Programa Conte Sua História
Depoimento de Márcio Gonçalves
Entrevistado por Denisse Cooke e Carol Margiotte
Campinas, 24 de abril de 2018
Entrevista número: PCSH_HV650
Realização: Museu da Pessoa
Revisado e editado por Bruno Pinho
P/1 - Bom dia, Márcio.
R - Bom dia.
P/1 - Obrigada por nos convidar aqui para a sua casa, tão gostosa, para te entrevistar.
R - Imagine.
P/1 - Vamos começar falando o seu nome, local e data de nascimento.
R - Eu me chamo Márcio Fernandes Gonçalves, sempre morei em Campinas – estamos aqui agora – e nasci em 1992, dia 19/06.
P/1 - E você sabe a história do seu nascimento, do dia que você nasceu?
R - Na verdade, eu sou a segunda gravidez da minha mãe – ela perdeu o primeiro filho. Foi tranquilo, pelo que eu sei, pelo que me contaram foi uma gravidez tranquila. Demorei para nascer, passei dos nove meses, quase dez. E pelo que ela me contava, dentro da barriga eu gostava de ficar no sol. Eu ficava bem quietinho e, quando ela me colocava no sol, eu ficava meio agitado. Não sei se eu estava gostando ou se estava odiando, mas eu respondia aquilo. Teoricamente foi tranquilo, foi um parto normal e foi bom. Não foi uma gravidez de risco, não foi nada disso.
P/1 - E qual o nome dos seus pais?
R - Minha mãe se chama Marislei e meu pai se chama Geraldo.
P/1 - E você sabe como eles se conheceram?
R - Em passeatas de política.
P/1 - Conte-nos.
R - Na verdade, eu não sei se foi por isso, mas eles sempre fizeram esse tipo de coisa na época deles. Eles iam para passeatas, para protestos, iam para essas coisas e meio que se conheceram nisso. Minha mãe, na época, se eu não me engano fazia CEFAM – estava estudando para ser professora –, meu pai eu não lembro o que fazia na época. E o que me disseram foi que meu pai queria ficar junto com a minha mãe, só que ela não queria, então, ela enrolou ele um bom tempo. Depois de muita insistência, eles acabaram ficando juntos. Tanto que eles se casaram escondidos dos meus avós. A minha mãe sempre foi muito decidida, então, ela falou para o meu pai: “você quer casar”? O meu pai falou: “eu quero”. “Você quer ter uma vida”? “Quero”. Então, ela: “vamos nos casar hoje”. Eles foram em um cartório, casaram-se e depois de uma semana que foram falar para o pessoal que estavam casados.
P/1 - E por que isso? Os seus avós não queriam?
R - Não, eles até gostavam do meu pai. Não tinha nada contra, em nenhum dos lados da família. Foi mais por: se quer isso agora, então, será agora. Não vamos deixar para depois, vai ser agora mesmo.
P/1 - E fala um pouco mais desse ativismo político deles: você conhece alguma coisa?
R - Quando eu nasci eles já não eram tão ativos assim. Mas eles sempre iam para qualquer tipo de passeata para ajudar a população, para ajudar o povo, eles estavam lá, estavam presentes. Tem uma história que minha mãe conta, que ela disse para a minha avó que ia estudar na casa de alguém e minha avó viu ela em uma reportagem que estava passando na televisão. Então, meio que é isso. Depois rolou uma briga entre famílias lá, mas foi bem isso. É que meu pai e minha mãe, os dois sempre foram bem decididos, nunca dependeram de ninguém, sempre tiveram a postura de: eu sei o que estou fazendo. Então, meio que bateu, os dois combinam um pouquinho, estão juntos até hoje.
P/1 - E fale um pouco dos seus avós.
R - Por parte de mãe, minha avó por parte de mãe está viva ainda, o meu avô faleceu ano passado. O meu avô sempre foi bem firme – o pai da minha mãe –, mas isso com os filhos, em relação aos netos nunca foi nenhum problema. Tinha bastante netos – na época, se não me engano, eram uns cinco, seis, que viviam lá, todo domingo estavam lá presentes – e ele tinha um bar, então, nós abusávamos até – de pegar doces, comer as coisas e pegar tranqueiras do bar. Então, ele nunca foi, ele tinha aquela postura de autoridade, mas na hora que você pegava para brincar, ele era todo mole por dentro. Minha avó também, até hoje ela sempre foi carinhosa com todo mundo, sempre ajudou todo mundo. Por parte de pai, eu não conheci meu avô por parte de pai – quando eu nasci ele já tinha falecido – e a minha avó é superativa, vem aqui de vez em quando para brincar, dançar, essas coisas. Nós sempre fazemos festinhas e minha avó está sempre presente. A minha bisavó ainda está viva, 90 e tantos anos – 94, se não me engano –, e também, vira e mexe ela quer levantar, quer dançar, se deixar ela vai. O pessoal é sempre bem animado aqui.
P/2 - Qual o nome deles? De todos os avós.
R - Minha avó por parte de mãe é Maria Aparecida – não, Maria das Dores, minha mãe que é Aparecida –, meu avô era Natalino Fernandes – ele nasceu no Natal, foi por causa disso –, minha avó por parte de pai é Maria Geralda e meu avô, se não me engano, era Sebastião.
P/1 - E o que a sua bisavó conta de história? Você tem alguma história de família?
R - Ela é bem para a frente, entre aspas. Hoje ela está bem quietinha, já está com mais de 90 anos, então fica mais na dela, mas como ela vinha de problemas de memória, essas coisas, vira e mexe passava um homem perto dela e ela já queria mexer – eu, meu pai, todo mundo. Então, ela sempre foi meio ativa também, nunca dependeu de ninguém, nunca ficou na dela. Ela sempre foi para a frente. Eu não tive muito contato com ela antigamente, nós começamos a ter mais contato agora que ela está mais dependente e minha avó está cuidando dela – minha avó e minhas tias -, então agora ela está mais próxima, mas ela sempre morou sozinha, sempre teve a casa dela, sempre foi independente também. Agora, por forças maiores, ela precisa de um pouco mais de ajuda. Então, é isso: eu sempre gostei da presença delas por ser engraçado, por ser legal. Nunca foram de reclamar, de nenhum dos lados, nunca foram de criticar. Foram só de aproveitar mesmo.
P/1 - E o que você lembra da sua infância?
R - A memória que eu tenho mais forte da minha infância é de ficar brincando no quintal. Nós, eu nunca tive muita liberdade para sair – não pelos pais, mas porque nós sempre fomos mais caseiros -, então sempre teve um quintal grande, nós sempre aproveitamos a casa. O que eu mais lembro é de ficar brincando aqui. Não tinha nada disso, era tudo terra, era tudo lama. Minha mãe brincava muito na lama comigo. Tem uma história, que minha mãe também conta, que vira e mexe meu pai chegava do serviço e estávamos eu debaixo da lama, minha mãe debaixo da lama, todo mundo sujo. Ele queria saber o que estava acontecendo e ela disse: “só estou brincando, deixe ele brincar”. Então, a maior parte das lembranças que eu tenho é desses momentos em casa mesmo. Teve os momentos da escola? Teve, mas o que mais me marca é quando nós estamos em família, quando nós estamos juntos. É bem legal.
P/1 - Fale do nascimento da sua irmã.
R - Minha irmã nasceu em 2000, foi cesariana. Ela, por outro lado, nasceu antes do tempo, porque meu pai estava muito ansioso. Então, ela nasceu com oito meses, se não me engano. Estava normal, não teve complicações também, mas meu pai colocou na cabeça que minha irmã tinha que nascer e meio que nasceu porque tinha que nascer. Teoricamente seria um parto normal, estava tudo caminhando para isso, mas acho que depois do oitavo mês minha mãe começou a ter mais contrações – com um pouco mais de frequência -, mas segundo o médico não ia nascer. Era teoricamente normal, era só algum espasmo de alguma coisa – não entendo muito -, mas meu pai colocou na cabeça: “não, ela vai nascer. Eu não vou sair do hospital enquanto ela não, não vou sair do hospital sem a minha filha no colo” – isso que ele falou. Então, minha mãe: “Beleza”. Concordou, fizeram a cesariana e minha irmã nasceu, mas até que foi tranquilo.
P/1 - Você lembra do dia que a sua mãe te contou que você ia ganhar um irmãozinho ou irmãzinha?
R - Lembro.
P/1 - Como foi?
