Rosa Dias - Então, eu sou a Rosa Dias e… em Setembro de 73, 1973, pela pessoa responsável do partido, que era o Zé Carlos de Almeida, vim a saber depois, não é, o seu nome, a seguir ao 25 de Abril, num encontro absolutamente fantástico no antigo estádio das Antas, é-me feito o convite [pau...Continuar leitura
Rosa Dias - Então, eu sou a Rosa Dias e… em Setembro de 73, 1973, pela pessoa responsável do partido, que era o Zé Carlos de Almeida, vim a saber depois, não é, o seu nome, a seguir ao 25 de Abril, num encontro absolutamente fantástico no antigo estádio das Antas, é-me feito o convite [pausa], o partido convida-me… põe a questão, se eu estava de acordo em dar o salto para a clandestinidade. E é daqueles momentos absolutamente fantásticos, porque eu senti-me a mais revolucionária de todos. Achava que era a melhor coisa que podia acontecer, porque afinal o partido tinha confiança em mim e eu ia ser útil [risos], num dos processos mais complexos que era ir para uma instalação do partido, continuar a intervir e a votar no partido.
A minha ida para a casa clandestina dá-se só nos inícios de 74 por razões diversas. O meu irmão também estava na clandestinidade, já desde 72… era o Natal, nós éramos muitos irmãos… existiram também outros embaraços em relação às instalações do partido… eu passo a ter que deixar absolutamente todo o meu contacto e toda a minha atividade que tinha antes para me resguardar de forma a, no momento em que fosse para dar o salto, eu estar nas boas condições do ponto de vista conspirativo, do ponto de vista da perseguição da PIDE, etc., porque eu já tinha tido circunstâncias dessas à porta do meu trabalho… e é o pior momento da minha vida porque eu deixo de ter a atividade, é assim que o partido considera que eu sou clandestina desde setembro de 73, pronto!
Entrevistadora - Vocês eram vários irmãos?
Rosa Dias - Sim, nós… é uma família fantástica, nós somos de São Félix da Marinha. O meu pai é tanoeiro, com os valores do trabalho, um trabalhador absolutamente brutal, fazia as aduelas dos pipos, que era no fogo… claro que isso implicava problemas de álcool muito sérios, porque às 10 da manhã, aquele fogo… dobrar a madeira.. em vez de água… mas era um trabalhador e uma consciência da exploração absolutamente brutal. E ele dizia “Filho meu, prefiro ver na rua a trabalhar numa tanoaria!”. A minha mãe… com muitos filhos… nós somos 8 irmãos, além de todas as questões da casa, era a rendeira de uma tira de terreno, pagava a renda desse terreno para fazer esse terreno, não é, na lavoura… e todos era fazer a quarta classe e ir trabalhar. Portanto, era preciso dinheiro para sustentar, vinha um, vinha o outro, nós fazíamos diferença uns dos outros… um ano, um ano e meio, mais tarde dois anos, portanto, os 8, é tudo assim muito chegadinho, não é. E as dificuldades eram muito grandes, muito grandes, muito grandes. Era só o meu pai a ganhar, eram muitos filhos, eram muitas bocas para comer, a minha mãe trabalhava imenso, mas àquela época muito pouco reconhecido, porque era o campo, era a terra, quer dizer, era uma situação de facto muito difícil, mas nós éramos seres muito alegres, muito felizes, muito dinâmicos, era uma coisa absolutamente… encontrávamos na pequena coisa a alegria de cantar. Aliás, nós somos das… das coletividades, do rancho de São Félix da Marinha, andei no teatro também lá de São Félix da Marinha, portanto, tínhamos toda uma alegria e uma vivência absolutamente... nada nos fazia quebrar! Mesmo aqueles momentos, que marcaram mais os manos mais novos, do que até nós próprios mais velhos, da violência doméstica que existia… eu considerava que era a mais forte, então estava sempre ali na defesa da mãe, sempre ligada, atenta, acho que não dormia, eu acho que dormia pouco, sempre na vigilância de…
Faço a quarta classe na escolinha de São Félix da Marinha, uma aluninha ali à maneira, levava muitas reguadas porque era muito indisciplinada e muita arrapazada, mas faço a quarta classe, que era numa outra escola que se fazia, e no meu caso, o caso dos meus irmãos, sendo que a minha irmã mais velha foi a que ficou mais tarde em casa, foi aprender a costura, pagava para aprender a costura, para ter... o meu pai mais tarde comprou uma máquina de costura e ela fazia a costura em casa e de alguma forma quando a minha mãe ia para o campo a minha irmã mais velha é que... mais velha, mais velha um ano e picos… não é, mas… para todos os efeitos, eu nas férias grandes, com 9 anos, da terceira para a quarta classe, já fui trabalhar, nas férias, para o ateliê da “Arraiolos”, foi a minha primeira profissão. Depois, a seguir, quando acaba a quarta classe, acho que nós fazíamos o exame em Junho, eu acho que é Junho, não, era Julho, mas não tenho bem presente, logo imediatamente para um ateliê. Era um grande ateliê, com muitas mulheres, faziam-nos a vida negra porque punham-nos à experiência para várias coisas, e comecei a trabalhar assim sem parar, nunca mais.
Estou nos tapetes, os tapetes de Arraiolos… é uma história dos Arraiolos que vêm para a zona do norte, em que muitas mulheres vão para as fábricas têxteis, mas muitas, que era a Cotesi… a Delfim Ferreira… grandes empresas têxteis, mas as mais jovenzinhas e as mulheres, ali mais da aldeia, era para os ateliês de tapetes, a sua libertação e o seu ganho, o seu salário, era nos ateliês. Eram muitos, em Serzedo, São Félix, Arcozelo… onde eu trabalhei, no primeiro ateliê, tinha quase 60 mulheres, portanto, era muita mulher. Era dobrar… fazer os novelos enormes, com aquelas meadas… fazer os novelos, acertar os primeiros trabalhos… acertar as telas… éramos pau para toda a obra, meninas... meninas... e claro, nós queríamos, ao mesmo tempo, era a liberdade para nós, que era, não estávamos em casa, não é, quer dizer. Simultaneamente, era aquela consciência de que trabalho tão pesado, pagam tão mal, 25 tostões à semana… pagam tão mal, que trabalho tão… sempre com esse sentimento… aii, trabalho tanto e tal… claro, queria sempre mais, então, eu queria logo começar a aprender… e conseguia aprender! E “Eu quero aprender, eu quero aprender!” e lá comecei, então, a fazer também. Nunca tive muito jeito para contornar… as minhas irmãs eram fabulosas a fazer os desenhos... portanto, eu era encher, era tudo o que fosse velocidade, tudo o que fosse muita dinâmica.
Saio desse ateliê, vou para outro ateliê, aos 12 anos, e em plenos 12 anos, para os 13, então, saio do ateliê dos tapetes e vou, então, para o grandioso espaço que existia na Granja, que era nem mais nem menos que o dito regedor da freguesia, o Guedes, que tinha uma enorme casa de comércio, que tinha uma alfaiataria, e o meu pai e a minha mãe diziam “a Ana, costureira, tu, alfaiata…” e cada um tinha que ter uma arte, não é? O Domingos, o meu irmão mais velho, era serralheiro e… tudo definido... era preciso era trabalhar, trabalhar a sério… e os valores da honestidade do trabalho, e os valores de… “Ah nós temos que mostrar o que valemos para podermos dizer alguma coisa”, o meu pai, mesmo com o… tinha sempre esta consciência absolutamente incrível. E, pronto, eu vou para essa casa. Essa casa marca em absoluto todo o meu percurso, mesmo até, de alguma forma, com as ajudas, com tudo, a consciência, ou seja, a gente não sabe bem, não é, o que é que é, o que é que não é… mas aquela sensação de que desigualdade, que… epá, que coisa, que maltrato, que tanto trabalho... nessa casa, então, eu vou para a alfaiataria, para aprender a arte de fazer calças, porque na altura era a grande moda das raparigas usarem calças, e eu queria ter o corte de alfaiate para fazer calças, para ganhar também dinheiro em casa. Coisa que nunca me deixaram, sempre me recusaram e nós, eu nem podia chegar junto do Sr. João, que era o mestre, para não ver como é que se cortava as calças. Estou na alfaiataria, mas sou muito… era grande na altura, consideravam-me grande, que é esta altura que eu tenho hoje, não é muita, mas eu era a Rosinha Grande, e então, eu sempre tive muita força física, ainda hoje, a pegar na minha mãe e as minhas irmãs dizem “Eh Rosa”, é força braçal. E como é que, o que é que acontece? O que acontece é que eu passo a ser pau para toda a obra, mesmo naquele caso. Eles faziam as feiras, as feiras de Espinho, da Arrifana, dos Carvalhos… e a Rosa o que é que começa a fazer? Fica a dormir lá de domingo para segunda, porque eu era boa era a carregar as carrinhas, a montar as bancas e faço as feiras, durante para aí, ora, 13, 14, 15… 2 anos e tal. E só ia à sexta-feira para a alfaiataria, porque eu era muito boa a casear, a fazer as casas e tal, então eu, que era para entregar a obra e tal, eu lá ia. Mas era uma brutalidade, quer dizer, ou seja… eles depois quiseram que eu lá ficasse a dormir para ser quase como uma entregada interna, a minha mãe foi lá, fez um grande barulho, a dizer “Ela tem casa, e vem para casa!”, eu já só ficava na altura de… às quatro da manhã nós carregávamos as carrinhas… feira de Espinho, aquilo foi, eu tenho uma paixão ainda hoje pela feira de Espinho, fantástica, não é, fiz aquelas feiras todas… as feiras dos Carvalhos, as feiras da Arrifana, ajudava em tudo que era braçal, tudo que era braçal. Os filhos que eram ali também uns desgraçados, a trabalhar, que nem deram formação aos filhos, nem nada. Ele era um fascistola, era um homem, era o regedor, faziam aqueles grandes banquetes com os padres de São Félix, de Arcozelo, imensa gente, aquilo eram banquetes… e mais tarde percebe-se que estavam lá os PIDE’s também, não é, quer dizer, ou seja, aquilo era… mas gente muito rudimentar, muito sem formação, muito só na base do dinheiro, do dinheiro, do explorador. À frente há uma grande fábrica têxtil, que mais tarde a minha irmã, a seguir a mim, a Emília, vai também para essa fábrica.
