Programa Conte Sua História
Depoimento de Eronides Santiagua
Entrevistada por Lucas Torigoe
São Paulo, 10/06/2016
Realização: Museu da Pessoa
Entevista número: PCSH_HV538
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado por Jader Chahine
P/1 – Você nasceu onde, Santiagua?
R – Eu nasci em Sorocaba, no Hospital Santa Lucinda, às dezesseis horas e trinta minutos.
P/1 – Que ano que foi?
R – Conta de mentiroso. Sete um, 1971.
P/1 – Você nasceu em que dia?
R – 27 de outubro, no dia que o Lula nasceu (risos).
P/1 – E o seu pai, qual é o nome dele?
R – Meu pai? Quando nasci meu pai já tinha sido assassinado, dia sete de setembro de 1971. Eu nasci cinquenta dias depois da morte do meu pai. Eu nasci em Sorocaba, ele foi assassinado em Guarulhos, no bairro de Pimentas. Ele trabalhava na fábrica de papel Independência, quem conhece aqui?
P/1 – Eu não conheço, não.
R – É do lado da fábrica de tênis Montreal, a Independência. Hoje a Montreal é até fechada, não existe mais. Eu nasci cinquenta dias depois da morte dele, vim forçado nesse mundo.
P/1 – Qual é o nome da sua mãe, Santiagua?
R – Maria Benedita Januário Santiagua. Ela morreu com 36 anos, na minha frente. Ela brincou comigo. Primeiro ela fez um almoço, reuniu todo mundo. Porque ela morreu naquele dia, não é? O seu Deus deixou que ela fosse na minha frente. Onde está seu Deus?
P/1 – Ela morreu do quê?
R – O coração dela parou, marca-passo.
P/1 – Você cresceu em Sorocaba?
R – Eu não cresci, eu fui jogado pra cima: vá e se vira. De lá eu fui... Sei lá dizer o que eu vivi. Eu estou aqui até agora, no momento. Hoje eu não vou na casa de parente, não gosto. Vou numa biqueira, porque posso pegar quatro drogas ali. Eu não vou na casa dos meus parentes porque é 22 reais para chegar, a passagem. Não é por dinheiro. Ninguém merece. Eu moro na rua: sou morador de rua, de albergue. Eu sou porra-louca, tiro coelho da cartola.
P/1 – Como é que você chegou em São Paulo?
R – Eu cheguei em 89 aqui, trabalhei doze anos como cobrador de ônibus. Eu sei que minha mãe morreu e eu fui restringido (risos). Eu fui restringido, jogado.
P/1 – A sua família…
R – Entre aspas: família é eu, é ele [aponta para fora de quadro]. Eu sempre brigo, discuto e quebro o pau com ele.
P/1 – Mas a sua família te deixou?
R – Não tenho família. Minha família se foi e eles morreram. Foi minha mãe que eu conheci, foi meu irmão, foi minha irmã, foi minha irmã. Eu tenho um casal de irmãos só e, quando eu mais precisei, falaram pra mim: “Quando pai e mãe morrem a gente não é mais irmão, a gente só é irmão por causa de sangue e de sobrenome. Nós temos que viver sem depender um do outro.” “Obrigado.” Quando chego lá eles me roubam mil, dois mil reais. É isso mesmo.
P/2 – Quantos anos você tinha quando sua mãe morreu?
R – Foi em 79, eu tinha seis anos e meio. De lá eu comi o pão que o diabo amassou. Nunca matei ninguém, mas pretendo. Aqueles que me devem muito. Sabe aqueles que devem pela sem-vergonhice, pela maldade? Eles têm que apanhar. Não é matar, é arrancar o pé; mas eu não faria isso. É só ver a pessoa e eu falaria para ele: “Eu te perdoo, mas outro não vai te perdoar.” Principalmente se eu estiver do lado, aí não vai perdoar mesmo… Mas perdoo o próximo.
P/1 – Você veio para São Paulo por quê? O que aconteceu?
R – O que aconteceu?
P/1 – É.
R – Vou voltar tudo de novo, vou dizer. O mundo é de todos e a vida também, então nós temos de ir. Não importa a sua idade, basta ter educação, educação, educação, e você chega em qualquer lugar, portanto estou aqui em São Paulo. Fui para o Mato Grosso, para o Paraná, vários lugares, mas São Paulo é uma cidade. Conheci o André, conheci a ONG É de Lei, sou o mais velho de lá. Para eles me convidarem a vir até aqui é que... É história ou estória? Diga pra mim. 7 37
P/1 – História com H ou com E?
R – Não é? História com H. Mentira, com E. Eu falo estória, é verdade.
P/1 – Você chegou aqui em São Paulo e foi fazer o quê? Foi trabalhar?
R – Eu fui tentar entrar em uma empresa de ônibus, tinha saído de uma fazia doze anos. Eu saí na calada da noite para ver esse trabalho, e tinha morrido três pessoas na mesma semana, cobradores de ônibus. Hoje sou um mero aposentado. Eu tenho um monte de problemas de saúde.
P/1 – Ah, é?
R – Tenho tumor, tenho câncer, tenho Aids, tenho hepatite C. Hoje acabei descobrindo que estou com tuberculose.
P/1 – Foi exame que você fez hoje?
R – Eu vim fazer e deu 28 milímetros. Coça, né? Sou alcoólatra e drogado, mas se pisar no meu pé, peça desculpas. Mesmo assim, se eu pisar no seu pé...
P/1 – Você gostava de trabalhar como…
R – Cobrador?
P/1 – É.
R – Eu era office boy no Banco Bandeirantes.
P/1 – Como era esse?
R – Trabalhar?
P/1 – É.
R – Eu era filho órfão. Sabe o que é filho órfão? Você já foi?
P/1 – Não.
R – Não queira ser. Se um dia você casar e chegar a morrer, não deixa seus filhos na mão de irmã, de tio, que eles vão comer o pão que o diabo amassou. Hoje eu estou bem. Quando eu estou um pouco deprimido, o André, do É de Lei, pergunta: “O que está acontecendo? Quer ir no hospital, o que você quer?” Eu estou morrendo, dizem que eu tenho oito anos de vida.
P/1 – Como foi na empresa, como era o trabalho de cobrador?
R – Trabalho de cobrador? Naquele tempo era mais difícil.
P/1 – É?
R – Naquele tempo era paz, era como oficial. Eu era fiscal da empresa. Cada um tinha um… Hoje só põe o cartãozinho ali, não é?
