ele ter andado a dançar muitas vezes com a minha prima, prontos, [impercetível], mas achei piada e a partir dali ele começou a vir aqui a casa, porque eu… a minha avó… aos sábados e domingos ia para os caseiros, ia lá para Ramalde, eu ficava sozinha com a minha irmã, o natal passamos sozinhas as duas, porque o meu irmão estava na… e na Páscoa, nunca mais me esquece que veio o senhor Carvalho, a tal que… esta coisa do… heróis anónimos de abril, era a última personagem, que ainda é viva, não é, que é mais nova do que eu, que agora mora em Viana do Castelo, é a história dela, que ela foi em 71 para a clandestinidade também e, portanto, é a história dela, e os pais dela, isto antes de vir para a clandestinidade também, eu conhecia-os, comecei a ir lá e depois os pais só as deixavam sair, que eram duas gémeas, que era a Fernanda Carvalho e era a Branca, só as deixava sair se eu fosse, então elas para sair, eu tinha que ir, não sei porquê… gostavam muito de mim, então só as duas, só tinha que ir com elas, entretanto, os pais dela passavam aqui aos domingos, eu estava sozinha e… o irmão, com quem eu namorei, o Júlio, namorei uns tempos, ele vinha para aqui, ele passava ali a desenhar e eu a costurar, porque eu tive que trabalhar, eu trabalhava durante o dia e trabalhava à noite para fora, trabalhei muito tempo para fora à noite, porque senão não tinha dinheiro para sustentar a casa, prontos, e tinha que sustentar a minha avó que não trabalhava, a minha irmã que era jovem e ainda não ganhava, portanto, eu tinha que trabalhar… e ele vinha para aqui.
[corte]
Mas o que eu queria dizer com isto, foi aí… nessa altura, foi aí que eu conheci o Ernesto.
Entrevistadora - Foi então… na Afurada.
Rosa Silva - Na Afurada.
Entrevistadora - Mas não sabias que ele era o Ernesto, para ele tinha outro nome, ele era um amigo… como é que ele se chamava ou soubeste o nome dele antes do 25 de abril?
Rosa Silva - Já não me lembro, já não me lembro como é que o chamava.
Entrevistadora - Só soubeste o nome verdadeiro dele depois do 25 de abril?
Rosa Silva - Foi, acho que sim, que foi, mas… antes de eu ir para a clandestinidade, ainda bastante tempo, ele vinha aqui quando a minha avó não estava e não sei quê e vinha cá a casa, e eu achava que… que ele naquela altura, olha, imagina, eu também andei… numa coisa muito importante, eu andei na Mocidade Portuguesa, estás a ver [risos], houve uma fase da minha vida, andava… e depois eu e a minha prima Sílvia fomos para… era a Mocidade Portuguesa, feminina, ali na Rua do Breyner, porque lá ensinavam… era costura, era culinária, era… puericultura, enfermagem… e tínhamos, como é que se chama… aquilo que nas escolas usava-se… era a educação…
Entrevistadora - Religião e moral.
Rosa Silva - Educação moral, isso mesmo, nós tínhamos educação moral e nessa altura… portanto, eu conheci lá alguns… olha ainda fiz lá culinária com a Maria [impercetível], imagina como eu sou velhota… [risos] mas, andei lá, porque… eu gostava de pintura e ainda tenho para aí uns quadros guardados feitos por mim, fiz a culinária, fiz a costura, tenho um… tenho o diploma de costura, a puericultura… chegava sempre muito tarde… e depois tínhamos educação moral e foi o falhanço daquilo tudo, porque… íamos ter 2ª feira educação moral ou lá como chamavam e no sábado anterior o meu primo tinha sido preso, nós tínhamos pensado ir para casa da namorada dele, juntavamo-nos lá muitas vezes, onde ouvíamos música, onde… debatíamos coisas, por ali fora, e eu ia com eles… e portanto… ele foi preso, já nós não fomos, tínhamos combinado ir para casa dela nesse domingo e não fomos, claro, e ele foi preso e na 2ª feira eu tinha educação moral, era um senhora de idade, epá quando a mulher me começa a falar, eu entrei numa histeria, comecei a chorar e comecei a dizer que era tudo uma mentira, que era não sei quê… que era coiso… quer dizer, e nunca mais fui a educação moral na vida, nunca mais, desisti daquela aula logo imediatamente, nem a minha prima, deixamos aquilo [risos] ela não foi nesse dia, mas eu fui, epá, aquilo… caiu-me mal, o que ela disse naquela altura e depois a mulher matou-se, não é, era tão boa e matou-se, atirou-se do comboio abaixo [risos] ia aos presos, ia aqui e acolá, mas depois mandou-se… vocês querem um café? [risos] Conclusão da história, foi nessa altura que eu… já não sei o que estava a dizer…
