Projeto: Valorização da História e da Cultura dos Municípios de Caucaia e São Gonçalo do Amarante - CSP
Roda de Histórias – Tapebas
Mediação: Danilo Eiji Lopes
Local: Lagoa dos Tapebas, Capuan (Pau Branco), distrito de Caucaia (CE).
Data: 17 de maio de 2014
Roda de histórias 01
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Francisco Guilherme Ribeiro Ruiz
Revisado por: Danilo Eiji Lopes
Weibe – A gente volta para o mesmo lugar que a gente está. Para a gente fazer uma prece, nós temos uma prece sagrada, a gente tem que fazer as honras para os espíritos das matas porque senão vão expulsar a gente aqui e não dá certo não. Vocês podem, o pessoal da equipe aí se quiser também, não sei se vão registrar, como é que é o negócio. Aí para entrar, nós somos um grupo aqui. Cacique, pode fazer as honras?
Alberto – Rezar um Pai Nosso, não é? Pai Nosso que estás no céu.
Vários – Santificado seja o Vosso nome. Venha a nós o Vosso Reino. Seja feita a Vossa vontade, assim na Terra como no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém.
Weibe – As matas virgens...
Vários – Estava escura, quando o ar clareou. As matas estava escura, quando o ar clareou. Mas quando eu via a voz do meu povo, todos os índios aqui chegou. Mas quando eu via a voz do meu povo, todos os índios aqui chegou.
Dourado – Índios Tapeba aqui chegou...
Weibe – Oxelerê.
Vários – Lê, lê, lê. O lê lê rei lá rei ma elei. O lê lê rei, lê lê rei, lê lê rei. Ma lê lê rei, natureza é rei.
Weibe – Grave estrondo deu na aldeia. Que a aldeia balanceou.
Vários – Grave estrondo deu na aldeia, que a aldeia balanceou. Tupinaré rei dos índios, meus irmãos, Tupinaré é rei do mar. Tupinaré é rei dos índios, meus irmãos, Tupinaré é rei do mar.
Weibe – Para os encantados. Na noite de lua cheia.
Vários – Eu fui à praia pescar. Na noite de lua cheia eu fui à praia pescar, só para ver os encantados, que brindavam as ondas do mar. Só para ver os encantados, que brindavam as ondas do mar. E vem Jurema, vem Manguezá. Vem Jurema, vem Manguezá. E viva a rainha das águas, viva o nosso pai Guajá. Viva a rainha das águas, viva o nosso pai Guajá. Na noite de lua cheia eu fui a praia pescar. Na noite de lua cheia eu fui a praia pescar. E só para ver os encantados, que brindavam no pé do mar. Só para ver os encantados, que brindavam no pé do mar. E vem Jurema, vem Manguezá. Vem Jurema, vem Manguezá. E viva a rainha das águas, viva o nosso pai Guajá. Viva a rainha das águas, viva o nosso pai Guajá.
Weibe – Vibrado os trocos, ditos os trabalhos.
P/1 – Pessoal, então bom dia. Primeiro eu gostaria de agradecer muito por vocês nos receberem aqui e, eu estou falando em nome de toda equipe, que o pessoal do vídeo está aqui com a gente, o pessoal da Nigéria Produções, a Helena, Tatiana. Eu trabalho no Museu da Pessoa e o Ricardo, o Weibe, deve ter falado para vocês um pouco, nós trabalhamos com história de vida, somos um museu, um museu com acervos de histórias de pessoas. Das pessoas entre aspas comuns e, tem uma ideia então de um lugar que qualquer pessoa pode contar sua história e dar a sua versão da história. Não precisa ser o presidente, não precisa ser o Neymar, não precisa. Estamos todos construindo essa história. A gente está aqui, o Museu da Pessoa, ele foi convidado para essa região, pela CSP, fazer um trabalho da área de educação e cultura. Na área de educação inclusive a Selma, que é a sua irmã, não é isso?
R/? – Hum-hum.
P/1 – A Selma participou, de uma formação de professores em Caucaia. Estamos fazendo uma ação de formação de professores em São Gonçalo, com os jovens de São Gonçalo também. E o outro trabalho é o registro da história da região. Vocês sabem muito bem que a região está se transformando e a gente quer realmente ver como as pessoas que moram aqui, como era antes, como está sendo morar hoje e o que a gente espera para o futuro. Que quem vai construir somos nós mesmos também. Essa roda de histórias, que é uma honra, a gente vai fazer amanhã também com os Anacés, lá em Matões. No dia 31 a gente vai fazer com a comunidade Quilombola, representantes da comunidade Quilombola da região, na Serra do Juá. E no dia um, a gente vai fazer com moradores de assentamentos de várias localidades, que foram pessoas que também foram realocadas, foram transferidas as suas antigas terras. E além disso, nós vamos fazer o que, 20 entrevistas de histórias de vida, com um número, um perfil variado dos moradores daqui. E o que é que a gente vai fazer com tudo isso, inclusive com as rodas, o primeiro é o acervo, a primeira coisa é o acervo, estar isso disponível, esses pontos de vista da história, essas histórias registradas para, enfim, qualquer pessoa, qualquer escola, qualquer, inclusive vocês podendo acessar a internet pelo portal do Museu, o Weibe aqui é o meu contato, vai deixar bem. E o outro e eu acho que esse é um grande passo, que é usar essas histórias de vida, tanto das rodas, como o das histórias de vida, com os professores de Caucaia e de São Gonçalo do Amarante, eles vão nos ajudar, vão ser uma coautoria de um material didático. Então de como trabalhar essas histórias em sala de aula. Então por isso foi muito legal ter a Selma lá com a gente, ter outros representantes de comunidades indígenas, Quilombolas, participando da formação, para pensar então. Essas histórias como é que vão chegar nos alunos e, assim, eu não estou falando, eu estou falando da rede toda, material para circular na rede toda do município de São Gonçalo e de Caucaia. Os professores de história então estão olhando para esse material, problematizar ele e colocar. E é isso, o encontro de hoje é uma grande conversa, eu sei que isso aqui assusta um pouco, tem um vídeo, tem câmera, mas esse registro é importante, principalmente, hoje a gente está aqui, todo mundo, pessoal novo, até assustei, o menino ali tem 16 anos. Então assim, está todo mundo novo, falar de memória, é uma coisa um pouco esquisita, mas vamos pensar isso como esse legado que a gente deixa, dessa memória da comunidade, o que é que fica para depois, o que o nosso pequenininho, qual é que o nome? Do bebezinho?
R/? – É um bebê.
P/1 – Qual é que o nome da bebezinha?
R/? – Gabriela e Vitória.
P/1 – Então, o que é que a Gabriela vai olhar nessas histórias depois, que ela vai poder acessar. Tudo bem? Se sintam todos convidados a falar, não tem uma ordem correta, eu só vou fazer uma, que é a apresentação. Então eu gostaria que todos vocês se apresentassem, falassem o nome, a data de nascimento, o local de nascimento e se apresentar um pouco para a nossa roda. Daí a gente começa.
Câmera – Tá, Danilo. Só pedir para, a gente vai só claquetar agora.
Câmera – Só vai claquetar.
R/? – Aí o que é claquetar?
P/1 – O que é que é, desculpa, essas partes técnicas eu não sei nada.
Câmera – A gente vai sincronizar o áudio.
Câmera – Para aí quando alguém for editar sabe a hora que tem que sincronizar o som.
P/1 – Ah, perfeito. Por isso que eu sou historiador, não é gente, eu só fico ouvindo histórias.
Câmera – Claquetou.
P/2 – Pronto.
Dourado – Eu tenho uma filha historiadora também, viu.
P/1 – E, é.
R/? – Viu? Tenho uma filha historiadora também.
P/1 – Opa, vamos falar sobre isso. O Tiago?
R/? – Fernando Reis.
P/1 – Só para a gente também, acho que é bom para o nosso registro, hoje é 17 de maio de 2014, estamos na Lagoa Tapeba, correto? Dois?
Weibe – É Lagoa dos Tapebas.
P/1 – Lagoa dos Tapebas Dois?
Weibe – Não, Lagoa dos Tapebas.
R/? – Não, só Lagoa dos Tapebas.
P/1 – E qual é que é a Um? (risos). Eu estava falando, tinha a Um, tem Dois. Lagos dos Tapebas. E tem outra?
R/? – Tem, Lagoa Um.
P/1 – Tem a Lagoa Um.
R/? – Tem.
P/1 – Desculpa gente.
R/? – É porque aqui era Dois, nós tiramos o Dois do meio.
P/1 – Tiraram o Dois?
R/? – É.
P/1 – Então está bom. Podemos fazer essa rodada de apresentação?
R/? – Podemos.
P/1 – Então, por favor.
Weibe – Vai assim, não é?
P/1 – Pode ser, pode ser.
Weibe – Bom, meu nome é Weiber, sou aqui da aldeia Lagoa dos Tapebas. Atualmente presido a Associação dos Índios Tapeba de Caucaia, que foi a primeira organização indígena fundada no Estado do Ceará em 85. Professor indígena, atualmente a gente coordena um trabalho com a juventude indígena aqui do povo Tapeba. Também sou estudante de Direito.
Antônio – Eu sou Antônio, sou da aldeia Capoeira, sou agente de saúde e a gente também participa de todas as demandas da nossa etnia, representar a nossa aldeia capoeira em todos os movimentos.
P/1 – Obrigado.
Sônia – Estão esquecendo a data de nascimento.
Gabriel – Eu sou Gabriel Tapeba, minha aldeia é Jardim do Amor, atualmente eu sou presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena do Ceará e coordenador executivo do Fórum de Presidentes de Conselhos Distritais do Brasil.
P/1 – Obrigado.
Raimundinha – Sou dona Raimundinha, sou uma das lideranças daqui, da Lagoa. Posso ser meia velha, mas ainda estou forte para o que der e vier.
P/1 – (risos). Obrigado.
Dourado – Eu sou Dourado Tapeba, sou assessor do Controle Social na Saúde Indígena, no Ceará. Sou coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas no Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo e também da Comissão Intersetorial de Saúde Indígena do Conselho Nacional de Saúde. E o nosso lema é lutar, lutar e vencer.
Naara – Sou Naara, sou aqui da comunidade da Lagoa do Tapeba, sou professora da escola indígena.
Liliane – Sou Liliane, também daqui da comunidade Lagoa dos Tapebas e também sou professora de escola indígena.
Antônia – Sou Antônia Cláudia, faço parte dos índios Tapeba.
Sônia – Meu nome é Sônia, eu nasci no dia 20 de novembro de 64 e tenho quase a idade do Paulo Sarasate, onde eu nasci, que é a maternidade antiga. E sou a liderança da comunidade Jantecuaba e sou a vice-presidente junto com o Veiga aqui da Arcipa.
Maria Lúcia – Eu sou Maria Lúcia de Soares, moro aqui na Lagoa do Tapeba e eu sou de quatro de outubro de 54. E moro aqui, pronto, só isso, não é?
Vários – (Risos)
Maria Lúcia – Ou tem mais alguma coisa?
Rita – Eu sou Rita Silva dos Santos. Moro no Capuan, nasci 31 de julho de 47, moro em Capuan há 50 anos.
Raimunda Fernanda – Meu nome é Raimunda Fernanda Cruz de Menezes, nasci aqui na Lagoa Dois, na Lagoa dos Tapeba e nasci no dia 20 de março de 58.
Maria Verônica – Maria Verônica Souza da Cruz, sou aqui também da comunidade da Lagoa, tenho 50 anos, nasci no dia sete de dezembro de 63.
Francisco – O meu é Francisco Aliel, moro aqui em Capuan, nasci em 2003, só.
Vários – (risos).
Francisco – Dia nove de fevereiro.
Raimunda Cristina – Meu nome é Raimunda Cristina, nasci no dia primeiro de fevereiro de 78, moro no Capuã e faço parte dos índios Tapeba.
Silvia – Agora é eu, é? Sou Silvia Tapeba, sou agente de saúde aqui da comunidade Lagoa dos Tapeba e eu faço parte do Conselho Local de Saúde e Distrital. Nasci no dia seis de junho de 65.
Alberto – Eu sou o cacique da tribo Tapeba, sou de 1948, nasci uma sexta-feira e tenho 66 anos e três meses.
Alef – Meu nome é Alef, sou da comunidade da Capoeira e trabalho na escola indígena.
Josiane – Meu nome é Josiane, moro na comunidade Lagoa Um e sou professora indígena.
Simone – Meu nome é Simone, moro na comunidade Vila dos Cacos, aldeia Tapeba, sou militante de movimento indígena.
Erick – Sou Erick, tenho 16 anos, sou estudante do Ensino Médio, eu sou da aldeia Capoeira e, é isso, (risos).
P/2 – Pessoal, só, desculpa, pulou o seu nome, que é?
Luciana – Eu estou só observando.
P/1 – Não, mas se apresente.
R/? – Vai, se apresente, é isso que eu estava dizendo.
Luciana – Tudo bem.
P/1 – Qual é que é o seu nome?
Luciana – Sou Luciana, sou estudante de Serviço Social e eu estou colhendo dados para um trabalho sobre movimentos indígenas.
P/1 – Está certo, bem-vinda a nossa roda aqui. Pessoal, só para diferenciar, porque é que não estamos, só para falar gente, agora que nós vamos começar, vou pedir para vocês deixarem o celular no silencioso, isso aqui não é um dia qualquer. Estamos aqui, essa oportunidade de olhar um para o outro, de ouvir as histórias do outro, então é um momento de muito respeito. Então eu peço realmente que todos desliguem ou deixem no silencioso o celular e aí a gente pode começar. Podemos? Primeiro eu queria fazer uma pergunta muito, enfim, ampla e quero ver quem me ajuda a responder. Mas, o lugar aqui, Pau Branco, quem conhece a história deste lugar aqui? Que poderia contar para a gente, onde nós estamos e para quem vá ver o nosso vídeo, contar o que é que é a Lagoa, o que significa para os Tapebas. Por favor, quem gostaria?
Dourado – Eu posso falar. Pode?
P/1 – Por favor.
R – Bem, bom dia a todos, a todas.
Vários – Bom dia.
Dourado – É contando a história, aqui da história da Lagoa dos Tapeba, a gente não tem uma história muito bonita para contar. A gente vai começar por uma questão que foi muito ruim para a nossa família, para o nosso povo, o povo Tapeba. Uma que o meu pai morava aqui nessa beira da lagoa, eu não era nem nascido, meu pai foi expulso daqui pelos posseiros da época e foi morar no Ipaumirim, por trás dessa lagoa, lá perto da Ematerce (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Ceará). Na BR 202, e foi morar debaixo de um cajueiro. E a minha irmã mais caçula, que é da idade do cacique ali, mais um pouco, um ano, que ela nasceu em 47, debaixo desse cajueiro. Meu pai passou quase um ano lá e voltou para a lagoa novamente, voltou para cá novamente, os posseiros daqui tinham ido para Fortaleza e ele voltou para cá. Tinham outras famílias que moravam do outro lado, que era o Sabino, era o Borgonha, Maria Adélia. E passou mais ou menos dois meses, foi expulso novamente, os caras voltaram, só que nessa ele também não foi mais para lá, ele foi para aqui o lago onde pertence a nossa família mesmo, os Domingos. Ficou lá uns tempos, depois voltou para cá novamente. Aí quando voltou para cá, aí pronto, aí ficou muito tempo aqui. E teve um pessoal da lagoa, a lagoa que chama Lagoa Um lá, um nome lá da vila, vila...