P/1 – É mais fácil hoje?
R – Sim, com a tecnologia é bem mais fácil.
P/1 – Tem algum dia que você se lembra bastante desse trabalho, em que aconteceu alguma coisa muito diferente ou marcante?
R – Todo o meu tempo foi bom, mano. Uma vez que eu fui roubado, assaltado.
P/1 – Dentro do ônibus?
R – Sim, no ônibus, transporte coletivo. Estava fazendo a linha Vila Carol – Mercado. A pessoa veio, eu pedi pra apagar o cigarro. Eu estava no bloco 362, monobloco. Isso foi 88, 89... Aí foi um, não paguei os passes que levaram. Eu me lembro até hoje: um pouco mais de 36 passes de ônibus. A empresa não me cobrou porque eu estava rendendo outro cobrador, que, por eu ser filho órfão, eu não gostava de ir embora pra casa. Eu preferia a morte do que estar indo embora para dentro da minha casa, porque a casa não era minha. Imagina, você comendo arroz e feijão e a sua mãe adotiva fala para você: “Ó…” Muita ladainha. Às vezes eu queria falar isso para ela mas eu não tenho coragem.
P/1 – Sua mãe?
R – Minha mãe adotiva, irmã da minha mãe. Minha mãe falou para ela: “Eu vou morrer, mas está faltando daqui para o final de semana. Cuida do meu filho.” “Vai lá para a casa da sua tia, ela é brava. Chama ela, se for possível, de mãe.” Hoje eu chego lá e eles põem o tapete vermelho pra mim: “Você não vem aqui?” Fazer o quê? Não vou falar pra ela o que eu vim fazer aqui. Eu vim visitá-la, mas a amargura, a dor, corrói aqui dentro.
P/1 – O que é que você queria falar pra ela?
R – Falar para ela que eu a amo. Eu gosto dela, mas ela me judiou muito. De mim e das minhas irmãs, judiou muito. Ela batia em mim e nas minhas irmãs, era pior. Portanto nenhum de nós ficou na casa dela, fomos saindo aos poucos. O dia que eu saí de casa ela comprou uma chácara para eu ficar. Eu fiquei uns oito anos dentro dessa chácara, eu e uma cachorra. O nome dela era Xuxa, uma vira-lata. Cada coisa que aconteceu comigo... Me joguei para o suicídio umas duas, três vezes. Eu fiz até roleta russa com meu revólver na minha cabeça, “tá”, “pum” e não foi. Eu tomei 68 comprimidos tarja preta com dois litros de pinga e um quilo de açúcar. Eu apareci no Saboya depois de cinco dias, assim que eu acordei, que me despertei. Hoje, entre aspas, estou bem. Eu faço machucado e não sei como. Esse daqui eu fiz assim, eu arranquei com o dente.
P/1 – Você acha que está melhor hoje?
R – Todo dia eu sou assim, ó. Se eu pisar no seu pé ou esbarrar em você, eu peço licença, desculpa, por favor. Diga tudo o que você quiser e eu falo para vós. Entre aspas, tá? (risos)
P/1 – Essa chácara que você falou é em Sorocaba?
R – Salto de Pirapora.
P/1 – Onde é?
R – 37 quilômetros depois de Sorocaba.
P/1 – Sua mãe adotiva tinha dinheiro para comprar chácara e deixar você lá?
R – Não é que tinha: tem. Se eu meter na justiça tenho direito. Não preciso. Meter na justiça para ver se tem direito por ser filho órfão... Foi tudo passado no juiz. E a casa, e a chácara da minha mãe? Foi para onde? Não corro atrás de nada disso, eu não preciso.
P/1 – Ela está viva ainda?
R – Ela?
P/1 – A sua mãe adotiva?
R – Espero que sim. O esposo dela é um amor de pessoa. Eu não vou lá faz uma “pá” de anos, mas acho que ele já morreu. Ele estava com 87 anos e faz mais de doze que não vou lá. Eu espero que ele esteja vivo pelo menos nessa última vez, para eu chegar lá e falar: “Aqui, pai.”
P/1 – Ele era legal, você falou.
R – Um amor de pessoa.
P/1 – Mas ele tratava vocês bem?
R – Ele sim. Nossa, ele e o filho dele, Luís Carlos. Ele tirava eu das garras dela. Mas hoje, eu repito, eu chego lá e ela logo fala: “Vai no canteiro de hortaliça, pega uma verdura para se alimentar, pega um limão ali para você bater.” Limpa e traz para mim. Eu não tenho raiva. Olha, deu arritmia cardíaca. Sabe o que é arritmia cardíaca?
P/1 – Não sei.
R – Vem cá ver. [P/1 coloca a mão em seu peito] Isso é arritmia cardíaca, lembrança.
P/1 – É lembrança boa ou lembrança ruim?
R – Dá um sopapo, arritmia. Saudade, falta... Um tem rancor, um tem raiva, um tem mágoa. Ah, eu tenho…
P/1 – Tem saudade?
R – Um pouquinho, assim. Saudade... Minha passagem daqui a ali é 25 reais e eu não vou. Posso estar indo todo dia, se eu quiser, mas eu não vou. Faz dez, quinze anos que…
P/1 – Você não vai lá.
R – O que eu vou fazer lá? Diga para mim.
P/1 – Mas vocês conseguiam brincar nessa época, quando você era criança?
R – Eu não tive infância.
P/1 – Quando você era menor, então?
R – Minha mãe morreu eu tinha seis anos e meio. Eu comi o pão que o diabo amassou. Não tive infância. Se eu chegasse ali com tênis novo e os filhos dela gostassem, era obrigado a dar.
P/1 – Ela chegou a te colocar na escola? Você chegou a frequentar?
R – Sim. __________ trabalhar.
P/1 – Você trabalhava e estudava, então.
R – Trabalhava e estudava.
P/1 – Você gostou de ir para a escola? Como era?
R – Eu fiz até a sétima série.
P/1 – É bastante.
R – Eu adoro ler. Nossa, como eu gosto de ler! Se você falar para mim o que está escrito no jornal hoje, eu falo tudo o que está escrito no jornal. Eu li todo o jornal de hoje.
P/1 – Hoje você fez isso?
R – Eu faço todo santo dia. Estou mentindo? Você não me vê ali lendo?
P/1 – Traz o jornal.