Entrevistadora - Da Mocidade Portuguesa, também tiveste outro contacto com…
Rosa Silva - Andei ali com aquela gente, quer dizer, que não foi má, que a gente aprendeu alguma coisa, aprendeu… mas tinha uma certa piada, porque quem é que andava lá? Eu trabalhava, a Sílvia estudava, mas a maior parte eram meninas da alta sociedade que não quiseram estudar e andaram lá a aprender para ser… donas de casa, né, etiqueta, tínhamos etiqueta, tínhamos etiqueta à mesa, tínhamos aquilo tudo e, portanto, aquelas meninas andavam lá para isso, pintavam mobílias para elas, lá, a professora ensinava, quer dizer… e conheci várias meninas lá que moravam na Avenida da Boavista, que moravam… quer dizer, que não quiseram estudar e foram para lá para aprender a ser mulher de casa, prontos, era o que é que se aprendia ali, mais nada, quer dizer, quem gostasse de pintura, tudo bem, a gente fazia ali as coisinhas, achávamos piada, mas de resto… [risos]
Entrevistadora - Agora vou-te falar assim algumas questões mais sobre, assim no geral, pensando na clandestinidade e no que foi o 25 de abril, portanto, já contaste como é que aconteceu, vocês souberam só no dia 25, só sais… quando é que tu sais? O Ernesto sai dia 1, mas como é que tu sais da clandestinidade?
Rosa Silva -
eu saio para aí no dia 3, eu só saio… eu só venho de… São João de Madeira, para aí só no dia 3.
Entrevistadora - E foi como se tivesses voltado de França? [risos]
Rosa Silva - Foi como voltei de França, mas sabes uma coisa, olha, eu quando desapareci, aconteceram coisas muito engraçadas… o meu tio era muito conhecido, né, e eu era muito conhecida aqui, portanto, eu posso-te dizer que no dia em que a minha mãe faleceu foi o funeral maior da freguesia, porque a freguesia veio toda em peso por causa, porque gostavam da minha mãe e depois também veio a Candidinha em peso que eram cento e tal mulheres… e os maridos.
[corte]
Entrevistadora - Quando é que voltaste depois do 25 de Abril e o que é que isso significou para ti, o 25 de abril?
Rosa Silva - Portanto, o 25 de abril… tudo, não é, a liberdade, a gente… porque, acima de tudo, quando entrei em estudo eu fazia muitas perguntas a mim própria, em miúda, o porquê, porque é que as coisas acontecem e… nessa questão, fui para a JOC, quando era miúda, fui para a JOC, porque pensei que a Igreja me daria essa resposta e não deu, andei lá pouco tempo, ainda aproveitei que ainda fiz umas… umas… como é que se chama… umas férias em… ali em… como é que se chama aquilo, lá estou… onde é a corticeira…
Entrevistadora - Do Amorim… lá para Gaia…
Rosa Silva - É, para o lado de Gaia. Ainda fiz umas férias… com espetáculos e tudo.
[corte]
Entrevistadora - Mas foram esses porquês…
Rosa Silva - Esses porquês ficaram… o porquê que a minha avó é assim, o porquê que esta gente vive aqui nestas casas, o porquê que aconteceu aqueles meus primos quando eram pequeninos, depois comecei a ver… porque não havia, primeiro, as pessoas ganhavam muito mal, segundo, não havia educação, as pessoas não estudavam… a maior parte das pessoas eram analfabetas, naquele corrido ali de casas onde eu estava, a maior parte era analfabeta, não é, ou tinha a 3ª classe, que era, às vezes, o que elas conseguiam fazer e eu pensava “não”, isto a educação para mim é a coisa principal que se possa ter, a educação desde o início é de facto, para mim… tudo, porque daí tu podes, quer dizer, tudo o que tu depois queiras fazer, tu consegues por meio da educação, eu não posso dizer porque, de facto, fui algo privilegiada, porque consegui andar de um lado para o outro e tinha uns pais que, de facto, viviam à frente da sua época, porque era o que te digo, naquela altura, “ah o homem não pode fazer nada em casa”, mas o meu pai chegava a casa, dava-nos de comer, lavava-nos... a minha mãe quando chegava já estávamos prontos, o meu pai arrumava a casa com a minha mãe, tudo, sempre em conjunto, sempre fizeram aquilo, sempre me lembro de viver assim.
[corte]
Entrevistadora - Mas o 25 de Abril trouxe então uma resposta a muitas dessas inquietações?