R - Foi, na verdade ela contou e foi normal: não fiquei tão pilhado, tão emocionado. Acho que eu fiquei mais animado quando ela falou que era menina, porque aí ela veio para decidir o nome. Tinha três opções de nomes: Laura, Leda e Lara. Eu e meu pai escolhemos Lara, só que ela falou que não, porque a filha era dela, então ela ia colocar Laura mesmo. Foi um momento engraçado, nós brincamos com isso até hoje. Porque ela veio com uma porção de opções e nós ganhamos, mas ela falou: “não, está dentro de mim, então eu que vou mandar aqui”. Foi legal. Não teve muitas complicações, a gravidez foi legal, nós brincávamos bastante. Eu conversava bastante com a barriga da minha mãe quando era criança. Nós sempre tivemos, ela sempre falou que a criança escuta, mesmo estando dentro da barriga. Tanto que minha irmã reconheceu a minha voz quando nasceu. Ela viu, veio no meu colo, foi legal, foi bem gostoso.
P/1 - E como foi o dia que ela trouxe a sua irmã para casa? O que você sentiu?
R - Eu achei que era uma boneca, porque, não sei, eu acho que tinha acabado de chegar da escola – ela estava no hospital – ou estava brincando, eu estava cansado na época, no dia. Ela veio carregando a minha irmã, eu achei que era uma boneca e falei: “está bem, beleza”. E fui dormir, fui deitar, fui fazer alguma coisa. Depois que eu fui ver que era a minha irmã mesmo: “nasceu, finalmente. Já estava demorando”. Foi engraçado.
P/2 - Mas antes de a sua mãe engravidar já tinha uma expectativa sua?
R - Sim. Com seis anos eu comecei a pedir irmão/irmã – eu queria ser tio. A minha preocupação, na época, era que eu ia morrer e não ia ser tio, então eu comecei a pedir. Na cabeça dos meus pais a ideia era ficar só comigo, não era para terem outro filho. Tanto que minha mãe, nesse meio tempo, teve uma complicação, tirou acho que um dos ovários e, teoricamente, não daria mais para engravidar. Insistência ou sorte, ela acabou engravidando depois que eu comecei a pedir, mas em princípio era para ficar só comigo, não era para ter duas crianças.
P/1 - E essa coisa de querer ser tio. Na sua cabecinha de seis anos, o que significava isso?
R - Eu não sei. Na verdade, quando era criança, eu sempre fui o mais novo, entre aspas. Eu tinha alguns primos, mas eles eram mais velhos, a minha tia – irmã caçula da minha mãe – era mais nova, tinha mais ou menos a nossa idade e brincava conosco também. Eu via todo mundo muito mais velho que eu, eu era muito cuidado por todo mundo, então acho que era isso: “eu quero cuidar de alguém também, eu preciso cuidar de alguém, não quero ser cuidado para o resto da vida”. Acho que foi isso. E era sempre – eu tinha muitos tios, minha mãe tem mais cinco irmãos, meu pai tem mais três – tio, tio e tio. Então, eu falei: “como assim eu não vou ser tio”? Para mim era uma etapa da vida, eu tinha que ser tio de alguma forma. Nisso eu comecei a pedir, comecei a falar que eu precisava de um irmão, porque eu tinha que ser tio, senão eu ficaria sozinho, não teria irmão, não teria sobrinho. Filho eu nunca pensei em ter, mas sobrinho eu queria. Isso era importante.
P/1 - E depois que a sua irmã chegou em casa, como você se sentiu? Você sentiu ciúme, se sentiu deixado de lado? Como ficou a sua rotina depois disso?
R - Senti, mas foi muito breve. Foi coisa de uma semana, pelo que minha mãe fala. Fiquei um pouco chateado porque, teoricamente, todo mundo ficava em cima da minha irmã, mas depois ela explicou: “você já teve o seu momento, você já passou por isso, agora é a vez dela. Ela tem que aproveitar, ela é dependente, ela precisa”. Acho que eu recebi bem. Depois que ela falou isso, ela disse que eu já tive esse momento, foi legal: “ok, eu já passei por isso. Não lembro, mas, se ela está dizendo, então passei. Deixa ela aproveitar o tempo dela”. Depois disso eu comecei a aproveitar mais a minha irmã. Tanto que teve uma época que eu peguei ela e acabei deixando cair. Não machucou, não aconteceu nada, mas eu fiquei muito mal, chorei quase uma semana, porque achei que tinha machucado a minha irmã: “O que foi que eu fiz? Pedi para segurar ela no colo e acabei deixando cair. Que responsabilidade eu tenho”? Então, foi legal, foi gostoso. Nunca senti ciúmes. Hoje ela está namorando e eu também não sinto tanto ciúmes. Nós sentimos o cuidado, queremos cuidar, achamos que pode acontecer alguma coisa, mas ciúmes não, nunca tivemos.
P/1 - E me fale da sua escola. Você tem alguma memória marcante da escola ou de alguma professora?
R - Teve a primeira professora, que era a Marta. Na verdade, a Beth, que foi a do infantil, que foi o primeiro contato com escola. Acho que eu tinha seis anos. Eu gostava bastante dela, ela sempre foi bem atenciosa. Uma memória que eu tenho muito forte é que teve uma atividade que, teoricamente, teria prêmios. Acho que tinha que acertar cores, alguma coisa assim, eu ganhei uma massinha e fiquei superfeliz. Falei: “ganhei. Eu sou muito legal, eu sou sensacional. Ganhei”. Acho que isso que me marcou mais. Depois eu fui para o pré, e aí eu lembro mais da relação de amigos, porque tinha um dos vizinhos – que morava aqui também – que estudava comigo, então nós meio que crescemos juntos. Hoje nós não temos mais tanto contato, mas na época da infância era um na casa do outro quase todos os dias. Era meio que regrado: toda hora nós estávamos juntos. Depois, da primeira série até o colegial foi meio que – não, até a quinta série – experiências novas. Na quinta série, se não me engano, teve uma apresentação de planetas, que tinha que apresentar o sistema solar. O processo todo de criar o sistema solar, de montar a maquete, foi tudo muito legal. Isso me marcou também, porque é um assunto que eu gosto, eu gosto muito. Então, foi gostoso de aprender, foi gostoso de explicar, foi gostoso de ensinar. Acho que é isso.
P/2 - Sempre na mesma escola, Márcio?
R - No infantil eu estudei no Snoopy – não, ao contrário -, no infantil eu estudei no Branca de Neve, no pré no Snoopy, da primeira a oitava foi na mesma escola, Andre Tosello, no primeiro e segundo anos foi em outra e no terceiro – o terceiro colegial – eu terminei em outra escola, na ETEC Bento Quirino. Depois faculdade.
P/1 - E nessa fase o que você queria ser quando crescesse?
R - Mecânico. Na minha cabeça eu sempre queria ser mecânico, tanto que eu ficava desmontando todas as coisas. Nós estávamos procurando as fotos de quando nós éramos crianças e tem algumas nas quais a parede está cheia de buracos. Minha mãe fala que eu estava tentando arrumar a parede com chave de fenda, então eu furava toda a casa. Tem registros disso, é engraçado.
P/1 - Qual a profissão do seu pai?
R - Meu pai sempre foi metalúrgico, sempre trabalhou na produção. Na verdade, não sempre, mas desde quando eu nasci, se não me engano. Ele trabalhava na Dako – que era a empresa de fogões -, mudou para a Mabe, mas sempre foi dessa área de produção.
P/1 - Então, querer ser mecânico não foi, necessariamente, uma influência do seu pai?
R - Não, eu só achava legal consertar as coisas, arrumar as coisas. Ele sempre – não pela profissão dele, mas por aquela questão de independência – construiu tudo o que precisava, sempre arrumou tudo o que precisava, então acho que foi influência dele sim, mas pelo que ele era, não pelo que trabalhava. Eu achava genial: você quebra um negócio, vai e conserta por conta própria; você precisa de algo e dá um jeito de fazer aquilo funcionar. É uma influência dele sim.
P/1 - E o processo de construção da casa? Porque ela está sendo construída desde que você nasceu.
R - Desde sempre.
P/1 - Conte-nos como foi viver nesse processo. Você ajudou a construir?
R - Sim. Foi sim, desde que eu nasci a casa está em construção. Hoje, teoricamente ela está sendo terminada, mas nunca acaba. Sempre tem um negocinho a mais para fazer. Quando era criança eu ajudava, mais atrapalhava do que ajudava, porque queria estar perto, mas também não podia fazer muita coisa. Depois de um tempo, quando nós começamos a criar mais maturidade, nós ajudamos. Começamos a criar mais força, literalmente, para poder carregar peso, para poder ajudar nas coisas.