Eu digo isto tudo assim de seguida, porquê? Porque há um momento em que eu me insurjo contra aquilo, contra esta situação dele. Eu ia para as feiras, na apanha da batata eu ia apanhar a batata, eu ia buscar baldes de lavagem para os porcos, à casas dos ceguinhos, que me apaixono, aos 13 anos, por um deficiente que fazia poemas maravilhosos, foi a minha maior paixão de todos os tempos, eu… até isso eu fazia com entusiasmo, porque lá está, eu arranjava sempre motivos para ter entusiasmo nas coisas. Portanto, a minha vida passa a ser assim, nas noites de… eles experimentavam, eu ia fazer as camas, punham notas e notas e notas, eu era considerada a pessoa mais séria, eles tinham mais confiança em mim do que tinham nos filhos, porque eu não havia… como a minha mãe, o meu pai dizia, a minha mãe “Um tostão que cai na nossa mão, que não é nosso, ele queima!”, pronto, eram valores de honestidade absolutamente brutais, isso em relação ao meu pai, uma brutalidade, ao meu pai deve-se esses valores do trabalho e à minha mãe deve-se os valores da higiene. Nós éramos conhecidos por os lavadinhos, remendadinhos, mas sempre muito, muito higienizados, a minha mãe é uma coisa absolutamente fantástica em relação a esses valores da limpeza, temos uma irmã minha que é como a minha mãe, que é, que lhe é, demais e tal, mas pronto, mas o meu pai desse ponto de vista tinha muito esses valores, e portanto eu, de facto, eles confiavam ali, os cofres, confiavam ali, eu confiava e tal. Começo… íamos à missa ao domingo, eu era obrigada a ir com eles, isto logo nos primeiros dois anos, que eu fui para lá e ainda tinha 12, ainda tinha 12 anos quando fui para lá. Entretanto, eu começo a recusar ir à missa, eles começam a dizer que eu estou com ideias de Jeová, aquelas coisas muito estranhas e tal… e eu… o Domingos, o meu irmão mais velho, vem trabalhar para a Duarte Ferreira, uma grande empresa metalúrgica, havia ali no Palácio, eu agora posso não dizer o nome certo, não importa… e começa, também tem lá a sua história fantástica, ele tem a oportunidade maravilhosa de estudar à noite, era o melhor aluno de São Félix da Marinha, dava explicações a todas as crianças repetentes… e ainda fez a admissão, a quarta classe e a admissão, o padre quis que ele fosse para o seminário, e o meu pai era anticlerical, e disse “Padres aqui nunca, nem nada!” e ele também vai trabalhar para trolha, também, enfim, na quarta classe, mas aos 14 anos, era rapaz, podia estudar, e o Domingos vai, ele é o mais velho de nós, eu sou a terceira. Começa a vir os livrinhos lá para casa, e eu começo a ler os livros, muito interessada em ler os livros, eu só os deixava, mas eu fui sempre irrequieta, fui sempre e tal… era sempre, porque era muito assim da rua, não era nada das coisas da casa, era muito da dinâmica, sempre muito, epá, não ficava calada, e tal… e na natureza. Mas, começo a ver “A Mãe” de Máximo Gorki, “O Tempo, o Mar e a Ria”, o livro que me apaixonou, que eu sempre adorei rimas e poesia, “O Tempo, o Mar e a Ria” do Augusto Lindolfo, que depois foi um grande traidor, infelizmente, que meteu muita gente na cadeia, e o Timóteo foi um dos que teve que fugir da Castanheira do Ribatejo, fruto dessa traição, mas aquele livro a mim apaixonou, porque era “O Tempo, o Mar e a Ria”... Aveiro, era, então, com o sentido revolucionário dos… dos moliceiros, coisa lindíssima esse livro… e “Os Subterrâneos”, “A Mãe”, já disse, não é, já disse, “Os Subterrâneos da Liberdade” e eu ia lendo assim… mas “A Mãe” do Máximo Gorki era uma coisa, eu sentia-me assim, podia ser assim… eu sentia que, epá, que era isso, que era preciso fazermos alguma coisa contra o regime, na altura, a guerra colonial, lá muita gente, muitos jovens não vinham, ou vinham molestados, as mães choravam, tudo isso, era aquela revolta contra a guerra colonial, era muita revolta contra a guerra colonial, e eu falava, e “Shh, tá calada, que não se pode falar” e ia para a coletividade… isto, os inícios, os inícios. Na empresa, digo logo que não vou mais para as feiras, não vou mais fazer absolutamente mais nada, o meu local de trabalho é a alfaiataria, enfrento ali, 14 anos, dos 14 para os 15, isto mais ou menos assim, e então me enfrento ali a fera do patrão. “Tu não sabes o que estás a dizer! Eu vou fazer queixa de ti ao teu pai!”, porque o meu pai, como era conhecido por violento, ele achava que eu tinha medo do meu pai, ora nunca tive… “Eu vou fazer queixa! mas que é isso” e tal... então eu disse “Faça o que quiser, o que lhe apetecer, mas é na alfaiataria que eu vou, eu quero tirar o corte de alfaiate, eu quero saber, aprender a fazer o corte de alfaiate para saber fazer calça!” e não arredo o pé, e nunca mais fiz as feiras. Mas aquilo foi uma brutalidade, porque na aldeia constava-se, sabes, pequenino, tudo muito pequeno, que eu como que tinha virado… que havia um problema qualquer… que eu era Jeová… e mais tarde começam a dizer que eu era… que eu era vermelha, tinham até medo de dizer a palavra comunista. O processo ali na empresa começa a ser muito difícil, não é, claro, mas eu era uma trabalhadora de excelência, e o mestre adorava-me, e eu fazia um trabalho que era uma coisa espetacular, mas aprender o corte de alfaiate é que não podia ser, ela dar-me o corte de alfaiate, mas passados uns largos meses, eu arranjei quem me ensinasse o corte de alfaiate, numa senhora, que eu não me lembro o nome, mas que eu tirei o corte e passei a fazer calças em casa na máquina de costura que o meu pai tinha comprado para nós, eu fazia quase um salário igual a fazer calças, e eu ali a dizer que eu fazia calças e levava para a hora de almoço eu… ali a afrontar, a acabar calças que eu levava e tal, pronto. Com uma coragem, com uma força, com uma determinação que nada me fazia mover, aliás, o medo acho que nunca foi assim uma coisa, mas era com uma coragem absolutamente fantástica! Olhar para trás… a gente, onde é que se vai buscar? Onde é que se vai buscar esta…?
Passo depois a ter, claro, quer dizer, com os livros e tal, depois o Domingos arranja um encontro e vão umas mulheres do Porto, ora eu era da aldeia, nunca tinha vindo ao Porto na minha vida, nunca nada, não é, nada, nada, nada, até que então vão umas camaradas, que era a Luisa Peixoto e a Alina, que é a mulher do Henrique Sousa, pessoa à qual eu tenho a maior das estimas, e… elas vão lá à casa, eram intelectuais, falavam muito bem, eu só tinha a quarta classe, não é, claro, estou habituada ali àquela vivência, eu adorei aquelas mulheres, aquelas mulheres jovens também, eram mais velhas que eu, um bocado, mas jovens, e eu muito contente e convidam-me para fazer parte do Movimento das Raparigas, que tinha que me deslocar ao Porto, deixam-me ficar também mais uns livros, e começa por essa coisa do Movimento das Raparigas ligado ao Movimento da Juventude Trabalhadora, e como eu era do Movimento da Juventude, como eu era trabalhadora, então, se eu queria fazer parte do movimento… “Claro que quero, claro, eu era tudo, é claro mesmo, sem qualquer dúvida!” e aquela perspectiva de eu fazer parte do Movimento das Raparigas e ir ao Porto, isso era tudo uma revolução. E começa aí a minha ligação, mas a consciência, o ser ali muito da aldeia, o não ter, encantou-me aquela força delas, porque elas falavam do qual era o objetivo, de organizar as greves, porque não havíamos de ter melhores salários, porque a guerra colonial, a guerra devia… devia acabar já, dizia logo eu, o regime fascista, aquilo era tudo que eu via nos livros e que elas me estavam ali a falar, aquilo era uma coisa absolutamente fascinante, era fascinante aquilo tudo.
E a partir desse momento, eu intensifico de alguma forma outro tipo de atitude também no local de trabalho. Eles… não havia horas, não havia horas, nós ficávamos às oito da manhã e nos dias no final da semana, porque tínhamos que entregar a obra, podíamos sair às nove, às dez, não havia horas… então, com a vantagem de que antes a alfaiataria era separada da fábrica, mas eles depois reestruturaram aquilo e vamos supor que era esta casa, sem barreira nenhuma, aqui a alfaiataria iria para aí para a frente, onde está a Leonor, era tudo a fábrica, a fábrica têxtil, mesmo têxtil, de fio, etc. Estava aqui a grande alfaiataria e é claro, eu comecei logo por dizer “Tenho horas para ir embora”, a impor ali, mas eu falava com as outras mulheres, porque havia um mestre e um colega alfaiate, que era o Edmundo, que era surdo-mudo, que eu amava, e que foi espetacular, num momento crucial. As mulheres tinham muito medo de tudo, mas eu dava ali muita força. E “Não, vamos nos juntar, vamos fazer o trabalho, vamos sair todas às oito horas, pelo menos às oito”, da noite, não é, uma vinha comigo, a Rosinha, que era outra, que agora o meu irmão descobriu que eu acho que vou chegar a essa Rosinha, que nunca mais depois na vida tive contacto com essas pessoas. Conclusão, ele, para nos obrigar, e um bocado como retaliação da minha atitude, obriga-nos a fazer o trabalho e registar tudo para fazer o controle ao fim do dia, tínhamos uns cadernos que tínhamos que registar. E eu “Filho da mãe, pá! Vá, então que ponham aqui um apontador”, temos que fazer este trabalho, ainda temos que registar… e era uma brutalidade, as entretelas dos casacos, os bolsos… era um trabalho absolutamente brutal… e as senhoras das máquinas, não é, também revoltadíssimas com aquilo. E eu disse “Olhe, vai-se fazer de conta, tirámos os papéis para o lado, quando ele vier pedir, não temos preenchido”, “Ai, Rosinha, mas que o meu… olha que ele vai pegar…”, “Não há problema nenhum, se houver problemas, eu assumo”, foi fantástico! Chega o momento em que... Estou a falar demais? Chega o momento em que… ele vem pedir as folhas de trabalho, vem pedir as folhas de trabalho, toda a gente… tudo parou, e ele com a régua na mão, assim, de pé, com a… as réguas da alfaiataria são imensas, não é, a bater assim… “Quem é que decidiu? Porque é que as folhas não estão preenchidas?” e ele era o regedor, o Sr. Guedes, a pessoa mais importante da aldeia toda, “Quem é que decidiu não preencher?”, mas com uma violência absolutamente brutal. Uma sexta-feira, estava eu na minha banquinha, que eram umas mesinhas individuais, a casear os casacos, casacos, calças e tal… que era o acabamento da obra… e ele faz assim com a régua no chão, as colegas todas, pá, em pânico, pararam, não é, todas em pânico... eu levanto-me, “Fui eu. Fui eu. Olhe, ou trabalhamos ou escrevemos. Se quer… ponha aqui alguém para escrever!”, “Ah, sua filha da puta! Quem é este tu para te dirigir assim a mim?” e eu levanto-me e disse “Vá chamar filho da puta aos seus filhos, a mim não me chama filha da puta” e ele vem com a régua para me dar e eu pego na banca e zaz - por acaso ele afasta-se, a fábrica pára toda - “Seu explorador capitalista!” olhe, eu nem sabia bem o que é que aquilo queria dizer [gargalhada], mas eu andava ali já naquela revolução toda. “Seu explorador!”, aquilo foi um escândalo… “Seu explorador capitalista! E vou lhe dizer mais, vou-me embora e não ponho cá mais os pés!”, ainda foi a minha irmã mais velha lá receber o que eu tinha direito, porque eles não queriam pagar [gargalhada] e nunca mais, e saio e nunca mais lá ponho os pés. A Emília trabalhava na fábrica, não é, mas estava por suspeitos também logo, porque nem quis lá ficar, foi depois trabalhar para uma fábrica de caixas e pronto. Mas, conclusão, aí venho eu embora, mas de peito feito, completamente orgulhosa da minha atitude. Chego a casa, isto eram quatro da tarde, mais ou menos, a minha mãe à… com o meu pai, que os copitos já era violento e tal… “Ah… ah… o teu pai vai-te matar, que vergonha, o teu pai vai-te matar” e dá-me um estalo, ora a minha mãe nunca nos batia, e zaz, um estalo. O meu pai… chegava na sua motinha, ao fim da tarde, e eu à espera dele, toda importante, isto com 15 anos, muito importante, 15 já, assim... “Pai, é para lhe dizer que eu vim-me embora do Guedes e nem morta, eu ponho lá mais…” estas palavras têm muita piada “nem morta me vai obrigar, senão eu fujo, nem morta, não ponho lá mais os pés!”, ele olhou assim para mim, ele tinha orgulho na minha força, eu é que levei mais pancada, mas ele tinha orgulho… e ao contrário do que a minha mãe dizia, coitadinha, em pânico no fundo, “Olha, quero-te aqui na segunda-feira com um trabalho. Na segunda-feira vais à procura e quero-te aqui já com o trabalho arranjado. E esta noite vais com a tua avó para o Mercado de Bom Sucesso” - que ela era florista e tinha uma banca no Bom Sucesso - “vais com a tua avó no camião ajudar a vender as flores no mercado” e eu assim fui, encantada da vida, às quatro da manhã na carrinha, era um camião aberto, a gente tinha… ela tinha flores dela e nós também tínhamos flores nossas, foi aí que eu descobri que ela dizia que não vendia as da minha mãe, mas eu descobri que ela vendia as da minha mãe, e enfim, pronto. E na segunda-feira