R/? – Cotias.
Dourado – Vila das Cotias. E aí o pessoal morava tudo ali, também foram expulsos para lá, eles arrumaram terras para lá, também está dentro da aldeia. E essa história é uma história triste. E aí quando nós, os mais novos, os mais velhos se foram, repassaram um pouco da história, meu pai fez 98 anos de idade, ele já passou como era a história do nosso povo. Inclusive a nossa terra não era só quatro mil e poucos equitares, eram 36 mil, que começava lá da Pedra Taquara ou Serra da Taquara, ia terminar no Juá. E aí eu queria até parabenizar aqui, na época tinha o Rito, que foi casado com a minha tia, a tia Alice e que foi pai do cacique, que é o Vitor Tapeba, que morreu em 83. E de ter lutado, o Perna de Pau na época, também que resgataram essa história. E os mais novos tomaram de conta, o cacique continua ainda aí na ativa, como a esposa dele, a Raimunda, que é a pajé. E aí nós fizemos a retomada desse espaço de novo, a retomada geral, aonde nós utilizamos a Lagoa do Tapeba, aí a questão da história do Pau Branco, a história do Pau Branco é porque essa árvore aqui, ela é conhecida como “pau branco”, popularmente chamada, tradicionalmente, pau branco. Por ter essa questão, essa variedade, de muitos paus, muitas árvores chamadas pau branco, a gente batizou isso aqui como Terreiro Sagrado do Pau Branco, ao lado da Lagoa do Tapeba. Então para nós hoje essa história que nós estamos contanto, para nós não é mais de tristeza e sim de felicidade. Porque era um lugar onde moravam as nossas famílias e hoje ela está servindo para realização de rituais, as nossas festas tradicionais, como no caso da Feira Cultural, da Festa da Carnaúba, que a carnaúba, nós usamos a Festa da Carnaúba porque é a árvore da vida, é de onde nós tiramos a palha para fazer os nossos artesanatos, inclusive cocar, as tangas. Então para nós hoje essa história da nossa lagoa, virou assim como um mito para nós. E nós talvez não sobreviveria se não tivesse reapossado essa lagoa, que é a história de vida nossa. Lagoa do Tapeba, porque é Lagoa dos Tapeba, porque existe uma pedra dentro dela, aqui no meio da lagoa, que é de formato de Peba, formato do tatupeba. E aí a outra tristeza porque na época de 83, 81, 82, 83, que foi uma seca muito grande e o povo não tinha muito recurso para tirar, então eles quebraram a pedra, algumas pessoas quebraram a pedra para vender a pedra para calçamento. Então foi uma perda para nós, porque era um monumento para nós, uma história, assim, como é que chama aquela questão arqueológica? Era um monumento arqueológico, que poderia a gente estar fazendo até esse trabalho em cima da pedra. E quando enchia, ficava só a caracuretinha dela. E era muito interessante que a gente saia nadando, nadando, nadando, para pescar lá de cima da pedra. E aí não tem mais essa pedra para a gente mostrar para vocês. Mas tem essa beleza agora do terreiro sagrado, as nossas obras, mostrando a tradicionalidade nossa, dos nossos ancestrais. E aí para mim essa história, ela transformou-se de uma história triste para uma história alegre. Então queria dizer para vocês que para nós é o maior orgulho nós estarmos aqui fazendo essa roda de conversa, resgatando uma história triste, transformando em uma história alegre para o povo Tapeba aqui de Caucaia.
P/1 – Hoje, Dourado, a gente vai falar sobre todas essas partes, tanto das tristezas como das felizes. Porque a vida é assim, não é gente, são altos e baixos de todos. Eu queria entender um pouco a origem, por exemplo, o povo Tapeba está aqui. Você falou de 36 mil hectares, de muito tempo, qual é que é essa origem do povo? Qual é que é o mito fundador de vocês? Qual é que a história que vocês aprenderam sobre a própria etnia, sobre o próprio povo?
Dourado – Na realidade o povo Tapeba, ele surgiu de um aldeamento que foi criado. Em 1863, houve aí, que até um tempo desses nós chamávamos de decreto governamental, da época de Pombalino, mas só que depois de muitas discussões a gente entendeu, um historiador, Francisco Pinheiro, ele colocou que nunca houve decreto e sim um relatório provincial, que dizia que no Ceará não existia mais índio. Então antes dessa época já tinham criado esse aldeamento em Caucaia, que era o Aldeamento Nacional dos Prazeres. E para cá trouxeram Tremembé, o grupo Tremembé, Potiguara, Cariri e Jucás. Então o povo Tapeba originou esses quatro povos, é por isso que existe, dentro das nossas comunidades existe, há divergências por causa dos clãs, que são diferentes. Potiguara é mais, ela é 70% talvez, digamos assim, do povo Tapeba. Cariri, Tremembé e Jucás são a minoria. E foram 600 potiguaras que vieram para cá na época, a história que nossos bisavôs contavam, que veio muita gente e, nessa época os índios Caucaia que existiam aqui eram dados como extintos. Então como a gente usamos a palavra Tapeba, povo Tapeba, na questão por sobrevivência, porque na época ninguém podia dizer que era índio mais. Todo mundo aqui se identificava como Tapeba, mas não como índio. E tinha outros até que tinham vergonha de se identificar como Tapeba porque tinha um preconceito muito grande, discriminação. Aí hoje não, hoje nós já adquirimos um respeito, a própria república reconhece nosso povo, inclusive o próprio município criou a Coordenadoria Indígena dentro da sua estrutura governamental. Então para nós hoje, muita gente que nem, muitas vezes não faz parte e se identifica como Tapeba. Que isso também é orgulho para nós, porque antigamente até o próprio povo Tapeba não queria se identificar como Tapeba e hoje muita gente que não é quer ser Tapeba, entendeu. Você vê como é que é a história, foi um resgate muito interessante, aí eu coloco até a questão do Dom Aloísio Lorscheider, também que ajudou na época em 1980, quando ele começou a passar, visitar as comunidades. A primeira comunidade que ele visitou foi a comunidade da Ponte, onde o cacique morava e dentro dessa questão eles começaram a ajudar a gente. Inclusive nessa época nem Funai tinha aqui, aí com a luta, com o decorrer da história, nós começamos a participar de outras organizações, outros Estados, Alagoas, Pernambuco, Bahia, Sergipe, andamos muito, criamos a Organização que é a Leste-Nordeste, que transformou-se depois em APOINME (Articulação dos povos e organizações indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo). E aí a partir dessa história todinha, o povo Tapeba começou a deslanchar e a já exportar a liderança para representar os índios a nível nacional, como o Gabriel citou em um instante, que hoje ele é presidente do Brasil na saúde indígena. Como é o Heitor, representante na articulação a nível nacional. Weibe também, que é meu filho também, uma grande liderança jovem que também nasceu já no berço, vem do berço a história dele, como a Naara Tapeba aqui que é minha filha também. Então essa questão, ela foi se levantando, levantando, então o povo Tapeba hoje é um dos povos mais respeitados do Brasil, do Nordeste do Brasil. E com representações que representa a todo o povo a nível nacional. Então para mim, eu fico orgulhoso, se eu morresse hoje, eu morria satisfeito, já estava contemplado com o que tinha acontecido e espero que, apesar da criminalização que o Governo hoje está colocando em cima de nós, lideranças, pela questão do território, porque os territórios não são demarcados e a gente tem que lutar, tem que retomar e nessas retomadas acontece muito crime, assassinatos de índios. Mas quando o cara mata um índio, não vai ter quase nada, não tem quase repercussão, mas se o índio matar um, como aconteceu agora no Rio Grande do Sul, os Cainguangues lá, inclusive o rapaz que está preso, ele é até da CNP, que é a Comissão Nacional de Política Indigenista. Então eu fico assim preocupado com essa questão, mas em relação a questão do resgate, da luta do povo Tapeba, para mim eu estou satisfeito, assim, no caso se eu morresse hoje, mas eu quero continuar lutando para que a gente possa ver essa terra demarcada, e tiver os nossos netos e o molequinho ali, que é o Cauê Porã, ele ver essa terra demarcada e usufruir seus direitos, o tem para usufruir.
P/1 – Eu estou vendo que é uma história que tem bastante conflitos nessa história e até hoje.
Dourado – Isso.
P/1 – Vamos fazer o seguinte, vamos para o passado, de como, eu vi que muitos de vocês estão aqui, nasceram, cresceram aqui. Eu vou querer ouvir um pouco de como é que era então a região aqui no passado, algumas pessoas que não estão mais com a gente e que a gente sente falta. E daí depois a gente vai para esse presente e depois a gente vai para a expectativa, pode ser?
Dourado – Pode.
P/1 – Dona Raimundinha, por exemplo, a senhora nasceu, cresceu aqui?
Raimundinha – Eu cheguei aqui criança.
P/1 – De onde?
Raimundinha – Eu sou Tremembé, cidade do Rio, eu nasci em Tremembé. Nos Tremembé de Baixo, que lá são duas aldeias, Tremembé de Cima e Tremembé de Baixo. Só que eu saí de lá muito criança e eu me acho Tapeba. Que eu cresci aqui, só não fiz nascer.
Dourado – E casou com Tapeba, não é?
Raimundinha – Eu cresci aqui, me casei com Tapeba e tive 16 filhos, criei nove e esse é o maior tesouro que Deus me deu, minha família. E aqui tem coisas que faz muita falta a gente, que a gente tinha e que hoje não tem, a nossa mata. Nossas caças, que a gente sobrevivia muito de caça, da pesca.
P/1 – A senhora se lembra da sua infância aqui?
Raimundinha – De fruta. Aí como me lembro!
P/1 – Conta um pouco para a gente, não sei se o pessoal conhece. O que é que vocês brincavam, por exemplo, o que é que vocês faziam? Moravam aonde?
Raimundinha – A gente brincava de casinha, trepada nas moitas, era tudo varrido debaixo. Brincava com as panelinhas, botando comida no fogo, caçando ovo de passarinho. E hoje? Hoje cadê nossos passarinhos, contadinho, para aqui e para acolá. A gente chega na beira da lagoa para ir caçar ovo de passarinho, no cipó do rio. Muito difícil encontrar... Cobra, que nosso povo comia cobra e a gente saía para ir buscar uma cobra e hoje a gente sai para caçar uma e é difícil de achar. De primeiro tinha muitas qualidades de cobra aqui, tinha até a cobra que, cobra de leite, que mamava nos peitos das índias. Vocês nunca ouviram falar não que tinha cobra de leite?
P/1 – Não conheço.
R/? – Cobra preta, tinha sim.
Raimundinha – Ela mamava, é, tem duas qualidades de cobra preta, uma do papo amarelo e a outra do papo branco. A do papo branco é a cobra de leite. Minha menina, o primeiro filho dela, que ela teve com 14 anos, aí ele ficou magrinho, feriu a boca todinha e ela ficou com o peito todo ferido. Aí o pai dela, “Isso tem cobra mamando na Sinhá”, é um apelidozinho que a gente botou nela. Aí a gente, “Vamos pastorar”, porque a cobra, ela tira o neném do peito, coloca o rabo na boca do neném e fica mamando no peito. Por isso a boca está pocada e o peito. Aí fomos pastorar, aí quando foi um dia o menino estava sentado, aí meu menino mais velho, “Mamãezinha, olha aqui que coisa bonita”, a lua estava muito clara, “Aí parece as estrelas do céu”, que a gente foi lá, era cobra preta. Só que o claro da lua, ela estava empatacada e com o claro da lua o preto brilhava, que ela estava toda patacada. Mas para o neném morrer, só faltava dois palmos para ele não existir mais, porque quando ela fica toda branca, aí o neném morre. Aí o pai dela foi e matou a cobra, acabou. Mas ainda hoje em dia ele é magrinho, ela é pouquinha e magrinho, que ele chupou no rabo da cobra. E dessas histórias assim que existia antigamente muitas coisas, muitas farturas de fruta, as frutas davam muito. Hoje em dia nem as frutas dão mais direito, sempre tem alguma coisa.
P/1 – Essa BR aqui, essa estrada, veio só depois?
Raimundinha – Pois é. Aí tem muitas coisas que tinham antigamente que hoje em dia faz muita falta para a gente, como as caças que a gente tinha e hoje nós não temos mais. A mata que nós tínhamos, hoje nós não temos mais. Não existe mais mata. E eu estou vendo a hora que ela vai acabar e nós acabarmos junto, porque é uma dependendo da outra. Não sei se os mais novos sabem, mas a natureza faz parte da nossa vida e nós fazemos parte dela, quando ela acabar, nós acabamos junto.
P/1 – Pensando nessas pessoas que, essas pessoas que não estão mais com a gente e que ficaram, a senhora se lembra, por exemplo, das parteiras da sua época?
Raimundinha – Me lembro.
P/1 – Ou das pessoas que tinham um conhecimento muito grande da mata?
Raimundinha – Me lembro.
P/1 – A senhora se lembra? Conta um pouco para a gente de alguns.
Raimundinha – A mãe dele aqui, ela era parteira e, ela pegava muitas crianças por aqui. Tinha uma velhinha aqui também, que ela pegava neném, a Mãezinha, ela não era daqui, mas ela pegava os nenéns daqui. Ela tinha língua e grandência, porque ela não completava os não, ela diminuía o não. Que nem porta, nós estica a “poorta” e ela chamava “porrta”. Ela diminuía o nome, ela não falava assim que nem nós esticando, era diminuindo as palavras. Mas era parteira daqui, ela era conhecida como Mãezinha e pegava as crianças de todo mundo aqui.
P/1 – Quem nasceu com a Mãezinha? Alguém, (risos)? Hoje vocês têm parteiras?
Raimundinha – Tem.
R/? – É aqui a Verinha.
P/1 – Verinha? Verinha é parteira?
Raimundinha – Não.
Verinha – Não, eu nasci com ela.
P/1 – Você nasceu com a Mãezinha?
Verinha – É.
P/1 – Entendi. E hoje em dia, vocês têm alguém que sabe fazer? Que acompanha?
Dourado – A Iracema faz ainda, ela fez seis partos.
Raimundinha – Tem, tem gente aqui que pega criança.
Dourado – A minha mãe pegou mais de mil.
Raimundinha – Só que tem índia que não confia nas parteiras que tem agora, não dá aquele credito de, “Eu vou porque eu confio que ela vai saber pegar o meu neném”. Também pego, vindo direito, vindo direitinho, agora, se tiver algum erro eu não sei colocar no canto.
Dourado – Que nem atravessado não dá.
Raimundinha – Aquelas parteiras mais velhas, elas mexiam e viravam, mexiam, até que colocava no canto. Mas eu não sei fazer isso. É como diz, vindo direito, até o chão pega, (risos). O duro é isso aí, é você saber colocar no canto, a responsabilidade, o tamanho da responsabilidade, dizer: “Eu sou parteira”. Tem tudo isso.
P/1 – Entendi. E esse conhecimento gente?
Raimundinha – Mas tem, tem o Naldão. Tem um rapaz aqui que ele já fez parto.
P/1 – Naldo?
Raimundinha – Na nossa comunidade. É conhecido como Naldão. Ele já pegou bem umas três ou foram quatro crianças, ou mais, que ele já pegou. Ele começou a pegar ele era rapazinho bem novinho. Hoje ele é pai de família, mas o primeiro filho que ele, a primeira criança que ele pegou, ele era um rapazinho ainda.