P/1 - Fale para nós da sua adolescência.
R - Adolescência. Nós, na verdade tanto eu quanto a minha irmã – que acabou de sair dessa fase – nunca tivemos essa, eu não sei explicar, nunca passamos por essa rebeldia que a maioria das crianças tem, que os adolescentes têm. Nós, minha mãe sempre foi bem clara conosco. Ela nunca foi fantasiosa, sempre falou que, por exemplo: “Papai Noel não existe. Nós que compramos, nós que trabalhamos para comprar presente”. Nós temos toda aquela ambientação do Natal, mas sobre o que acontece, de verdade, ela sempre foi clara. Páscoa também, tanto que nós estávamos vendo as fotos – várias lembranças – que ela fazia pegadas para nós, na época da Páscoa, para nós acharmos os ovos, mas ela falava: “isso aqui, eu que estou fazendo a pegada”. Eu só queria brincar, eu não queria nem saber. A minha irmã sempre foi mais questionadora: “isso aqui é de verdade”? “Não, não é”. “Então, está bem”. Ela sempre queria saber, por conta própria. E a minha adolescência foi tranquila. Com 11 anos eu comecei a praticar basquete. Acho que, em relação ao esporte, isso ajudou bastante, porque, queira ou não, você tem que ter disciplina, tem que saber se portar, tem que saber perder, tem que saber ganhar. Então, me ajudou bastante e foi mais ou menos na mesma época que eu também entrei no projeto, com 11 anos. Queira ou não, essa maturidade veio um pouco mais cedo: saber que não dá para ter tudo que se quer naquela hora. Você tem que saber que você tem que merecer o que você quer. Em relação à adolescência, foi uma fase gostosa, porque, queira ou não, nós saíamos, nós brincávamos, nós passeávamos mais sem a presença dos pais, nós tínhamos toda essa convivência com outros adolescentes – eu achava um pouco bobo, mas ok, nós tínhamos que conviver, é importante. Foi legal. Com 14 anos acho que eu comecei a namorar pela primeira vez. Ela treinava junto comigo no basquete. Foi uma experiência nova, a primeira relação de amorzinho, de sentimentos: “por que isso está acontecendo”? Foi tranquilo, não teve muitas dificuldades. Queira ou não, agora em relação à dermatite, na adolescência nós ficamos um pouco mais ansiosos, pelo menos no meu caso. Eu era um pouco mais ansioso, um pouco mais imediatista. Aí eu comecei a entender mais o que era a minha dermatite e foi legal aprender a controlar, aprender a lidar com isso. Tanto em relação amorosa, porque, por exemplo, se eu fico muito ansioso, se eu fico muito frustrado ou se eu fico muito irritado, o meu problema ataca. E isso vira um ciclo vicioso, porque quando ataca você vai ficando ansioso porque está atacado. Vai virando esse ciclo. A experiência mais legal foi aprender a me conhecer, para poder: “ok, isso que aconteceu não foi legal? Paciência, você precisa aprender a lidar”. Acho que, tanto o basquete quanto o projeto, me ajudaram muito a ter um autocontrole sobre sentimentos, essas coisas: é importante sentir, mas se deixar também é prejudicial, isso vai te prejudicar. Nada que seja extremo vai ser bom, então vamos manter o equilíbrio das coisas. Acho que, na fase da adolescência, isso foi o mais importante para mim. Foi a época que eu comecei a entender o peso das consequências das coisas: se eu fizer algo, isso impactará em alguma coisa. Independentemente do que seja, sempre impactará em alguma coisa. Foi meio que um autoconhecimento para mim mesmo.
P/1 - Vamos aproveitar esse gancho e vamos falar da dermatite, já que você mencionou.
R - Sim.
P/1 - Quando foi a primeira vez que você tomou conhecimento da dermatite? Você lembra?
R - Eu já nasci com dermatite. Desde sempre eu tive, desde criança eu já apresentava esses indícios de dermatite. Então, meio que eu vivi com ela a vida inteira. Eu sempre tive, desde a primeira série, desde a primeira brincadeira com pessoas. Eu sabia que eu era, entre aspas, diferente, porque eu tinha problema de pele e era visível, era bem marcante. Isso foi um trabalho da minha mãe também que me ajudou, porque ela sempre disse: “você é diferente, mas ser diferente é normal. Isso é ok, não precisa se preocupar com o que os outros vão falar, com o que você está vendo de diferença”. Então, eu sempre tive essa ciência de que a dermatite estava comigo, eu não tinha o que fazer. Ok, tinha tratamento, mas nunca era 100 por cento eficaz. Amenizava? Amenizava, mas ela continuava ali. Eu sempre tive esse contato: sempre tive ciência de que eu tinha dermatite, eu tinha um problema de pele que as outras pessoas não teriam, pelo menos a maioria delas não teria.
P/1 - Mas nessa fase, na primeira série, de que maneira a doença afetava a sua vida?
R - Geralmente em trabalhos, quando eu tinha que apresentar alguma coisa, ou quando a situação em casa não estava muito boa. Queira ou não a criança sente, ela fica mais, ela sabe que não está normal. A minha dermatite é muito psicológica: quando eu estou triste, quando eu estou ansioso, como eu disse, tudo que está negativo no meu psicológico vai afetar. Eu sei que ele vai, de alguma forma. É só esperar, vai transparecer na minha pele todo o negativismo que eu estou sentindo. Assim como a minha mãe sempre deixou muito claro que eu tinha dermatite e que isso era normal, sempre teve pessoas que, principalmente naquela época, não entendiam o que era, achavam que era qualquer outra doença contagiosa, tentavam não manter contato, tentavam manter distância. Ok, era frustrante? Era frustrante, mas paciência, eu entendia que a outra pessoa não entendia o que eu tinha. Então, eu não tentava debater, discutir, eu só: ok, aceitava, mas era, principalmente quando é criança, é difícil aceitar que você é diferente, é difícil manter essa ciência de que pessoas talvez te evitem porque você tem um problema que teoricamente é normal e a pessoa não sabe disso. Acho que eu ficava muito mais pilhado, ansioso, em épocas de entrega de trabalho de escola, porque eu sempre queria mandar bem na escola, eu sempre queria tirar notas. Não era nem pelo contato de terceiros, era mais pela minha preocupação mesmo, mas foi: era complicado, mas era aturável. Era – como se diz – fácil de lidar, entre aspas.
P/1 - E quando veio o diagnóstico? Porque para muita gente com quem nós conversamos o diagnóstico demorou muito para ser feito. No seu caso, você lembra? Foi logo cedo?
R - Desde quando, eu não lembro quantos anos eu tinha, mas desde pequeno eu sempre fui no pediatra. Nós conseguimos um pediatra e desde acho que a primeira consulta ele já diagnosticou a dermatite. Foi como eu disse: desde sempre eu sei que eu tenho dermatite. Desde quando eu lembro, da época mais antiga, eu sempre tinha dermatite. Quando eu era criança era muito mais visível, porque, obviamente, eu tinha muito menos controle do meu psicológico, então, queira ou não, qualquer coisa já afetava – eu tenho alergia a alguns alimentos, mas isso não é o mais impactante, é muito mais o psicológico mesmo, no meu caso. Nós, pelo menos em casa, evitávamos o que não podia fazer, mas também não me proibiam de fazer nada: eu tenho alergia a gatos e tenho gatos em casa. É só saber lidar: não precisa não fazer, só faz com cuidado. E foi desde sempre. O diagnóstico sempre, desde que eu me lembro por gente, eu sei: “você tem dermatite”. Então, foi bem cedo.
P/1 - E que tipo de tratamentos você fez ao longo da vida?
R - Basicamente remédio: Corticoide, Hixizine. Foram, da parte médica, mais tratamentos de remédio mesmo. Da parte familiar, como o pessoal também não sabia, cada um queria dar um palpite: “vamos lá, dê um banho de não sei o que nele; passe não sei o que”. Então, como a minha mãe nunca proibiu nada, ela: “beleza, faça; vá lá, tente fazer”. Então, teve tratamento de tudo que é tipo de coisa, na verdade. Já teve até tratamento religioso, mas ok, paciência.
P/1 - E como foi esse tratamento religioso?
R - Foi estranho. A família da minha avó – do meu pai – sempre foi bem religiosa. Hoje nem tanto, mas eles sempre foram mais puxados para essa parte de religião.
P/1 - Que religião?
R - Eles eram, eles são evangélicos.
P/1 - Ok.