vou para o Espinho à procura de trabalho. E arranjo uma alfaiataria na Rua 21, mesmo ao lado da Câmara Municipal de Espinho. E trabalho ali e dali saio para a casa clandestina do partido. Na Rua 21, onde toda a atividade fazia alguém em Espinho, mais tarde tenho um PIDE que fica à porta, à espera que eu saia, eu era toda para a frente e ia distribuir papéis à Fundição de Espinho, colocava muita propaganda nas árvores antes das feiras começarem, ia a pé para ter dinheiro para comer a minha bola de berlim de Espinho que era maravilhosa, maravilhosa… e sempre a colar os papéis da... olha, colava também muito do Che, que eu amava o Che Guevara, os papeizinhos contra a guerra colonial, os papéis contra a carestia de vida, os papéis por as 48 horas de trabalho, imagina que na altura eram as 48 horas, se bem me recordo! Enfim e era... e é onde já nessa altura, eu com 15 anos tive o meu primeiro encontro com um funcionário do partido clandestino, porque eu passo logo ao partido, ou seja, eu estou no Movimento da Juventude Trabalhadora, mas contrariamente a muitos jovens, como eu era uma trabalhadora já com um grande... ou seja, coragem e… eu passo logo, sou logo convidada para ir para o partido. E quem me convida para ir ao partido é o camarada Henrique Sousa, o meu grande amigo camarada Henrique Sousa, sou convidada a ir a uma festa de juventude na casa do Henrique, estão vários jovens e é o Henrique que diz “Oh Rosa, temos uma proposta para te fazer se queres aderir ao Partido Comunista Português” e eu estava ansiosa por aquilo, porque eu já, claro, quero dizer, eu para mim aquilo era tudo o melhor que podia acontecer, como é evidente! E passo logo ao contacto com um funcionário do partido clandestino, que é o grandioso Ernesto Afonso, que é padrinho da Belinha, a minha filha, e é com ele que eu tenho o primeiro encontro com um funcionário. Mas só voltando atrás para dizer que... as minhas irmãs… todas foram do rancho folclórico, da coletividade que se chama o ranchinho, nós tínhamos uma vivência no ranchinho absolutamente fantástica, mas eu tenho uma irmã... a Emília era espetacular no teatro, eu não podia ter as saídas do rancho porque eu tinha bronquite asmática e não aguentava, portanto, a dança total, andava nos ensaios, andava... mas tinha que manter a dança, tinha que me resguardar porque podia-me dar o gogo, como se dizia na altura, uma coisa do canto… e então era no teatro. E antes do 25 de Abril, no ranchinho, na coletividade de Moinhos, de São Félix da Marinha, começámos a ensaiar a “Forja” do Alves Redol, que depois é proibida, é proibida, e a “Forja” do Alves Redol, reparem, àquela época, era já também a influência de toda esta dinâmica, não é… e eu fazia a morta, que era a “Forja” do Alves Redol, tá lá a peça e tal… e os ferreiros eram tão explorados, tão explorados, trabalhavam tanto, tanto, tanto no ferro, que eles muitas das vezes chegavam ao fim da jornada de trabalho e queriam era morrer, o morrer era… quer dizer, era o sentir, e eu era a morta, vestida de branco, que vinha chamá-los para os libertar daquela exploração, era dado o sentido da morte, mas era a libertação! E eu dizia “Miguel, vem Miguel, acende a forja o seu sol e os maios já estão cantando, as canções que as estrelas esqueceram de cantar e esmagadas pelas bigornas, as derradeiras estrelas que parecem dormitar… noite, noite, noite, noite”... esta parte, o ensaiador, que depois do 25 de Abril, viemos a saber, era bufo da PIDE, bufo da PIDE, não me deixava dizer isto e eu amava dizer isto! Enfrentei e… fazia sempre aquilo até ao fim! Pronto. Também num dado momento, por orientação, na altura era os contactos também com o Henrique, e eu entro também na JOC, na Juventude Operária Católica, muito pouquinho tempo, isto é tudo muito rápido, não é, pouco tempo. Faz-se um conjunto de convívios em São Félix, chegámos a juntar 300 jovens, 300 jovens! Eu atraio o padre, danço com ele, embebedo o padre enquanto o Hermínio, que já faleceu, o Henrique, a Aline, a Luísa e tantos outros… o Luís Viegas, que tocava e cantava, a irmã do Henrique também… e jovens de lá, que trazia raparigas e tal… com o pessoal e tal… e então fizemos um convívio absolutamente fantástico, com panfletos, quando fomos buscar o saco dos panfletos debaixo do tanque, tinha desaparecido [pausa], tinham roubado os panfletos, mas mesmo assim os camaradas ainda conseguiram, o Hermínio representava uma peça que era da pomba, que não tinha liberdade, para consciencializar aquela juventude do que é que nos fazia estar ali, não é, e o padre João, que era um velhote que me adorava, andei a dançar com ele enquanto eles fizeram o discurso, fizeram a intervenção, só não tiveram os panfletos… até hoje nós não sabemos… aquilo era uma quinta, que o Domingos até já lá foi fazer um trabalho de filmar, aquilo era uma coisa fantástica, que foi cedida, era a quinta da… que depois ficou das irmãs marias não sei das quantas e tal… 300 jovens! Que na altura se juntava, portanto, de vários, de Espinho, de São Félix, de Arcozelo… uns aqui e outros ali, outros ali, pronto, era uma dinâmica absolutamente e que… isto de 72 para 73, porque depois de 74 já… e 73 para mim foi só mesmo até Setembro, não é, pronto, ou seja, onde eu participei e havia depois já
vários outros, que a gente nunca sabia bem, eu e o Mingos em casa nunca falávamos, como é evidente, por questões absolutamente… eu não sabia nada dele nem ele sabia nada de mim! Era… os livrinhos… as amigas apareceram lá, mas eu não sabia nada dele, nem ele sabia… até que depois ele é preso, não é, na manifestação de 72. E… portanto, quer dizer, tudo isto… aparecia pichagens, a gente fazia contra a guerra colonial e depois diziam então que esses convívios que nós fazíamos que era… era tudo um bando de… de… que nós fazíamos convívios todos nus de gravata, a propaganda era tão. tão grande, tão grande contra o movimento da juventude que se insurgia contra o sistema, contra o fascismo e contra a guerra colonial… e a carestia de vida estava muito marcada, na luta, e na altura, por melhores salários, por melhores salários, não é, e portanto, isto movimentava os jovens, era aquela… aquela época em que as coisas estavam já em grande ascenção do ponto de vista da revolta, já era uma época de ouro, eu já vivi uma época de ouro, além do 25 de Abril, antes isto já era uma época de ouro!
Entrevistadora - Portanto, havia já…?
Rosa Dias - Havia, havia… havia já vários movimentos, já aquela coisa dos militares, dos coronéis de março… mas, quer dizer, era de facto o pulsar das massas, era o pulsar… e a juventude… era a juventude! A juventude é que estava nas lutas, a juventude é que fazia as ações, aliás, a grande manifestação contra a carestia de vida de 72, em que o Nelson Bertini é preso, o Domingos é preso, o Jorge Pisco é preso, é… é… é das grandiosas já manifestações. Eu ainda em 70, inícios de 72, o ato mais revolucionário em que eu participei, imagina-se, Leonor, foi num funeral de um grande revolucionário metalúrgico, que não me lembro do nome, o funeral foi absolutamente incrível, nós a cantarmos baixinho canções do Zeca Afonso, a PIDE de todos os lados, e a grande manifestação de despedida desse metalúrgico, portanto, já era. Eu não sei se na altura houve prisões ou não, não faço ideia, porque ninguém sonhava que eu já me sabia meter na camioneta e ir ao Porto, sozinha, não é, claro, nunca nada ao meu Mingos, nunca nada, nada, quer dizer, ou seja, era sempre assim.
Depois apaixono-me por um camarada… que escrevia poemas muito bonitos, que era da construção civil, que foi o meu primeiro namorado, levo muita coça do meu pai, porque dizia que eu andava aos beijos com um rapaz, tinha 15 anos, 15 anos mesmo e isso depois também tem ali toda uma… uma… enfim, um impacto
também, porque o meu pai não deixava, não havia rapaz da aldeia que se aproximasse, tinha medo do Zé Bispo, que ele era conhecido por Zé Bispo, portanto, há toda… ou seja, sempre… sempre a enfrentar, opá, o proibido, sempre esse lado, esse lado… das coisas. Quando o Mingos é preso, em 72, eu também vim à manifestação, mas eu não devia vir, porque os camaradas, quer dizer, deviam estar a pensar “Está o Domingos, não está a Rosa”, mas eu fui, eu fui na mesma, isso tinha de ir, mas venho mais cedo embora, quer dizer, não entro mesmo no desfile, estou ali e tal, mas…
porque eu tinha percebido bem, não é, a orientação quer do Ernesto, quer mesmo até do Henrique, que… que não, não disseram porquê, mas dava para perceber porquê, mas eu lá fui e tal. Quando chego a casa, há um primo meu que também estava na luta, o Américo, que morre até em Moscovo, por acaso, num acidente, em 72, no Rio Moscova, lamentavelmente, era um jovem incrível, que era o nosso primo que morava mais em baixo, porque depois isto vai tudo aumentando, aumentando, aumentando… é uma coisa fabulosa, e ele diz… que eu estava à espera de notícias, e ele diz “O Domingos foi preso” e eu “Ok, depois nós vemos a melhor forma de informar aqui em casa”, eu salto para o quarto dos rapazes, porque era um quarto das raparigas, 5, e um quarto dos rapazes, 3, havia dois e nós dormíamos todos juntinhos. E então a minha primeira grande atitude foi pegar no caderno preto, porque nós tínhamos uma biblioteca, tínhamos uma biblioteca no quarto dos rapazes, e quando eu estava a ler um livro o meu pai dava-me porrada, porque os livros eram para os rapazes e não para as raparigas, tal era a consciência da dificuldade das raparigas, da mulher se afirmar, até neste lado, incrível mesmo, neste lado assim, que eu era, eu cheguei a levar grande porrada, aliás eu tenho aqui um golpe, que agora quase já nem se vê, muita porrada, porque eu tinha que ler às escondidas e quando o meu pai me via a ler era um problema seriíssimo. E então eu arranjo um saco e meto os livros que eu considerava… e ah… essa biblioteca como é que se fazia? O Mingos era o organizador e eu era a agitadora, eu arranjava lá no rancho e tal, quem quisesse livros, 25 tostões, e o nome, levava o livro e depois tinha que devolver, e 25 tostões era para depois tentar comprar livros, a biblioteca que é a das histórias que eu conto à neta, entre outras, é a história da biblioteca na casa… na nossa casa e no quarto dos rapazes. E então tem uma janela, e o campo junto à janela, estava cheio de ervilhas de quebrar, porque a minha mãe semeava muita ervilha de quebrar e muita outra coisa, não é… e eu pego… porque o livro, nomes, não pode estar aqui, porque a PIDE iria lá aparecer, nós já estávamos avisados, não é, e então meto os livros, que eu considero mais perigosos e o caderno preto com alguns manuscritos, que eu nem vi o que era, não me interessa nada, meto tudo no saco, salto da janela, isto ainda sem ninguém saber nada, mas… há dias descobri que a minha Emília, a minha mana a seguir a mim me ajudou a cavar o buraco para enterrar, que é uma coisa fabulosa, não é. Pronto, e então cavei no meio das ervilhas, enterrei o saco e depois dei sinal ao Américo, para o Américo ir chamar o meu pai à tasca, que ele estava sempre na tasca, para dizer que o Domingos tinha sido preso pela PIDE, levou porrada de meia noite, foi para o São João e depois foi preso. Pronto, é também uma… uma fase, um momento… o meu pai chegou à minha beira e disse “Sua filha da puta, tu sabias que o teu irmão estava nessas coisas, tu andas na mesma, tu andas na mesma” e eu na máquina de costura a fazer de conta, eu andei sempre de rabo de cavalo, sempre usei rabo de cavalo, a maioria… e ele pegou assim no rabo de cavalo e tumba, tumba, tumba, tumba… e eu a deitar sangue… revoltado, mas depois foi brilhante na cadeia, portou-se, o Arnaldo Mesquita a dar a orientação de como se comportar, o meu pai foi heróico na cadeia, a minha mãe só chorava, coitadinha, juntamente com a mãe da Luísa, juntamente com outras mães, na PIDE, não é, claro, mas o meu pai foi brilhante “Então rapaz, vieste ao Porto para visitar a tua tia, que está no hospital, e prendem-te?”, era as instruções. E rasparam-lhe o cabelo, ele usava rabo de cavalo, o Mingos, e rasparam-lhe o cabelo, “Tu estás cheio de piolhos e rapam-te o cabelo! Estás cheio de…” - de… como é que se chama aqueles bichinhos? Não é piolhos… é… o bichinho da roupa, agora não me lembro, bem - “Tu não tens piolhos, rapam-te o cabelo? Para quê? Para quê? Nem lençóis tens na cama!” ali completamente e ali naquela sempre… dizia em casa que o matava quando ele saísse… mas a alegria de o ir buscar depois no dia 4 de Maio foi… no dia 9 de Maio, no dia em que ele foi solto.
Tudo… todo esse caminho, todo esse caminho que leva a… à forma como eu reajo quando o partido me deposita a confiança ao me chamar para a clandestinidade, para funcionária do partido, e é depois uma outra fase, naturalmente, da vida, muito curtinha, muito rápida, mas… brilhante!
Entrevistadora - Então o Ernesto encontra-se contigo…? Na altura não sabias que era Ernesto, não é?