P/1 – Mas aprendeu como?
Raimundinha – Porque a mulher era para ter o neném, não tinha parteira e o menino vinha nascendo, ele: “A via maninha, a via maninha”, ah, pegou o menino. Pegou o menino, enrolou, cortou o umbigo. Ele, cortou o umbigo, seja lá o que Deus quiser, pegou a tesoura, amarrou, cortou o umbigo, deu certo. Aí pronto, qualquer um aqui ia ter neném, “Vai chamar o Naldão, vai chamar o Naldão”. Nessas arrumações ele já pegou umas quatro ou mais crianças.
P/1 – E o Naldo aprendeu sozinho, é isso?
Raimundinha – Aprendeu sozinho, aprendeu sozinho. Mas o índio, ele aprende, é as custas dele mesmo. Que índio é teimoso mesmo, quando ele quer uma coisa ele faz.
P/1 – Isso é assim gente? Como é que vocês participam? Esse conhecimento de vocês, essas tradições, como é que vocês aprendem?
R/? – Índio é corajoso.
Alberto – A dona Raimundinha entrou no mérito aí no começo da nossa vida, ela está certa, ela disse, eu só vou pegar aqui um pedacinho do espaço dela. É o seguinte, depois eu chego na tela do que o compadre Dourado falou. A minha primeira mulher, foi um negócio sério, ela, vamos falar mesmo na língua, na nossa língua, quando ela pariu, ela não socou a placenta fora de jeito nenhum, certo? E meus pais já me ensinavam como é que era para fazer, ele cobria a mamãe e dizia: “Isso aqui é assim, assim, assim, assim”. A placenta quando não sai, ela tira aquela coia, o pedaço da coia, entendeu? guarda, fura e pendura no canto e, quando a placenta não larga, você vai com ela no fogo, não esquenta demais e nem pode deixar fria. Aí você cruza a barriga da mulher, aí balança ela três vezes assim, vap, vap, a placenta sai para fora, tá. Porque lá tinha uma parteira, que ela ia matar a minha mulher, ela não sabia, só que ela não era índia, era uma pessoa, que nós já estávamos morando afastado da Caucaia um pouquinho, aí ela e, eu não estava em casa, aí quando eu cheguei vi aquela multidão, já, “Pronto, a minha mulher morreu”. Eu tinha deixado ela barriguda, saí, aí quando eu cheguei a mulher estava puxando a placenta e pondo nessa papel. Aí me lembrei da cuia, mas aquela cuia é só para essa coisa, sacou a placenta, você pendura lá no mesmo canto, que nem uma bolsa, que nem um celular, que nem um pedaço de coisa, um saco de pão. Ali só para aquela coisa, então é desse jeito. Então vamos lá, essa eu aprendi com o meu pai. Então o problema da terra, eu como cacique, o meu problema é reconhecer o povo que o meu pai passou. Papai morreu com a temporada grande, e ele me ensinava todo esse terreno aqui da nossa área ele me ensinou tudo. Onde mora aqui a luz, ela já vinha, ficou ali em enquaderado, que botaram eles ali, encostei eles ali no pé da parede e nós ficou lá para o trilho, entendeu, nós íamos lá para o trilho. Do trilho, nós íamos pescar aqui na Lagoa do Esporte, que nós era como esporte, tudo bem. Então fiquemos lá pelo trilho, por ali, morando por ali, aí papai passou esse mandato para mim, “O meu problema aqui, até hoje, à meia noite, eu não sei do amanhã, é ser o cacique do meu povo”. E quando eu fui cacique do meu povo, ele dizia: “Olha você tem que fazer isso, isso e isso. Reconhecer o seu povo”, foi o que eu fiz, reconheci tudinho do meu povo todo, tudinho, tudinho. Eu fui na casa, de casa em casa, eu visitei a comunidade. Aí voltando um pouquinho a vida dele aqui, ele está certo, ele tem um estudo, vai para Brasília, que eu já fui com ele, para trazer as leis, que eu não tenho estudo, fica mais a parte dele. Dele trazer as leis, saber como é que pode usar uma lei. Então esse é o trabalho dele, é conhecer o povo, trabalhar com o povo.
P/1 – Senhor Alberto, eu posso voltar um pouquinho? Como é que foi esse aprendizado com o seu pai? Me conta um pouco, me conta uma história, para onde é que ele já te levou? Me conta um causo assim.
Alberto – Não, o meu pai, eu andava com o meu pai e minha mãe
P/1 – Conte um pouco sobre ele.
Alberto – Não, porque antes quando saía para pescar, eles iam pescar tudo nu. Eu tenho uma irmã, que a mamãe pariu, deixou ela com uma distância como daqui lá no coiso. Eu vi quando o papai cortou o umbigo com talho, talho de carnaúba e amarrou com uma bucha. E deixou ela lá e lá ele deu uma semente de mangue, a menstruação foi-se embora. Aí quando ele chegou em casa, aí me chamava tudinho, “Faz um chá para a mãe”, deu de castanha, foi dar castanha a menstruação voltou. Aí ela não tinha resguardo, não tinha nada, era só trabalhando. Essa é o que eu aprendi com o meu pai, essas coisas, entendeu. Vou voltar para a vida dele ali, então ele é uma pessoa que corre muito atrás de reunir o povo, porque eu reunia o povo, mas ele reúne mais do que eu, porque ele traz todo o recurso, que é o trabalho dele, entendeu. ele é um bom trabalhador, é uma boa pessoa, sabe onde que nós pode pisar e ele passa para a gente. Então para ele aí, é que nem o jovem, o jovem nós estamos se indo e amanhã nós sabemos se estamos ou não, o jovem que vai tomar conta dessa terra homologada. Então o que eu só quero dizer para ele, que ele e o filho dele, a família dele, família dele, família nossa, entendeu, porque eu faço parte do grupo indígena, que estão de parabéns. Eu, tive muita gente que foi quando eu fui com ele, nós fomos para Brasília comendo casca de banana, entendeu? E hoje nós estamos aqui contando a história.
R/? – Eram vários carazinho pequenininho, não é?
Alberto – Entendeu?
P/1 – Como foi essa história? Como assim foi para Brasília?
Alberto – Fumo atrás de recurso para que o prefeito daqui deixasse nós em paz, deixar nós viver a nossa vida. Porque o prefeito José Geraldo foi o maior massacre do mundo aqui há dez anos, ou 30 anos, entendeu. E nós sofrendo muito, eles mandaram prender os meus filhos, filho, dando de mamar...
Dourado – Botou revólver na cabeça da tua mulher!
Alberto – Botou revólver na cabeça da minha mulher, entendeu. Hoje nós estamos mais ou menos, não estamos como nós desejamos, mas nós vamos chegar lá.
P/1 – Eu estou vendo que você deu bem as datas, você falou que década de 80 parece que foi difícil.
Alberto – É, década de 80 foi muito difícil, foi fácil não.
P/1 – O que é que está acontecendo aqui nesse período? O que é que estava acontecendo na década de 80 que...?
Alberto – Na década de 80 era o seguinte, na década de 80, José Geraldo, que era o dono daqui tudo, o Esmerino Arruda Coelho que era senador, que eu conheci ele em Brasília, era o Ministro, depois passou a senador, sei que fui lá. Aí o José Geraldo sabia que ia morar no que era nosso, ele começou a pisar em cima de nós. Mas a nossa comunidade aqui já estava espalhando para todo mundo, ele vai conhecer meu povo todinho, entendeu. E por isso mesmo que ele não deixava nós viver, só ia massacrando a gente aqui. Além de comer os nossos órgãos, ainda massacrava. Foi o prefeito mais ruim que entrou aqui no município de Caucaia. Mas sobre o nosso trabalho aqui, agradeço a Weiber, primeiramente a Tupã. Primeiro a Tupã, segundo o pai Dourado, terceiro Weibe e a comunidade que está ao nosso lado. Hoje nós já temos um pouquinho, não é bom que nem nós deseja ser bom não, porque nós vai ficar bom só quando essa terra for homologada.
Weibe - A história do povo Tapeba ela se confunde com a história do município de Caucaia.
P/1 – Sem dúvida.
Veiber – Então foi colocada aqui o Aldeamento Nacional dos Prazeres, onde foram trazidas várias etnias indígenas, aí o aldeamento não deu certo por conta da diversidade mesmo e esse aldeamento, ele foi elevado a vila, Vila de Soure e depois transformou no município de Caucaia. São importantes colocar que o relatório provincial de 1863, que aconteceu 13 anos depois da Lei de Terras, era justamente para demostrar que aqui não tinha índio, que era para poder dar conta das pessoas que vinham de fora ocupar esse território. Então dizer que não tem índio em um relatório oficial da província do Ceará Grande, era justamente para dar conta de haver essa ocupação desordenada. Então de 1863 até o final da década de 70, o Ceará era considerado como um dos Estados do Brasil que não tinha população indígena. E aí como o cacique Alberto falou, o meu pai também, com apoio da antiga Pastoral Indigenista, criado pelo Dom Aloísio Lorscheider, foi um arcebispo muito popular, que foi feito uma visita lá na comunidade da Ponte e essa visita, ela aconteceu porque o Jornal Folha de São Paulo da época noticiava que o povo Tapeba estava presente aqui no município de Caucaia, estava sujeito a extinção, e o Governo, as políticas não chegavam até o nosso povo.
Dourado – Em 79, o jornal.
Weibe – Esse jornal foi veiculado na Folha de São Paulo em 79 e aí depois dessa noticiação, digamos repercussão a nível nacional muito grande, aí veio o arcebispo Aloísio Lorscheider, que deu esse apoio. Depois segmentos da Universidade Federal do Ceará também passaram a manter contato com o povo Tapeba. E aí o povo Tapeba levantou essa luta, hoje no Ceará nós somos 14 povos indígenas, em 19 municípios, quase 30 mil índios. Então foi, essa luta ela foi levantada pelo nosso povo, com a ajuda da UFC, com a ajuda do Dom Aloísio Lorscheider que criou a Pastoral Indigenista, hoje nós temos um Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos que é resultado dessa Pastoral. E aí através dessa luta as instituições começaram a se instalar, a Funai veio em 2005 atuar aqui na região, em 99 nós tivemos, 95 a Funai, em 99 nós tivemos uma ação em que a saúde e educação era da Funai e aí passou para o Governo do Estado na educação e a saúde passou para o Governo Federal através da Funasa e recentemente criaram a Secretaria Especial de Saúde Indígena. Tudo isso foi conquistado através dessa luta do povo Tapeba aqui no município de Caucaia.
P/1 – E que começou justamente nesse período, de 79 para 80 e, porque começaram a bater na porta aqui, é isso? O que é que foi essas coisas de despejo, essa violência? O que é que estava acontecendo aqui? Queriam fazer um resort?
Dourado – Na realidade é o seguinte, como o compadre Alberto falou ali, que é o cacique, o José de Arruda Coelho, ele é de Granja, a cidade de Granja aqui no Norte do Estado. E a família dele é muito grande, os Arruda Coelho, ele foi prefeito de Granja, ele foi suplente de senador e ele se apossou aqui de grande parte da nossa área, inclusive no lado de lá da 22, que é o Pasto Soledade. Nós temos lá um pasto de uns 700 equitares de terra que está na posse dele ainda. E aproveitando essa questão do espaço, eles são uma família política, o José Renato de Arruda, que é sobrinho dele, o Esmerino Arruda, que foi eleito aqui em 96 a prefeito de Caucaia, a nossa terra foi demarcada, ela chegou a ser demarcada em 97. Então nós passamos um mês com a terra demarcada, a terra foi demarcada em setembro, quando foi em outubro, final de outubro, entrou com um mandato de segurança contra a demarcação da terra, que foi no STJ. Na época o Miguel Guscort, que foi o relator do processo, que nem ouviu a parte indígena, o Ministério Público Federal, através da Sexta Câmara, quase que não participa dessa discussão. Só que já tinha a decisão do mandato de segurança, alegando que o município de Caucaia atrapalhava o crescimento, os índios atrapalhavam o crescimento do município de Caucaia. Só que na verdade ela fazia parte do processo, interesse no processo, só que ele não usou a família como questão, usou o poder municipal, o poder público, já que ele era o prefeito. E aí gastou dinheiro com advogado e nada e aí ganhou o mandato de segurança. Só que foi refeito e no momento o mandato diz que não tinha índio, mandou foi anular tudo. Foi feito novos estudos e aí passou mais de cinco anos fazendo novos estudos e, quando foi feito novos estudos, foi na época que a mulher dele foi prefeita, também, Inês Arruda. E aí ela entrou com um mandato de segurança de novo e voltou tudo para a estaca zero novamente. Aí agora foi feito novos estudos com esse atual prefeito, no primeiro mandato dele, a gente apoiou ele para que ele pudesse apoiar também a luta da nossa terra, então ele garantiu que não, era contra. Justamente ele cumpriu com o acordo dele, agora a questão não está mais na Prefeitura, está na questão da Funai, o problema da Funai é que não tem pessoas, o quadro de servidores da Funai diminuiu muito. Em 1980, o quadro da Funai eram 12 mil servidores, hoje não tem três mil. Então atribui toda essa questão, não só a questão da Funai, mas a questão judicial, porque tem muitos processos na justiça, hoje nós estamos com 40, é 40 contestações, não é filho? Contestando a demarcação dessas terras, então um período que foi muito ruim logo no começo, mas também na metade da discussão da luta, foi uma coisa muito boa, que foi o reconhecimento étnico do nosso povo. E agora também está sendo muito bom porque o poder público municipal está reconhecendo esses direitos e reconhece nós como parte da cultura do município. É uma cultura riquíssima, porque hoje nós temos 18 municípios que tem índio, é 30% da população indígena do Ceará está aqui na Caucaia, o povo de Tapeba é o maior povo, mais de sete mil índios. Então para nós é motivo de comemoração, em relação, quando o Poder Público reconhece. Agora que o problema, como o compadre Alberto colocou, é a questão dos políticos que são contrários porque tem interesse nas terras para construir o que você está colocando. E nós perdemos mais de 80% da nossa terra, que até sede do município estava dentro, se fosse para demarcar normal, tudo é cem mil equitares. Então, é a questão dos Anacés, que é vizinho nosso, eles estão saindo de lá por causa de uma refinaria e está construindo uma reserva que não é tradicional, para botar os índios para dar lugar a uma refinaria. Você vê o cúmulo que acontece na história, quer dizer, o inescrúpulo da Constituição Federal, que a Constituição Federal ela diz que os índios só podem sair do habitat natural se houver catástrofe ou epidemia. E depois que cessa essa catástrofe, os índios têm que voltar de novo para o seu local de habitat. Mas a própria Constituição não é cumprida, então é uma questão que nós estamos lutando, quer dizer, nós não comemoramos. Na realidade, a questão da, comemorando a nossa resistência, porque se nós não resistirmos, é pior.
P/1 – Em que pé está hoje essa questão das terras? Em que pé que, que está no trâmite, reconhecido já é.