R - E já chegou a vir gente tentar exorcizar, achando que era algo além do humano.
P/1 - Conte-nos como foi essa experiência.
R - Na época acho que eu já era um pouco mais velho, tinha uns 12, 13 anos, e já estava, teoricamente, acostumado com todas as loucuras da família, então minha mãe falou: “sua avó trouxe um pastor aqui que quer fazer um negócio”. Eu falei: “está bem, vamos lá”. Como eu já sabia, é uma ignorância do pessoal, mas não ignorância no lado negativo, é de não saber mesmo, é uma falta de informação. A pessoa está com boas intenções em tentar ajudar, então paciência, vamos lá. Não vamos negar a ajuda de ninguém, não é? Ele veio, colocou a mão na minha cabeça, começou a gritar, pediu para sair, eu falei: “ok, paciência”. Aí: “acabou”? “Acabou”. “Você está melhor”? “Estou melhor”. Ele foi embora e eu: “ok, está bem”. Foi de tudo: desde banho de folhas de não sei o que, de tudo. Tudo o que você imaginar, acho que já foi tentado. Teoricamente isso não é eficaz, mas nós, como eu falei, nunca fomos de negar ajuda. Se a pessoa está com uma boa intenção em tentar ajudar, paciência, vamos lá.
P/2 - Posso perguntar?
P/1 - Claro.
P/2 - Nós olhamos para você e não vemos nada na sua pele.
R - Sim.
P/2 - Fica até um pouco difícil de tentar entender esses momentos que você já teve, de tratamento. Você consegue nos descrever o que era a dermatite na sua pele?
R - Sim. Na verdade, aqui é um vestígio de dermatite. Eu perdi um dos meus gatos recentemente, psicologicamente eu fiquei muito abalado – eu gostava, fiquei anos com ele – e isso é um resultado. Eu sei que para mim a dermatite é uma consequência de emoções: se eu estou muito triste, se eu deixar a tristeza dominar, eu sei que em um ou dois dias a dermatite vai aparecer na minha pele. Hoje é mais fácil conviver com, entre aspas, a sociedade, porque eu não tenho, mas eu, de vontade própria, sempre falo que tenho, mais por orgulho mesmo, porque para mim foi, é difícil? É difícil, mas para mim foi positivo. Porque, se não fosse a dermatite, eu não teria vivido 70 por cento das coisas que eu vivi. Eu tive a oportunidade, por conta da dermatite, de conhecer o projeto, de conhecer pessoas que me ajudaram bastante, de me conhecer. Eu tento enxergar o lado positivo da situação. Ok, não é fácil viver com dermatite, porque é um negócio que você tem que ter um autocontrole, você tem que saber, você tem que ter uma cautela sobre o que você pode ou não fazer, mas, por outro lado, te abre algumas portas também. Eu já estou no projeto faz 18 anos, vai fazer 18 anos e eu estou há 17, e hoje eu posso ajudar, da mesma forma que anteriormente pessoas me ajudaram.
P/2 - Antes de você detalhar para nós, explicar o que é esse projeto, em que momento você percebeu que não era o único que tinha dermatite?
R - No projeto. Porque, até então, na família a minha irmã tem. Ela tem dermatite também. A dela é um grau um pouco menor, mas é a mesma que a minha: se estiver muito nervosa ela também vai ficar, mas não tanto quanto eu ficaria. Só que na família, teoricamente, somos só nós dois. E antes dos 10 anos eu era o único. Eu nunca tinha convivido com mais nenhuma outra criança que tinha dermatite, com mais nenhuma outra pessoa que tinha dermatite. Talvez ela até teria, mas eu não sabia e ela também não sabia. Então: “ok, eu sou o único”. Eu tentava entender por que isso estava acontecendo, por que eu tinha, mas depois do projeto eu vi que: não, tem um mundo inteiro só disso. Isso me ajudou também, porque em certos pontos eu me permitia ficar triste por ser o único, só que depois eu vi que não é assim: tem gente muito pior que eu, gente que sofre muito mais que eu. Hoje em dia eu não me permito mais reclamar disso, ver isso como uma coisa negativa, porque, como eu falei, me ajudou muito.
P/2 - O que é o projeto e como você chegou até ele?
R - O projeto é o Dermacamp. Eu o conheci através de uma dermatologista minha na época, a doutora Ana Paula, e quando eu o conheci, ele estava, teoricamente, começando. Era o segundo ano. Como eu disse, tratamento medicinal não tem muita eficácia – ele só controla, não cura -, então ela falou: “já que você gosta, que a sua família gosta de testar coisas, de aprender coisas e aceitar ajuda, esse projeto está começando – ano passado, no caso, foi o primeiro ano. Esse ano terá um, dê uma procurada”. Nós fomos atrás, conhecemos uma médica que morava aqui em Campinas, que me levou para lá. Na época foi muito complicado, porque nós não tínhamos condições de ir para São Paulo, então minha mãe meio que confiou nessa médica, deixou-me dentro do carro dela e ela foi. Sem saber quem era direito, sem saber de onde. 2001 foi o meu primeiro ano. Foi quando eu conheci outras crianças com dermatite atópica. Não só dermatite, mas qualquer problema de pele. O foco do projeto em si é literalmente acolher essas pessoas, essas crianças, no caso, que tem problema de pele, que tem alguma deficiência, que tem alguma lesão física e que teoricamente isso abala o psicológico da pessoa – ela não consegue socializar. Acolher essas crianças e dizer que: “calma, você consegue viver com isso. Tem solução, tem um outro jeito de ver a vida”. E desde então eu estou lá, todo ano.
P/2 - Descreve o...
P/1 - Como foi o... desculpe.
P/2 - Acho que vai ser até a mesma pergunta.
P/1 - Como foi o seu primeiro dia no Dermacamp?
P/2 - E, ainda nessa pergunta, descreva para nós as sensações de perceber que você não era o único. As duas perguntas mesmo.
R - O meu primeiro dia foi... a moto.
P/2 - Isso é moto ou avião?
R - Moto.
P/2 - É moto? Parece avião, não é?
P/1 - Não, isso acho que é, isso é moto? Sério?
R - É moto, lá na Bandeirantes.
P/1 - Nossa.
R - O meu primeiro dia foi estranho, porque, uma que eu fui com essa médica, com uma enfermeira, não, ela estava estudando para ser médica – era uma das voluntárias do projeto na época- e eu não conhecia nada dela. Ela até foi muito legal. Na época pediu para nós confiarmos nela, que ela ia me levar até o local de embarque para poder ir para o acampamento. Quando nós chegamos no acampamento, na verdade, quando eu tive o primeiro contato do que era o acampamento, quando eu vi outras crianças com problema de pele, foi um pouco reconfortante para mim. Foi confortável saber que eu não era o único – até então eu não tinha tido nenhum outro contato – e o pessoal meio que me abraçou de uma forma que foi gostoso. Porque antes disso eu tive caso de pessoas se afastarem, de crianças se afastarem, porque você tem um problema de pele. Ela não sabe o porquê, ela só não quer ter aquilo que você tem. Ela sabe que é diferente e que, teoricamente, não é legal, então ela tenta manter uma certa distância. Por outro lado, o pessoal ali meio que já literalmente te abraça. Ele está vendo aquele problema na sua pele, está vendo que você está cheio de feridas, está vendo que você está cheio de lesões, e sem pensar, sem nada, ele literalmente te abraça. Isso já é uma diferença enorme, porque, queira ou não, para uma pessoa comum, se você chega com uma deficiência de pele, ela vai ficar um pouco receosa, ela não sabe o que é aquilo, ela não sabe se aquilo vai passar para ela, então, antes de literalmente abraçar, ela vai querer saber. Diferente do projeto: antes de saber o meu nome, a pessoa já chega abraçando. Depois que abraça que ela pergunta quem é você. A sensação de carinho é muito legal, é muito importante. Isso foi muito legal para mim: saber que eu não estava sozinho, que eu tinha companhia nessa brincadeira de vida, e que não é tão difícil assim, que tem um lado legal e isso pode trazer coisas boas. Acho que foi isso: é de aproveitar, não sei, acho que é. Aproveitar um pouco o momento de poder se sentir abraçado mesmo.
P/1 - E como são as atividades nesse acampamento? No que ele é diferente de outros acampamentos?