Rosa Dias - Não, nada, nada! Para mim era um amigo, nem nome, nem interessava nada. Quando eu tenho o primeiro encontro com o Ernesto, é na Afurada, era um pinhal, na altura aquilo era assim tudo muito deserto… e o Ernesto diz uma coisa que me embaraçou muito, que eu fiquei assim muito à rasca, olha eu nunca tinha ido para a praia, não tinha fato de banho nem biquini, não era… apesar de ter ali a Granja e o mar ali perto, não era ainda nossa, não fazia parte de nós… e diz assim o Ernesto “Oh miga, trazes algum fato de banho?” [gargalhada] “É que se for assim descemos e disfarçamos melhor” [gargalhada] e eu vermelha, que eu ficava muito vermelha [risos] eu a olhar assim para aquele borrachinho, que ele era tão bonito, eu a olhar assim para aquela figura, que ele era uma coisa… ter um encontro com um funcionário clandestino era uma coisa absolutamente fabulosa, não é… ele ajuda-me… há uma… eu tinha muito contacto com os trabalhadores da Fundição, eu distribuo lá um documento que é ele que me dá, é ele que o faz, que o traz e, portanto, falávamos de quem eram os outros jovens que estavam a aproximar das iniciativas que iam fazendo, as orientações vinham exatamente… depois o papel do partido, da… várias coisas, aquilo para mim era assim, eu acho que a maior parte das vezes eu ficava tão encantada a olhar para ele e a ouvi-lo que eu sei lá, eu vinha por ali… eu andava sempre aos saltinhos, pé ante pé, até muito tarde, não era correr, era aos saltinhos, gostava muito dessa, e eu saía da beira dele e aos saltinhos, lá ia embora e tal. Pronto, ainda tive muitos encontros com… muitos encontros com o Ernesto, depois até aos 17 anos, não é, eu fiz 17 em Maio de 73, em Setembro é quando há… e então eram os contactos de… ficavam já, ou ficavam programados ou ficavam… já alguém na legalidade, que era o Henrique, passava a senha para ele, a senha também era uma coisa muito engraçada, que nós chegávamos junto do camarada e tu tinhas que dizer qualquer coisa, por exemplo, “A tua tia está melhor?”, era combinado, “Sim está melhor”, “Sabes a que horas passa o comboio?”, eram sempre senhas que nós dizíamos para termos a certeza que estávamos ambos, então o primeiro encontro era uma questão absolutamente crucial, depois as coisas passavam a ter outra… e eu era sempre muito alegre, muito divertida, eu nem sei porque é que eu confiava… porque eu acho que era tão irresponsável, quer dizer, no sentido da… era muito corajosa, sim, mas quer dizer, não levava as coisas… ai já, ai já… já se fez aquela distribuição numa feira… já contactei mais trabalhadoras que vou levar à reunião das raparigas, à casa do Hermínio. E outra coisa muito engraçada, que eu nem disse, elas eram intelectuais, aquelas amigas são o quê, são professoras? Eu a falar assim com gente importante, era… “Olha, ó Mingos, sabes uma coisa engraçada, parecem umas putas a fumar”, elas sabem disto, eu a dizer, eu nunca tinha visto nenhuma rapariga a fumar, e era aquela época já, é uma coisa absolutamente incrível, isto fica depois, quer dizer, que é para se ver que é uma menina, que vem, opá, de uma vivência absolutamente… que queria era liberdade, que queria fazer coisas, que queria era remar contra o sistema, que era terrível, aquele sentimento de “filhos da mãe, pá, filhos da mãe, têm tudo, epá, e nós nunca temos uma banana”, nós para comermos banana íamos a pé de São Félix até Canelas, a casa de uma tia, que vivia melhor, para comermos banana… e queijo! Sabíamos lá o que era queijo, na nossa casa não entrava… era grandes panelas de caldo, do bom, era os porcos que o meu pai matava, o meu pai era o matador dos porcos da aldeia e eu adorava ajudá-lo, nada me metia medo, imagina, essas coisas que até impressiona quem é jovem, não interessa nada, mas, epá, aquelas carnes não faltava, aquelas coisas da terra e tal, mas aquelas coisinhas que eram assim… não tinha, não tinha nada e na casa do ladrão do patrão o que aquilo era… numa das festas desses burgueses, lá estava eu empregadinha, antes de me revoltar, na cozinha a ajudar, aquela gente toda, começava a fazer bolos desde não sei quando, vem para dentro um bolo de chocolate e eu só faço isto… a faca estava… fshhh… levei uma porrada da velhota, que não há nem, pronto… porque, claro, nem sequer tínhamos, portanto, essas vivências e essa relação do trabalho, das imposições… isto a gente não sabe, eu chamo-lhe explorador capitalista sem ter a noção do que é exatamente… mas apliquei-a no sentido exato de que, epá, o que é que ele está ali se não um explorador de um raio, que ainda por cima, procura atemorizar uma menina, pá! Não é… e as outras todas, claro. Pronto, não dá para desenvolver muito depois os diálogos, as conversas, porque era em torno de coisas muito objetivas. Eu estava a trabalhar na Rua 21, em Espinho. A alfaiataria. Tenho também depois uma história, ainda hoje estou convencida que o dono daquela alfaiataria estava ligado a nós, coincidentemente, porque… em Setembro em tenho um encontro com o Zé Carlos Almeida. Para já, um sentimento, tempos antes veio a notícia no jornal de notícias que um comunista tinha tentado assassinar o traidor Augusto Lindolfo, que, por acaso, deu entrada no hospital de São João e que, por acaso, foi o camarada médico António Graça, que cuidou dele, não é, mas ele meteu na cadeia quase o partido todo a sul, esse homem, e ainda viveu em Gaia muito tempo, olha ali em Mafamude! E… e eles descreviam a figura, “Procuramos um comunista” isso eles na altura punham… mas sim, acho que sim… “Alto! Forte! De gabardine castanha”, era a notícia do Jornal de Notícias, que nós claro tivemos acesso e tal… e, portanto, era o procurado. Eu chego ao antigo estádio das Antas, andei a pé não sei quanto… por ali fora, até chegar ao estádio, que era o ponto de encontro, chega a hora, aquilo tinha que ser, ao minuto, não podia falhar, quer com o Ernesto Afonso, que era o funcionário clandestino, quer com o Zé Carlos de Almeida, o amigo, que eu ia ter um encontro com um camarada que era da direção do partido, era um camarada da direção do partido! Queriam falar comigo e eu estava ansiosa, eu nem dormia, ai um camarada da direção do partido vem falar comigo! E eu a pensar, eu fiz alguma asneira? Pensava eu… eu fiz alguma asneira? Eu sempre nessa… mas longe de mim, eu nunca imaginava o que é que ia acontecer. À hora certinha, digo a senha e nessa altura foi a senha do comboio, passou às 15h, no comboio tal, para Campanhã, pronto, a senha direitinha, se tivesse alguma coisa escrita para não esquecer, nha nha nha, à primeira coisa, já enfrentei eu, mastiguei o papelinho, pronto, para não haver risco de nada. Pronto, e ele “Olha camarada, temos 20 minutos para a nossa conversa”, ele a olhar para o relógio, “Temos 20 minutos para a nossa conversa” e eu olho para ele, para cima e para baixo, e eu orgulhosa, “Foi ele, foi ele que tentou matar o traidor” [gargalhada] era uma coisa absolutamente incrível, que era um disparate [risos], mas enfim, não é. E o amigo fala-me então que o partido considerava que… que, prontos, que tinha chegado a hora e que eu reunia todas as condições para dar o salto, para ir para uma casa clandestina, se eu estava de acordo, eu disse logo imediatamente que sim, que estava de acordo, fiquei logo muito contente e ele disse que eu ia ter um encontro com o camarada com quem ia montar a instalação do partido, não se falava em casa, era a instalação do partido… perguntas… e eu “Mas eu não quero ser camarada de apoio! Eu quero ser camarada de ação e de intervenção nas organizações e com os camaradas” e ele “Tá bem camarada, tá bem, mas agora na mesma instalação do partido, isso depois vê-se, isso depois vê-se, na mesma instalação do partido há um que tem trabalho externo e o outro que vai dar o apoio, o que nós estamos a propor é que tu sejas funcionária do partido interna, de apoio, dás a entrada dos camaradas para as reuniões, pronto, vais cuidar da segurança da instalação do partido” e eu aceitei! Não fiquei assim coisa, mas eu queria era logo andar também… ou seja, ter também a ação política, mas muito bem, aceitei muito bem. Ele estava a falar, a falar, olha para o relógio e disse “Camarada, acabou agora o nosso encontro, segue em frente” diz ele “segue em frente e não olhes para trás”, porque as questões conspirativas… e eu, é claro, segui tanto em frente, que em vez de virar depois para o Porto, para vir para Gaia [risos], fui tan tan tan tan tan tan de pé até à Areosa [gargalhada], da Areosa venho a pé até à Batalha, para apanhar a camioneta para ir para casa. E isto tudo sempre com os meus pais a achar que eu estava a trabalhar, porque ao sábado eu trabalhava sempre, só que eu ao sábado, muitas vezes, fazia… e ia até noutros dias… voltava e “Ah vou-te descontar, vou-te descontar”, “Ah Sr. José não desconte”, porque a minha mãe tinha de receber o salário inteirinho, não é, “Não desconte, então depois eu trabalho mais e tal” e ele, de facto, pá, naquele tempo nunca descontou, quer dizer, como é evidente. Porque eu quando saio do Raposo… eu tinha 16 anos, já, quer dizer, tinha 16 anos, portanto, eu ainda consigo estar ali numa batalha grande, tinha 16, porque eu vou… eu não trabalho assim muito tempo na Rua 21, portanto, eu trabalho, eu devo ter ido mais ou menos nos finais de 72 e inícios de 73 para essa alfaiataria.
Depois deste encontro com o Zé Carlos de Almeida, portanto, ou seja, com o funcionário da direção do partido, um dia estou eu a ir para a Fundição de Espinho, agitar, não é, claro, falar com as jovens… olho para trás e quem vejo? O Zé Carlos de Almeida com a mulher, a Faustina, que eu achava que era a filha, mas que era a mulher, ela é muito pequenina, não é, e eu fico assim muito atrapalhada e é claro, quer dizer, e… foi um problema bem aborrecido, porque eu informei na altura o Ernesto, acho que foi, exatamente, e isso tinha problemas conspirativos bastante sérios. Na alfaiataria vejo o fato que era o fato que eu achava que o Zé Carlos de Almeida tinha vestido no dia, que era castanho com um fiinho amarelado, ora coisa que também não podia acontecer, não é, ou seja, por razões de… mas eu caladinha, completamente, e tal… é natural, aquilo era uma alfaiataria, eles viviam… venho depois a saber que a casa clandestina do Zé Carlos, da Faustina, era em Espinho, na… na altura na rua… já não sei, era na Rua da Feira, acho eu, porque depois mais tarde veio naturalmente a saber.
Entrevistadora - Ok… acabas por ser clandestina sem ir para a casa. Como é que foi esse processo? Recebeste uma nova identidade? Como é que te afastaste do resto da família, do resto da…?
Rosa Dias - Eu da família estava, portanto… esse período até ir para a casa clandestina é claro que estava com a família em casa, ia trabalhar, vinha, não podia ter nenhuma atividade, mesmo, a não ser o encontro com o Timóteo, pronto, ou seja, com o amigo com quem eu ia viver. E o primeiro encontro foi na Avenida da República, havia um cinema e um café, acima do que é agora a paragem do el Corte Ingles, havia um café redondo e o encontro com o Timóteo foi… que eu não sabia o nome, o amigo, o primeiro encontro foi nesse café. E foi o encontro para combinarmos coisas, pronto, sei lá, isto… o convite é… do partido, é em Setembro e isto depois foi ali Outubro, Novembro, isto depois é tudo ali mais ou menos… poucos encontros, não é. E eu passo coisas para o Timóteo, com um embaraço muito grande, com uma história também que vou contar. Eu tinha que passar a minha roupa, para ele, eu não podia levar nada no dia que saísse, eu saía de casa como se fosse trabalhar, aliás, eu saio de casa e escondo a marmita na cristaleira, por trás. E mais tarde, os meus pais recebem uma carta a informar que é a… que alguém mete debaixo da porta, não, no meu caso, já não, no meu caso foi de correio, foi, o meu caso foi assim, como o Mingos já estava na clandestinidade, eu faço uma carta escrita a dizer que vou seguir… as pisadas do Mingos, que passo a… à clandestinidade, porque eles tinham tido uma informação que o Mingos tinha vindo da União Soviética, que se ele se portasse bem com a minha mãe, poderia haver um encontro, na altura do Natal, de 73 e, portanto, pronto. E essa carta, quer dizer, sou eu que meto ao correio e eles recebem no dia a seguir, que era para não… mesmo assim o meu pai foi à polícia, foi fazer queixa, foi à procura, foi à polícia, à GNR de Arcozelo… que eu tinha desaparecido, pronto, essas coisas todas, não é. E, portanto, eu saio, eu não podia levar nada a não ser a roupa do corpo e mesmo a roupa do corpo - já vou dizer também - portanto… eu deixo a marmita escondida e digo à minha irmã Emília, que era a mais velha, que era muito medrosa, tinha muito medo, “Ai de ti se um dia fizeres como o Domingos, eu mato-te, eu mato-te!” e tal, tinha muitos receios… e à Emília, que tinha menos quase dois anos do que eu, eu digo que vou dar o salto e digo que vou deixar a marmita por trás e para não deixar depois apodrecer, porque ninguém ia depois imaginar que estava ali a marmita. Nunca ninguém até ao 25 de abril soube que a Emília sabia disto, portanto, era mesmo uma coisa entre nós. Portanto… eu, entretanto, tenho um embaraço enorme, como rapariga, pá como é que eu vou passar as minhas cuecas e a minha roupa interior para o amigo, se nós aqui todas vestimos do mesmo, a minha Ana até fazia cuequinhas, daquelas de algodão com o coisinho e tal, o que é que eu vou fazer? Que vergonha! Ele dizia “Olha, amiga, pá vê se um pijama, um ou dois pijaminhas, as tuas coisas assim mais pessoais, a tua roupa interior” e eu “a minha roupa interior?”. Cometi o maior erro, levei uma paulada do partido, eu tava a ver que até… quer dizer, fiz a coisa mais incrível que se possa imaginar. Eu como era do rancho, e a minha avó era avó-madrinha, ela tinha me dado um cordão de ouro e eu peguei no cordão de ouro, fui vendê-lo a uma casa em Espinho, imagine-se, com 17 anos, não é, e esse dinheiro deu para comprar um robe… um pijama inteirinho vermelho, com um flocolinhos, todo muito jeitoso, que eu ia estar perto de um rapaz, ora, portanto, vamos lá ver, não é, o robe, cuequinhas e uma camisa de dormir. E passei então ao amigo coisa de jeito, não é, já tinha passado os lençóis, já tinha não sei quê… prontos, acabei por passar assim essas coisas. E com esse dinheiro, que na altura foi muito pouco, foi… 7, correspondia a 7 contos, ou seja, eles exploraram-me bem, não é, deu para comprar isso e a aliança que eu tinha para parecer casada, e para o partido não ter despesa tinha que arranjar alguém na legalidade e tal… e eu já levava, já tinha a minha aliança, porque nós éramos como casados lá, nós perante os vizinhos era o casal que tinha vindo do sul.
Entrevistadora - E vocês foram viver para onde?