R – Com o jornal, sempre. Às vezes até compro jornal para ler, faço esse gosto. __________ “Tia, deixa eu em paz? Posso ler?” E me retiro. Às vezes vou pra dentro do cemitério, gosto de ler dentro do cemitério que é o lugar mais de paz que existe. Uma boa leitura você faz dentro do cemitério.
P/1 – O que você leu que você gostou muito? Uma coisa que você se lembra.
R – Ou que eu não gostei? O que eu não gosto: de nada do que está escrito no jornal.
P/1 – Ah, é?
R – Não sai uma foto minha (risos). Nem para sair foto minha, uma porqueira.
P/1 – Mas você não está gostando das notícias que está tendo?
R – Ultimamente?
P/1 – É.
R – Piorou agora, depois desse seu presidente interino. Lógico, eu não coloquei ele lá e nem votei para ele como vice... Você vê eu falar sobre política? Não, né?
P/1 – Tem alguma parte do jornal que você gosta mais?
R – Com certeza, esporte.
P/1 – Esporte?
R – Esporte.
P/1 – Mas por quê?
R – Porque é esporte, ‘tio’.
P/2 – Que time você torce?
R – Eu sou Flamengo, depois o Corinthians, depois o São Bento de Sorocaba e o XV de Piracicaba.
P/3 – Eu achava que você era corintiano.
R – Eu também sou.
P/2 – Quem te influenciou para você ser flamenguista?
R – Eu trabalhava em aparas de papel e ali eu conheci através de revista, Bebeto, Júnior, Mose, Aldair, Leonardo, Autuori. O Zetti já foi conversar comigo em Piracicaba. Quer ver o outro? O Mazolinha. Eu falei: “Não acredito! Ontem fez gol em cima do meu time, deu o título para o Botafogo em cima do Flamengo, e hoje você está sentado bem na minha frente aqui?” Você aqui conversando comigo e eu com a camisa do Flamengo, ele autografou. Foi uma ocasião bem legal, em Piracicaba. Foi o Mazolinha, o filho do Mazola. Jogou também no Botafogo, em 89, 90. Uma pessoa que eu gosto, o Mazolinha.
P/1 – Você viu o jogo do São Bento, lá?
R – Já assisti! Eu não pago estádio, sou isento de tarifa. Não pago metrô, ônibus e estádio de futebol. Eu estou morrendo (risos). Tenha o seu futuro comprado, eu já tenho o caixão lá em Piracicaba, está tudo comprado. Só não quero ir nesses guardanapos velhos.
P/1 – Por que você escolheu Piracicaba?
R – Escolheram para mim.
P/1 – Escolheram.
R – Eu saí da casa dos meus pais adotivos e, como eu era criança, corri para Piracicaba. Meu tio morreu em 95. Ele falou: “Liga para mim tal dia”, o dia em que eu liguei meu tio tinha morrido. “O tio pediu para eu ligar hoje.” “Acabei de enterrar seu tio.” “Como, tia?” “Acabei de enterrar seu tio.” Faz falta. Seu Geraldo Luís Januário, irmão da minha mãe. Morreu do mesmo problema dela.
P/1 – Coração?
R – Coração. Ela mora na Rua Estevam Bóttene, 176, em Piracicaba, Vila Maria, Distrito de Santa Terezinha. Nunca mais fui lá.
P/1 – Você jogou futebol lá?
R – Eu já. Fiz um teste ali, até passei, mas depois saí dando tiro em um, em outro... Levei cinco tiros e “puff”, um dentro do joelho. É por Deus que hoje eu faço isso. Levei um tiro no joelho, um no peito, um na cabeça, um na mão, e esse aqui [gesto], na virilha, pegou aqui. Esse dentro do joelho, esse no peito. [levanta a camiseta] Esse só atravessou aqui, na mão, na cabeça.
P/1 – Mas o que aconteceu?
R – Briga. Esse na mão, ó... Quem diz? Anormal. Esse atravessou aqui e rebateu aqui.
P/1 – Você brigou com quem?
R – Eles falaram que eu peguei a arma do cara, virei e “puff”. Legítima defesa.
P/1 – Você se lembra de algum jogo que você assistiu e gostou muito?
R – Sim. Quartas de final, 1990, Corinthians e Bahia. Eu pulei, foi no Pacaembu e por acaso não paguei. Chovendo, chovendo, chovendo... Um a zero, acho que foi o Bobô que fez um gol e depois nós tinha Neto e o Paulo Sérgio. De lá fomos para a semifinal contra o Atlético, para a final, e ganhamos os dois jogos com o Paulo Sérgio e Neto, depois nós viemos com o Tupãzinho, fazendo aquele gol misericordioso em cima do São Paulo Futebol Clube. Conheço ele pessoalmente. Neto… Eu conheço uma porrada de jogadores.
P/1 – Trombou na rua com eles?
R – Sim, na calada da noite.
P/1 – É?
R – Vários artistas, só na calada da noite.
P/1 – Eles ficam onde, em bar? Na rua?
R – A gente encontra ali. De vez em quando estou com o Fábio Assunção, com o Serginho Mallandro, ali na calada da noite. É só ligar e um deles vem aqui.
P/1 – Quem você mais gosta de ver, dos famosos? O que você gostou de ver?
R – Eu! Meu espelho no reflexo! (risos) Eu levantar e falar: “Obrigado, Senhor, mais um dia vivo”, é o que eu mais gosto de ver. A minha personalidade, o meu caráter: “Bom dia.” Posso estar com uma dor de dente, se você passar por mim e falar: “Tudo bem?” Vou falar: “Tudo bem.” Não é porque eu estou com a minha dor que vou jogar para cima de você: “Ah, vai para lá, não sei o quê!” Isso não existe.
P/3 – Você não contou da sua carreira de goleiro, de futebolista, pela É de Lei.
R – O que eu faço ali é apenas um folclore (risos). Que eu gosto, gosto.
P/1 – Você jogou com eles?
R – Joguei e jogo se precisar, não tem outro goleiro (risos). Mas você vê, aqui não passa gol.
P/1 – É?
R – E gosto de jogar dominó, matemática.
P/1 – Como é que funciona isso?
R – Dominó? Não sabe jogar dominó?
P/1 – Eu sei, mas você sabe melhor.
R – Você sabe jogar?
P/1 – Sei.
R – O que é dominó para você?
P/1 – Ah, são aquelas peças, tem que fazer a combinação...
R – O que mais?
P/1 – Matemática, né?