R - Na verdade nada. Nós, ok, temos limitações, mas nós tentamos mostrar literalmente isso: que qualquer criança com problema de pele pode ser uma criança normal. Então, nós brincamos, nadamos, pulamos, corremos, fazemos literalmente tudo. Tem todas as atividades, obviamente adaptadas, porque, queira ou não, tem algumas crianças que são cadeirantes, tem algumas crianças com a mobilidade um pouco reduzida, mas nós fazemos tudo. Da nossa forma, mas tudo que uma criança normal pode fazer nós vamos fazer também. É literalmente mostrar isso: que não é porque ela tem um problema de pele que ela não pode entrar em uma piscina, que ela não pode correr, que ela não pode suar, que ela não pode pular. Tem muitas crianças que chegam com essa impressão. Já teve muitos casos de crianças que chegaram lá sem nunca terem entrado na piscina. Por quê? Por excesso de cuidado, não sei, por receio, por achar que não pode, por achar que é proibido. Então, é literalmente mostrar que ela é uma criança normal, que ela tem o direito de ser criança, que ela tem o direito de brincar, que ela tem o direito de sofrer e que ela tem o direito de ser feliz. É bem esse o foco. Nós não ficamos dando palestra, não ficamos fazendo nada disso. É, literalmente, brincar, fazer ela se sentir uma pessoa normal.
P/1 - Então, não tem nenhuma atividade direcionada a abordar a questão de pele, nada disso?
R - Não. Isso acontece meio que no automático. No dia a dia do acampamento ela consegue perceber que tem um problema e que pode lidar com isso. Nós não paramos depois do café para falar: “todo mundo vai fazer isso, isso e isso”. Não, ela vai brincar, vai fazer todas as atividades normais. Ela vai se sentir uma criança normal, porque, teoricamente, ela é, ela só não sabe disso ainda. Então...
P/2 - Como...
R - Pode perguntar, eu já acabei.
P/2 - Como foi voltar dessa experiência pela primeira vez para casa?
R - Eu não queria voltar. Foi, a sensação era bem essa. Porque logo no segundo ano do acampamento – que foi o primeiro que eu fui -, ironicamente, teve um problema no transporte, então demorou mais para chegar. Tinha muitas crianças que era a primeira vez, 90 por cento delas, e os pais não conheciam muito bem o projeto – naquela época não tinha muita notícia sobre o projeto. No meu ponto de vista de criança – naquela época – foi lindo, foi maravilhoso e eu não queria voltar, mas no ponto de vista da minha mãe – que estava nos esperando chegar – e dos outros pais foi um terror, porque atrasou, o pessoal não conseguia contato com o motorista, não conseguia contato com ninguém, chamaram a polícia – achando que nos tinham sequestrado -, porque: levaram as crianças por um fim de semana para um lugar X, que ninguém nunca tinha ido, e não voltaram com elas. Então, foi bem, para mim, como eu falei, foi maravilhoso, eu não queria voltar, mas para eles foi um pouco meio que assustador.
P/2 - Para qual cidade foi?
R - Pindamonhangaba.
P/2 - E quando vocês chegaram no ponto de encontro com os pais, como foi o encontro?
R - Tinha pai chorando, tinha pai entrando em desespero, e nós estávamos rindo, nós não queríamos: “não, mãe, deixe-me voltar, ano que vem eu vou de novo”. “Mas como assim? O que aconteceu”? “Eu não sei, mãe, eu só quero voltar, eu só quero ir de novo”. Foi muito legal.
P/1 - E nesses 18 anos de acampamento tem alguma experiência ou situação memorável que você guarda até hoje?
R - É difícil, porque todo ano tem. Todo ano tem criança nova, todo ano tem brincadeiras. Ao meu ver, acho que quando eu passei de acampante para voluntário, que foi, não sei, com 16, 17 anos, que eu comecei a ser monitor, que eu comecei a brincar com as crianças, acho que esse foi um momento de transição para mim: eu quero ajudar tudo que me ajudaram quando eu era criança. Tem um caso que nós sempre falamos – pelo menos eu sempre falo -, de uma criança que chegou sem saber o que era abraço sem ser da sua família. Tanto que ela desceu do ônibus – nessa época eu acho que, sim, nós descemos primeiro e depois as crianças vão descendo do ônibus para o acampamento, para poder conhecer o lugar. E essa criança não conhecia o abraço sem ser do pai, da mãe, dos familiares. E acho que esse momento me marcou tanto, que é um negócio que eu gosto de falar, porque, por falta de conhecimento alheio, a criança deixa de ter carinho, deixa de ter afeto. Então, eu acho que isso. Quando nós fomos abraçar, ela meio que deu um passo para trás, do tipo: “você tem certeza que quer me abraçar? Tem certeza que é isso que você quer fazer”? Eu acho que esse é o que mais me marca. Todo ano, todo dia, na verdade, tem algo marcante, mas acho que esse é o que mais fixou, porque, não sei dizer o porquê, mas foi marcante para mim.
P/1 - E quem são os fundadores dessa ONG?
R - É um casal de médicos: doutor Samuel Mandelbaum e doutora Maria Helena Mandelbaum – ela é enfermeira e ele é médico -, de Taubaté. Eles começaram esse projeto meio que sozinhos, do nada, com residentes do doutor que toparam ser voluntários. E meio que começou, tanto que no primeiro ano – eu não estava, mas -, o depoimento do pessoal é de que tinha mais monitores, mais voluntários do que crianças – tinha umas cinco, seis crianças. E logo no ano seguinte já foi o contrário, tinha mais crianças. Porque deu tão certo que meio que pegou o pessoal, meio que abraçou mais gente. Os dois começaram por conta própria, eles sempre bancaram tudo. Hoje, queira ou não, nós temos alguns patrocínios que nos ajudam, mas por um bom tempo foi meio que do bolso deles. Eu nunca precisei gastar nada nesses 18 anos que estive no projeto. Nunca precisei tirar nada do meu bolso para ajudar, para pagar, então sempre foi algo acessível. Obviamente nós pagamos o deslocamento, mas o intuito nunca foi ganhar dinheiro. Sempre foi receber as pessoas, receber as crianças. Essa é a filosofia: nós nunca cobramos nada de ninguém, nunca vamos dizer que precisamos de tanto dinheiro para poder participar. Isso era meio que, pelo que eu entendo, a ideologia dos dois: poder abraçar. Os dois são bem fofos, eles são amores de pessoas. A doutora Maria Helena sempre conversa contigo abraçando, pegando, ela quer sentir, quer estar perto. Você se sente meio que em casa com os dois, é bem gostoso.
P/1 - E você falou dessa questão do abraço, da falta de contato físico por parte de outras pessoas. Você já passou por alguma situação de exclusão ou de desconforto por causa da dermatite?
R - Já, principalmente nos primeiros anos de escola. Já tinha um certo receio naquela época, teoricamente, pela raça, por ser negro. Isso já era uma diferença. Para mim, sendo negro com problema de pele, era uma diferença dobrada. Então, eu já tive experiências, sim, de ter um grupinho de crianças brincando e você chega em um momento que a sua pele não está muito favorável – no caso a dermatite está bem atacada – e meio que vê esse círculo se desfazendo porque você chegou, as pessoas irem cada uma para o seu lado porque você meio que tentou se enturmar ali. Era frustrante, mas como tanto a minha mãe quanto o meu pai sempre foram bem firmes nessa situação de: “não importa o que o outro vai dizer, você é o que é, tem que saber lidar com isso”, então foi um pouco fácil de lidar. Não foi fácil, mas foi aturável. Saber lidar com isso, mas sim, queira ou não, sempre tem um preconceito ali. Até hoje, se você chega, tem crianças – do projeto em si – que tem toda a pele dominada pela dermatite. Ela vai para algum lugar, a pessoa já olha estranho, já olha com receio. Tem uma voluntária também, a Vini, ela está desde o primeiro projeto, primeiro ano. Hoje ela luta caratê, ela está participando de campeonatos e ela tem todo um problema – não é dermatite, se não me engano é ictiose, mas é dominante, não tem uma parte do corpo dela que não tenha isso. Teoricamente esse tipo de pessoa tem que ficar mais reservada e ela está participando de campeonato de caratê. Ela meio que não deixou a doença dizer o que ela tem ou não que fazer. Ela sabe lidar com isso, com uma doença ou não.
P/1 - E você falou que até hoje tem que ter cautela, que tem coisas que pode e não pode fazer. Você pode nos descrever mais ou menos como são esses cuidados?
R - Na verdade, é mais um trabalho psicológico – no meu caso, cada pessoa... agora é avião.
R - Qual era a pergunta?
P/1 - Claro. Dos cuidados, das coisas que você pode e não pode fazer.
P/1 - Quais são os cuidados que você tem no dia a dia? Quais são as coisas que você pode e não pode fazer?