Rosa Dias - Nós fomos viver para Vermoim, Maia. Mas antes de eu aparecer ao amigo, no Porto, junto ao Hospital de Santa Maria, o que é que acontece? Eu vou à casa dos camaradas, Aline, Henrique e Minas, e eles ajudam-me a disfarçar. Eu era, tinha uma cara muito menina, eu não sei se tão a ver a Belinha aqui há uns anos atrás… a cara muito menina, eu tinha só 17 anos, mas parecia… e depois cabelo grande. Então, cortaram-me o cabelo, pintaram madeixas, pus rímel e um coiso preto nos olhos, que eu via-me aflita, era o Timóteo que me fazia isso, porque eu não era capaz, nunca tinha usado na minha vida absolutamente nada, uns sapatos com tacão, que nós fomos a pé de… do Hospital de Santa Maria até Vermoim, Maia, e eu cheia de bolhas nos pés, porque a Aline arranjou-me, que é a mulher do Henrique Sousa, arranjou-me uns sapatos dela, que eram um bocadinho para o grandes e de tacão, e uma saia plissada lindíssima e de pregas verde e amarela, lindíssima, e o cabelo cortado assim a direito com as madeixas, então eu parecia mais velha, de tal forma, que o Timóteo assustou-se porque não me conheceu! Eu tive que “Ó amigo, ó amigo, sou eu, sou eu” e ele pela voz… foi mesmo assim, textual, eu estava tão bem disfarçada, que eu tinha que chegar à minha casa, a parecer mais velha, não é, e com um bom ar, não é verdade. Mas a história das pinturas ajudava a envelhecer e… tipo madeixas, já nem me lembro, eu sei é que aquele cabelo foi todo e pronto. Fiquei ali pá completamente mudada e é uma coisa fantástica!
Entrevistadora - E um novo nome?
Rosa Dias - Entretanto, já me tinha sido, claro, passado… pelo… pelo Timóteo, o camarada com quem eu ia viver na instalação do partido, a minha nova identidade. Era um bilhete de identidade perfeito, uma coisa fantástica, o partido conta muito as histórias dos bilhetes de identidade… todas essas histórias fantásticas. Se me perguntares, epá, como é que era o nome todo? Não liguei nada àquilo! Sei que era Fernanda, Fernanda te te teu, não sei das quantas, que a morada é uma morada do sul, o número do… do… só sei que houve… eu ia pagar a renda ao senhorio que era no Castelo da Maia e fazia-me acompanhar do bilhete de identidade, mas nem eles até perguntaram, já não me lembro bem, eu sei que era Fernanda. E não sabia… e o Timóteo era Guilherme, mas o Timóteo… que agora até puseram o nome Guilherme a um dos netos do Timóteo, o falecido Timóteo, que é uma coisa fantástica, cujo pai dele era Guilherme, portanto, o avô, o bisavô era Guilherme. E… na casa clandestina, claro que nós temos, lemos muitas coisas, um livrinho que eu li de trás para a frente, de frente para trás era o “Se fores preso camarada”, que era um livrinho ainda com aquelas folhinhas muito fininhas. Uma das coisas que era fundamental era as regras conspirativas, nada podia falhar, nada podia falhar. Nas regras conspirativas, quer dizer, nós tínhamos que… nós tínhamos a máquina de escrever em casa, nós tínhamos o stencil de lançar os comunicados, o Timóteo era o camarada responsável, portanto, o amigo, era o camarada que acompanhava as células dos pescadores, da STCP… e outras, portanto, células operárias de grandes empresas, saía vários dias, eu tinha que pôr o sinal para ele, para dar entrada dele, nada podia falhar, do ponto de vista, isso para mim era fantástico, era fantástico! Era das coisas que me dava tanta força, que é eu cumprir as minhas tarefas com grande sentido de responsabilidade e que nada escapasse, para que nunca ninguém fosse preso por uma falha minha, essa era a grande… sempre o grande sentido. Havia lá uma máquina e eu quase não tive tempo de aprender, porque foi muito pouquinho tempo, não é, quer dizer, praticamente, é… é tudo muito intenso! Fizeram-se reuniões lá em nossa casa, na instalação do partido, fantásticas com camaradas da direção do partido! Com o Ernesto, com o Zé Carlos Fininho, que era do Montijo, que estava cá, com o Zé Carlos de Almeida, que era o responsável da nossa instalação, que era quem arranjava as coisas para nós termos em casa, passava, era ele que visitava a casa e que… do apoio do aparelho do partido na legalidade que passavam as coisas para nós, os tachos, as coisas e tal na na… e depois eu ia à mercearia, eu tinha um raio de ação que não podia passar dele, eu nunca cheguei a ir ao centro da Maia, eu estava pertinho do centro da Maia, mas não podia passar daquele sítio! E os sítios de colocar os sinais era no muro…
Entrevistadora - Como é que eram esses sinais?
Rosa Dias - Os sinais era uma coisa, era uma coisa. Olha, dos que me recordo, era… tinha um giz branco, era uma grande cruz de giz e… de giz branco com uma frase, eu não me lembro da frase, é o que eu digo, coisas assim, eu já era, era para aquele momento, não podia ver depois porque não… porque mesmo que houvesse algum problema, eu nem sabia que tinha feito aquilo, não queria saber, outras vezes, eram peças, algumas coisas que vieram, uma pedra, duas pedras, três pedras e sempre com um sinal ou de um visto, de uma cruz, de uma espécie de um rosto, mas eu era muito má a desenhar, eu não sabia, só flores, só árvores, eu só sabia desenhar árvores, árvores assim com folhinhas, tal e tal, pronto, os sinais eram sempre, colocados antes do amigo entrar em casa, ele tinha, ele tinha que ver lá os sinais, portanto, ele nunca entrava em casa, porque podia lá estar a PIDE, eu podia ter sido presa, podia… pronto, tudo isso, ele nunca entrava enquanto, portanto, esses… esses atos conspirativos, como nós chamávamos eram cruciais. Como quando os camaradas iam para as reuniões, o sinal tinha que lá estar, portanto, ou seja, portanto. O Zé Carlos de Almeida é preso quando sai da minha casa, da casa clandestina, 5 dias antes do 25 de Abril, tinha tido uma contribuição, tinha ido antes dos outros, tinha conseguido uma contribuição fantástica, já não me lembro quem era o camarada, que ele brincava muito, uma vez ele convenceu-me e o amigo que ia reunir com os pescadores e eu tinha de passar peixe no fato para ele cheirar a peixe e eu achei que aquilo era verdade, depois o Timóteo é que disse que era ele a brincar! E que se os vizinhos estranhassem, tivessem todos carro e o nosso não tivesse lá nenhum carro, o partido punha lá um carro, para não haver… opa ele fazia cada, claro, brincava, era muito jovem e eu “A sério? Mas é preciso isso?” e tal, brincava muito, era uma coisa absolutamente fantástica. E o Zé Carlos, nesse dia, estiveram dois dias em reunião, dois dias, acho que sim, porque tinham um outro… e ele tinha conseguido essa contribuição, eu lembro-me que foi um amigo do partido que ia dar 70 contos ao partido, àquela época, e ele era tão malandro, tão terrorista, tão malandro, tão malandro, era tão torcido… que ele só quando estava para ir embora é que disse que tinha a contribuição [gargalhada], sempre a dizer que não tinha conseguido, e era crucial aquela contribuição para a atividade do partido, todos, toda a direção regional do norte na altura esperava por essa contribuição, e ele, malandro, pá, só no fim é que disse. Pronto, quando se dá a prisão do Zé Carlos, a nossa casa e as outras todas estavam já entregues à PIDE, porque tinha havido uma denúncia e a PIDE já andava a perseguir, se não fosse o 25 de Abril, nós íamos todos completamente presos, todos! Porque a PIDE já tinha o aparelho do partido a norte, uma parte do aparelho do partido, já tinha na mão, porque andava a perseguir os funcionários… todos não digo, não é, mas quer dizer, sim, porque depois a história estará para lá escrita sobre isso, mas aquela também, aquela instalação, que era a mais recente! Repare-se que eu vou para a clandestinidade com 17 anos, a instalação do partido é de início de 74, dá-se o 25 de Abril em Abril, eu faço 18 anos no dia 4 de maio, eu… eu… entretanto, apaixonamo-nos, eu e o Timóteo, apaixonamo-nos de forma absolutamente incrível, ele era lindo, lindo, era, tinha uma boca, uns olhos, ele era… e depois falava muito bem e para mim falar muito bem era uma coisa absolutamente incrível, eu adorava, eu achava, quer dizer, que ele do norte não seria… porque um dia ele vai para uma reunião e diz “Ó amiga, tu viste o meu chapéu de chuva?” e eu… “Eu nunca vi nenhum chapéu de chuva”, “Não, estava aí um chapéu de chuva” e eu procuro o chapéu de chuva por todo o lado e não o encontro, e vem ele com o guarda-chuva na mão e eu “Ah o chapéu de chuva?”, que percebi portanto que ele de certeza que do norte não seria, porque aqui não se chamava chapéu de chuva ao guarda chuva, era guarda chuva! Um dia diz ele assim “Podias arranjar um feijão verde para cozer com uns ovinhos” - a gente comia só… - “e batatas, ali na mercearia” e eu… “Feijão verde?”, ora feijão verde na minha mãe era aquele que nós debulhávamos, que púnhamos a secar, para mim esse era o feijão verde. E eu vou à mercearia toda contente e tal para comprar feijão, feijão verde, e eles “Ah sim sim, tenho aqui, olhe foi mesmo apanhado ontem” e eu “para cozer com batatas”, “Ah mas esse feijão nós pomos… ou fazemos feijoada ou pomos na sopa” e diz o amigo “Não, feijão verde… comprido…”, “Vagens? Vagens?” [gargalhada], portanto, havia ali pequenas coisas que era muito engraçado verificar, epa que… mas quando foi para nós termos o nosso ato de amor, eu falei com… foi com o Carlos Costa, a dizer que a minha paixão não podia significar, que eu queria muito, que estava muito e tal… e o Timóteo… até porque tinha que tomar a pílula, eles tinham que me arranjar a pílula, não podia engravidar, portanto, a gente não ia sequer fazer amor enquanto tudo isso não estivesse preparado, não é. A paixão dá-se muito rápida na casa, porque antes a gente, aquilo foi uma química absolutamente, foi daquelas paixões absolutamente incríveis, não é.
Entrevistadora - Ele tinha que idade?
Rosa Dias - O Timóteo tinha mais dois anos que eu, mais dois… era muito jovem, mais dois ou mais quatro, mais quatro do que eu, acho eu, quatro, mais quatro anos do que eu, muito jovem, muito jovem e… também umas histórias incríveis, não é. E… e eu, para mim, eu queria ser, não queria ser camarada de apoio, eu queria ser camarada, mulher de intervenção da atividade política, o partido estava à espera que eu fizesse os 18 anos e no dia 5 de maio eu ia dar o salto para a União Soviética, que havia o apoio entre os partidos, a União Soviética ajudava muito a formação dos quadros, como o Timóteo, que também tinha estado, não é… num ano, o Domingos também esteve e eu só… era preciso era ter 18 anos, eu não podia ir com os 17, portanto, eu tinha que manter calma, não é, e então eu ia dizer adeus ao Timóteo, que eu não queria saber, eu queria era, de facto, então no dia 5 de Maio estava tudo preparado para eu dar o salto, para ir lá para fora para a União Soviética, mas dá-se o 25 de Abril! Estamos já em liberdade!
Entrevistadora - Como é que foi?
Rosa Dias - Nesse dia, foi uma coisa absolutamente… inacreditável. Eu estava preparada já para dar o salto, para fugir, na convicção de que o Timóteo tinha sido preso, que o amigo tinha sido preso, e porquê? Porque… ele tinha horas para entrar, passou-se 1 hora, 2 horas, 3 horas… e eu sem conseguir saber nada, tinha um radiozinho pequenino, o azar foi tanto, tanto, que não conseguia ligar o rádio, fico muito inquieta… a mercearia era mercearia-taberna e eu o que é que faço? Passa 1 hora, 2 horas, o amigo não vem, acabou, pronto, ou seja, é evidente que alguma coisa tinha acontecido. E eu ainda vou a essa mercearia e então… no entanto, 24 para 25, não é, 24 para 25… um reboliço muito grande, as pessoas a dizer que era muito esquisito, que… não, pois, ele tinha que vir no 24 para 25 e ele não vem a 24, ele não vem! Nada a fazer, nós tínhamos a orientação para dar o máximo 12 horas e depois também tínhamos uma senha para publicar uma espécie de anúncio no jornal de notícias e esse anúncio aparecia e sabiam que nós tínhamos fugido, ou seja, isso também estava preparado.
Entrevistadora - Quem é que dava as orientações? Sobre como agir e…
Rosa Dias - Era os camaradas responsáveis, pá, o responsável pela nossa instalação era o Zé Carlos de Almeida. Eu antes com o Timóteo tinha tudo já, a preparação toda, eu antes de dar o salto, a partir do momento que eu sou convidada para ir para funcionária do partido… eu só não levo comigo para casa o livro “Até amanhã camaradas”, porque era perigosíssimo [pausa] e leio todo logo no primeiro dia que chego à casa clandestina do partido.
Entrevistadora - Estiveste em quarentena algum tempo ou… foste diretamente…?