R – De zero a seis, 267 pontos, mais ou menos. Precisa saber um pouquinho mais, tá?
P/1 – Me diz como foi esse campeonato? Vocês jogaram um contra os outros, fizeram um time?
R – Lá é quebrada, ‘tio’. Quebrou, vai saindo fora. Torneio, Copa da Inclusão... Esse ano eu vou jogar contra a É de Lei.
P/2 – Contra?
R – Sim. Estou pensando seriamente, eu fui convidado: “Ó, você vem para o nosso time agora.”
P/3 – Quem foi o traidor?
R – A loira falou: “Santiagua, você sempre está na Copa da Inclusão pela ONG” – que ela conhece o Tica – “vai ter um braço aberto ali para você.”
P/2 – __________
R – Eu vou apresentar não é futebol de salão, eu vou pelo dominó. Dar uma surra ali.
P/2 – Tem dominó também na Copa da Inclusão?
R – Tem. Xadrez, futebol de salão e briga (risos). Briga entre nós mesmos (risos).
P/1 – Sai mais briga por causa do dominó ou do futebol?
R – Não, de graça. Um com o outro, para discutir mesmo, aí acaba eliminado todo mundo. Todo ano é assim. Lógico, eles põem uns loucos para jogar bola. Você vai jogar bola, fazer o gol e o cara te empurra. Faz ideia do que eu faço? “Olha o que ele está fazendo.” “Deixa ele jogar.”
P/1 – Como foram essas Copas da Inclusão que você jogou?
R – É legal, eu gostei. De vez em quando eu estou participando, se eu estiver ali, em vida.
P/1 – Foi o médico que falou que você tinha oito anos?
R – É, isso aí eles falam pra mim. “Você tem oito anos de vida. Fica aí usando as suas drogas, bebendo uísque, seu Dreher.” Eu falo: “Doutor, arruma dinheiro aí para eu beber”, aí eles me arrumam.
P/1 – Eles não querem mais fazer tratamento?
R – Sim, eu faço tratamento certo. Acabei de fazer isso aqui [tira um documento do bolso], um PPD. Acabei de pegar esse exame de Infectologia, Emílio Ribas.
P/1 – É o da tuberculose que você falou?
R – É, constou um TB. Estranho, mas não vou morrer por causa disso. Posso morrer por causa da AIDS. Por causa de TB, não.
P/1 – O pessoal diz que tem coquetel. Você acha que não vai funcionar?
R – Eu deixei tudo na mão de Deus. Se ele descer daquela cruz eu bato nele e aparo aquela barba dele. Por que tu deu risada?
P/2 – Achei engraçado, acho que nunca tinha escutado ninguém falar de aparar a barba dele.
R – Ele ficaria bonito, aqueles olhos bem azuis dele. Vai dizer se é verdade? Loiro de olho azul e barbudo. Ninguém merece, isso é conto de fadas, saci-pererê, mula sem cabeça. É mentira. Vai por ti, cada um de vocês dentro de vós, não vai pelo que está escrito na Bíblia. As folhas da Bíblia é bom para fumar maconha nela, aquela folha linda, e ela cola. Folha em branco, não aquela de letrinha. Aquela você amassa e joga na cara de quem escreveu, que é tudo mentira. Assim penso eu.
P/1 – Mas você parou o tratamento? Você se tratava?
R – Não, eu continuo no meu tratamento.
P/1 – Para quais coisas você trata?
R – HIV. Estou acho que com tumor, um câncer no peito. Hepatite C... [PAUSA]
P/2 – O que aconteceu, que você caiu?
R – Quando eu levantei, cadê minhas pernas? Eu fiz assim [gesto].
P/1 – Raspou.
R – Raspei não, abri. Lá no paralelepípedo.
P/1 – Mas você sentiu a dor?
R – Não. Depois que você olha para o sangue que você sente que a queimadura está... Ó, estourada aqui.
P/1 – Você mora na rua, no Centro de São Paulo?
R – Às vezes estou na rua, às vezes no albergue. No momento estou no albergue.
P/1 – Por quê? Por causa do frio?
R – É sem-vergonhice minha mesmo. Às vezes a gente tem tanto dinheiro, né? (risos) Às vezes eu venho e mostro para ele: “Olha quanto dinheiro”, um pacote em cima da mesa. O que você vai fazer? Dar para alguém ou usufruir? Ou então vou para um hotel fazer sexo (risos). “Olha quanto dinheiro!” O que você vai fazer com esse dinheiro? É meu, é dinheiro limpo. Eu sempre falo: “É dinheiro limpo. Está aqui, ‘tio’.” Ontem me arrumaram nove mil reais. O que eu vou fazer com esses nove mil reais?
P/3 – Você emprestou?
R – Não, vai cair na conta amanhã. Amanhã não, segunda-feira.
P/1 – Como é que você foi...
R – É só eu pedir. Tem hora que eu chego e falo: “Eu quero dinheiro para usar drogas. Quero mais de dois, três mil reais. Me ajuda? Dois mil reais, ‘tio’?” Eu falo assim com meu gerente, cara de pau (risos).
P/2 – Esse dinheiro que cai agora você pediu empréstimo no banco?
R – Foi direto do banco. Vai cair... Amanhã não conta, talvez caia hoje à tarde ou segunda-feira de manhã. Só nove mil reais para eu gastar. É bom, né? O que eu vou fazer com esses nove mil reais? Uma vez subi na galeria e joguei dois mil e quatrocentos fora. Você estava nesse dia? Jogando um monte de dinheiro ali embaixo, “pá”. Estava com dezessete mil reais e jogando.
P/3 – Por que você jogou?
R – Raiva de mim mesmo. Porque é cédula, e ninguém leva a cédula. Cada vez, quando eu quero beber, eu entro em qualquer cemitério, o barulho do túmulo... Eu ou tenho um litro de pinga, ou tenho dinheiro para pegar um litro certinho. Mostro para qualquer um, para qualquer pessoa que estiver do meu lado: eu entro com a mão assim. Eu falo: “Não falei para você? Dinheiro certinho, um litro de cachaça.” Quando acontece ele responde para mim, em qualquer cemitério.
P/1 – Você não gosta de ter mais dinheiro?
R – Magina?
P/1 – Você não gosta de ter mais dinheiro do que isso? Você tinha dezessete mil.