R - Como, no meu caso, 90 por cento da minha dermatite é psicológica, é tentar manter a calma. Na verdade, não tanta calma, porque senão também, mas manter o equilíbrio. Teve um caso recente também: eu fiquei desempregado, ano passado, um bom tempo e conta não para de vir, sempre tem dívidas, aí eu meio que deixei isso me dominar, a preocupação me dominar, de uma forma que a dermatite atacou. Hoje, para mim, é engraçado, porque é um sinal de que eu tenho que manter a calma. É a minha pele dizendo: “calma aí, você está muito para a frente. Dê uma segurada, tente manter a calma”. Hoje eu sei lidar com isso. São esses tipos de cuidados: para mim é 100 por cento psicológico. Cada pessoa tem suas diferenças, seus fazeres diferentes, mas para mim é um cuidado psicológico. Hoje eu não tomo mais remédio, não participo de nenhum tratamento. Eu aprendi a lidar com a minha dermatite. Aprendi a conviver com ela, não tentar tirar ou exclui-la. Eu sei que ela está aqui, eu preciso viver junto com ela. Ela me ajuda dizendo que eu preciso manter a calma, o equilíbrio, e eu tento ajudá-la não ficando muito estressado, muito irritado, muito angustiado. É meio que um ajudando o outro ali. Como eu disse: não tem cura. Pelo menos até o presente não tem nenhum tratamento milagroso que vá curar, que vá tirar 100 por cento, então eu meio que tento conviver com isso: tento enxergar a melhor forma de lidar com isso sem que um atrapalhe o outro. Como eu disse: eu tenho alergia a gatos, mas não é por causa disso que eu vou deixar de ter. Eu tenho uma gata. Ela convive comigo, brinca comigo, mas eu sei que, por exemplo, se eu fizer carinho nela, eu não posso pôr a mão no nariz, no olho, imediatamente eu preciso levantar, lavar as minhas mãos e ok, vida que segue. São pequenos detalhes que eu preciso deixar de fazer – ou lembrar de fazer – para que isso não me prejudique no futuro. É muito uma questão de consequência: se eu fizer, se eu deixar essa angústia me dominar, eu sei que amanhã ou depois eu estarei pior, porque terá atacado a minha dermatite; ou se, não sei, a situação está complicada e eu deixar essa ansiedade também me dominar, eu sei que vai ficar pior, porque a dermatite vai aparecer. Então, ok, não adianta eu ficar frustrado, irritado, porque se tem solução, vai ser solucionado, não precisa ter essa preocupação. E se não tem também não, porque não tem por que se preocupar se algo não tem solução. É meio que manter o equilíbrio ali entre atitude e calma: eu não posso ficar muito aflito, muito querendo fazer tudo de uma hora para a outra, porque não tem como, porque isso vai mexer comigo, vai me piorar e eu vou acabar não conseguindo fazer porque a minha dermatite vai atacar. É meio que manter o equilíbrio da situação. Não muito para mais, também não muito para menos. É manter a calma.
P/1 - E você, sendo oito anos mais velho que a Laura, acha que ajudou ela a lidar com a dermatite, já que você já tinha experiência, já tinha lidado com isso? Você conseguiu amenizar mais para ela?
R - Acho que sim. Acho que, queira ou não, quando você tem uma pessoa que faz algo, que tem a mesma coisa que você, que tem o mesmo problema que você, conseguindo viver a vida tranquilamente, acho que é um exemplo. A minha criação pelos meus pais foi exatamente igual a criação que eles deram para a minha irmã. Então, essa questão de se aceitar, de saber viver: “você tem isso, aprenda a lidar”, tanto eu tive quanto ela teve. Às vezes, nós conversamos: ela está estressada, nós vemos fisicamente que ela está abalada e tentamos conversar, tentamos passar o que já vivemos para a outra pessoa. Queira ou não, é uma ajuda, é um – como se diz – exemplo. Então, é mais fácil. Não que seja mais fácil para ela, mas é um ajudando o outro. Nós sempre focamos muito nisso, tanto que, desde que ela nasceu, nós nunca discutimos, nunca brigamos, nunca entramos em conflito, porque sabemos que, teoricamente, um precisa do outro. Então, está sempre ali um completando o outro. É isso.
P/1 - E quando você, por exemplo, começa em um emprego novo, chega em um ambiente novo, você se sente na obrigação de falar sobre a dermatite, de dizer para as pessoas?
R - Geralmente eu falo. Porque, queira ou não, se por alguma ventura, por algum imprevisto, eu sair do controle, eu sei que vão ter pessoas ao redor que saberão o que eu tenho. Algo importante que aconteceu na minha infância, em relação a isso, é que aquele trabalho de planetas foi um momento muito – foi legal e tudo, mas ao mesmo tempo foi angustiante. Porque eu não queria errar, eu queria dar o meu melhor, e no meio da apresentação desse trabalho eu entrei em crise: comecei a ficar – na época eu tinha asma, isso também ajudava – com falta de ar, fiquei literalmente pilhado. Como a minha professora naquela época sabia o que eu tinha, ela me tirou da sala, conversou comigo, acalmou-me. Então, essa ciência da professora, essa sabedoria dela sobre o meu problema foi importante na época. Como hoje também é. Por exemplo: eu aviso o pessoal que, se eu for picado por abelha, eu vou ter alguma reação. Então, o pessoal sabe que, se eu precisar sair, é por conta do meu problema; se eu precisar me ausentar, é por conta do meu problema. É mais por uma precaução do que por um imprevisto. É mais para colocar as cartas na mesa: pode acontecer isso, isso e isso. Vai acontecer? Não sei, mas se acontecer nós já sabemos como lidar. Então, meio que eu acho importante falar, explicar e literalmente passar conhecimento. Porque, queira ou não, essa postura de espalhar o conhecimento sobre a dermatite, em muitos casos a pessoa tem e não sabe. Já teve colegas minhas, amigos meus, que, por eu falar todos os sintomas que eu tenho, a pessoa para e pensa: “eu acho que eu tenho dermatite”. Ela nunca se preocupou em pesquisar, nunca teve uma explosão tão grande a ponto de ser visível, mas ela teoricamente tem. Teve um caso que foi bem isso: eu estava comentando sobre a dermatite – ela queria entender – e no fim ela descobriu que tinha, porque tinha as mesmas coisas que eu. Depois ela foi ver e realmente era dermatite.
P/1 - E durante a adolescência, como foi? Foi especialmente difícil o primeiro namoro?
R - Na verdade não, porque, queira ou não, eu já estava no projeto fazia alguns anos. Isso já foi me facilitando, já foi abrindo meus olhos sobre a população em si, o pessoal que não tem essa consciência, que não sabe o que é uma dermatite. Então, foi mais fácil de lidar, porque com 14 anos eu já estava no projeto há três. Eu já tinha visto muita coisa, já tinha convivido com muita coisa, já tinha aprendido, literalmente, muita coisa. Então, é você saber se portar. A pessoa vai ter uma curiosidade ou um receio. Não precisa sentir raiva dessa pessoa porque ela não sabe o que é. Ela simplesmente não sabe. O meu papel, na minha época de adolescência, era – eu sempre fui muito aberto em relação a isso: “o que você tem”? “Eu tenho isso, dermatite, por causa disso e disso e afeta com isso e isso”. Antes da pessoa meio que se afastar eu já estava explicando o que era, para ela poder saber. E vai dela, se ela vai querer manter distância ou ficar perto. Então, eu já tinha essa consciência de saber lidar com a postura alheia. É complicado? É complicado, mas paciência, não tem muito o que fazer. Você não pode querer colocar as suas vontades na pessoa: “fica perto de mim, não é nada”. Ela tem a opção, a escolha dela. Se ela, sabendo – o meu papel é explicar para ela o que eu tenho ou como funciona, ela vai decidir se quer ou não. Paciência, eu não tenho muito controle sobre isso. Eu sempre tive isso, já tinha sido trabalhado em mim essa postura de receber as pessoas ou ser abordado. Queira ou não, é o dia a dia para quem tem dermatite. Todo dia é isso aí.
P/1 - E conte para nós: qual foi o seu primeiro emprego?
R - O meu primeiro emprego? Foi, eu trabalhava em um estúdio fotográfico, só que na parte administrativa. Acho que eu tinha uns 16, 17 anos. Foi o meu primeiro registro e foi legal. Um dos meus amigos, que treinava comigo no basquete, trabalhava lá também. A convivência foi muito legal. Eu nunca tive muito problema para me relacionar com as pessoas, sempre fui muito aberto. Eu sempre tento manter o ambiente meio que favorável para todo mundo: não tento pressionar ninguém, também não gosto de ser pressionado. Foi legal.