Rosa Dias - Eu estou em quarentena esse período, mas a trabalhar na minha casa, ou seja, porque não… eu o único momento em que estou… é chamada a quarentena… é o período em que eu saio de casa, que é curto, e em que a Aline e o Henrique, é a Aline até, que me ajudam a disfarçar para eu dar o salto.
Entrevistadora - Então ele não chega a casa no dia 24…
Rosa Dias - Ele não chega a casa no dia 24 e… e é claro, uma grande inquietação, comecei logo a guardar coisas, quer dizer, para destruir, houvesse o que houvesse, eu tinha que destruir, não é, e… e havia aliás um… um… um grande pinhal em frente à nossa casa, onde muitas vezes nós íamos, até o Zé Carlos de Almeida ia cortar bolotas para fazer um arranjo pá, é engraçado… e… e eu já tinha pensado que era ali que, por exemplo, máquinas e tudo eu ia enterrar tudo ali, ia tentar de noite, pronto, enterrar. Já tenho praticamente o que é fundamental, as minhas coisas pessoais, mais nada, o resto ficaria tudo, não é, coisas que comprometessem a gente quase nunca tinha, mas tinha sim o stencil que comprometia porque ficava gravado, a máquina comprometia porque ficava… que me lembro seria as duas únicas coisas que iria enterrar. Então dá-se o 25 de Abril sem o Zé, sem o amigo, não é, continua a não aparecer. Eu nesse dia vou à mercearia, porque ele não vem a 24 e eu ainda vou à mercearia… e na mercearia é assim uma coisa muito confusa… as pessoas a falar assim muito baixinho, tudo assim muito coiso… havia coisa! Como é evidente, não é… pronto, no dia 25 então… eu percebo que há uma revolução, nesse percurso há uma vizinha que diz “Há tanques! Vai haver guerra, vai haver guerra! Há tanques na câmara da Maia, são tanques de militares, na câmara da Maia!”, começa esta… pronto, isto assim… eu… na mercearia… “É o derrube do fascismo!” e a senhora da mercearia “O que é que disse, D. Fernanda?” e eu “Ó… ó… o que é que eu disse? O que eu disse é que o Caetano vai com o caraças” olha eu nem devia fazer isso, quer dizer aquilo já… “Ó menina, esteja calada, não fale assim, esteja calada” e eu vinha toda contente por ali fora e tal e… e ainda aguardo, mas claro já a preparar. Nisto chega o menino Timóteo, não é, chega então o amigo, e o que é que ele fez, esse grandessíssimo bandido? Ele, contra todas as regras conspirativas, como está na rua, sabe que o Zé Carlos, a gente sabe que o Zé Carlos de Almeida tinha sido preso, e vai-se pôr à porta da PIDE para ver se via o Zé Carlos de Almeida sair! O Zé Carlos de Almeida entretanto tinha sido transportado para o Hospital de St. António, foi tão espancado, tão espancado, que estava no Hospital de St. António, e ele depois disso é que regressa, não é, ele nem pensou, quer dizer, não vale a pena… opá éramos muito jovens então aquilo era o momento também de glória dele! E, pronto, e ficamos em casa, muito quietinhos a aguardar orientação, não é. Entretanto, ele faz um telefonema, isto já no 25, epá e confirma-se que os militares estão na rua, que… mas nós estamos proibidos de sair de casa, eu e o Timóteo, a orientação… nessa altura foi o Carlos Costa, acho eu, a orientação é que nós vamos manter as instalações possíveis do partido, algumas instalações, e nós estamos completamente proibidos de sair à rua, portanto, manter a nossa dinâmica na casa clandestina do partido. O partido precisava até que as coisas se consolidassem de manter aparelho clandestino, nunca se sabia como é que… como é evidente, não é. Felizmente, eu ainda não tinha desfeito nada, felizmente ainda se fizeram lá vários documentos e… dá-se depois o 1º de maio, ora 25, 26, 27, 28… e nós continuávamos sem qualquer tipo de contacto, a não ser um que o Timóteo conseguiu, que eu nem faço ideia, também não era eu que ia saber, não é, manter, portanto, exatamente as regras de uma instalação do partido, que não sabíamos o que é que ainda era necessário, não é, porque aqueles dias estavam conturbados… estavam militares na rua, depois o povo a sair à rua, o povo é quem mais ordena! Nós não tínhamos televisão, não tínhamos nada, mas o Timóteo nem saía mesmo, porque ele nunca era visto ali, ele era apenas na passagem, e ali com os vizinhos éramos o casal que vínhamos… aquelas coisas assim e tal… e eu, claro, era sempre aquele contacto com a mercearia e também não podia ir à Maia, mas eu fui! É claro, não é, ou seja… nesse período de 25 de Abril e nesses primeiros dias, eu ia espreitar ao centro da Maia para ver o que é que se passava e era povo na rua e era, pá… aquilo era alegria, era uma coisa absolutamente fantástica, e vinha para trás, voltava para trás.
Veio o 1º de Maio e nós todos contentes que íamos para o 1º de Maio! Epá, é agora que nós vamos para o 1º de Maio, sair em liberdade! Aquele sentido da liberdade e de ainda não poder saborear… é uma prova das mais incríveis que se possa imaginar! Mas nós… pé ante pé, pé ante pé… a pé, a pé, a pé… pois claro que fomos ver o 1º de Maio contra toda a orientação, fomos espreitar o 1º de Maio por trás dos Clérigos, fomos até ali, sem ser vistos por ninguém, a sentir, e depois outra vez a pé, não é, fazíamos tudo a pé, a pé para casa, Vermoim, Maia, porque… e saboreamos o 1º de Maio! Só saímos em liberdade, tivemos a orientação, a ordem do partido, responsáveis do partido, no dia 6 de Maio, mas o meu pai, no 1º de Maio, veio ao Porto [pausa], ao 1º de Maio procurar pelos filhos, procurar pelo Domingos e pela Rosa e nem viu um nem viu outro… ele encontra… ele encontra… uma mãe, que eu penso que seria da irmã da Aline, a Luísa, a primeira mulher do… do Nelson Bertini, que também foi presa em 72, e… e ela diz-lhe, pergunta ao Henrique, claro, aproxima outros camaradas e diz “Eles estão bem, eles estão bem e hão de aparecer, eles estão bem” e o meu pai vai embora revoltadíssimo, porque não encontrou os filhos e não sabia ainda nada dos filhos. No dia 6 de Maio é que nós vamos então em liberdade para a Aníbal Cunha, para a sede, que tinha sido da Legião Portuguesa, que tinha sido ocupada e que tinha sido a grande sede da ação do partido do processo pós… do processo revolucionário, para todos os efeitos, e lá vamos nós pá! Foi assim das coisas mais, das emoções mais fantásticas! Tinha uma cozinha, a camarada Olívia, que tinha estado muitos anos presa, quer do Zé Carlos Fininho do Montijo, a fazer comida maravilhosa para nós! Eu só comia, eu só tinha era fome e comia este mundo e o outro, este mundo e o outro! Tinha 18 anos, pois é claro. E eu lembro-me de ela fazer bifes, comi a primeira vez bifes, foi a Olívia que fez, um bife para mim e arroz, muito arroz e muita sopa e era uma alegria muito grande, fiquei logo de serviço na portaria, pronto, nunca mais voltei à casa, fiquei… isto é textual, à casa do partido. A casa do partido alguém que tratasse. Se me perguntarem “Epá e o que?”, “Nada”, eu é assim, aliás, na minha vida pessoal, casas para mim epá… é para o momento em que é necessário, o Vidal diz, o meu companheiro, diz que eu sou nómada, por mim o teto cai-me em cima da cabeça e foi sempre assim, eu posso ter, tenho, não tenho, em qualquer sítio eu fico, às vezes, nas minhas vivências, não é, acaba por… e, portanto, essa… a minha relação era a instalação do partido era para aquele processo, aquele processo acabou… sei que depois camaradas foram levantar a instalação em Setembro.
Entrevistadora - Só em Setembro? Portanto, desde Maio… já não estava lá ninguém.
Rosa Dias - Desde Maio, já em liberdade… já não estava lá ninguém… o partido continuava a tratar da renda, porque era fundamental, isso não… eram camaradas que tinham essas tarefas, eu e o Timóteo, o partido, do momento em que chegamos à sede… bem, eu era para as fábricas, que eu era da têxtil, não é, era da têxtil… era para as fábricas, era plenários em todo o lado, subia aos bancos, ia em cima das mesas a falar ao povo das empresas, era reuniões e reuniões de mulheres na… na, na… era uma dinâmica tal que eu nunca mais lá pus os pés, e a roupa depois as amigas, as camaradas, iam arranjando, sempre foi dando, por isso, é que eu ainda hoje não sei comprar uma peça de roupa, era sempre daqui, dali e tal… e ainda hoje é das meninas, é do não sei quê, não sei quê… para mim aquilo estava tudo bem. Nós ficávamos então a dormir, o casalinho, na sala da sindical, montava-se um colchão e os cobertores e ficávamos ali, tomávamos o nosso banhinho e assim estivemos a dormir na sede de Aníbal Cunha até… arranjarmos a casa de alguém para ficarmos, onde é que nós fomos ficar? Numa casa chiquérrima, que era do Fernando Pires, em Aldoar, em… é ali, prontos, não é Aldoar, já nem sei bem… pronto, na casa do Fernando Pires. Entretanto, eu engravido, o Timóteo, entretanto, era a orientação do partido, era refratário da guerra, foi a orientação do partido apresentar-se ao quartel, ele militar em Lisboa, em Mafra, eu continuava aqui e… e… na atividade, claro, ele na ação militar, vinha ao fim de semana, era uma loucura, era uma paixão incrível, uma coisa lindíssima e depois… mais emocionante do ponto de vista pessoal foi que só no dia 6 de Maio é que… o Timóteo sabia o meu nome, porque eu vinha da legalidade para a clandestinidade e ele vem da clandestinidade para continuar na clandestinidade, portanto, ele já tinha estado noutras casas clandestinas… foi saber que ele se chamava Zé, eu adorava, o meu pai era Zé e sempre adorei o nome Zé, até o Vidal é Artur José! Quer dizer, pronto, eu não sabia que ele era Zé e foi assim um momento revolucionário dos mais… encantadores, das coisas mais incríveis, no sentido da liberdade. Preparamos então a nossa ida à casa dos meus pais e eu pensava assim “Bem, eu não posso ir sozinha”...
Entrevistadora - Isto já quase em 75?
Rosa Dias - Isto em 74, 74, portanto, nós já estávamos em liberdade a partir do 6 de Maio, havia que contactar. E então primeiro telefono para a tasca da… das páginas amarelas que havia, para a tasca onde o meu pai estava e peço para chamar o meu pai. O meu pai não estava e veio uma irmã minha ao telefone e disse “Eu sou a Rosa” e prontos a partir dali “Eu quero ir aí. E como é que o pai está?” e ela disse “O pai está revoltado e ansioso para saber do Domingos e de ti” e eu disse “O Domingos vai contactar também, mas o Domingos não está no norte, está no sul, o Domingos está em Lisboa”, estava na margem sul com a Lourdes, com a companheira, também, pronto, já teve o… o Luís Filipe já faz agora 50 anos, o primeiro neto da minha mãe, não é, portanto, e… e enfim, quer dizer, preparamos então a nossa… a nossa ida. Porque é engraçado, eu era apaixonadíssima pelo Timóteo, mas a seguir à revolução e a nós estarmos em liberdade, depois da orientação do partido, naquele dia 6 de Maio, eu para mim era assim cada um segue o seu caminho, fiz-me entender? Quer dizer, não havia nenhum sentido epá… agora não, nada disso, eu quero é ter a liberdade total para ser uma camarada de ação, quer dizer, não há aqui… isso para mim era completamente, era intrínseco à minha natureza, eu não era de apoio de nada, nem a mulher de, eu era a Rosa que estava na revolução, na luta e que queria continuar assim! Mas claro o amor era imenso, nós também como é que fazíamos? Íamos para a casa da minha mãe? Não voltava. Pá, alugar uma casa, como é que ia ser? Quer dizer, tinha de ser sempre, na altura até ainda se estava a decidir o salário de funcionário, foi sempre na base do salário mínimo e tal, quer dizer, nem se pensava numa coisa dessas, não é, quer dizer, pensava era estar revolucionária de tempo inteiro, era isso mesmo, era o que nós éramos, revolucionários de tempo inteiro. E, portanto, tudo o resto era verdadeiramente secundário.
Entrevistadora - E o que é que… assim… sentes… alguma vez sentiste perigo… de ser apanhada pela PIDE?