Weibe – Não, existe, as terras indígenas no Brasil elas são regulamentadas por um decreto da Presidência da República e do Ministério da Justiça, que é o Decreto 1775, que é de 96. E aí ele disciplina todas as fases do procedimento da marcação. Nós tivemos um grupo de trabalho que é chefiado por um antropólogo que veio na área, coletou depoimento de lideranças tradicionais, eles elaboraram um relatório chamado “Relatório Circunstanciado de Identificação da Delimitação”. Um relatório composto por informações antropológicas, de cartografia geográfica da região, descrição ambiental, da própria árvore genealógica do povo Tapeba. Então tem uma descrição do nosso povo de forma política, cultural, então tem tudo isso. Esse relatório, ele foi publicado no Diário Oficial da União, do Estado e afixado na Prefeitura Municipal de Caucaia. E agora a gente aguarda as outras fases, que é a Funai analisar as contestações das pessoas que são contra a demarcação e encaminhar para o Ministro da Justiça. O Ministro vai decidir se publica a Portaria Declaratória demarcando, reconhecendo os limites dessa área, se devolve para a Funai fazer alguns ajustes, ou se desaprova esse relatório. Em aprovando e publicando a Portaria Declaratória, vai para a Presidência da República para ela decretar a homologação da área e aí tem a retirada dos não índios da região e registra essa terra indígena no patrimônio da União. Então tem muitas fases ainda a serem feitas pela frente. O problema é porque o cenário político a nível de Brasil, ele é desfavorável para que esses próximos passos, eles aconteçam. No âmbito administrativo, foi colocada a limitação da Funai, nós temos mais de 40 contestações lá na Funai e sem nenhum antropólogo para analisá-la em um procedimento administrativo. Fora isso, judicialmente, a família Arruda, eles engraçaram com agravo de instrumento no Tribunal Regional Federal de Recife e o desembargador decidiu pela paralisação, pela suspensão do processo de demarcação da terra indígena Tapeba. Então no âmbito administrativo está parado porque não tem ninguém da Funai para analisar e no âmbito judicial o desembargador determinou a suspensão do procedimento. E a Funai através da Advocacia Geral da União, eles estão recorrendo, o Ministério Público Federal também, para que judicialmente a gente consiga garantir que a terra indígena, a demarcação, ela aconteça. O povo Tapeba é um povo grande, foi colocado aqui, são sete mil e 400 índios, tem 17 comunidades diferentes aqui no nosso município, é o povo com maior população. Agora o nosso problema é porque a gente vive de fato em uma região metropolitana que tem uma densidade populacional muito grande, o nosso território está no corredor de passagem para o Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Então nós temos vários empreendimentos que estão incidentes diretamente à terra da região Tapeba e outros que impactando direta ou indiretamente. Dos que já existem na nossa área, nós temos duas rodovias federais, que é a BR020 e a BR222, nós temos duas rodovias estaduais, que é a CE090 e a CE085, nós temos uma ferrovia que está sob a responsabilidade da, é uma concessão da Transnordestina, nós temos um gasoduto, que é o Gasfor, que passa na área de domínio da BR222. Só para ter uma ideia, nós temos uma linha de transmissão que está a 40 metros da terra indígena, nós temos posto de gasolina funcionando dentro da terra indígena, em uma área que é de sobreposição da terra indígena, uma área de preservação ambiental, uma APA, que é a APA do Estuário do Rio Ceará. Nós temos algumas olarias, cerâmicas de tijolos, muita extração irregular de areia, de arisco. Nós temos recentemente o projeto de transposição das águas do Rio São Francisco, que traz água para o Porto Pecém, que aqui na nossa região foi instalado, que eles chamam de Cinturão das Águas, o Eixão das Águas, que passa por dentro da nossa terra também. Então nossa terra hoje, ambientalmente ela é detonada por esses grandes empreendimentos que incidem no nosso território e impactam diretamente tanto a questão ambiental, como o nosso próprio povo. O porto do Pecém, embora ele não esteja incidente diretamente no território Tapeba, mas ele traz um impacto direto aqui, então toda produção que vem pelas vias terrestres, viárias, que seja, por meio das ferrovias ou das rodovias, passam por aqui. Então toda produção que chega e que sai por meio do porto do Pecém, obrigatoriamente passa por aqui por dentro do nosso território. A gente tem até se utilizado disso em favor nosso para garantir uma pressão maior, então nosso povo já, eu acho que já realizou três bloqueios na BR222, onde passa essa produção do porto do Pecém, para chamar a atenção às violações dos nossos direitos. A maioria desses empreendimentos passaram e não foi obedecido no estudo de impacto ambiental que a gente chama de “Elaboração dos Estudos do Componente Indígena”, que é para ver, medir o grau de impacto que esses empreendimentos trazem para comunidades Tapeba e ao mesmo tempo garantir que medidas de mitigação e compensação ambiental sejam garantidos. A própria companhia siderúrgica do Pecém, ela não regulamentou no seu estudo de impacto ambiental o estudo do componente indígena. Então é um passivo dentro do empreendimento que deve ser analisado pela empresa, que deve ser analisado pelo Poder Público, para ser garantido essa participação indígena, a consulta, a elaboração do Plano Básico Ambiental, que é um conjunto dessas atividades, dessas ações. E a maioria, o próprio complexo do Pecém, ele não é regulamentado, a refinaria é o único empreendimento que está lá dentro do complexo que conseguiu fazer esse estudo do componente indígena. Hoje, a maioria dos empreendimentos que estão dentro do território Tapeba, somente a BR020 e a 222, conseguiram regulamentar estudo do componente indígena, os demais, todos eles foram empreendimentos que tiveram como foco mesmo violar frontalmente os direitos do povo Tapeba.
P/1 – E os que levaram em conta, qual é que é o....? Desculpa, tem que trocar.
Troca de fita
P/1 – Como é que é para vocês esse contato com os não indígenas? Porque na verdade somos muitos parecidos aqui, todos nós, não é? E eles estão aqui. Como é que é, tem esse problema de preconceito, por exemplo? Vocês já tiveram problemas de preconceito?
Dourado – Já e grandes!
P/1 – Violência policial?
Dourado – Você lembra o negócio da escola.
R/? – É, o preconceito nunca se acaba. A maior parte do, assim, o preconceito no meu ver nunca deixa de existir, porque a gente sempre foi discriminada, sempre aconteceu a discriminação, até mesmo onde, mesmo onde a gente mora, vem gente de fora, chegando e discriminando a gente. Eles querem chegar, encontrar como no passado, encontrar o índio nu, encontrar o índio, que a gente sabe que agora nós estamos muito misturados, ninguém está mais nas nossas reservas, que não possa mais entrar os brancos. Então quando eles chegam, eles discriminam, eles chegam se admirando, “Ah, eu pensei de encontrar o índio dessa forma”. Aí a gente tenta contar, a realidade agora é outra, a gente está aí com essa nova tecnologia. A gente está acompanhando. Então nós não temos mais as nossas reservas garantidas, aí então por isso que a gente muitas vezes é discriminada dentro da própria escola, eles vêm visitar, vem com outra noção de ver o índio, completamente diferente. A gente vai explicar como é o nosso diferenciado, que mesmo dentro da escola a gente trabalha sempre a cultura, os artesanatos, nós trabalhamos isso. Isso daí já a grande diferença, mas quando eles chegam na escola, eles pensam de encontrar sempre naquele intuito de encontrar o índio nu, como no passado.
P/1 – Quando você fala eles, eles quem?
R/? – Os brancos, os que visitam nós.
P/1 – Mas, por exemplo, conta um causo.
R/? – Muitas escolas...
P/1 – Me conta um causo, foi lá, quem é? Representante da Secretaria? É isso?
R/? – Não, é os colégios que nos visitam. Às vezes, os colégios que vem conhecer a aldeia e até mesmo eles ficam assim discriminando pelo o modo da gente agir, da gente falar. Porque eu mesmo fui discriminada por uma pessoa da Secretaria de Saúde, isso há muito tempo atrás, acho que na década de 80. Ou foi na década, foi, na década de 80. Uma pessoa da Secretaria de Saúde, que acompanhava nós, que nesse tempo era a Funasa, ela chegou lá aonde eu moro, na minha residência, que lá onde eu moro tem o posto de saúde, que é atendido a comunidade. Então ela veio mandar eu me calar, baixar meu tom de voz. Aí eu digo: “Não, meu tom de voz sempre é esse, eu só sei falar alto”, aí ela mandou-se, “Mas se cale que você não está falando com um dos seus”. Só faltou dizer seus comparsas! Discriminando nós. Então isso daí doeu muito, eu trouxe para uma reunião, uma reunião nossa de liderança, então a nossa chefezona, que era a Meire na época, ainda é, ela tomou as providencias, ela demitiu essa funcionária, que ela tinha chegado dentro da aldeia destratando mal, mandando eu parar o meu tom de voz, que é aquele dali. Eu não estava falando com um dos meus comparsas não, meus companheiros. Aí então a gente é discriminada assim, muitas vezes pelo, até o modo da gente se expressar, da gente falar. Que a tecnologia avançou, mas você sabe que aqueles mais antigos as vezes tem aqui uma coisa que a gente trava, eu mesmo posso lhe garantir que muitas vezes a minha língua trava, têm muitas palavras que eu tento atingir para falar normalmente, mas sempre eu estou deixando a desejar com o travo da minha língua, que não dá, é o costume dos nossos antepassados.
P/1 – E essa questão do preconceito é algo recorrente? A Sílvia queria falar alguma coisa?
R/? – Depois da Sílvia eu falo.
P/1 – Sílvia, não é?
Várias – É.
P/1 – Sílvia.
Sílvia – Assim, quando eu era criança, nessa época não existia as escolas indígenas. As escolas indígenas, diferenciadas, elas foram feitas justamente por causa do preconceito, porque a gente estudava lá fora e perto das escolas, onde tinha as pessoas que não era índio, começava a dizer as coisas com a gente. Muitas vezes a minha mãe fazia aquelas bolsinhas de artesanato para a gente botar o caderno dentro e a gente ia para a escola tão satisfeito, quando chegava nos caminhos, “Oh, Tapebanoré, para onde vai? Olha a Tapebanoré que parece que vai arrancar mandioca”. Diziam isso, eu era muito triste, eu ficava triste, eu dizia assim, como eu ainda não sabia o porquê tapebano, porque Tapeba, aí eu ficava chateado, ficava triste, aí eu chegava em casa e perguntava: “Mãe, por que é que eles chamam a gente de tapebano? Porque é que eles maltratam a gente achando que, o que é Tapeba?”. Porque eles diziam as coisas pra gente, e eu não entendia porque eu era criança. Aí foi que a minha mãe, meu pai vieram me explicar que nós somos índios Tapeba, aí foi contar a história para mim, aí disse que não podiam dizer que eram índios, na época era muito massacrado se dissesse, por isso escondeu. Aí, foi aí que eu vim descobrir que eu era índia, por causa disso, por causa do preconceito lá fora que dizia, porque não sou mais novinha não, já tenho 48 anos, nessa época ainda eu era criança. E a luta indígena veio de 80 para cá. Então o preconceito existe mesmo e muitos encontros que a gente vai por aí, nas reuniões, alguma coisa assim, que a pessoa vê a gente com colar, com brinco, pergunta: “Vocês são índios?”, “Somos índios sim”, “Mas não parece não”. Diz desse jeito, para eles, na cabeça deles o índio é aquele que tem os cabelos esticados, aqueles que andam nu, mas ninguém pode andar nu no meio de todo mundo, se a gente for ficar nu vão chamar a gente de doido. Então é assim, o preconceito vem até hoje, eu acho que...
P/1 – Essa questão de se reconhecer como indígena, etc., principalmente o pessoal mais antigo, Rita, por exemplo, como foi? Essa conversa com os seus pais, de se entender como indígena, por exemplo? Você teve essa conversa já mais adulta ou desde criança vocês ficavam também, não contava?
Rita – De certo tempo, de certo tempo para cá.
P/1 – Mas você também não contava que era indígena, por exemplo?
Rita – Não, não.
R/? – Nem falava.
Rita – Nem falava.
P/1 – Nem falava, você tinha esse medo de falar, de se expor? O que é que? A senhora se lembra de alguma situação?
Rita – Não, não. Do meu tempo não.
P/1 – Mas vocês tinham essa coisa de não querer assumir a identidade?
Rita – Isso. Isso.
P/1 – Mas você tinha um medo, por exemplo?
Rita – Não, medo não, tinha assim um certo receio.
P/1 – E quando é que começou isso a vir à tona de novo? Querer, digamos resgatar tradições?
Rita – Não, depois que a gente de muitos tempos para cá a gente foi se, pegando mais saber, foi entendendo mais, aí a gente aceita, aceitou.
P/1 – Mas você lembra quando começou isso? Você lembra a primeira, vocês tiveram uma reunião? Como foi isso, vocês lembram?
Dourado – Rita, lhe conte...
R/? – Assim, a gente sofre o preconceito. A gente sabe que o preconceito, ele está em cada um. E cada uma das pessoas no geral, elas têm que evoluir para entender que o preconceito não leva ninguém a lugar nenhum. E esse preconceito a gente vive diariamente das nossas vidas e o motivo da gente ter as escolas como a Sílvia falou, é justamente por conta que a gente vinha sofrendo muito preconceito. Na época, no trilho, a gente sofreu preconceito com criança que ia para a escola e o pessoal na escola lá discriminava, dizia que a criança não podia ir para aula descalço, não podia ir cabeludo, por conta que o menino era índio. E o menino não podia mudar a forma dele de ser, ele tinha que ir do jeito que ele é, ninguém pode mudar. A gente pode até mudar a cabeça, procurar melhorar, evoluir um pouco, mas mudar o seu jeito de ser é de cada um. Então, o preconceito e a nossa origem indígena Tapeba, o povo, se escondia porque tinha medo do preconceito, tinha medo de ser morto, tinha medo de mãe ser, dormir e não acordar, acordar do outro lado da vida. Então foi dessa forma, por isso que muitos deles, adultos, eles não diziam que eram índio não, foi na década de 85, 80, não é? Que começou todo esse trabalho para que todo mundo pudesse dizer de cara limpa: “Eu sou índio. Eu sou da origem da família tal”, para poder se identificar, porque ninguém tinha coragem de dizer. Porque o massacre era grande e o preconceito ainda mais.
P/1 – Você se lembra disso, por exemplo?
R/2 – Lembro.
P/1 – Massacre, assim?
R/? – Lembro.
P/1 – Você lembra de alguma situação?
R/? – Lembro.
P/1 – Que você presenciou?
R/? – Porque, oh, a dona Raimunda mesmo lá da Ponte, não é Alberto?
P/1 – Como foi essa história?
R/? – Quantas vezes ela entrava dentro da terra e o pessoal ficava botando ela para correr para fora porque ela era índia?
P/1 – Que história é essa?
R/? – Não, porque eles não queriam dar a terra. Então como ela tinha costume de entrar na terra para tirar a palha para fazer os artesanatos, eles expulsavam com o revólver em cima dela, não é Alberto? Tu sabes dessa história. Então, assim, a gente não para de viver esses momentos. E o preconceito é, em todo canto existe o preconceito. No futebol... A gente viu ali o jogador, né?
P/1 – Com a banana.
R/? – Jogando lá com a maior das intenções e o indivíduo lá com mal intenção, no pensamento.
P/1 – Desculpe, qual é que é a história do...?
Dourado – Não, eu, ele vai contar a história de 40 anos atrás, tinha o senhor Rodolfo que era um cara que tinha um comércio em Caucaia, matou muito índio com cachaça envenenada.
R/? – O Alberto sabe contar.
P/1 – Quando foi isso senhor Alberto?