R – Sempre é bom ter dinheiro, mas esse dinheiro nunca é só para mim. Você viu o que eu acabei fazendo ali, agora? O que foi que eu fiz? Trouxe uma marmitex quentinha, cheia. Falei: “Olha, quem estiver com fome que coma.” Apareceram dois, três lá: “Santiagua, que marmitex bonito.” “Tó, pode se alimentar.” Foi até tu que falou: “Quer que deixa lá em cima?” Eu falei: “Não, deixa os rapazes comerem, quem estiver com fome.” Eu não faço mal. Se eu deixar esse tênis ali e você roubar ele, não gosto. Eu gosto de você falar: “Me arruma esse tênis.” É seu. Tiro ele do pé agora e dou ele para você.
P/1 – É só pedir com educação.
R – É só pedir. Esse boné estava ontem do lado de um monte de caminhão do Exército, eles estavam entregando um panfleto lá e eu achei.
P/1 – Você gosta de ajudar as pessoas quando você tem como fazer isso?
R – Eu sempre ajudo o próximo. É difícil o próximo me ajudar.
P/1 – O que você sente quando você ajuda alguém?
R – O que eu sinto quando ajudo alguém? Mais uma pessoa que eu ajudei.
P/1 – Você não contou como é que você foi parar na rua. O que aconteceu?
R – Quando você tem uma família que te ama de verdade ela te apoia, principalmente quando você é o caçula. Quando sua mãe morre e você vai para a casa de um parente dela, você tem que viver embaixo de regra, em cima de regra. Comer depois do próximo, depois dos cachorros. Depois dos cachorros você tem que se alimentar.
P/1 – Quando você veio para São Paulo você trabalhava, não?
R – Eu saí fugido da casa da minha mãe adotiva.
P/1 – Sim.
P/3 – Com quantos anos?
R – Eu tinha um pouco menos de dezessete anos. Eu fiquei ainda registrado nessa empresa, quando eu voltei lá todos sabiam dessa fase de família, me pagaram certinho. Tinha fiscal, motorista, cobrador que queria que eu saísse da casa dela.
P/3 – Você estava morando onde?
R – Eu estava na casa dela morando, que ela é minha mãe adotiva. Eu chamo ela de mãe até hoje, ela é minha mãe. Hoje ela deve estar com 88, 87 anos. Margarida das Dores Januário Josué. Minha mãe é Maria Benedita Januário Santiagua, a irmã dela.
P/2 – Mas quando você trabalhou de cobrador era em São Paulo ou Piracicaba?
R – Sorocaba. Sou sorocabano, nasci em Sorocaba.
P/1 – Quando você veio para São Paulo, você...
R – Eu vim de sopetão. Eu e eu, minha cara e coragem. Meu nome é limpo em tudo: no SPC, no Serasa, em qualquer delegacia. Se alguém vir aqui encher seu saco, eu falo: “Tá comigo.” “Você é advogado dele?” “Mais do que um advogado, sou um testemunha e amigo dele. Posso ficar do lado dele?” Eu falo assim para os policiais militares. “Nossa, você é ignorante. Vai apanhar!” “Vai bater em mim? Bata.” Mas a gente fala isso com educação e sabedoria, senão eles te batem mesmo (risos).
P/1 – Você veio para cá para trabalhar ou você queria fazer alguma coisa e não deu certo? Como é que foi?
R – Nem sei o que eu vim fazer em São Paulo. A primeira vez em São Paulo eu vim com uniforme de cobrador de ônibus.
P/1 – Sei, lá de Sorocaba.
R – Sorocaba. Eu era cobrador, aí eu vinha... Tinha o motorista Romero. Deus o tenha, ele morreu num assalto de ônibus, assaltaram e mataram ele. Eu vinha e voltava, ele saiu da empresa, eu vinha e voltava. Fiquei andarilho. Eu fui para o Mato Grosso, Paraná, eu vinha a pé. Fui pra Bolívia... Até que eu encontrei uma ONG que se chama É de Lei e acabei ficando aqui em São Paulo. Já está na hora de eu, “pááá” [gesto simbolizando ir embora]. Hoje eu faço todos os meus tratamentos aqui no Hospital Emílio Ribas.
P/1 – Você conheceu a É de Lei em que ano, você se lembra?
R – Há uns quinze, dezesseis anos conheci o É de Lei.
P/1 – Te ajudou? Você acha que foi bom, foi ruim?
R – Olha, me ajudou sim. Eles me ajudam.
P/1 – Ajudam no quê?
R – Em muita coisa. Eu que às vezes saio assim, batendo a cabeça... Sai de perto. Mas me ajudam. Às vezes eles vão e me visitam no hospital quando eu estou internado, eles me acompanham até no hospital. Traz o Moisés de volta, por favor, tá?
P/4 – Ele está de férias.
R – Moisés está de férias? Obrigado. Ele me ajudou muito.
P/1 – O Moisés?
R – Marcelo o nome dele?
P/1 – Marcelo? Você fez amigos lá? Você acha que você conseguiu fazer alguma amizade?
R – Na É de Lei?
P/1 – É.
R – Você fala quem? Todos os que estão dentro daquela casa agora, no presente, fui eu que levei.
P/1 – É?
R – Fui eu que “autoconvidei”. Dos funcionários? Tenho saudades de umas pessoas ali que só voltam se eu for presidente da É de Lei. Eu sempre falo: “Eu vou ser.” Presta atenção o que eu vou fazer. Vou lá uma vez por ano, uma vez a cada seis meses, mas fique vendo o que vai acontecer. Aluguel não vamos pagar, vamos comprar tudo aquilo ali, vai ser para sempre. Doutora Sandra, pessoa que eu amo muito. Moisés, que eu adoro. Douglas, Kalil, Tica, lógico (risos). Ele estava lá ontem. Só de você que eu não gosto. Brincadeira, brincadeira.
P/1 – Você acha que você mudaria alguma coisa lá?
R – Se eu mudaria?
P/1 – É.
R – Com a ajuda deles. Queria estar comprando... Não é comprando a ONG, sendo um Deus todo poderoso, mas ele já conhece a administração, como vou mudar? E eu ficar ali com mão abanando? Comprei isso aqui, e agora? O que eu vou fazer com isso aqui? Fica todo mundo na vontade. Ah, ninguém merece. Tinha que ter alguém sério. A mesma coisa aqui, se você apagar a luz vai gravar como? Não é verdade?
P/1 – É.
R – Mas eu vou ainda ser.
P/1 – Como é que é o Centro de São Paulo? Você gosta de lá ou não?