Rosa Silva - A essas inquietações… o que é que acontece? Aqueles primeiros anos, não é, que tu ainda não eras nascida, e a Joana… quando a Joana consegue, eu consigo dar um curso à minha filha, que se fosse noutra altura, não dava, foi a época melhor… do 25 de Abril até 80, 90 foi uma época espetacular, que se conseguiu muita coisa, mesmo muita coisa, pronto, lá está, a educação para mim foi… acho que era essencial, acho que não é preciso sermos todos médicos, mas se tivermos sei lá… mesmo numa escola profissional que nos leve a determinadas coisas que a pessoa goste de fazer e queira fazer é muito importante. Tu viste, após o 25 de Abril, quando começaram a vir os dinheiros… aquilo foi um devastar de coisas horríveis, então fechou-se o Infante, que era uma das escolas profissionais… uma das escolas profissionais impecáveis que aqui existiam no nosso país e… para abrir escolas profissionais, porque iam buscar dinheiro… e quantas escolas não vieram a fechar depois? Aquilo foi só para recolher os dinheiros, mais nada… do… comunitários.
[corte]
Entrevistadora - Mas é um bocadinho essa a reflexão que fazes do 25 de Abril e destes 50 anos?
Rosa Silva - Dos 50 anos é… andou para cima e para trás, porque… quer dizer, a…. no fundo, no fundo, houve muita gente que se aproveitou também, porque não se conseguiu levar, de facto, àquilo que se devia levar, não é… mas, acontece que… quer dizer, passou-se muita coisa, gastaram-se dinheiros que não deviam e utilizaram-se coisas que… agora a corrupção… a corrupção foi muito grande pá e continua a ser em algumas coisas, não é, prontos, e isso atrasou imenso as coisas.
[corte] E nessa altura… olha, foi quando eu comprei um rádio a sério com um gira-discos, que eu não tinha, porque tinha dinheiro para isso.
Entrevistadora -
Melhorou a qualidade de vida então? O 25 de Abril trouxe…
Rosa Silva - Ui… completamente, a qualidade de vida foi enorme, eu nunca mais tive… ou seja, eu comprava coisas a… eu não ficava na mercearia a dever, ia à mercearia quando era final do mês e tinha dinheiro… passei por uma fase dessas, já muito mais tarde, passei por essa fase, que ia ali ao vizinho e pagava-lhe quando tinha dinheiro, porque… quando começou tudo outra vez a regredir… ao contrário, uma pessoa ficou outra vez sem ter aquela… base que tinha, quer dizer, eu ganhava, na altura, acho que fomos ganhar 4 contos e tudo, como funcionária do partido, 4 contos era muito dinheiro, naquela altura, e para mim… sabes quanto é que eu pagava nesta casa, antes de comprar a casa, eu pagava 390 escudos nesta casa, era… foi o meu… e depois quando acabou… quando comprei a casa acho que pagava… era muito pouco, era assim uma parte muito pequenina, o senhoria dizia para eu me deixar estar que estava bem e, portanto, quer dizer, nunca paguei assim muito dinheiro ali, nunca saí desta casa, que a minha vontade, ainda hoje é, é sair daqui, primeiro, por tudo… a envolvência das pessoas que conhecia, porque era muita coisa lá, avancei, na altura em que eu fui para a clandestinidade, aqui na rua como toda a gente me conhecia começaram a dizer que eu que fugi com o Sérgio Valente, o fotógrafo, não sei se conheces, prontos, que eu que tinha fugido com o Sérgio Valente, porque no mês anterior ou não sei quê… a Sílvia casou, eu fui ao casamento da Sílvia e quem foi o fotógrafo foi o Sérgio, portanto, toda a gente conhecia o Sérgio, então eu fugi, mas houve uma coisa ainda mais interessante que disseram que foi que eu… que… [risos] andei a assaltar bancos com o Palma, que foi a Isabel do Carmo, quando eu… era a que estava com… que assaltou um banco ali em Vila do Conde, então disseram que tinha sido eu, que eu andava com o Palma, porque, entretanto, também ali uma vizinha tinha-me visto na prostituição em Madrid, portanto [risos], isto é tudo muito interessante e eu… a desgraçada coitada que nunca tinha ido a Espanha na vida, que nunca tinha saído aqui de Gondomar… o sítio mais longe foi São João da Madeira, que foi onde eu vivi, que andava sempre neste círculo.
[corte]
Entrevistadora - Nunca houve uma altura em que achavas que a PIDE te ia apanhar?
Rosa Silva - Não.
[Telefone começa a tocar]Recolher