Rosa Dias - Sim! Há um momento e eu ainda hoje não sei, nem nunca saberei, se… o eu saltar para a clandestinidade com 17 anos, para todo… não tenho qualquer dúvida que a confiança e a questão da coragem, porque isso nunca me faltou, há histórias incríveis de coragem, pronto, não tinha… eu para ter medo, nem a morte, quer dizer, não tenho mesmo, é uma coisa que tem que ver com a minha natureza, é, aconteceu, foi e tal. Há uma… uma situação que eu hoje penso que pode ter estado na origem de eu ter saltado mais cedo, sendo que fosse esse o objetivo do partido em relação a mim, que é: eu estou a trabalhar na Rua 21, na alfaiataria do Sr. José, a Rua 21 tem… não é as traseiras, é a lateral da câmara, e em 73 eu passo a ser perseguido por um PIDE, muitas vezes, eu saía da alfaiataria e dava imensas voltas para não ir ter com as pessoas a quem eu já tinha contactos para trazer para o Movimento da Juventude Trabalhadora, não para o partido, mas para o MJT, o Movimento da Juventude Trabalhadora, o MJT, então e era já um grupo grande, que era de facto toda uma atração grande e eu desse ponto de vista da agitação, sempre fui mais de agitação e de ação, e… e então eu atraía para as iniciativas, era preciso conversar, convencer, trazer… eu fazia muito desse trabalho. Há um momento em que há um sujeito, muito bem vestido, que se coloca à porta, na porta lateral da câmara e um belo dia [pausa], portanto, eu andava a ser vigiada, de facto, não é [pausa], e um belo dia o sujeito vem atrás de mim, vem assim atrás e tu pensas assim “Olha é um filho da puta que está a querer-te engatar” desculpando o termo, não é, mas não, não tinha nada a ver… e há um momento em que ele pronuncia o meu nome [risos] “Rosa, Rosinha, Rosinha, um dia destes…” - a ameaçar, assim mesmo quase encostado a mim - “... um dia destes… um dia destes…”. Desaparece uns tempinhos e eu continuava ainda na alfaiataria e volta novamente a surgir o mesmo sujeito, o mesmo sujeito, e eu partilho isto, não é, claro, isto muito antes de eu imaginar que ia ser convidada para ser funcionária, para dar o salto, para ir para a casa clandestina do partido. Ora… punha-se um problema muito grande mesmo naquela época, eu era menor, epá, a prisão… a prisão numa ação, agora uma prisão de uma militante do partido e menor, epá, e no quadro em que era, era complexo, digo eu… hoje, não é, é complexo. Há um momento em que eu vejo, venho a descer, ainda antes de Setembro, e eu… para despistar e ir à casa da mãe do Henrique Sousa, uma grande mulher, a Elisabete, um dia quando eu andava na agitação da rua, do 25 de abril, com o megafone, epá, consegui antes daquela grande senhora ter… alzheimer, eu consegui dizer umas palavras de homenagem à Elisabete, que ela foi uma mulher fantástica, fantástica, a receber os jovens, e jovens, e jovens na casa dela, preparava-nos uns miminhos absolutamente maravilhosos, ela era fadista, cantava o fado, uma mulher incrível, a mãe do Henrique Sousa, não é. E então eu não podia sair da Batalha e ir direta para a casa do Henrique e então vinha para o Marquês e do Marquês descia para a Rua do Paraíso, onde eles viviam, aliás, rua muito próxima da casa onde o Vidal nasceu e viveu a mãe 60 e tal anos, e… e eu trago uns documentos para deixar na casa, trago uma… uma pastinha, uma coisinha que não cabia… que era de um sujeito, que eu era muito de paixões, não é verdade, assim de amores, de opá, para mim a liberdade era também isso, e eu tinha conhecido um dos camaradas que era de Matosinhos e ele entrega-me, porque o meu primeiro namorado é mobilizado para a tropa, o João, para Angola, para a guerra, mas acaba o namoro, não foi aí, mas foi quase e tal, eu era muito jovenzita, não queria estar amarrada, olha eu agora amarrada com namorados, nunca na vida, e tal… mas eu levava uma coisinha, não é, para entregar ao Henrique e eu venho com isso, venho com isso, disfarçadíssima, e venho a descer e antes de entrar na casa, eu podia ter posto em causa sem saber, porque estas coisas depois são assim, havia uma janelinha, muito antes de chegar à casa do Henrique e há também um PIDE que me interceta “Eu sei o que levas aí…”. É assim, eu com a história de não ter medo e porque não tinha mesmo, se me quisessem levar presa que levasse, eu tinha a certeza de uma coisa: é que eu preferia morrer, mas eu falar nunca falaria! Porque essa endurance de… de… que vinha de menina, porque nós não sei quê… e o meu pai espancava, “Quem é que disse? Quem é que foi, sua…? Ah sua não sei quê” e aquela coisa dele “Pode-me matar à porrada que eu nunca abro a minha boca!”, isso já vinha da minha intrínseca natureza e, portanto, ou seja, eu tinha a certeza absoluta que me podiam torturar até à morte, que eu nunca falaria! Esta certeza era absolutamente… portanto, se fosse, opá, eles podiam fazer o que quisessem, que para mim… isso não… mas eu devia ter desviado e nunca
ter ido, porque eu depois faço ali umas voltas grandes, e entro na mesma, imagina o perigo que eu provoquei, mas eles estavam ali, também não me podiam prender assim de qualquer maneira se não fosse em flagrante, não é, quer dizer, como é evidente. O Henrique é-lhe posta uma bomba, num dado momento é colocada uma bomba na mota dele, porque era uma mota Honda e ele fica todo partido e internado, porque ele era o maior, era o grande líder do MJT, na legalidade! Ernesto na… e ele na legalidade, e outros… e ele é internado num semine, que era um hospital de ossos, eu não sei se fazia, se era encostado ao Joaquim Urbano se não era, era semine, chamava-se… não faço ideia, sei que era assim, e eu toda lampeira, imagina, com 15, 16, visitar o Henrique, sem medo! Quer dizer, ou seja, não tinha mesmo, agora quando nós colocamos em perigo… mas ou seja, eu não tive a consciência, mas para mim era tão tão importante entregar aquela cena ao… lá, na casa, era só deixar, não é, que não tive a consciência do risco que. Portanto, ou seja, quando foi daquela… daquela… ameaça, que foi dessa vez, depois outras que eu não me lembro exatamente do sujeito, mas nunca me prenderam, quer dizer, a verdade é que era para me atemorizar, para fazer com que eu parasse e para me ameaçar e, ou seja, as ameaças eram… assim constantes. Há uma vez que o sujeito até se coloca mesmo encostado à porta da alfaiataria, era mesmo a testar, exatamente.
Entrevistadora - E agora, olhando para trás, sentes que esse período em que viveste na clandestinidade e com tantas experiências que tens contado, tanto antes como nesses meses de clandestinidade, como é que achas que esse período te influenciou, na tua trajetória de vida, para o resto da vida?
Rosa Dias - Para o resto da vida. O partido, como eu costumo dizer, é a melhor escola da vida que há, não há palavras. E nós encontramos… no percurso, na caminhada da vida, é inacreditável, incrível, eu não seria o que sou hoje, não veria o mundo como vejo, não teria tido a grandeza da felicidade, acho que fui sempre tão feliz, por um ponto de vista global, e sempre… tão alegre, amando tanto tanto sempre o percurso, que é das coisas mais fantásticas que há! O partido é a maior escola de vida que existe, de como nós interpretamos… eu soube perdoar o meu pai, porque aprendi que ele era uma vítima da sociedade, hoje nós olhamos à diversidade, às coisas difíceis, achamos sempre… é sempre aquela consciência de que, epá, nós vamos lá chegar, é uma utopia, epá, mas é este o caminho, é este o percurso, a sociedade pela qual nós lutamos, epá, é… é… é, de facto, é esta, é… a certeza exata de que, epá, nós estamos no caminho certo, que passamos por muitos, muitos, muitos caminhos, mas encontramos sempre uma razão de ser da nossa causa, da nossa luta, por muitos momentos difíceis que possamos, nós acabamos sempre por ter a certeza de que este é o caminho, não há outro, não há mesmo outro, como chegamos lá? Epá, isso vamos fazendo… e depois do ponto de vista pessoal, epá… a música… tem outro encanto… o ser humano, pá, encontramos sempre no ser humano, até o mais complexo, eu acho que isso eu aprendi no partido, a ver aquele lado, o outro, epá, mas deixa ver, qual é a razão? Onde é que está a causa? Como é que? E eu acho que isto é uma grandeza humana que, pá, só mesmo o partido, esta trajetória e este caminho, vivi esta oportunidade que eu tive, pá, eu acho que eu não encontro adjetivos para dizer [risos], epá, quem seria eu, se não fosse este caminho feito até aqui? Como é que seria? Não seria a mesma pessoa de certeza absoluta. Eu acho que eu não olhava o mundo com estes olhos de alegria, com alguma sabedoria claro, com bases muito pequeninas do ponto de vista da formação, mas com a grandeza da alma que o partido nos dá, pá, para… prosseguir este sonho, de facto… e estar na vida com esta… mas não há nada, nada, se dissermos assim, epá… o processo das meninas [pausa] é um processo. E… enfim, complicado, porque eu tenho duas filhas que, num certo sentido, para ser revolucionária de tempo inteiro, as entreguei a um casal que, por tarefa do partido, o
ngelo Veloso falou para ajudar a apoiar as filhas do Timóteo e da Rosa, que eram dois funcionários do partido, isto já, claro… a Belinha nasceu em março, 30 de Março de 75, não é, no auge da revolução, como é evidente, a Mimi, a Arminda nasce em 78 e é aquela altura em que eu decido que quero ir para uma grande fábrica e vou como funcionário do partido para uma grande fábrica, porque eu queria ter a experiência de uma grande fábrica, como funcionária do partido, grávida da Mimi, com os esquerdistas a dar cabo da cabeça… e, portanto, hoje… portanto, há um conjunto de ausências no crescimento das meninas, mas elas são tão especiais, tão revolucionárias, tão comunistas quanto eu e… mas que… foi escapando muita coisa, hoje se quiser falar de como era a Belinha aos 3 anos ou aos 4 anos, a Mimi… tudo muito escapou e a gente olha e… há aquele momento em que… epá, mas eu digo, Leonor, da minha alma, por muito que haja aqui ausência de muita coisa em relação às filhas, é uma brutalidade, uma brutalidade, eu não faria diferente, não faria diferente. Hoje temos a cargo de nós a senhora que as criou, que é sozinha, está à responsabilidade das meninas e eu digo assim “Caramba, pá, é comigo, não é com elas, não foram elas que arranjaram uma camarada para tomar conta delas”, mas elas adoram a madrinha, que é a senhora, adoram e somos nós que a apoiamos diariamente, porque ela vive sozinha, tem 90 anos e está… e as meninas são guerreiras no apoio àquela senhora, e eu digo assim “Mas até aquela senhora…”, por muito que em muitos momentos não tenha facilitado, porque não tinha filhos e achava que, há assim aquelas magoazitas que vão ficando… podia em alguns momentos ter facilitado um bocadinho mais quando nós tocávamos à campainha aflitinhos, um de nós, às dez horas, para ir buscar as meninas para elas virem dormir a casa e elas olhavam com o coisinho que fizeram e ela “Ah não, a esta hora”, mas também era por motivos de amor, nós fomos a ver, o Timóteo acho que não perdoou muito esse lado deles, mas eu digo assim “Quem sou eu?”, quem meus filhos beija, minha boca adoça, nada faltou àquelas meninas, quando eu já estava separada do Timóteo, quantas vezes eu não ia ao domingo buscá-las? Porque nem tinha leite em casa, nem nada, porque a vida de funcionária do partido revolucionária era muito desorganizada, aquilo era tudo muito… e eu digo assim “Bom, mas elas estão tão bem!”, porque é que eu hoje não tenho gratidão com aquela senhora? Como é que eu hoje não hei de dar a vida ou o máximo que eu posso àquela senhora que afinal está na trajetória há 48 anos, porque a Belinha tinha 1 mês quando a madrinha, a Mindinha e o Quim, que já faleceu, que tinham um estabelecimento, moravam ali na Rua do Monsanto, no Carvalhido e tal. E, portanto, fica muita coisa, agora com a neta a gente tenta espelhar… a minha Luísa, que ela veio mais tarde, que foi adotada aos 11, mas também minha querida neta, agora já tem 22, mas o crescimento… muito embaraçada que eu nem sabia o que havia de dizer à Bela quando ela estava grávida, estamos cá, mas que coisa, tudo num embaraço, porque fica sempre aquele, prontos, quer dizer, mas são, acima de tudo, não é minhas filhas, elas são, acima de tudo, grandes mulheres, tenho um orgulho imenso, grandes meninas, grandes mulheres e também muito revolucionárias, muito lutadoras, muito... epá com valores e princípios absolutamente… de que me orgulho imenso! Portanto, até mesmo este lado que eu sou mãe por amor, revolução, paixão, responsabilidade, aos 18 a Belinha, 18, 19, 21, a Mimi, quer dizer, mas era aquela… era muito amor, mas tudo num grande misto de… epá mas até este lado eu digo, que felicidade, ao mesmo tempo.
Entrevistadora - É uma coisa que colocas assim mais de parte… mas ao mesmo tempo não mudarias nada?
Rosa Dias - Nada! É, nada, nada!
Entrevistadora - E assim uma pergunta um bocadinho mais difícil de responder, obviamente, para quem abdicou disso, desse lado pessoal, para… com todas essas questões que também são importantes, consegues situar a tua trajetória individual na trajetória e na história política e social do país? Não de um ponto de vista heróico ou do que seja… mas consegues também olhar para trás, dessa forma, do papel que também teve ou que tiveste tu ou que tiveram outros… na história social e política do país?