R – Quando saio à noite, eu estou muito drogado ou bêbado. Não bêbado de trançando a perna. No Centro de São Paulo, vários lugares eu chego e falo: “Não tenho dinheiro pra tomar um Dreher, me dá um?” Muitos põem a garrafa em cima da mesa: “Beba, Santiagua.” O outro até se assusta: “Olha o que ele colocou, o dono do bar, para você beber.” “Eu sei, aqui é educação e sabedoria.” Põe do lado assim, eu bebo.
P/1 – O pessoal te conhece no Centro, Santiagua?
R – Sim. Se eu fosse tão sem-vergonha e não prestasse já tinham me matado. Isso desde 89.
P/1 – Por que desde 89?
R – Eu conheço todo mundo na calada do Centro, da noite. São Paulo é um pai, você tem que ser um bom filho. Você é carregado no braço, senão você se machuca ou acaba morrendo. São Paulo, São Paulo... A calada da noite é bom.
P/4 – Santiagua, lembro que logo que te conheci você trouxe um diagnóstico que recebeu num CAPS [Centro de Atenção Psicossocial], que falava que você era ‘polidrogado’?
R – Não era CAPS. Eu não faço tratamento em CAPS, em CRATOD [Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas]... Emílio Ribas, Hospital Emílio Ribas.
P/4 – Eu queria te perguntar qual é a sua relação com as drogas. Qual foi a primeira droga que você usou?
R – Minha relação com as drogas? Não use elas. Isso é Emílio Ribas, infecto. Isso foi hoje que eu fiz, o resultado. Sou B24. Tudo o que é B é infecto. Tudo que começa com CID B é infecto. F é Psiquiatria.
P/4 – Você lembra qual foi a primeira droga que você usou?
R – A primeira droga que eu usei foi maconha, eu tinha treze anos de idade. Quase apanhei quando cheguei em casa, já tinha passado da hora de eu ir pra escola. Quem me deu foi meu ex-cunhado, quase morri de tanto usar maconha. Quase apanhei da minha mãe adotiva.
P/1 – Mas a sensação foi boa? Você se lembra?
R – Foi horrível, porque eu estou usando até hoje (risos).
P/4 – Por que você usa?
R – Não sei se é a força do destino. O organismo pede. Às vezes eu estou assim, ó... É difícil eu fumar cigarro, fumo maconha. Não gosto da pedra. Me ofereceram hoje, agora mesmo, eu chegando na É de Lei. Fui ali para correr um pouco e o cara estava usando, estava com essas caixinhas Tic Tac, essas balinhas, com um monte dentro. “Santiagua, vamos fumar?” Falei: “Quanto é?” “Não, para você é de grátis. Vamos usar?” “Obrigado, não quero.” “E aí?” “Eu não quero, mano.” Eu não quis, até um que estava do meu lado assim: “Nossa, Santiagua, se é uns três, quatro anos atrás...” Eu falei: “É, mano. Mas não é três, quatro anos atrás, é eu aqui no presente. Não quero. Se fosse cocaína até usava, mas crack não.”
P/1 – Por que não?
R – Porque é pior. Senão eu não tinha vindo aqui, tinha me perdido. Apesar que hoje eu fumei maconha. Eu levanto três horas. Acordei um pouco, já tenho um baseado enrolado ali, dentro desse tênis aqui, dentro do maço de cigarro, dentro do albergue. Eu acendo e fico fumando na cama. Aí outro vem... Quando vê: três, quatros horas da manhã, aí nós cochilamos um pouco. Outro já vem e põe o colchão do lado, outro já vem e põe o colchão assim. E...
P/1 – Vocês vão passando.
R – Principalmente o quarto que eu estou, parece que está tudo entre família. Porque o resto nós fala: “Não, não, não, não, não. Vai, vai, vai, vai pro outro quarto. Vai tio, vai tio. Vai, vai, vai, vai.” Nós fala bem assim: “Vai, vai, vai, vai. Deixa nós em paz aqui. Todo mundo aqui é maconheiro. Vai, vai. Vai! Por favor.” “Vou lá chamar Fulano.” “Chama.” Fulano vem: “Tio, tio, tio. Ó, põe ele em outro quarto.”
P/1 – Que outra coisa você já usou?
R – De vez em quando eu uso Viagra (risos). Ele deu risada! Por que você deu risada?
P/1 – Achei que você nunca tinha usado, não sei.
R – É da hora.
P/1 – É?
R – Fica muito excitado, só que fica assim ó. Por exemplo, eu: parece que isso daqui vai pular, assim.
P/1 – Dá uma arritmia?
R – Arritmia, e muito. Eu falei: “Nossa, para com isso.” Para quem é cardíaco e usa essa droga, em vez de beber com água eu bebo com uísque. É errado.
P/1 – Você gosta de beber bastante também, né?
R – Eu não bebo, eu consumo, principalmente uísque e Dreher. Eu consumo, mas não fico bêbado, fico embriagado. Bêbado... Já viu eu bêbado?
P/4 – Já.
R – É chato, né? (risos) Quer discutir com um, com outro. Entre aspas só… Discuto mesmo, falo a verdade, solto a voz. Eu falo: “Para eu estar indo ali vou ter que beber.” Porque já era para eu ter vindo umas três vezes. Eu falei: “Qualquer hora eu vou.”
P/5 – Você falou que conhece a É de Lei há mais de quinze anos?
R – Dezesseis anos.
P/1 – O que é redução de danos pra você?
R – Antes de eu chegar na É de Lei eu não tinha AIDS, eu não estava com Hepatite C. Eu não soube para mim o que é redução de danos. Se eu tivesse pegado um pouquinho desse provérbio eu não estaria com todas essas tranqueiras no meu corpo. Hoje falaram que eu estou com tuberculose. Como estou com tuberculose? O outro falou que eu estava com sífilis. Eu falei: “Não deu nada para sífilis, não. Pô, estou tomando remédio pra sífilis.” “Você não tem nada não.” Que nem esse daqui: de repente eu estou tomando um remédio que, Emílio Ribas... Eles querem sempre tirar um pedacinho do meu fígado, abrir o meu pulmão... Eu sou cobaia do Emílio Ribas. Eu assinei e carimbei um papel lá. Vou ser cobaia de um remédio. Estranho, por que eu assinei esse papel? Ninguém me forçou.
P/1 – Você gosta mais de fumar maconha ou de consumir álcool?