P/2 - E o sonho de ser mecânico, como você desenvolveu?
R - Nunca aconteceu. Foi só um sonho. Hoje em dia eu meio que me viro, entre aspas. Por exemplo, aqui em casa: tudo que tem aqui é de reciclagem, teoricamente. Nós nunca dependemos muito de comprar, de ter, meio que nós sempre fizemos as coisas. Eu meio que levei isso comigo: sempre que eu preciso de alguma coisa, eu dou meu jeito. Não vou comprar, vou ver se eu consigo fazer primeiro, se eu consigo fazer antes. Como profissão o mecânico foi só sonho, mas a ideia do mecânico acho que eu ainda levo: de tentar me virar com o que eu tenho, de tentar consertar as coisas antes de descartar ou de reaproveitar as coisas. É meio que isso.
P/2 - Conte a história de alguma coisa que você fez ou consertou que tenha sido super satisfatório.
R - É bobo, mas algo que – foi recente até – naquela época que estava muito quente, muito mesmo, eu sempre mexi com informática, sempre tive peças de computador em casa, e o ventilador tinha quebrado, não tinha jeito. No meio da madrugada eu meio que levantei, tirei os coolers do computador, liguei em um fio e fiz um ventilador. Ok, fiquei feliz. Estava refrescado e feliz.
P/2 - Refrescado e feliz é ótimo.
P/1 - E você foi fazer faculdade de que então?
R - Eu comecei uma faculdade de Automação, meio que abandonei porque estava complicado, eu estava trabalhando e fazendo a faculdade. Essa eu deixei de lado. Depois eu parti para Análise e Desenvolvimento de Sistemas, que é em relação à TI, que eu sempre tive essa convivência, sempre gostei muito. Formei-me nisso, hoje não trabalho com, mas está relacionado. Esse ambiente de informática também sempre me cativou, justamente pela parte do mecânico. Queira ou não, eu sempre montei as coisas, então a parte de hardware é a que eu mais gosto, porque eu preciso montar, preciso teoricamente construir as coisas ali. Em relação à maioria das coisas que eu fiz ou que eu tinha, era mais para o pessoal e não para o profissional, tanto que as coisas de computador em casa eu que faço, eu que arrumo. Eu sou o cara da TI da família. Paciência. Acho que é isso.
P/1 - E você trabalha com o que hoje em dia?
R - Hoje eu sou técnico de operação. Eu trabalho na parte elétrica, na CPFL, nós meio que coordenamos o pessoal que está em campo. Tem as equipes da rua e nós meio que damos funções para eles. É mais voltado para a parte de elétrica e eu gosto. É meio corrido, meio insano, mas é um ambiente que eu gosto. Porque, queira ou não, nós temos acesso ao controle da rede elétrica. Então, eu consigo desligar ou ligar uma rede lá do setor. É complexo porque nós não estamos vendo o que acontece na rua. O técnico de campo é o nosso olho e as nossas mãos. Por exemplo: se desliga uma rede ou alguém bate em um poste e acabou a energia, nós temos que ter meio que esse feeling: “eu posso ligar? Será que não tem ninguém perto? Será que não tem ninguém próximo”? É um pouco assustador, mas é gostoso de lidar. Nós meio que coordenamos esse pessoal, lá de dentro.
P/2 - Nós pulamos uma parte que você comentou, nas fotos, que fez colégio técnico. Conte-nos como foi essa decisão de prestar um Vestibulinho. Por que a escolha por esse curso?
R - Honestamente? Foi porque o nome era engraçado. Minha mãe sempre focou nos estudos: “você tem que estudar, você precisa estudar”. “Beleza, vamos lá, vou fazer alguma coisa”. Só que eu não sabia o que, teoricamente, eu queria fazer. Tinha as opções, acho que: eletrônica, elétrica, eletrotécnica, administração e logística, na época. Administração e logística não é muito a minha cara. Eu falei: “esses já não são”. Ela: “então escolhe alguma coisa na área dessa parte”. Eu falei: “vou para a eletrotécnica, que é o nome mais engraçado que tem”. E meio que bateu. É legal, eu gosto disso. Foi na sorte, mas foi legal. Hoje eu estou na CPFL por conta desse curso.
P/1 - E pelo que você está falando, eu tenho a impressão de que você tem uma relação muito especial com a sua mãe. Você quer falar um pouco disso para nós?
R - Sempre tive. Porque, por exemplo, na época que eu nasci o meu pai não parou de trabalhar, ele tinha que trazer comida para dentro de casa, então quem ficava mais comigo era a minha mãe. Por ela saber do meu diagnóstico, da dermatite em si, não que ela evitava, mas ela não forçava que eu saísse. Ela meio que era a minha companhia em casa: brincava comigo, estimulava-me, estava sempre presente ali, tanto comigo quanto com a minha irmã. Ela ficou um tempo sem trabalhar quando eu nasci, para poder cuidar de mim, e quando a minha irmã nasceu meio que ela parou de vez, abandonou para focar na criação da minha irmã. Acho que isso meio que, esse carinho que eu tenho é justamente por isso: ela decidiu meio que abandonar a vida dela para poder focar nos filhos. Então, meio que essa sensação de carinho é por isso: ela nos escolheu ao invés de dividir entre ela e nós. Ela focou totalmente em nós. Então, nós temos, queira ou não, nós temos um carinho por ela.
P/1 - E a sua madrinha, Clarete, você gostaria de falar sobre ela?
R - Não tenho muito o que falar. Nós convivíamos mais quando eu era muito criança, não tenho muitas lembranças. Eu sei que ela existe, sei que ela era presente – ela era muito amiga da minha mãe, se não me engano ela também fazia parte daqueles movimentos de passeatas -, sei que ela é uma boa pessoa. Eu sempre tive um carinho especial por ela – relatos da minha mãe. Engraçado que ano passado nós nos encontramos no velório do meu avô e ela pediu até desculpas por sua ausência durante a minha vida.
P/1 - E por que houve esse afastamento?
R - Não sei. Acho que cada um decidiu seguir sua vida. Não teve nenhum conflito, nenhuma discussão que causasse isso. Foi mais por escolha pessoal. E o engraçado é que mesmo ela todos esses anos ausente ou sem visitar, essas coisas, ela sempre esteve, esse reencontro meio que mostrou que ainda existe o mesmo carinho. Não tem muita diferença do que – pelo menos eu acredito que – era antigamente para o que é hoje. Hoje ela tem uma filha, acho que tem a idade da minha irmã já, e eu nem conhecia, não fazia ideia de que ela existia. Então, ela veio – eu, na verdade, não a conheci na hora –, se apresentou, depois que ela falou que eu meio que reconheci, mas não, ela é uma ótima pessoa, sempre, queira ou não, eu sei que posso contar. Eu tenho uma confiança nela. Não só nela, mas na maioria das pessoas que meus pais trazem para dentro de casa nós sabemos que podemos confiar, que não precisamos ter, que são pessoas confiáveis. Tem N pessoas que valeria citar aqui.
P/1 - Alguém que você gostaria de citar, em especial, que é marcante para você?
R - Tem a Clarete, a Cléo, a Crislaine, meus próprios tios mesmo são pessoas que eu carrego com certo carinho, que eu tenho um baita de um respeito. Na época que, eu lembro mais pela época que eu estive mais em crise, que essas pessoas são daquele tipo de pessoa que não pergunta, que não quer saber, já chega abraçando. Então, nós nos sentimos acolhidos por essas pessoas. Até hoje: eles me chamam de Marcinho – como se eu tivesse um metro de altura – e eu já sou maior que todos eles, mas um carinho é sempre reconfortante. É muito bacana. Nós sentimos um carinho e tentamos retribuir.
P/2 - E o desejo de ser tio?
R - Ainda tenho, está de pé. Ainda existe e minha irmã já falou que quer ter filho, então está tudo certo. Por enquanto está nos planos.
P/1 - E você tem vontade de ser pai?
R - Hoje não tanto. Mais por medo da geração, não sei, está tudo muito confuso em relação a – eu vejo crianças hoje em dia fazendo coisas que são assustadoras. Então, por medo, literalmente medo de não conseguir educar da melhor forma, de não conseguir passar a educação que os meus pais passaram. Queira ou não, é uma responsabilidade gigante. Já pensei antes, mas hoje eu estou um pouco mais receoso, não sei se seria uma boa opção. Ainda mais no mundo que estamos hoje, eu não sei. Eu penso em adotar, adoção eu penso, porque, não sei, em vez de colocar mais uma criança no mundo, tem tanta criança querendo uma família, que eu não vejo por que não juntar o útil ao agradável; mas ter um filho eu não sei.