Alberto – Então, porque era assim, nós já vivíamos nas nossas áreas e eles já vinham comprando de exterminar os índios. Então nós vendíamos nosso material, aí eles vinham, os índios gostavam de pegar a tiqueira deles, que era originalidade. E aí eles não, eles faziam era botar bebida para matar os índios, para exterminar. Morreu muito índio ali, que era o José Rodolfo, o José Florindo.
R/? – Arlindo Lopes.
Alberto – Arlindo Lopes, o menino, o cara que morreu, que atira ferrou até a mamãe ali no tiro, uma tia minha ainda morreu com o ferro dele no peito. E a discriminação era muito grande e hoje está melhorzinho um pouco, mas naquele tempo havia, era uma discriminação muito grande. E eu também, aqui eu tenho também, que eu deixei de estudar, já foi até no embalo, eu tinha um cabelo muito grande, meu cabelo. Aí a mãe do Naldo, a Letícia, naquela época eu morava no trilho e ela cortou meu cabelo se eu quisesse ficar na escola, eu não quis, eu nunca mais voltei à escola, desde esse tempo que eu não voltei a escola. Cortou meu cabelo, eu não quis mais, entendeu. E aí é uma discriminação muito grande meu filho, ê rapaz, naquele tempo, meu Deus do céu, era uma coisa muito triste, entendeu. Triste, triste, triste.
Dourado – Morreu mais de 30 índios com cachaça envenenada.
Alberto – Cachaça envenenada, entendeu? Naquele tempo, Ave Maria, era uma coisa discriminada demais, ninguém não podia andar, se a gente ia pescar, tinha que levar uma marimba d’água. É uma cabaça.
R/? – Cheia d’água.
Alberto – Cheia d’água. Porque nos caminhos eles não davam água a ninguém, era discriminado dentro de Caucaia. Chegava para vender o refrigério, que era os materiais que a gente pegava para vender, camarão, siri, caranguejo, aratuba, goiamum, piaba, saúna, corimarí, chata. E nesse, eles não deixavam ninguém sentar ali naquele paredão que tinha, porque tinha nós que nem bicho, selvagem, entendeu. Era uma discriminação muito grande, morreu, minha família morreu quase tudo com cachaça envenenada, entendeu. Hoje nós temos mais, que eu acabei de dizer, agradeço primeiramente a Deus e depois a ele aí, que ele sabe meter as leis direitinho, sabe onde é que estão as leis. E o povo, que nós temos esse pouco ainda de voz. O que a polícia pegava era para bater, ela logo não queria ter.
R/? – Respeitar.
Alberto – Respeitar não, ela metia logo a coisa na arara, chibata para cima.
Dourado – A gente perguntava o que era PM?
Alberto – É, perguntava o que era PM.
Dourado – PM era muito peia muito em voltando a muita pia.
Alberto – Entendeu? era desse jeito.
P/1 – Vocês que são mais jovens, o pessoal aí, está no Ensino Médio, como é que está essa questão hoje, por exemplo? Vocês na escola, como é que é falar sou indígena? Vocês estão no Ensino Médio, não estão? E aí Erick, como é que é, você se assume ali?
Erick – Eu não tenho vergonha de dizer que eu sou índio. Eu não tenho. Tanto que, as vezes eu venho, eu me pinto, pessoal me vê pintando, as vezes eu vou para o colégio, o pessoal, “Oh, o que é isso?”, “Não, é pintura do meu povo, que eu sou índio”. Algumas discriminam, outras, “Ah, que coisas feias”, outros chegam até a chamar de macumbeiros, como alguns sabem, chama, o pessoal vai chamando mesmo, vai chamando. Chamando de macumbeiro, ah, porque envolve o tambor e tem o maracá, aí o pessoal diz: “Não, isso é coisa de macumbeiro”. Só que eu não vejo isso como algo de se envergonhar, é uma das minhas origens, então, eu vou continuar assim, do jeito que eu sou. Assim como minha família também é.
Dourado – Simone, fala alguma coisa minha filha.
Simone – Eu, como já terminei o Ensino Médio, eu não sofri nenhum preconceito não. Mas como assim no começo, quando eu tinha os meus dez anos, estudava no Ensino Fundamental e lá na minha comunidade não tinha a escola indígena, a gente estudava no Coitec, era em uma comunidade, em uma aldeia mais diferente. Aí a gente chegava lá, diziam: “Oh, os índios, é os índios”, diz que ia botar um CD para gente dançar o toré nem falava toré, era torém, uma discriminação muito grande com a gente. Só.
P/1 – O que vocês fazem para esse contato ser melhor hein?
Alberto – E até porque esse colar que a gente usa, isso vem da antiguidade, muito tempo. Pintura, certo.
Dourado – Tradição.
Alberto – Cocar, colar, tudo isso, tudo é uma identidade nossa que nós vimos puxando de muito tempo atrás, vem dos velhos, os antigos, viu. Isso é uma identidade nossa que nós temos, é uma cultura que nós vamos morrer com ela, nós não vamos perder nunca, entendeu?
Weibe – Agora sim, a discriminação, esse preconceito, ele era muito maior do que é hoje. Porque antes, como foi colocado aqui, houve essa história das bebidas alcoólicas envenenadas, essas coisas todas, e o povo Tapeba, desde o final da década de 80, mesmo no começo da década 90 quando as escolas indígenas foram criadas aqui no munícipio de Caucaia, nós passamos a criar algumas estratégias internas, que era para a gente se não acabar, pelo menos diminuir com esse preconceito. E a estratégia melhor que nós fizemos foi abrir as portas das nossas aldeias para que a população pudesse conhecer a realidade do nosso povo, o patrimônio cultural que nós temos do artesanato feito com cimentos, com o barro, com madeira, com talo. Essa sabedoria que vem dos antigos, dessa criatividade imensa, da própria comida tradicional nossa, da culinária, da medicina tirada das matas, de conversar mesmo com os mais velhos sobre essa história dos antigos. Tudo isso fez com que a população de Caucaia principalmente, de Fortaleza também, pudesse conhecer o pouco dessa nossa realidade, vivencia-la, vem muito pesquisador aqui, vem muito grupo, escola de fora, turistas. E o pessoal passa a respeitar quando se conhece. Então estratégias como a Festa da Carnaúba, que é uma festa que tinha sido esquecida pelos nosso antigos, ou os nossos antigos foram impedidos de fazê-la, nós recuperamos essa Festa da Carnaúba. Para incrementar a Festa da Carnaúba, que é a principal festa tradicional do nosso povo nós criamos a feira cultural aqui do povo Tapeba, cada uma dessas ocas representam uma comunidade diferente e aqui é exposto, aqui no terreiro sagrado do Pau Branco, parte dessa medicina, parte do conhecimento da culinária, artesanatos, trabalhos feitos pelos alunos das escolas, pelos artesãos. Então aqui, por exemplo no dia 18, 19, 20 de outubro de cada ano, que a gente faz a Festa da Carnaúba, os Jogos Indígenas Tapeba e a Feira Cultural, a gente chega a receber de quatro, cinco, seis mil pessoas durante esses três dias. Então eles conhecendo essa realidade, passa a respeitar mais. Tem um momento que a gente faz o toré só nosso aqui na Festa da Carnaúba e tem uma hora que a gente abre para as pessoas que não são indígenas poderem também entrar na roda do toré e dançar com a gente. Então o Capuã, as ruas do Capuã aqui que antes a gente passava e chamavam a gente de carniceiro, de pedreral, tapebano, perna de pau.
Dourado – De Urubu.
Weibe – Urubu, tudo isso, deixou de acontecer aqui na nossa região justamente porque eles passaram a saber que a nossa história é uma história que deve ser valorizada. Embora o preconceito, a discriminação ainda aconteça, mas não acontece com a intensidade do que era antigamente.
Dourado – Vamos ouvir o Gabriel um pouquinho? Gabriel aqui.
Gabriel – Não, falando um pouco sobre a discriminação, até mesmo como o Weibe falou, já não tem a mesma intensidade que tinha antes, também porque nós não vamos para o embate. A gente não vai, se você é discriminado, se você revidar, você vai estar discriminando também. Então, qual é o nosso principal objetivo? É esclarecer a vida do povo Tapeba, a história do povo Tapeba. Daí então onde você vai estar mudando a mentalidade daquela pessoa que estava te discriminando, então ela vai passar a te apoiar, a conhecer a realidade, vim dentro das aldeias, escutar um pouco da história do povo de Tapeba também. Daí então a gente começou, quando a gente passou a fazer isso, a gente passou a ser visto com mais, com bons olhos. Daí então as escolas começaram a convidar para que a gente fosse fazer apresentação, daí já, os professores já tinham a conversa já com aqueles alunos para que não fizessem alguma chacota, algum tipo de brincadeira. Mas que pudesse ver a apresentação e no final sempre a gente era aplaudido, eles gostavam e passavam a convidar mais vezes para a gente ir. Daí então a gente começou a mudar essa mentalidade da população aqui de Caucaia em discriminar a população indígena. Quando nós começamos a ocupar alguns espaços políticos também, em representar o nosso povo, aí a história do povo Tapeba começou a se firmar mais ainda. É porque eles viram que os índios têm potencial, tem qualidade para estar representando o seu povo, representando alguma instituição. E daí então eles viram que a gente tinha esse respeito perante a sociedade e que eles passassem a nos respeitar também porque nós somos bastante claros no que nós queremos, principalmente qual é o objetivo do povo Tapeba. Sempre eu coloco isso, a bandeira de luta do povo Tapeba, nós somos um povo que tem uma bandeira, a nossa bandeira é em busca da demarcação das nossas terras. Daí então eles começaram a ver que nós estávamos lutando por uma causa justa, uma causa justa que os nossos antepassados acabaram perdendo. E a gente foi reduzindo o território, mas que a nossa briga é para que a gente tenha uma convivência melhor dentro das aldeias, que a gente possa ter a nossa própria fonte de subsistência dentro das comunidades. Tanto que nós temos, temos escolas, temos posto de saúde e alguns indígenas trabalham como professor e outros como agente de saúde.
P/1 – O Gabriel, na sua militância, me fala um dia, me conta um dia seu que foi realmente marcante assim na sua trajetória de militância, assim para a gente.
Gabriel – Ah, um ponto que foi bem marcante mesmo na minha trajetória no movimento indígena, primeiramente, a gente começou muito cedo, indo para apresentação, muitas vezes os pais da gente não deixavam ir porque tinha esse medo também, mas como a gente foi juntando, agregando e se organizando e a gente ia mesmo, sempre nosso ponto de luta. Mas uma coisa que deixou bem marcante realmente foram alguns atos que nós estivemos fazendo, em algumas retomadas também. E teve uma retomada aqui na Lagoa Um, eu muito novo também nessa retomada lá, quando chegou na época o posseiro de lá, era o Murilo Amaral, o dono de uma clínica aqui em Caucaia, e a gente estava nessa, tinha feito essa retomada, e quando chegou tinha muita polícia lá, com a reintegração de posse. E a gente estava lá, estava sem esperar e estava todo mundo já há semanas lá, quando o oficial de justiça chegou com essa reintegração de posse e todo policial foi pegando logo foice, enxada, nossas lanças que estavam por lá, por baixo das árvores lá. E quando eles chegaram fazendo aquela pressão e, eles pensavam que a gente ia para o embate, aí o oficial de justiça apresentou e a gente pegou e falou: “Não, nós estamos aqui em retomada, é uma área nossa, mas como vocês vieram com mandato, com reintegração de posse, a gente, vamos entrar em contato com a Funai”, a gente bem calma, “Entrar em contato com a Funai”, mas só Deus sabe como é que estava o coração da gente. Daí então a gente saiu da retomada, aí no dia seguinte, já a noite, a gente saiu como se fosse hoje, aí amanhã eles foram embora, a gente retornou de novo e até hoje tem pessoas lá dentro dessa retomada. A outra coisa que foi bastante forte também, aqui nas comunidades não tinha água encanada, mas tinha já os canos que foram colocados pela antiga Funasa na época.
Weibe – Quatro anos que estava embaixo do chão.
Gabriel – Quatro anos que estava embaixo do chão. E todas essas comunidades que seriam beneficiadas se organizaram para quebrar a pista ali, a 222, quebrar a pista, e quando nós começamos a quebrar pistas, muito cedo, não é Weiber? Quando chegou a tropa de choque, tropa de choque chegou, desceu do carro, aí ficaram assim no outro lado assim fazendo aquele, todos assim organizados, em fila e eles assim. Quando chegou a tropa de choque, aí o Weibe, “E agora, como é que nós vamos fazer? E o pessoal aí”. Aí todo mundo já partindo para o embate mesmo, que nós não teríamos tantas condições de ir para cima deles, que eles estavam armados e nós não, nós estávamos só com as nossas armas de guerra realmente, que é as lanças, outros estavam com picaretas, lá quebrando a pista. Aí quando a gente viu que eles vinham para o embate mesmo, aí chegou a imprensa. Quando a imprensa chegou, eles começaram a recuar. Aí chegou o superintendente da Polícia Rodoviária Federal, chegou também lá, aí quando eles chegaram, aí pronto, aí a gente já foi para o diálogo junto com... Aí a gente começou dialogar com eles e graças a Deus hoje tem água dentro da, nas comunidades aí, foi um dessas. Tem muitos, mas uma das que marcou mais foi essa que a gente.
Dourado – Eu queria contar uma questão marcante também.
P/1 – Conta, conta aí.
Dourado – Que eu não quero mais ver nunca na minha vida. A gente estava na Rio+20, no Rio de Janeiro e quando a gente chegou, uma tremenda chuva, um temporal medonho. De manhãzinha, cinco horas da manhã, diz que foi o pessoal tudo chamando, o Weibe já estava articulado já, como presidente da Associação e tudo. Foi lá na aldeia do cacique, onde ele morava, no Sobradinho.
P/1 – Uhum.
Weibe – Dia 22 de junho de 2012.
Dourado – Aí a polícia, também batalhão de choque, era na faixa de mais de 200 policiais no chão, lá no chão, tudo de escudo na mão, no meio da chuva, chovendo e dois helicópteros da polícia por cima, certo. E nós sem poder fazer nada e o trator derrubando as casas. A casa do cacique foi a última que foi derrubada, que era a única que tinha de tijolo, não é compadre?
Alberto – Uhum.
Dourado – As outras eram barracos de taipa mesmo. E aquilo ali ninguém, sem poder fazer nada, muita gente chorando, todo mundo chorando, o cacique chorando. E aquilo ali foi muito, realmente eu não queria mais ver aquilo nunca.
Gilberto – Foi muito marcante.
Dourado – Porque você ver, no meio da chuva, todo mundo ficando na chuva, inclusive derrubaram casa com gente dentro, gente passando mal.
Gilberto – Seis horas da manhã.
Dourado – A gente fez também um movimento grande também, porque o oficial de justiça era um tremendo safado também que já foi preso por estelionato, depois passou no concurso público para, como é o nome? Oficial de justiça, e foi ele cumprir essa determinação. Toda vida que acontece ordem para desocupar, é ele que vai. Então nós fizemos lá um trabalho lá que apareceu lá o carro dele quebrado, ninguém sabe até hoje quem quebrou. Eu sei que ele foi procurar para saber quem.
Weibe – Um vento que deu forte.
Dourado – Ele foi procurar saber quem é que ia pagar na Funai, quem é que ia pagar o prejuízo dele e o pessoal perguntando, “E quem é que vai pagar o prejuízo dos índios?”, a resposta foi dada. E aí graças a Deus a gente teve uma audiência com o Governador em relação a questão também da...
Weibe – Duplicação da BR020.