R – Nossa, você jura que empatou? (risos) Você deu empate entre maconha e o álcool.
P/1 – Você começou primeiro com maconha ou com álcool?
R – Com maconha.
P/1 – Com maconha?
R – Com álcool... Acho que foi os dois ao mesmo tempo, porque quando eu era criança eu tomava caipirinha no fundo do copo da minha mãe. Ela tomava uma caipirinha feita com limão de casa, aquela verdadeira pinga. Não sei, eu prefiro... eu prefiro Dreher, uísque.
P/1 – Como você chegou no Dreher e no uísque? Você bebia cerveja?
R – Isso vem do álcool, né, ‘tio’. Ninguém merece tomar cerveja, dá uma mijação. Cerveja é horrível. Eu prefiro pinga, Dreher ou uísque. Ou vinho. Esse aí briga comigo. Um dia sim, um dia não eu estou aparecendo ali com um litro de vinho, aí eu saio, volto e pego outro. Às vezes eu esqueço e entro lá na ONG com o litro de vinho. “Ah ‘tio’, me desculpa!” Às vezes eu me esqueço mesmo, não é que dando pontapé na bunda... Às vezes, com o litro na mão, com o copo, eu esqueço. Saio lá fora: “Ah, me desculpa.” Não é que “Ah, não vou entrar, não.”
P/1 – Você falou que não usa crack porque senão você não estava aqui hoje. Você já viu muita gente numa situação ruim por causa disso?
R – Eu já. Muitas pessoas que estavam em situação ruim, que hoje... Ontem mesmo eu vi um, fiquei de cara com ele. Era noia, de coberta nas costas... Era horrível. Ontem eu vi um garoto, ele tem 27 anos. Quantas vezes nós não fomos zoar em hotel, em outras baladas? Ontem, quando eu olhei para ele, ele parou na minha frente, eu não acredito: “Aí, Santiagua.” “Sou eu mesmo.” “Parabéns para você. Está forte, está bonito, uma pessoa robusta.” Falei: “Sou mesmo.” Trabalhando, quem diz? A força, o caráter e muita coragem pra sair, porque eu falo que qualquer um aqui – nós estamos em cinco pessoas –, se eu falar assim: “Eu tenho droga para eu usar ali, mas não tenho dinheiro.” “Tá pago.” “Como está pago?” “Tá pago.” Eu ia falar: “Chega aí, cara. Chega, vem com as drogas aí.” “Como, Santiagua?” “Venha, tá me devendo.” Sem querer. O que você acha, que muitos vêm atrás de mim ali... Você não vê que às vezes eu estou na É de Lei? “Vamos ali comigo e tal.” Esvazia. “Vai, Santiagua.” Você esvaziar a É de Lei é você, às vezes, se retirar. Um monte de gente atrás de mim, umas que eu convido, umas pessoas que eu gosto. Outra vez, eu saio lá fora e eu falo para cada um: “Rapazes, querem comer alguma coisa e depois usufruir a droga?” Pode perguntar para o Wagnão, para o Anderson. Santiagua é assim mesmo. Pede dinheiro para mim, eu dou o dinheiro, emprestar. Não é dar dinheiro: eu dou dez, quinze, cinco reais. “Está achando que eu sou louco? Me dá de volta meu dinheiro. Agora sou louco. Você não, só porque você falou que eu sou louco.” Eu falo assim: “Se eu sou louco, estou dando dinheiro pra você, está me chamando com cara de louco?” “É que você deu dez reais para um, vinte para outro, quinze para outro. Isso é loucura.” Não é loucura: “Então me dá seu dinheiro, você não tem nota. Deixa a loucura.”
P/1 – Você acha que as pessoas tinham que ser mais generosas umas com as outras?
R – Não. A generosidade está no caráter de quase qualquer um, a humildade também. A partir do momento que você pisar no meu pé e você não pedir desculpa, tudo bem, não vou falar nada para você. Amanhã, se eu pisar no seu pé e você falar alguma coisa para mim, eu te chamo a atenção: “Pô, você pisou no meu pé ontem e não falou nada, portanto estou te dando o troco.” Eu estou sendo mais sem educação do que você, entendeu a teoria? Pisar no pé do outro, peça desculpa. Desculpa aqui, por favor, obrigado, bom dia e com licença é um pacote que vem junto com a humildade, sabedoria e perseverança, com todos. “Com licença.” “Pois não.” Às vezes tem pessoas no meio da calçada conversando – nem é para eles estarem conversando ali –, eu olho, nem sei quem é: “Por favor, com licença.” Eles se afastam: “Pois não.” Educação vem do berço, faz viver um pouquinho mais e alegra o próximo. Você passar no meio de uma conversa e falar “Com licença, por favor” alegra o próximo. A porteira não abriu, a pessoa está passando ali com educação.
P/1 – E não custa nada, também.
R – Isso vem da EMEI. O que é EMEI? Escola Municipal [de Educação] Infantil. Eu fui dali, tive esses __________.
P/1 – Santiagua, você imagina em que momento você pegou cada uma dessas doenças que você está hoje?
R – Se eu soubesse quem é que passou para mim essa doenças, umas vezes eu pensaria em atormentar a vida dele para sempre – não matar, mas pelo menos deixar aleijado –, e outras vezes falar para a pessoa não fazer mais isso, que é errado.
P/1 – Você não faz ideia de como é que foi.
R – Amigo, eu sou criado na calada da noite de São Paulo. Eu sei tudo na calada da noite. Já vi tanta morte, tanta coisa na minha frente.
P/1 – Você acha que lutou muito contra essas doenças?
R – Eu luto tudo contra tudo, mas deixo na mão de Deus. Eu volto a dizer: tentei o suicídio três vezes, nem o capeta me quer. Não que eu seja ruim, às vezes tem um lugar melhor pra mim. Eu me batizei nas águas, candomblé, umbanda. Tem isqueiro? Eu tenho um isqueiro [estende o braço]. Quer ver sobrenatural? Você quer ver sobrenatural?
P/1 – Pode ser.
R – Quer ver?
P/1 – Quero ver.
R – Então tá bom [acende o isqueiro]. Isso aqui é... E pode tacar fogo [passando a chama no braço].
P/1 – Você não sente?
R – Ó.
P/1 – Você não está sentindo nada?