Rosa Dias - Eu acho que nós não… há uma coisa que é absoluta [pausa] os militares saíram à rua, mas o 25 de Abril não era o 25 de Abril se não fosse a luta do Partido Comunista Português, se não fosse este grandioso partido, este aparelho também do partido, esta capacidade de influenciar as massas, de mobilizar as massas, de… de transformar uma coisa que era uma coisa que era alterar o poder para uma coisa que foi uma revolução, democrática, que foi uma revolução do fim do fascismo, que foi uma revolução do fim da guerra colonial, que foi de facto, e toda a trajetória, todo o caminho, do salário mínimo, dos direitos laborais, da igualdade, da Constituição que hoje faz 48 anos, em que o partido teve o maior dos papéis na elaboração da Constituição, não digam, não transformem a história, ao partido comunista, aos heróicos que morreram, aos que estiveram na cadeia, aos milhares que este aparelho, não é uma pontinha, uma pontinha do iceberg, mas neste todo do partido comunista, nós não tínhamos hoje a liberdade, nós não tínhamos tido a revolução de Abril, nós não estávamos hoje a comemorar uma Constituição que tantas facadas já levou, mas que tantos a querem derrotar, em absoluto, é graças ao partido comunista, venha quem vier, e a todos os democratas que fruto da intervenção, porque o partido intervinha aos mais vários níveis, influenciava e mandava, qual era a palavra de ordem? Estar onde se pode influenciar, estar onde se pode influenciar. Eu era menina e fui para a JOC, para influenciar dentro da JOC, eu estava no teatro e procurava influenciar dentro do próprio teatro, mas o partido, ao mais alto nível, procurava influenciar… até no exército! Um dia, Leonor, podes fazer a história da guerra e há uma coisa que é fantástica, alguns dos militares, que saltaram para a ribalta, alguém tem dúvidas? De quem eram esses militares? De como é que o partido comunista…? Epá não se pode naturalmente… se negar este lado, é a coisa mais brutal que pode haver, que ninguém reescreva a história do real e da verdadeira, do verdadeiro papel, podem vir dizer que não sei quê… mas… sem qualquer dúvida, é ao partido comunista que se deve a grandiosa liberdade e a forma como tudo e como nós influenciávamos. Ó, Leonor, nós não tínhamos que ter milhares, em muitas circunstâncias era um, um comunista no meio de milhares que conseguia e depois o tal movimento democrático português, quer dizer, que intervinha na legalidade, mas com a orientação comunista, com a orientação do partido comunista, não é.
Entrevistadora - E ainda hoje funciona dessa forma o partido?
Rosa Dias - Completamente! Há uma coisa que eu deixei de ser… fui funcionária do partido 28 anos, mas há uma coisa que não conhecem, mas eu faço questão de dizer. Eu tive sempre um princípio, que é não estar nas coisas muito tempo, ou seja, nunca fui a favor que se estivesse nos órgãos da direção do partido demasiados anos ou que tivéssemos que… nunca! Eu sempre disse, eu fui do comité central 20 anos, e eu sempre dizia “Aos 45 salto fora, nunca ninguém me há de ver com menos força ou energia do que aquela que eu tenho”, porque eu não suporto isso e tinha isto como objetivo… não, aos 45 anos saio de funcionária do partido. Já era o Carlos Carvalhas o secretário geral do partido e tratava-se novamente de um novo congresso para a elaboração da lista para o comité central, eu já estou há anos a mais, fui logo das primeiras a ir para o comité central do partido, no congresso de 79, até estava na União, Ex-União Soviética, pronto, que fui para o comité central. Epá, e passou-se muitos congressos e a Rosa Dias e a Rosa Dias… até que eu disse “Chega, eu não vou ficar mais! Mas não vou, tem que ser outros mais novos”, sempre foi este o meu lema, mas sempre, sempre, sempre, sempre! Nas organizações onde eu estava, em Gaia, era das organizações que mais equipas de jovens tinha, com responsabilidade, falo deles, vários, da época, mesmo. E, portanto, eu sempre dizia “Não, funcionária do partido até aos 45 anos e depois olha vou plantar flores”, que era a minha paixão, então dizia eu, não é. E do comité central eu saio, o Carlos Carvalhas vem falar comigo a dizer “Ó Rosa, mas a tua saída pode ser mal interpretada, vê lá pá” e eu apontei logo outros nomes de outras mulheres do Porto, mais jovens que eu, é textual, isto é a verdade nua e crua e… e eu não mudo, porque decisões é logo, tá decidido, tá decidido, não há hipótese de ser de outra maneira, pela minha natureza. E, entretanto, e saio do comité central.
Entrevistadora - Aos 45 anos?
Rosa Dias - Não! Antes disso, foi antes disso! Eu agora não sei precisar, mas foi antes disso, eu estava quase a fazer 20 anos.
Entrevistadora - Quando deixaste de ser funcionária foi…?
Rosa Dias - Aos 45! Foi um bocadinho antes dos 45, eu vou já dizer, tinha 44. Depois eu, entretanto, saio de funcionária do partido… no mês de Janeiro, de 2001, sem nada, sem nada, sem ter absolutamente nada para fazer. Eu era muito contra os computadores, havia as camaradas que estavam na informática lá no partido, assim, comunicados eu falava e ta ta ta… escrever fugia de… escrevia, mas depois era preciso dar ali um jeito, mas tudo que era coisas burocráticas eu não fazia, portanto, computadores estava fora de questão…
Entrevistadora - Só tinhas a 4ª classe…
Rosa Dias - Entretanto, eu tinha feito escolinha à noite, fui fazer a 5ª e a 6ª classe… Ah, entretant,o não, foi depois, foi depois de eu sair de funcionária, claro, que eu estava agora a confundir… 2001, 2001. Mas quando saio de funcionária do partido só tinha a 4ª classe, só mesmo a 4ª classe e a 4ª classe muito rápida, porque fiz vários trabalhos também no meu último ano, mas, quer dizer, a 4ª classe e tal. Tinha estado lá fora 7 meses, que foi uma… nunca trabalhei como uma camela, porque eu nem queria ver nada, queria era estudar e depois com os camaradas a ajudar que também foi muito bom, mas só tinha a 4ª classe. E, portanto, das duas uma, vou voltar a uma fábrica, que era uma hipótese, não é, mas não era bem o que eu naquela altura queria, eu não queria nada, eu queria era encontrar alguma forma de subsistência porque eu tinha que ter um salário para viver, admitia inclusive nem sequer ficar na casa onde estava, por causa da renda, a viver com… era uma camarada amiga nessa data, não estava nada preocupada com essa parte, se tivesse tinha, se não tivesse não tinha, nada preocupada com as questões materiais, nunca, aliás, é uma coisa incrível, mesmo. E, entretanto, falo a um camarada, grande amigo, o Adelino Mota, tinha sido o nosso vereador na câmara de Gaia, era engenheiro na UTIC, em Gaia, e ele tinha um grande terreno, ele tinha um grande terreno e eu tinha ido fazer uma formação de floricultura, que era a minha paixão, não é ramos, é plantar flores e depois arranjar uma forma de comercializar… aqui uma carrinha e coisa… e tal e tal… era uma ideia. À fábrica era muito difícil me aceitarem naquela altura e eu tinha perdido muito a mão da confeção, não é, como é evidente, os tapetes já não era o caso, a alfaiataria já esqueci completamente, portanto, era um bocado. Vem da natureza da minha família a questão das flores e tal, tal… e o Adelino Mota, minha nossa… então tratava-se de ver a formação, a formação era em Viana, pá, Viana do Castelo, a formação de… de floricultora, que era mesmo uma formação que eu queria. Na altura, diziam financiada, mas as escola não coiso… e há esse interregno, há esse espaço, na altura o partido pagou-me mais um salário e um subsídio que foi… ajudou, pronto, ajudou, como é evidente, e eu… começo a pensar numa coisa que é… eu tinha conduzido, tinha tido um grande acidente, tinha deixado de conduzir, com um carro do partido, tinha ido a uma delegação e tal… eu tenho que tentar pegar neste dinheiro e dar umas aulas para começar a conduzir, porque depois para eu ir para o campo e não sei quê, vou logo, começo logo por ir fazer 4 aulas de condução e paguei, pronto. A seguir, epá, eu também preciso de aprender informática, isto de não saber nada de informática é uma chatice, e então inscrevi-me no Instituto de Ciências e Letras, que era de um camarada do partido, nem paguei… e então vou aprender informática… para esse instituto. Quando tal, recebo um telefonema da Cristina Pimenta dos SAMS, “Ó Rosa” éramos muito amigas, muito malucas, amigas, “Ouvi dizer que… ah e tal… saíste de funcionária”, ela estava a viver na altura com o Jorge Araújo do Basquete, “Olha estamos aqui a contratar malta para rececionista do SAMS” e eu “Ai é? Mas olha que eu e tal…”, “Ai não sabes nada?”, “Não e tal… mas agora até ando a aprender”, isto meio de Fevereiro, para aí, e então, estou contratada para ir para rececionista dos SAMS e era das oito às duas e olha que bom! Porque eu mantinha as tarefas do partido, responsável do concelho da Maia, mantinha as tarefas… mantinha as tarefas e tal.
Entrevistadora - Essa foi a tua última profissão, portanto, essa até agora?
Rosa Dias - Não. Não fui para os SAMS.
Entrevistadora - Ai não foste?
Rosa Dias - Não. Na véspera, ou seja, eu ia começar nos SAMS na 2ª feira, epá, eu ia ter um subsídio de alimentação enorme, ia ganhar bem e tal, pagavam bem, em relação ao salário mínimo pagavam bem. Recebo um telefonema do camarada Miguel Vidal, do Sindicato da Função Pública, “Ó camarada, ouvimos dizer que saíste de funcionária do partido, que já não és funcionária do partido, epá, chegou-nos essa informação”. Eu tinha sido responsável pela célula da… dos comunistas do sindicato, que eu estava muito, como funcionária do partido, estava muito ligada à área sindical e dos trabalhadores e alguns concelhos sempre, claro, e entretanto… o amigo é assim “Nós temos muita urgência em falar contigo, e vai ele e a Cândida Diana, vou ao [impercetível], ali na Rua da Constituição e eles nessa 6ª feira fizeram-me a proposta de eu ir trabalhar para o sindicato e eu disse “Para o sindicato? Mas então isso é a continuação da luta, isso é maravilhoso, sim pá!”, ligava à direção para a parte da propaganda, “Na área da propaganda? Olha que bom!” e tal… era agitação, eu tinha essa experiência… eu nem imaginava que ia fazer um contrato, que ia ter… nada! Para mim isso era… depois fui mesmo funcionária com contrato, quer dizer, era funcionária sindical, quer dizer, para mim estava fora de questão e tal. Epá telefono à Cristina nessa mesma 6ª feira, telefono à Cristina a dizer “Ó Cristina, ó Cristina, opá eu já não quero ir para os SAMS, eu tive uma proposta e ir para o sindicato é a continuação da luta! E até vou para a propaganda, para a agitação! Epá, é um sindicato também com tantos trabalhadores”, aliás, porque eles são os funcionários, o Sindicato dos Trabalhadores da Função Pública, os auxiliares… quer dizer, não é nem dos médicos nem dos enfermeiros… é mesmo, como eu costumava dizer, da classe operária da função pública e tal. E assim fiquei até vir embora.
Entrevistadora - E agora só para terminar, deixo-te só uma pergunta de se gostarias de deixar alguma reflexão relacionada com o facto de estarmos a comemorar os 50 anos do 25 de abril… e que reflexão fazes então, nesse âmbito da comemoração? É assim a última questão [risos].
Rosa Dias - Que os tempos são difíceis… não é, vivemos tempos difíceis, tempos que não são novos, naturalmente, que vão ser ultrapassados, como eu costumo dizer, de perna curta, mas vejo momentos ainda conturbados, difíceis, que é preciso estar vigilante, quer dizer, ou seja, não subestimar, não subestimar, é um fenómeno mais global, a extrema-direita toda a vida espreitou, hoje encontra nesta situação absolutamente selvática, absolutamente incrível do imperialismo, do capitalismo o seu momento de maior… de maior expressão, mas perna curta, sem qualquer dúvida. E porque é que eu digo de perna curta? Porque eu tenho absoluta certeza que este é o grande momento e que as massas vão corresponder à defesa dos valores de Abril, à defesa da liberdade e que se verifica uma coisa que é… que é revolucionária: é que nós sentimos que a juventude, hoje, salta para a rua, a juventude hoje tem outra consciência e podemos dizer “Ah e tal… o Chega ainda atrai… e não sei quê”, esqueçamos, isso são momentos, o populismo, essa caixinha, isto tudo está feito, mas a minha profunda convicção que vêm aí grandes momentos, grandes comemorações do 25 de Abril, grandes momentos de luta e, mais uma vez, ó Leonor, é que não haja dúvidas, o partido não é um partido institucional, está nas instituições como uma frente de luta, mas o partido comunista português é quem vai pôr de novo o povo na rua! E nós, não há qualquer dúvida, voltaremos de novo a ter uma outra expressão também institucional, porque a expressão e a força está no partido comunista, que vai perder este rumo, que vai conseguir transformar as comemorações que aí vêm nas maiores comemorações e vamos prosseguir, porque a luta é na rua! E, como eu dizia, mesmo no comício que se fez
recentemente em Vila Nova de Gaia, com o atual secretário geral, que está a fazer um caminho que é muito duro, muito difícil, mas estamos cá, e ele está também nesse mesmo caminho, não há dúvida nenhuma que a luta está na rua e o PCP está na rua!
Entrevistadora - Obrigada.Recolher