Dourado – Duplicação da BR020, e aí dentro do plano e a questão compensamental, tem a questão das casas. E a gente foi pedir para antecipar e graças a Deus nós conseguimos conversar, foi a única coisa que a gente conseguiu de positivo foi isso, construir as casas, hoje tem umas casinhas tudo bem feitinhas no mesmo canto, ficou mais bonita ainda as casas.
P/1 – No mesmo lugar?
Dourado – Mesmo local. Então para nós foi uma vitória, que nós mostramos para a sociedade que nós temos força também. E a sociedade apoiou essa luta. Então para nós foi, essa é a coisa mais marcante que eu vi, que não quero ver mais nunca na minha vida. Que é muito triste você ver um trator derrubando uma casa de uma pessoa, não é porque seja índio não, é qualquer tipo, qualquer ser humano. As desocupações, dá dor no coração da gente, isso aí.
P/1 – Weibe, você tem uma? Qual foi dos seus 30 e tantos anos de vida?
Weibe – Eu estou, tem vários momentos, mas vou citar dois aqui marcantes. O primeiro é um que foi na retomada que a Bete, que é a liderança, mora, a gente se reuniu, as famílias ali são muito carentes, sempre viveram entre as cercas e o trilho de ferro lá da Refesa. E a gente pegou, as famílias, crescendo o povo ali na comunidade do trilho, não tinha mais para onde seguir e a gente fez uma retomada lá e a gente viu bem o posseiro pulando uma cerca já com uma pistola com uma distância de três a quatro metros e ali pelas mãos de Pai Tupã a gente conseguiu criar força e ao invés de recuar a gente foi para cima. E ele que teve que recuar, eles conseguiram, que tinha uns capangas com eles, colocaram o carro para dentro do portão nesse terreno e a gente saiu empurrando portão com tudo. A polícia chegou, nós dissemos que ele estava armado, infelizmente a polícia foi omissa, ele acabou saindo, mas a gente passou por esses, esse momento de tensão e outros também, a noite a gente ficava já em claro e tudo. E a gente garantiu, hoje lá na área lá nós temos mais de 50 famílias morando, a gente conseguiu esse feito. Então nós Tapeba, a gente tem esse dom de conseguir, muitas vezes através do recuo quando é preciso e o ataque também quando é necessário. Então a gente já conseguiu fazer 25 retomadas, objeto desse processo de resistência nossa e de coragem também. Um outro foi, no bloqueio da BR222, no último que nós tivemos, que a gente conseguiu apoio até de outros povos indígenas também, a gente passou um dia todo bloqueando a BR e foi interessante porque a gente tinha se organizado para fazer o bloqueio sete horas da manhã e ele só veio a ocorrer oito e meia da manhã, o bloqueio. E a gente tinha se organizado para ser sete horas da manhã, mas quando foi cinco horas da manhã, o helicóptero da Polícia Rodoviária Federal já se encontrava sobrevoando nossa região bem baixinho, um voo panorâmico ali na nossa comunidade, na comunidade do Caco, da Lagoa Um. E eu acordei nesse dia com o helicóptero em cima da minha casa ali tipo tentando coagir mesmo a gente para não fazer aquela manifestação, aquele bloqueio. Mas a gente conseguiu ter um feito muito grande de reunir o pessoal. E aí ficamos lá de oito e meia, nove horas da manhã, até umas quatro horas e chegou um momento de tensão, sabe, um momento em que estava tudo bloqueado, o transporte de carga que passou todo por dentro do Centro da cidade de Caucaia e o tráfego ali paralisado. Chegou uma hora em que mais de 30 viaturas da Polícia Rodoviária Federal se enfileiraram na pista, de frente para a gente e o helicóptero baixou na pista e eu senti um arrepio muito grande quando os guerreiros Tapeba que estavam de lança na mão pediram para todo mundo que estava na frente recuar e eles vieram para a frente com as bordunas assim balançando para a frente assim. E os carros enfileirados lá, àquela hora ali a gente pensou que ia ter um embate muito forte. Então a gente sabe que tem momento que no nosso meio nós temos pessoas que é capaz sim de dar a vida por esse movimento. Aquele momento ali para mim marcou muito porque demonstrou a resistência que o nosso povo consegue ainda ter, mesmo em um cenário de violação que a gente tem presente na nossa região.
P/1 – E o contrário gente, uma história marcante que tenha sido a integração? Assim, por exemplo essas festas? Ou talvez a escola, uma experiência da escola? quem gostaria de compartilhar, assim?
R/? – Naara fala.
P/1 – Como foi essa escola, por exemplo? Como saiu do papel para se construir a escola?
Naara – Na realidade, assim, eu queria falar da importância do papel das escolas indígenas dentro do movimento indígena. Então assim, a escola indígena, aqui no povo Tapeba surgiu no início da década de 90. Eu sempre falo que a história das escolas indígenas, essa história faz parte da minha história de vida, porque eu só sou 12 dias mais nova do que a escola na qual hoje em dia eu trabalho. Então assim, a escola dos Índios Tapeba, junto com a escola Tapeba do Trilho, que é onde a Bete ajudou a fundar, são as duas primeiras escolas indígenas do Ceará. E assim, no início a gente começou embaixo de um pé de cajueiro, e quando as folhas desse cajueiro caíam, a gente passava para uma tamarindeira. Então assim, eu fui aluna dessa escola e como já foi falado antes, essas escolas foram criadas para combater a discriminação que nós que estudávamos nas escolas convencionais sofríamos. Então assim, a gente passou de um pé de cajueiro a um prédio construído pelo Governo do Estado. Mas assim, o papel da escola indígena dentro do movimento indígena tem uma força muito grande, porque sempre que existe algum movimento - “Vamos mobilizar todas as três escolas indígenas do povo Tapeba” - a gente paralisa todas as escolas e vai todo mundo junto para o que der e vier, para combater. Tipo, essas paralisações que a gente fez para ficar lá na BR, estavam lá a professora, e os alunos, estavam todo mundo lá, não importa a idade. Não importa a idade, não importa o tamanho, não importa se você é alfabetizado ou não. No movimento indígena, para a gente isso não tem nada a ver, o importante é a força que a gente tem. Então assim, hoje a gente tem professores, hoje a gente tem, teremos daqui uns dias advogados, como a gente tem agricultores. Mas todos eles são importantes para o movimento. E a escola indígena funciona com esse papel de mobilização para o movimento indígena. Porque assim, o Weibe e Dourado que são lideranças, e o Gabriel, que são lideranças reconhecidas nacionalmente. Então assim, como vocês acabaram de falar em relação aos pontos que chamaram mais a atenção no movimento indígena, eu sempre falo assim, com a Liliane, que a gente fechou a nossa escola ano passado no meio do ano e a gente passou duas semanas ocupando a sede da Funai em Fortaleza. Tinha alguns alunos, tinha alguns professores e, o Weibe estava em Brasília e ele ligava: “Vai ter uma reunião tal hora. Vamos fazer um toré para pedir forças aos espíritos da mata, a Pai Tupã, Mãe Tamain”, e lá estava eu, “Vamos lá gente, vamos fazer um toré”. E sempre quando eu falo isso, eu sempre digo que dá vontade de chorar, porque é uma coisa que dói muito na gente, que estava relacionada ao que, a decisão sobre a nossa terra indígena, se o relatório ia ser ou não assinado pela presidente da Funai. Então tinha aquela, você ficava esperando ali, aí terminava um dia e nada, aí a noite mais toré, “Vamos pedir mais força ao Pai Tupã”. E terminava a noite e começava um dia e aquela angústia, mas a gente sempre lá firme e forte. Passando dificuldade, passamos, porque o movimento indígena é isso, mas é todo mundo forte, é todo mundo unido. Então chegou o dia que teve a reunião e o relatório seria assinado, mas não podia ser publicado. Aí, só que a gente que estava na Funai, não sabia disso, para a gente o relatório estava assinado, ia ser publicado. Então o que a gente fez, fomos recepcionar a liderança Weibe que estava em Brasília no aeroporto, chegamos lá fizemos um toré, tinha um monte de turista lá, batendo foto e tudo. Graças a Deus não teve nenhum preconceito, pelo contrário, todo mundo querendo conhecer a história do nosso povo, porque a gente estava ali. Então assim, quando, na chegada dele no portão de desembarque, que a gente viu as lágrimas nos olhos dele, deu vontade de chorar também, que ele com uma dor no coração, eu acredito que tenha sentido uma dor no coração, veio dizer que o que a gente estava esperando não aconteceu. Então assim, as lágrimas desceram nos olhos de todo mundo. Aí voltamos para as escolas indígenas, esse é o papel da escola indígena, um papel de mobilização do movimento indígena. Porque assim, sempre falamos que uma andorinha só não faz verão, mas nós, o povo Tapeba somos sete mil andorinhas e fazemos agora inverno, porque a gente está precisando é de chuva.
Dourado – Vocês ficaram sofrendo sozinho, vocês ficaram sofrendo junto, eu fiquei sofrendo sozinho lá.
Naara – Pois é.
P/1 – Naara, só uma pergunta. Estou vendo, que é tudo conectado, a escola junto com o movimento, tal. Em relação à escola, os conteúdos, o que é ensinado, é diferente da escola tradicional?
Naara – Não, a gente tem, assim, a gente tem os conteúdos tradicionais, mas a gente trabalha com o resgate da história do nosso povo. Então a gente tem a disciplina de cultura indígena. Até o ano passado, existe o sistema, o SIGE, que é o sistema do Governo do Estado, até o ano passado a gente podia cadastrar essa disciplina do SIGE. Esse ano, a gente não pode mais cadastrar essa disciplina com esse nome. Porque eles simplesmente acharam que não era bom e acabou a conversa, então, assim, isso está sendo um fruto de que a gente precisa fazer manifestações, porque? Porque a disciplina de cultura indígena é importante para a gente. Mas querendo eles ou não, a escola é da comunidade, a escola é nossa, então as disciplinas que são ensinadas é a gente quem faz. Então eles não querem mais a gente dá a disciplina de cultura indígena, todas as escolas indígenas Tapeba antes de começar as aulas tem o toré, a nossa, infelizmente só é nos dias de sexta-feira porque a gente tem que cumprir uma carga horária. Mas toda sexta-feira no início da aula a gente tem o toré, os alunos participam do toré. E é mais assim, a Leidiane que é a minha irmã, ela é historiadora, gostaria muito de estar presente, mas ela não pode porque está de resguardo, tem um nenezinha nova. Mas ela trabalha muito com isso, com pesquisa entre os alunos, ela pede para que os alunos procurem as pessoas mais velhas da comunidade e para que eles pesquisem, entendam como o povo indígena Tapeba foi formado, como, o porquê, as perguntas que vocês utilizaram hoje são normalmente as perguntas que ela utiliza para os meninos fazerem essas pesquisas. Tipo falar em relação as parteiras, pajé, as curandeiras, medicina tradicional. Então assim, todos esses temas são trabalhados todos os anos em todas as séries, desde a educação infantil no nosso caso, até o terceiro ano do Ensino Médio.
P/1 – Mas vocês aprendem, por exemplo, medicina...? Essa medicina por exemplo, quem é que ensina isso? Ou as próprias, os cantos, as rezas, o significado disso, como é que vocês fazem para... que está passando de tradição, por que vocês aprenderam com os pais de vocês. Vocês têm essa tradição de juntar e explicar as ervas? Como que vocês...?
Weibe – A escola indígena, ela tem um papel fundamental, porque o princípio dela é ser comunitário. Então não é somente, não são somente só os professores que dão aula na sala de aula. Então os professores geralmente costumam convidar as pessoas da comunidade para estar colaborando com esse processo. A minha vó mesmo vai lá na sala de aula, quando é na parte da medicina tradicional ou artesanato de alguma forma. Então, chama-se agente de saúde também para ter palestras temáticas sobre outras questões. Então esses ensinamentos tradicionais eles são levados. Aí vocês podem contar como é que é a prática de vocês lá.
Naara – Também assim, oh, a escola, a nossa que a gente trabalha, a nossa e as outras. A gente costuma trabalhar também com projetos na escola e no primeiro bimestre a gente trabalhou com a conclusão de um livro que a escola tinha iniciado e não tinha concluído. Aí a gente separou os temas, aí tinha, um dos temas era a medicina tradicional. E o que é que a gente fez, a gente separa todas as turmas da escola e forma equipes, cada equipe fica com um tema e a gente organiza as atividades em alguns dias. E nesses dias que foram, que eles tinham que pesquisar em campo, a gente marcou com as pessoas que conhecem, a Silvia que estava aqui e que já foi embora, ela também conhece muito sobre a medicina tradicional. Aí a gente tira essas equipes de alunos também, além deles virem na escola colaborarem, a gente também tira dias para os alunos irem visitar eles em casa. Aí é assim, aí eles repassam, mostram as plantas medicinais, explicam.
P/1 – Eles vêm para o campo fazer?
Naara – Isso, também.
R/? – E agora fala do Projeto Permacultura.
P/1 – Permacultura? Esse trabalho?
R/? – Sim, projeto.
Naara – É que porque a Seduc agora, eles enviaram o Projeto de Permacultura. Agora a gente participou da segunda etapa na qual a gente faz um projeto de uma horta que a gente vai fazer dentro do terreno da escola. Aí eles enviam o recurso e a gente ministra o recurso, depois mostram o resultado. Então assim, na nossa, como a gente trabalha com a medicina tradicional também, não seria só uma horta, seria uma horta, um horto e um pomar também. Que serviria tudo para os alunos. Aí a gente vai ter mais umas duas etapas desse curso para o professor e o aluno que está participando depois repassar para a escola e a gente colocar o projeto em prática.
Dourado – Relacionado a medicina tradicional, eu acho que há um ganho, assim, é um ganho meio termo, porque essa questão da saúde indígena, quando foi criada a Saúde Expressiva só para os povos indígenas, são diferenciadas, que na realidade eu não considero diferenciada. Eu considero apenas um privilégio para os povos indígenas porque é o segmento que tem as suas equipes especificas. Mas em relação a questão, quando se discute a medicina tradicional, ainda deixa muito a desejar, o ganho das equipes e também aí eu digo que desejar por nós mesmos, porque nós temos que fazer acontecer. Por exemplo, dentro das equipes é para ter o pajé, é para ter o cacique, é para ter as parteiras, é para ter todo esse segmento para poder trabalhar essa questão da medicina tradicional. Por exemplo, eu, sou uma pessoa que eu não uso medicina convencional, a minha medicina é tradicional, eu pego raízes, eu pego, eu não tomo comprimidos. A não ser quando eu vou, algumas vezes que visitei o hospital, alguma, precisou para, quebrei meu tornozelo, quebrei aqui o meu nariz, aí eu tive tomar porque era obrigado a tomar lá. Mas lá em casa a minha geladeira tem lá minha garrafada e tudo o quanto é raiz.
P/1 – E você mesmo faz?
Dourado – Eu mesmo faço. Então isso que é interessante, que eu coloco meio termo, é porque precisa, viu Sônia, é preciso, as nossas agentes de saúde, os zoizan, puxar para cima essa discussão.
P/1 – Mas Dourado, você aprendeu como?