R – É um plasma, só vai dar uma bolha amanhã. Uma bolhinha. Um cheiro, né? Agora nesse braço, não: eu fiz uma fez aqui e só coça. Essa aqui é diferente: apagar cigarro, pegar pó de cigarro, colocar, deixar queimar. Pode ver, olha o jeito que já ficou. Não é nada, amanhã só levanta uma bolha. Passo agulha de um lado para o outro no corpo. Agulha sem linha, tá? Assim que fica. Isso aqui, tudo isso é... Viu?
P/3 – Por que você faz isso?
R – Ai que está: qual a razão? Fedeu [cheira o local queimado]. Fedeu. Não sei por que eu faço isso. Faço porque não sinto dor, que isso aqui, ó [esfrega as mãos].
P/1 – Você não sabe?
R – Que nem o __________. Quando eu fico assim eu tento tomar AAS. Eu fiz isso no hospital ali, e eles: “Não, já põe ele ali.” Fiquei lá seis horas tomando sorinho. Eu falei: “Doutor, olha o que eu faço” [gesto de acender o isqueiro no braço]. Ele ficou olhando assim: “Ele está tacando fogo no corpo dele. Vem cá, leva ele na Enfermaria e dá um AAS pra ele”. Eu me trato com ele desde 2002, melhor médico que existe, de vez em quando ele sai na Globo. Quando ele não quer arrancar um pedaço do meu fígado.
P/1 – Você acha que não consegue se curar mais?
R – Não tem cura, eu estou morrendo.
P/1 – E se você pegar esse dinheiro e tentar fazer alguma coisa?
R – Fazer o quê, dar para o próximo? É o que eu faço. Eu vou fazer o quê com esse dinheiro, nove mil reais? Usar tudo em drogas? Tsc tsc tsc. Às vezes eu compro cesta básica e levo para a favela. Agora, nas favelas, se eu chegar e falar: “Estou com fome”, muitos abrem a porta para mim, quase todos. “Chega aí, Santiagua. Está com fome? Beba, coma. Quer usar droga?”
P/1 – Como é que você quer passar esse tempo, então?
R – Esse tempo? Que tempo? Eu já passei meu tempo aqui, estou com 45 anos. Chega, né? Para mim, chega. Eu estou preparado para a morte, só não quero uma morte morrida. Sabe morte morrida? O que é uma morte morrida?
P/1 – Quando alguém te mata, né?
R – Do contrário. Foi meu pai com 33, minha mãe com 36, minha irmã com 34, meu irmão com 29, minha outra irmã com 34. Ninguém merece. Estou com 45, minha irmã Célia está com 48, uma está com cinquenta. José Luís deve estar com 49, cinquenta anos. Se ele souber o que eu estou passando aqui em São Paulo ele bate em mim – entre aspas, né. “Onde que você está morando?” “Na rua.” “Onde está morando?” “No albergue.” “O que você está fazendo?” “Bebendo muito e usando drogas.” “Você vai ter que apanhar.” É, ele fala assim. Não preciso nem falar se ele é irmão meu, sim ou não? Só olhar para a cara minha e para a dele, vai falar: “Ninguém merece vocês dois. Ó a cara de vocês dois!” Os meus sobrinhos, então... Olhar para cara dos meus sobrinhos. Eu falei que qualquer hora eu vou trazer o Marcelo Augusto Santiagua. Dois bebês lindos que eu tenho ali, um de dois metros e 19 e outro de dois metros e 20 de altura. São meus, sou tio deles, o melhor tio que existe na face da terra e de toda família. Eu vou lá a cada dez, oito, cinco anos. Tem que ser mesmo, quando vai lá, presente para todo mundo. Nunca vou de graça na mão de parente meu, pelo menos uma caixa de chocolate. O café da manhã é uma caixa de chocolate, ó eu aqui. Hoje os parentes meus, quando eu chego, põem o tapete vermelho pra mim. Os outros falam: “Nossa, Santiagua. Você não vem aqui, mas o que essas pessoas estão fazendo por você?” “É, você vê.” “Fica aqui dez dias só.” (risos) Entendeu? Não fico.
P/1 – Você tem algum sonho hoje, Santiagua?
R – O sonho? O sonho meu, a realidade, é acordar e amanhecer amanhã. Que ninguém me acorde, que ninguém me perturbe e amanhã eu posso levantar e falar: “Bom dia.” Posso estar com dor de dente, dor de cabeça e falar: “Bom dia.” Todos os que estão ao meu lado eu respondo. Eu estou num galpão ali no albergue, nesse quarto que eu estou, todos me dão bom dia. “Bom dia, Santiagua.” “Bom dia.” “Chega, Santiagua, vem cá. Você quer fumar? Quer cigarro? Ó, tem doce aqui, comprei um monte de doce.” Às vezes eu olho e falo: “Nossa! Deixa eu voltar para a cama de novo.” (risos) “Calma, deixa eu voltar de novo. “E aí, tudo bem?” “Tudo bem, Santiagua.” “Vocês estão tudo conjuminado aí, né? Vocês estão bem?” “Estamos, Santiagua. Você está bem?” “Estou. Por quê?” “Por nada, não”. É estranho, né? Mas dá pra ver que não é falsidade.
P/5 – Você tem vontade de encontrar seus parentes hoje?
R – Tsc tsc tsc. Eu não preciso deles, de jeito nenhum.
P/1 – Do que você precisa?
R – Preciso do senhor, ‘tio’. De uma pessoa que nem o senhor [aponta o dedo para o integrante do É de Lei]. Não preciso deles. Nem quero.
P/1 – No que o André é diferente dos seus parentes?
R – Para mim?
P/1 – É.
R – Para mim está acima dos meus parentes. Eu posso ir com ele ali, perante qualquer parente meu e falo: “Está acima de vocês, ó.”
P/1 – Ah, é?
R – Com certeza. Não é na frente da câmera, falo assim até longe da câmera. Eu falo para o Wagner, eu falo para a Bruna. É de Lei, para mim, está acima de qualquer parente meu. __________ Fica para lá, vou conversar com ele e depois conversar com vós.
P/1 – Você gostou de conversar com a gente? Como é que foi?
R – Pra mim foi um desabafo. Desabafando e, como sempre... ‘Tio’, vamos embora? Quero beber. Por favor.
P/4 – Você tem algum arrependimento na vida?
R – De eu ter nascido. Eu não pedi para nascer. Eu não pedi para vir nesse mundo. Também não tenho medo da morte, nem um pouco. Eu não. Vamos, ‘tio’? Vamos embora, por favor.
P/1 – Vamos. Obrigado, Santiagua.
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