P/2 - Não deixa de ter um filho.
P/1 - Claro.
R - É, mas gerar mais um eu acho que não.
P/2 - Aqui deu. Acho que nós podemos já partir para a avaliação.
P/1 - Para as avaliativas.
P/2 - E a primeira pergunta: tem alguma história que você queria contar e nós não te estimulamos?
R - Eu acho que tem uma legal, nessa ideia do acampamento em si: no primeiro acampamento que eu fui – obviamente era tudo muito novo, muita novidade –, foi a primeira vez que eu andei de tirolesa. Na minha ideia eu não sabia o que era aquilo, não sabia como funcionava. É mais nessa vibe de se sentir uma pessoa normal. Até então, eu nunca iria fazer aquilo, nunca teria acesso aquilo, foi dentro do projeto que: “meu Deus, eu estou fazendo algo que eu nunca imaginei que faria, que eu nunca imaginei que poderia fazer”. Não sei por quê, mas é mais pelo excesso de cuidado: “eu estou fazendo uma atividade de risco, que pode dar muito errado, mas mesmo assim eu estou fazendo”. Então, acho que essa possibilidade de você sair da zona de conforto é muito legal, é muito bacana.
P/2 - Descreva para nós como foi a tirolesa.
R - Foi: era de árvore em árvore, se não me engano – faz anos –, e acho que não foi nem a minha sensação de fazer a tirolesa que me marcou, foi a de um cadeirante fazer. Porque, agora que eu estou lembrando do momento em si: nós descíamos e o próximo ajudava o que estava descendo. E quando eu vi uma criança cadeirante – que tinha problema severo de pele – saindo da cadeira dela, pendurando-se em uma corda que vai descer até o outro lado, eu falei: “que genial, que sensacional. Ela pode fazer isso, não tem por que ela não fazer isso”. Essa mesma criança – hoje ela já faleceu – foi um voluntário e foi um baita de um exemplo para mim. Ele tinha tudo para não ser nada. Se ficasse na zona de conforto, ele seria, ele não tinha a obrigação de fazer nada, ele não tinha, teoricamente, a capacidade de fazer nada. E por vontade própria, por ação própria, ele teve um trabalho, teve um carro – ele não tinha dedos, mas dirigia um carro. Ele sempre foi muito normal, sempre fez tudo o que queria fazer, não deixou a doença em si impactar na sua vida. Ele soube lidar, literalmente soube lidar. E acho que essa pessoa foi a que eu mais peguei como exemplo para mim: “ok, eu sei que eu estou em uma situação não-confortável, mas o buraco é muito mais embaixo”. Vê-lo – tanto que o acampamento hoje tem o nome dele: Dermacamp Wagner. Por homenagem, nós colocamos o nome dele. Ele foi um dos pilares de exemplo que eu me prendi, tenho respeito até hoje.
P/1 - E você falou que foi tão incrível ter saído da zona de conforto nesse dia. Em quais outras situações você saiu da zona de conforto desde então?
R - Hoje é meio que uma atividade que eu faço para mim mesmo: se eu vejo que estou muito confortável com alguma coisa, eu tento mudar. Eu tento evitar entrar na zona de conforto. Se eu me pego acomodado com alguma situação, eu já tento mudar. Por exemplo, o meu quarto: de mês em mês, semana em semana, eu estou mudando toda a organização do meu quarto. Porque senão, eu me sinto incomodado em ver aquela cena toda hora, em ver aquele cenário igual sempre. Se eu meio que acostumei com alguma coisa, eu tento trabalhar para que isso seja diferente de alguma forma. Porque, não sei por quê.
P/2 - Você fala muito, em vários momentos diferentes de aplicação, a palavra normal. O que é normal?
R - É normal. É difícil explicar, porque não existe – se parar para pensar – anormal. Cada um é cada um. Acho que essa é a filosofia que eu tento levar: não existe ninguém que é exatamente igual a alguém. Então, todo mundo é normal. Na sua normalidade ela é uma pessoa normal. Acho que hoje em dia, não sei, acho que tanto as pessoas, quanto as crianças quanto os adolescentes tentam seguir um padrão de alguém, ser igual a alguém, ser parecido com alguém. Tanto comportamental quanto na vestimenta ou agir da mesma forma que outra pessoa. Eu acho que cada um tem a sua individualidade, cada um pode ser normal no seu próprio universo. Não tem por que a pessoa meio que tentar ser igual a alguém, sendo que ela pode ser ela. Ela é muito mais do que aquilo que ela acha que é. Não sei.
P/2 - Não, é isso mesmo. Então: nós estamos fazendo esse projeto, com base na memória oral, de pessoas que são portadoras de dermatite atópica. Como você avalia isso?
R - Eu acho incrível. Sinceramente, eu acho genial. Fiquei sabendo do projeto há pouco tempo, depois que me procuraram, mas a ideia em si é fantástica, justamente por passar informação, por mandar, através de pessoas que têm, no caso, não sei. Tem muita gente, muitas crianças, no caso, muitas pessoas que se sentem literalmente perdidas por não terem uma referência, não terem alguma coisa para se segurar, e quando você vê alguém que está meio que na mesma situação é muito legal. Saber que é uma pessoa que está na mesma situação que você, porém ela deu a volta por cima, consegue viver bem, consegue ser feliz, entre aspas. Felicidade acho que não é nem a palavra, mas ficar em paz com ela mesma. É genial, sinceramente.
P/2 - Ainda sobre a dermatite, é a última pergunta em relação a isso, o que precisa ser dito para quem tem dermatite e para quem não tem dermatite?
R - Para quem tem, que é normal. Honestamente, eu já estive na posição de quem se sentia único, se sentia diferente, se sentia incapaz de poder fazer alguma coisa por conta da dermatite, mas é possível viver com a dermatite, é completamente possível. É algo que está contigo, vai ficar por um bom tempo, até não sei quando, e você precisa saber lidar, manter o equilíbrio, que existe o ponto positivo dessas coisas. E para quem não tem, acho que procurar informação, procurar saber, procurar entender, ter menos um pré-conceito sobre isso. Porque hoje em dia o pessoal meio que está muito pelo visual, pelo imediato. A pessoa não tenta se aprofundar no assunto, não tenta entender o que é aquilo. Ela só vê, tem uma ideia formada e já ou se afasta ou vai com tudo. Geralmente, se afasta. É tentar procurar informação, que é mais normal do que parece.
P/1 - E me fale uma coisa: quais são os seus sonhos?
R - Hoje, um dos sonhos que eu tenho é sair do país, conhecer o mundão à fora; eu estou com um hobby pessoal de fotografia, então, é de sair fotografando muitas coisas. Eu não tenho muitas ambições materiais, são mais de experiências mesmo, de poder conhecer, aproveitar, sentir coisas diferentes. Uma das sensações que eu mais gosto hoje em dia é a descoberta: poder aprender, poder descobrir. Acho que o meu sonho é continuar descobrindo, continuar aprendendo.
P/1 - Você quer perguntar mais alguma coisa? Você gostaria de falar mais alguma coisa?
R - Acho que não. Acho que, justamente para o pessoal, para todos, tentar manter o equilíbrio e encontrar a paz em si mesmos. Tem gente que fala muito de felicidade, que a pessoa precisa ser feliz, porque se ela não for feliz ela não será completa, mas eu acho que não: felicidade é só mais um sentimento. Se não tivesse a tristeza, a felicidade só seria, não seria nada. Então, acho que a paz está no meio termo entre a felicidade e a tristeza. Ficar triste é importante, ficar feliz também, mas nenhum dos extremos é tão legal. Manter o equilíbrio é importante.
P/1 - Obrigada, Márcio. Foi, nossa, muito obrigada.
P/2 - Sim, muito obrigada mesmo.
R - Também agradeço.
P/2 - Por você ter nos contado essa história hoje.
P/1 - Sim.
R - Eu que agradeço.
P/1 - E por ter nos falado desse projeto incrível. Vamos atrás, vamos tentar conhecer mais.
R - Por favor.
P/1 - Com certeza.
R - Faço a ponte com prazer.
P/1 - Com certeza. Vamos divulgar. Ok? Deu? É isso aí?
M: Cortou.
F: Maravilha.
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