Dourado – Não, meus pais, o meu pai morreu com 86 anos, nunca foi ao médico na vida, nunca. Inclusive ele, quando falava em medico assim, ele olhava, falava: “Meu médico é Deus. E eu que faço meu medicamento”. Então aprendi com ele isso aí. E aí eu tenho sempre colocado nas reuniões, “Medicina tradicional, ela é muito mais forte do que qualquer outra medicina”, porque a medicina convencional já é tirada das raízes que a gente usa. Então quando você vai pedir uma coisa a Deus, não precisa pedir a São Francisco ou São José ou a Padre Cícero. Tem pedir a Deus, porque Deus é o dono. Então é a mesma coisa a medicina tradicional.
P/1 – Só ouvir uma coisa, Alef, você sabe? Medicina tradicional?
Alef – Não conheço, meu pai não ensinou isso não.
P/1 – Passou mal, o que é que você faz?
Alef – Como é?
P/1 – (risos). Você passou mal...?
R/? – Se você passar mal o que é que você toma?
Alef – Ah, assim, se eu passar mal assim, geralmente tomo mesmo medicamento comum, assim.
P/1 – Eu estou provocando vocês na verdade, são a nova geração.
R/? – É o que tem no posto, não é?
Alef – É, o que tem no posto.
R/? – O que tem no posto. (risos)
P/1 – Vocês sabem essa medicina por exemplo? Da medicina tradicional, os cantos, as rezas? Vocês aprenderam isso?
Alef – Não, ainda não.
P/1 – Ainda não?
Alef – Essa parte ainda não.
R/? – O canto ele não sabe?
Alef – Não, os cantos tradicionais que a gente canta no toré, a gente aprende tudo. Mas alguma outra, se tem algum outro tipo de reza, alguma coisa, essa parte eu ainda não aprendi não.
P/1 – Josi, Simone, Erick? Agora está apertando.
R/? – Assim, quando eu estava na escola, a escola indígena lá na Vila dos Cacos, a gente chegou até a fazer um livrinho mesmo, aquele papel ofício mesmo. A gente fazia livrinho, ia nas casas das curandeiras, que antigamente era minha vó e meu vô, só que agora eles não fazem mais isso. A gente ia lá, perguntava como fazia aquele remédio, o lambedor, que é para as crianças. Era isso que a gente fazia.
P/1 – Tem alguém aqui do passado que tinha mais conhecimento, que já não está mais com a gente, que sabia tudo daqui?
Bete – Tinha a minha mãe.
P/1 – Sua mãe?
Bete – Minha mãe teve 13 filhos.
P/1 – Conte um pouco sobre ela.
Bete – Minha mãe teve 13 filhos, nunca foi para o hospital, nunca teve filho em hospital. Os filhos dela era tudo em casa, com a parteira. Nessa época era mãe Chiquinha e a mãe Santa. Aí ela dizia, quando a gente estava doente, que a gente ia procurar médico, ela dava o exemplo dela, “Olha, eu pari vocês tudinho”, ela dizia: “Eu pari vocês tudinho, nunca precisei de ir para o médico. E vocês não podem sentir uma dor na unha que estão atrás de médico”. Então sempre ela incentivava a gente a fazer a medicina tradicional, a medicina indígena. E na casa dela, eu lembro como hoje, que isso eu tenho a tradição dela, nunca faltava um pezinho de arruda, que ela dizia que arruda é bom para todo tipo de dor. Então eu fiquei com essa herança da minha mãe, hoje em dia você pode ir na minha casa, pode fazer chover, fazer sol, mas meu pezinho de arruda é lá escondido. As vezes chega gente, que é muito curioso, entra ali pelo meu quintal, aí vão pegar as folhinhas do meu pé de arruda e cheira. Aí um dia uma mulher matou, eu só faltei morrer de chorar, aí consegui outro pezinho. Então eu tenho lá na minha casa, pezinho de arruda, eu só dou se for para uma coisa de vida ou morte, a pessoa que está assim precisando, “Bete, me ajuda aí”, eu tiro aquela arruda, mas eu tenho o meu pé de arruda lá em casa. Oh, arruda, hortelã, capim santo, cidreira, chá de boldo, pezinho de boldo, tudo aquelas plantinha que a minha mãe cultivava, eu estou tentando cultivar. Mas a minha revolta é porque a comunidade não tem coragem de plantar e está dizendo: “Plante. Plante”. Elas não plantam, quando sabem que estão precisando vão atrás. Lá no chafariz, lá do trilho, eu era rodeada de planta medicinal, era mastruz, era capim santo, o pessoal matou fazendo chá, bastava ter qualquer dorzinha de barriga, ia lá, tiravam os pezinhos de capim santo, aí fazia chá, pronto. Aí cozinhava, que a gente tem uma ciência da gente não cozinhar, a gente bota água para ferver, quando a água está fervendo, a gente amassa a folha, bota em uma vasilha. Aí quando, coloca a água quente e tampa, o chá é desse jeito. Se você cozinhar as folhinhas da hortelã, você mata o pé. Assim é hortelã, arruda, todo tipo.
Alberto – E nós também, eu tenho aqui, só um minutinho aqui compadre. Eu também ainda tenho uma tradição dos meus avós, dos meus pais, que é o seguinte, quem sofre de dente, aquela doença que chama, que seca o pé do dente, piorreia, não é? A gente pega o gergelim, o preto ou o branco, pisa ele bem pisadinho e bota o café dentro, bota o café para ferver, para a piorreia, entendeu. Quando ele está, tira a água porque já está fervido, bota ali no canto, aí pega o gergelim, rebola dentro e gargareja na boca e toma um pouquinho. Aí mata a piorreia, entendeu. Cáries que tiver no dente, ela então trata de matar, está entendendo. Arruda também, você bota um pouquinho, gargareja a boca de manhã bem cedo, se tiver até dor na garganta, ela tira também. Olha, lá em casa tinha uma pessoa que o nariz dele era que nem jumento quando saía aquele catarro do nariz. Que chama constipação ou aquela doença venérea, Bete, aquela, chama, tem uma doençazinha, surgipe para o nomezinho.
Bete – Sinusite.
Vários – Sinusite.
Alberto – É. Você pega um pedaço do cumaru, nove folhas de eucalipto, nove folhas de pião, três folhas de arruda e um pouquinho de hortelã, cozinha e lava a cabeça quando está frio. Isso é para fazer três vezes, mas com duas vezes fosse fica bonzinho, mais fortalecido. E um montão de coisas que a gente sabe. É aquela coisa que ele estava cansado de dizer, “Leva para o cacique”, meu pai já era uma coisa para se desenvolver naquele pessoal. É assim.
P/1 – Senhor Alberto, o senhor falou uma vez que teve que juntar vários caciques para fazer uma reza, o que é que era aquilo?
Alberto – Não, aquilo foi, estava eu e o compadre Dourado também nesse dia, que foi para a pequena, não foi compadre?
Dourado – Foi.
Alberto – Nós fizemos uma pajelança lá e ela...
P/1 – Mas o que é que era? Para o registro aqui, conta essa história para a gente.
Alberto – É uma dor que ela tinha no joelho. Tu estavas nesse dia, não estava Bete?
Bete – Eu estava na pajelança.
Alberto – Entendeu? e aí nós fizemos a pajelança e ela melhorou, entendeu.
P/1 – O que é a pajelança?
Alberto – A pajelança é uma reza que senta todo mundo dentro e vai fazer uma pajelança para curar aquela pessoa que está doente, um pajé, um cacique ou a liderança, aquelas coisas. Mas para isso preciso que você entre com fé, preciso que você entre com fé, se eu tiver com fome e eu não comer com aquela fé, aquela comida não vai me servir, mata a fome, mas não serve o corpo do ser humano. Deus me perdoe, meu Deus. Está entendendo como é que é? Desse jeito, tem que entrar com fé.
Dourado – Eu tenho, um dom do meu pai, que a gente para realizar qualquer tipo de cura ou para acontecer alguma coisa boa no nosso meio, na nossa comunidade, você tem que passar pelo menos três dias sem se contaminar. Aí você tem que não beber, não ter relação com mulher, entendeu, você fazendo esse trabalho, essa obrigação, a gente consegue que as coisas aconteçam.
R/? – É, verdade.
Dourado – Eu quero contar aqui uma história, que eu vim aqui, no dia que o pessoal estava fazendo intercâmbio aqui, que tem intercâmbio dos jovens, estava o povo do Taguari, gente de Papo Canindé, o povo Tapeba nosso e um povo de Canindé de Aratuba. E eu vim para cá, eles nem ouviram a zurra do carro quando eu cheguei aqui, fui direto para aquela pedra acolá e comecei a pedir a Pai Tupã que pelo menos cobrisse as pedras que estavam fora. Aonde eu fui fazer essa oração, pedindo a Pai Tupã, as pedras cobriram, está coberta. Entendeu, isso eu agradeço muito porque ele atendeu o pedido, quer dizer, não foi eu, foi a fé que fez com que desse essa chuva agora, as últimas chuvas que deu, que cobriu as pedras que eu estava em cima. E se Deus quiser vai cobrir o resto das pedras que tem para lá ainda. E aí voltando a questão da medicina tradicional, é interessante que nós, nas épocas dos antigos, antepassados, eu cheguei a quebrar meu braço, esse braço aqui é quebrado, está quebrado, e minha mãe mandou o meu irmão mais velho cortar uns talhos de carnaúba e aí ela pegou, “Agora bote dois aqui, dois aqui, dois aqui e dois por baixo”, o talho de carnaúba, “Agora amarra”. Amarrou e aí antes de amarrar, de botar, botou um bocado de leite de, não, de geranagô não, leite da...
Weibe – Gameleira?
Dourado – Gameleira. Aí em cima do leite de gameleira pôr muito algodão, algodãozinho tirado do roçado mesmo, a gente tinha algodão plantado no roçado, aí passou-se, passou-se, eu tinha na faixa, eu tinha uns cinco anos na época, cinco anos de idade e não demorou nem três meses. Aí o algodão foi largando, é o tempo que estava remendando o osso. E emendou, pronto, graças a Deus não precisou levar para médico, nem nada. Tudo o que eu, por exemplo, eu tenho um corte bem aqui que foi do delamarte, aqui, oh. Não foi preciso costurar, aí botaram, foi botado muita coisa aqui, de arteira, raço de arteiro. Na minha cabeça também que eu tenho um leste medonho aqui, em um arame farpado, foi colocado também a raspa de arteira, aquela de aroeira também. Então, me curei assim. E já o meu filho, o Weibe, eu cheguei do trabalho em casa, ele tinha caído do pé de seriguela, tinha quebrado o braço. Aí eu não tinha como fazer naquele momento, a gente tem que botar ele na cacunda e levar até o ponto do ônibus e lá poder dizer para o médico. Daí com meia noite nós íamos com ele na cacunda ainda, ele com cinco anos também, pareceu uma coisa, eu com cinco anos quebrei o braço, ele quebrou o dele também. Só que foi diferente porque eu não conseguia fazer aquilo não, até porque é de noite. E aí é o seguinte, nós da comunidade, nossos antigos não precisavam de médico para fazer as coisas não. Tanto que o meu pai há de morrer, ele diz: “Vou lhe entregar o meu corpo a Deus, mas nunca precisei de médico, das mãos dos médicos de carne. Mas de meu Deus”, porque ele era evangélico, sabe. E ele acreditava muito que Deus curava, e que cura mesmo, basta ter fé. Mas aí essa questão de se nós quisermos aqui resgatar essa questão da medicina tradicional, a gente resgata ainda. Agora o problema é que há um vício, eu quero colocar aqui para mostrar mesmo, que há um vício de muitas pessoas nossa da comunidade que gosta mesmo de estar todo dia no médico. No médico, no posto de saúde, parece que se não tiver lá, fica doente. Se não tiver lá fica doente, (risos), é complicada essa história, não é?
P/1 – Está certo.
Alberto – Oh, eu quero contar só uma história aqui. Oh, meu pai passou para mim que Deus está fazendo, ele faz um serviço de pena, que só podia rezar quando eu tivesse com 70 anos. Estou desde 66, certo. E quando foi o mês passado, chegou lá em casa uma branca, os caras, “Aqui que mora o cacique?”, chegou no carro. A menina vomitando que estava com os olhos, estava tudo os olhos da menina de fundo. Lá de Tapapuá, uma professora. Eu digo: “Doutora eu não sei rezar não doutora”, ainda soneguei, “Não sei rezar não doutora”. “Não, mas todo cacique sabe rezar. E me informaram que você sabe rezar”, eu tinha rezado uma pessoa, uma velha, que morava para o Mangá. Aí eu cheguei, disse: “É rosário na sua filha, a bichinha vomitando”, ela é do tamanho dessa menina aí, branquinha assim que nem ela. Vomitando que os olhos estavam fundos. Eu digo: “Eu vou rezar na sua filha”, aí me concentrei a Deus, aí disse três palavras. Digo: “Amanhã a senhora venha de novo. É o mesmo horário”. Aqui quando ela chegou, já chegou aos pulos a menina e eu não tinha essa obrigação de rezar, só tinha, meu pai disse que eu só podia rezar quando eu tivesse 70 anos, eu estou com 66... Aí sei que eu trampulei a parada que ele disse, mas eu rezei. Coisa que eu tinha pegado, eu tinha ódio de rezar, porque quando uma pessoa ia rezar, eu saía de banda quando era jovem, oh, eu não queria, olha onde é que eu estou. Entendeu como é que é as coisas?
R/? – É sua missão.
P/1 – Só o Antônio, queria contar uma.
Antônio – Eu lembro.
R/? – É irmão da Selma, viu? É irmão da Selma também.
P/1 – Ah, que beleza. Pô, ela participou lá da formação.
Antônio – Eu lembro que há um certo tempo, nessa época eu devia ter na faixa de 10, 11 anos, a minha mãe, ela sentiu uma dor muito forte. Ela dizia que sentia uma dor como se tivesse uma bola cheia de espinho rodeando o seu corpo por dentro. E esse período era um período que a gente sofria muito, que a gente criança e via a mãe da gente sofrendo e eu chorava muito, eu sempre fui uma pessoa muito sensível com relação quando se trata da questão da minha família, da minha mãe principalmente. E naquele tempo a gente não tinha como se locomover para ir ao médico e corria de um lado, do outro atrás de um carro para levar até o hospital. E era muito difícil e existia na nossa, ali no trilho na época, o José Augusto Batista, que ele é, hoje ele é o pajé da nossa aldeia na Capoeira, já é um senhor já de 86 anos. Naquela época, ele tinha umas bolas pretas, acho que Dourado conhece, as pessoas que são mais antigas que conhecem, ele tinha umas bolas pretas que ele dizia que era tirada do boi. E ele ia, fazia as rezas na minha mãe, trazia os medicamentos do mato, minha mãe tomava e colocava aquelas bolas para cozinhar. Toda vida ele fazia isso e, ela fervia, quando fervia ele tirava a água, todas aquelas bolas, ele levava para uma outra receita com uma outra pessoa quando precisasse, em um caso, principalmente, semelhante ao de minha mãe. E tirava aquela água e dava para ela tomar, incrível, incrível. Eu acredito muito em Deus, acredito em Jesus Cristo, sei que é o senhor criador de todas as coisas e acredito que ele usa as pessoas para dar inteligência, para descobrir as ervas medicinais, aonde elas podem ser usadas. E uma das tais eram essas bolas que ele tinha, que ele tirava do animal. E a minha mãe ficava boa, ficava boa. A minha irmã que está aqui, ela pode muito bem confirmar isso comigo, que a gente, era um período muito difícil e era uma coisa que só atacava, dor, interessante que dor que só atacava durante a noite. E de oito horas em diante que a gente ficava mais preocupado. Então, ele fazia esse trabalho e era muito maravilhoso, muito bonito e ela ficava boa, ficava boa. Quando atacava novamente, eu acredito que era um processo, foi até o ponto dela não sentir mais essas dores e hoje ela não tem mais. Esse era um período, que, eu tinha o que, na faixa de 11 anos, mas eu lembro muito bem desses assuntos. Minha própria irmã, ela sabe muito bem, que ela teve, uma vez ela acordou a noite, tomou vento, teve uma paralisia facial e ficou boa através do chá, do gengibre e outras sementes que foram feitos o chá para ela tomar e ela ficou curada. Apesar de eu ser agente de saúde, a gente trabalha com muitas pessoas, uma demanda muito grande no posto de pessoas, como foi dito aqui, que de manhã, se puder vim a tarde vem de novo se consultar, porque as pessoas têm um vício muito grande de estarem no médico e voltando o tempo todo porque fogem, fogem da medicina tradicional e fica com a convencional porque entende que é melhor. Mas sabe, a gente tem que entender o seguinte, que a cura através das plantas, ela não somente cura da doença, mas também ela imuniza o nosso corpo. É diferente de um antibiótico, que sara uma célula que está doente, mas também danifica a que está boa. É essa consciência que a gente queria que as pessoas tomassem, porque os medicamentos, eles são bons, são os médicos que estão trabalhando a nosso serviço sim. Mas existe o meio convencional que resolve, existe. A gente tem um pajé lá na nossa aldeia, ele trabalha muito bem, já é um senhor bem de idade. A noite as pessoas sempre procuram para aprender fazer um chá, alguma reza, sempre está acontecendo isso lá na Capoeira.
P/1 – Legal. Pessoal, só para a gente ir fechando.
Raimundinha – Eu quero só complementar. Nas raízes, nas cascas. Eu acredito muito nas coisas que nós temos na natureza. Antigamente a gente curava muitas coisas que hoje em dia foi trocado de nome, a gente curava com raízes, com folha, é tiriça. Antigamente, que hoje em dia é a hepatite. A gente ainda cura na nossa comunidade com o chá do capim-açu, de tiriça. Era mijo, as crianças, homem mija em cima da enxada, as mulheres mijam em cima de machado e o chá do capim-açu mata tudo. E hoje só sabe correr para o médico, não é? E é remédios e remédios, quanto mais bebe remédio do doutor, mais amarelo fica. E de primeiro a gente, ainda hoje em dia a gente cura com o chá do capim-açu, nossas crianças. Eu, minha pessoa, já curei uma filha de uma pessoa rica com o chá do capim-açu. Curei a bichinha, ela era tão amarela que parecia um açafrão.
P/1 – Mas dona Raimundinha e, essa pergunta serve para todos na verdade, o que é que vocês estão fazendo para manter então esse conhecimento, para que ele não se perca? Como é que vocês estão registrando ou passando para o outro? Como vocês, vocês ensinam outras pessoas?
Raimundinha – Ensina sim. O que eu sei eu não deixo preso aqui dentro, eu passo para os meus filhos, passo para os meus netos, passo para as pessoas que vão me fazer perguntas. E antigamente a gente tinha, pão, que hoje é cisto, era curado com a folha da fonte. Era nove folhas que usava, todo santo dia botava aquela folha, amarrava, quando era de manhã tirava e virava pó, colocava outra.
P/1 – Hoje vocês continuam com questões, o remédio eu estou vendo que sim. Mas de extração, de pesca, de coleta, de caça, isso vocês podem? Tem a permissão de, nessas áreas?
Weibe – Tem muita atividade de subsistência do povo Tapeba.
Raimundinha – E hoje em dia a gente ainda se cura com as nossas raízes. Nós nos curamos.
P/1 – Não tem restrição? Ainda aí, o pessoal, opa, não pode cortar tal coisa, não pode não sei o que?
Weibe – É, essas restrições somos nós que estabelecemos. Que, por exemplo, tem essa graça de Pau Branco, essa área aqui não pode desmatar de maneira alguma, é uma área de preservação que a gente estabeleceu. Mas também nós temos uma área de coletiva de plantio, onde o pessoal planta lá roça, planta milho, planta feijão. Nós temos a coleta da palha da carnaúba, tem um grupo de pessoas do povo Tapeba que trabalha com essa atividade tradicional. Nós temos coleta de frutas de época. Ali no Rio Ceará, o cacique Alberto que é lá da, é originário da comunidade da Ponte, o pessoal lá sobrevive da retirada do crustáceo, é o caranguejo, do guaiamum, do cié, do aratu, do siri, do camarão. Tudo isso eles trabalham lá. Têm os pescadores aqui também, têm alguns caçadores, só que a gente está orientando para que essa atividade da caça, ela perca força, porque como de fato a fauna, os animais silvestres aqui da região têm diminuído muito por conta da limitação do território, as matas se acabando. A gente também tende a orientar o pessoal a diminuir essa atividade e a gente preservar mais. Que, por exemplo, um tatupeba, a orientação no mínimo é que quando tem grande quantidade, que pegue só o macho, porque as vezes quando pega as fêmeas, aí já impede que haja a procriação. E aí a orientação ultimamente é não caçar de jeito nenhum, sabe, antigamente a gente tinha uma dependência muito grande da caça, mas de todo modo nós tínhamos uma variedade maior. Hoje, isso já é mais diferente.
P/1 – A lagoa inclusive, pesca, etc. Mas isso tudo para vocês, não é para venda? Não é para...?
Weibe – Não, é mais de subsistência. Por exemplo, nossa dificuldade hoje, nos agricultores, a maioria são as vezes sujeitados a vender a mandioca porque a casa de farinha está com problema lá, então eles acabam tendo que vender a mandioca, a produção de fora. Mas a casa de farinha estando funcionando, a farinhada, ela passa a ser como se fosse uma festa do povo, da comunidade. Que aí, vamos dizer assim, o dono da farinhada, a do agricultor, aí eles vão, chama os vizinhos, chama os amigos, chama os parentes, todo mundo e, vai ali todo mundo rapar mandioca, conversando da vida alheia, contando piada, aquela coisa toda. Vai, passa a noite, um, dois, três dias, quatro dias, aí quando termina todo mundo leva seu beiju para casa, sua tapioca, sua farinha.
Dourado – Eu só vou na hora de fazer o beiju, viu.
P/1 – Esse é o dia especial então?
Weibe – Um dia especial.
P/1 – Gente, então só para a gente ir fechando. Bom, vocês sabem, a gente está aqui, está em transformação, vocês estão em luta e estão ganhando, conseguindo coisas. O que é que vocês estão esperando daqui a 20 anos, por exemplo? O que é que vocês esperam para cá, para a região? O que é que vocês torcem para que aconteça?
Dourado – Rapaz, a gente está torcendo pela questão da formação de nossa comunidade, com formação pedagógica, formação magistério, a formação de advogados. Porque nós precisamos muito da questão do advogado para defender os direitos na questão judiciária. Inclusive o Weibe estudando Direito, esse próximo ano está terminando o curso dele de Direito e, eu tenho outro filho que está cursando aí Engenharia Agroambiental, que também vai cuidar da agricultura, cuidar da questão ambiental. Tudo é importante para nós, daqui a 20 anos, nós queremos realizar esse sonho. Acho que não demorar, daqui 20 anos, mas em menor espaço de tempo a gente estar conquistando a demarcação de nossas terras, que é o principal para que a gente possa realmente, definitivamente colocar o nosso povo no seu devido lugar, no seu habitat natural. E até estou colocando aqui na questão que eu me esqueci de falar, sobre a questão da medicina tradicional, minha mãe, ela quando era viva, ela levantava gente caído, as espinhelas, a espinhela caída. Então ela tinha esse dom, como é que ela levantava a espinhela, ela ia de manhãzinha, cinco horas da manhã, seis horas da manhã quando o sol começava a sair, ela ia, trazia a pessoa que queria levantar a espinhela e botava lá na frente do sol. Então, a gente não perdeu muita coisa não, o problema é que a gente convivendo, por exemplo, a questão nossa, que nós estamos muito perto da população não indígena e contribui para que essas coisas muitas vezes se esqueçam. Mas aí o cuidado nosso de estar resgatando é sempre interessante. Como o Weibe colocou, depois que nós abrimos as portas para a comunidade não indígena visitar e observar realmente como é os nossos costumes, nossa tradição, a coisa melhorou muito. Agora, como você está colocando aí, daqui a 20 anos, o que é que nós esperamos. Esperamos ter uma vida tranquila, em paz, tanto nós indígenas como com a sociedade em geral, queremos ter a nossa luta praticamente já realizada, terminada.
P/1 – A vida resolvida?
Dourado – Resolvida. Então, tudo isso. Mas o maior ganho nosso justamente é a formação dessa juventude aí que antigamente, na época, na nossa época, quando inclusive quando eu comecei a participar dessa luta, a gente contava, não é compadre, a juventude. E hoje não, a juventude, ela quer ir para cima. E tinha deixado muitas vezes os mais velhos com ciúme. E eu tenho dito, “Os jovens tem que respeitar o mais velho, porque o jovem é que vai nos substituir. Nós vamos se encostando ali e eles vão assumindo as coisas”. Então é interessante que hoje o povo Tapeba, a juventude do povo Tapeba é talvez a que tem mais se destacado a nível nacional. Foi criado a Associação dos Jovens Índios Tapeba, todos os povos estão criando e está sendo criado agora uma nacional. Então acho que essa juventude, ela tem muita coisa para nos dar, para aprender e para nos ensinar. Porque tem coisas que eles estão aprendendo na faculdade que nós não fizemos, então nós temos que aprender com eles e eles aprenderem com a gente as experiências, tanto dos antepassados como a atual. Então é importante.
P/1 – Vocês, dessa nova geração, Josi, Erick, Simone, cadê o Alef?
Alef – Aqui.
P/1 – Alef. E aí, vocês, pensando daqui a 20 anos, o que é que vocês acham que vai acontecer aqui com a região? O que vocês querem para vocês? Qual é que é essa expectativa?
R/? – Erick.
Erick – Bom, assim, daqui a 20 anos no caso, eu quero pelo menos que esteja mais ou menos, se puder manter do jeito que estiver, que a cultura não se perca, que nós jovens continuem na batalha ainda pelos seus direitos. Convivendo pelo menos uns de bem com o outro, para mim seria ótimo, seria muito bom. É o que eu espero.
P/1 – Você Josi?
Josi – Eu também espero que seja melhor, que as nossas terras possam ser demarcadas. E que a nossa cultura também não se perca e que nessa luta possa vir, entrar jovens e mais jovens.
Simone – Eu queria que daqui a 20 anos, eu seja mais uma pessoa experiente no movimento indígena como Biel, Dourado, Weibe. E só, (risos).
P/1 – Vai ter coisa para fazer. Gente, alguém quer falar mais alguma coisa? Que eu no fim, eu não perguntei para todo mundo, eu sei que tem algumas pessoas que estão mais quietinhas.
R/? – Bete, fala aqui Bete.
P/1 – Gostaria de contar algo?
R/? – O Alef.
R/? – O Alef não fala nada.
P/1 – Os temas vão puxando...
R/? – Eu queria contar uma história que é contada pela dona Ovilge, uma grande liderança nossa que morou lá no Trilho. Isso está em livro já, já está em livro, o nosso primeiro livro do povo Tapeba tem essa história da dona Ovilge. Ela morava na aldeia do Trilho, então ela contou essa história para nós, e isso nunca saiu da minha memória. Que antigamente os trens que passavam lá no trilho eram movidos a lenha, aquele trem movido a lenha, correndo em cima da linha, que era a lenha, a fumaça, que chamava Maria Fumaça. Então ela disse que uma neta dela, não, era filha da irmã dela, morava na margem do trilho, saiu para apanhar água e apanhava água longe nos cacimbinhas de olho d’água. Aí nessa saída dela tinha ficado duas crianças dormindo na casa, duas não, eram três, três crianças. Então essa Maria Fumaça passou, isso está em livro, eu estou contando a história da dona Ovilge, que isso nunca me saiu da memória. Aí a Maria Fumaça passou, saiu a faisquinha do trem, da Maria Fumaça, saiu, pegou fogo na casa, as três criancinhas morreram. Quando a mãe chegou e o pai, disse que estava só os tiçõezinhos, os três tiçõezinhos lá dentro da casa. Então isso foi uma história que me marcou muito, eu perguntando: “Dona Ovilge, aí, isso foi verdade?”, “Isso foi vero, foi verdade”. Que eu pensava que era uma história assim de trancoso, mas ela disse que foi verdade. Era filho de uma irmã dela, então ela era uma liderança das antigas também, que hoje ela está bem idosa mesmo, ela não sai mais, não acompanha mais os movimentos devido à idade. Então isso me marcou muito, essa história lá do Trilho onde eu moro, do trem que era chamado Maria Fumaça. E hoje, tem um trem, hoje em dia ainda passa o trem lá.
P/1 – Passa ainda lá?
R/? – Ainda passa trem.
P/1 – E ainda tem perigo de acontecer algum acidente?
Raimundinha – Não, agora não tem perigo mais porque eles não são mais movidos a lenha, eles são movidos a óleo.
P/1 – Mas e se sair?
Raimundinha – É, se sair, talvez, nunca saiu não, nunca aconteceu não dele sair, bater nas casas. E nesse tempo as casas eram tudo de palha, não tinha uma casa de tijolo nem nada. Eram as ocazinhas de palha que nem essas daí. Aí a faísca voou, as três casas pegaram fogo.
P/1 – Vocês chegaram a morar em uma casa de palha?
Dourado – Não, acho que é o pessoal que...
R/? – Eu ainda morei em casa de palha.
P/1 – Você chegou a morar em casa de palha?
R/? – Eu morei em casa de palha sim, quando eu me casei.
Dourado – Ah, sim. Em casa de palha eu já morei.
R/? – Ainda tem igual a minha.
R/? – Casa de palha eu morei, na beira do trilho.
R/? – Lá dentro da vila que ela morava lá. Ainda mora ainda.
R/? – Ainda moro lá na beira da linha, só que as casas agora é tudo de tijolo.
P/1 – Então, mas a senhora também morou em casa de palha?
R/? – Não, eu moro aqui.
Dourado - As nossas casas de palha, era tipo assim, e a porta era feito de talo, feito de talo, não tinha fechadura.
P/1 – Não tinha fechadura?
P/2 – Vamos ver assim? Bater a foto?
P/1 – Vamos bater uma foto gente? Vamos lá, vamos voltar todo mundo. Juntem, por favor.
R/? – Está pouco, não é Bete?
R/? – A roda.
R/? – Alberto a roda.
R/? – Anda Bete.
R/? – Aqui o Dourado e o Alberto.
R/? – Vai molhar a foto.
R/? – Anda.
R/? – Tentar esconder a barriga.
Dourado - (risos).
R/? – Cadê a Sonia?
P/1 – Pessoal, antes de ir embora, a gente precisa das sessões de direito de imagens.
Dourado – Eu já assinei o meu já.
P/1 – E, é justamente, para a gente poder usar esse trabalho. Antes eu quis que vocês experienciassem, vocês gostaram? De contar um pouco.
Dourado – Já, foi bom.
P/1 – Deu para contar? Então eu vou passar para assinar, tudo bem?
Dourado – Eu já assinei, faltava só sair o cachê.
Vários – (risos)
FIM DA RODA DE HISTÓRIA
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