Tecban - Histórias Diversas
Entrevista com Ana Paula Cardozo Geraldini
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo, 28 de julho de 2022
Entrevista nº PCSH_HV1260
Realização: Museu da Pessoa
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:00:20) P/1 - Boa tarde, Ana Paula. Tudo bem?
R - Boa tarde, Genivaldo. Bem, e você?
P/1 - Tudo ótimo. Então a gente vai começar com as informações mais básicas. Eu queria que você me dissesse o seu nome completo, a sua data de nascimento e a cidade onde você nasceu.
R - Vamos lá. Meu nome completo é Ana Paula Cardozo Geraldini. Eu nasci na cidade de São Paulo, no dia 24 de maio de 1966.
(00:00:59) P/1 - Contaram para você como foi o dia do seu nascimento, Ana?
R - Eu lembro da minha mãe contar que eu não queria nascer. O tempo já tinha, a semana já tinha completado e eu nenhum sinal. Minha mãe já tinha dois filhos na ocasião.
Ela foi à consulta e o médico falou para ela que ela andasse. A consulta foi próxima aqui do centro de São Paulo, então a minha mãe seguiu à risca o que o médico mandou; ela saiu do centro de São Paulo e foi até Santo Amaro a pé. E [com] o fato de ter feito isso ela já chegou em casa com as contrações, e em seguida correu para a maternidade. Um detalhe: a maternidade era mais próxima do centro do que de Santo Amaro. O médico disse que funcionou muito bem, e aí o parto ocorreu tranquilamente. Eu nasci de parto normal.
(00:02:22) P/1- E você sabe por que ela escolheu o seu nome?
R - É uma curiosidade também. Minha mãe era viúva, já tinha um filho e casou com meu pai; teve um primeiro filho, meu segundo irmão, e ela escolheu o nome. Foi um nome composto. Quando eu nasci, minha mãe disse ao meu pai que ele poderia escolher, mas que tinha três nomes que ela gostaria. Mulher dá um jeitinho em tudo, né? Mas ele ficou à vontade para escolher. Dos três nomes, embora um deles eu até goste, acho que eu prefiro o que o meu pai escolheu, porque...
Continuar leituraTecban - Histórias Diversas
Entrevista com Ana Paula Cardozo Geraldini
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo, 28 de julho de 2022
Entrevista nº PCSH_HV1260
Realização: Museu da Pessoa
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:00:20) P/1 - Boa tarde, Ana Paula. Tudo bem?
R - Boa tarde, Genivaldo. Bem, e você?
P/1 - Tudo ótimo. Então a gente vai começar com as informações mais básicas. Eu queria que você me dissesse o seu nome completo, a sua data de nascimento e a cidade onde você nasceu.
R - Vamos lá. Meu nome completo é Ana Paula Cardozo Geraldini. Eu nasci na cidade de São Paulo, no dia 24 de maio de 1966.
(00:00:59) P/1 - Contaram para você como foi o dia do seu nascimento, Ana?
R - Eu lembro da minha mãe contar que eu não queria nascer. O tempo já tinha, a semana já tinha completado e eu nenhum sinal. Minha mãe já tinha dois filhos na ocasião.
Ela foi à consulta e o médico falou para ela que ela andasse. A consulta foi próxima aqui do centro de São Paulo, então a minha mãe seguiu à risca o que o médico mandou; ela saiu do centro de São Paulo e foi até Santo Amaro a pé. E [com] o fato de ter feito isso ela já chegou em casa com as contrações, e em seguida correu para a maternidade. Um detalhe: a maternidade era mais próxima do centro do que de Santo Amaro. O médico disse que funcionou muito bem, e aí o parto ocorreu tranquilamente. Eu nasci de parto normal.
(00:02:22) P/1- E você sabe por que ela escolheu o seu nome?
R - É uma curiosidade também. Minha mãe era viúva, já tinha um filho e casou com meu pai; teve um primeiro filho, meu segundo irmão, e ela escolheu o nome. Foi um nome composto. Quando eu nasci, minha mãe disse ao meu pai que ele poderia escolher, mas que tinha três nomes que ela gostaria. Mulher dá um jeitinho em tudo, né? Mas ele ficou à vontade para escolher. Dos três nomes, embora um deles eu até goste, acho que eu prefiro o que o meu pai escolheu, porque um deles era Ana Odete. Falei com a minha mãe que eu ficaria bastante chateada, porque não gosto da combinação. O outro era Beatriz Helena, que eu gosto, e outro é a Ana Paula. E meu pai não escolheu outro senão o que a minha mãe deixou para ele escolher, um dos três, e foi assim um nome composto também. Ficou Ana Paula.
(00:03:59) P/1 - Eu queria que você falasse então um pouco sobre a sua mãe. Como é o nome dela, como ela é, como você a descreveria, e um pouco também da família materna, esse lado materno da sua família?
R - Bom, falar da minha mãe é uma honra. Minha mãe já é falecida. O nome da minha mãe é Lucy - com y - Cardozo Geraldini. Esse é o nome de casada. Quando eu tinha dezoito anos, a minha mãe se divorciou do meu pai, e ela passou a assinar Lucy Cardozo, que é o nome dela de solteira.
Minha mãe foi uma mulher bastante batalhadora, uma mulher que teve uma infância confortável; era filha de médico, do principal médico da cidade do interior. Meu avô era médico na cidade onde ela nasceu, Casa Branca, uma cidade pequena no interior de São Paulo. E depois, em Ribeirão Preto, ele era um dos principais médicos da cidade.
Ela teve uma vida bastante confortável, contava sempre para nós como era, como foi uma infância privilegiada em virtude da posição que meu avô ocupava; acho que elas tinham uma vida confortável. Só que minha mãe, acho, era uma mulher à frente do tempo dela. Minha mãe fez curso superior. As mulheres da década de 20, que foi a década em que minha mãe nasceu… Acho que não era usual que as mulheres estudassem. Ela veio para São Paulo, ficou interna, estudou Pedagogia no Instituto Sede Sapientiae.
Ela era uma amante de bailes. Adorava ir aos bailes, dava o jeito que precisasse para ir aos bailes. Dançou muito, contava isso com muito entusiasmo, porém no casamento ela já não teve, vamos dizer, a mesma sorte. Infelizmente, no primeiro casamento ela ficou viúva, o marido faleceu [quando] ela estava no sétimo mês de gravidez, e foi no início do casamento. Após quatro anos, casou com o meu pai. Foi um casamento que lhe deu mais quatro filhos, mas não foi um casamento assim, vamos dizer, que ela tenha sido muito feliz como pessoa.
A minha mãe era uma pessoa que buscou orientar os filhos da forma mais correta e mais justa, sempre buscou dar muito exemplo, sempre deu a nós muita responsabilidade; ela dizia que era a liberdade com responsabilidade, e embora ela soubesse da nossa vida, ela não era controladora, era uma pessoa que deu a gente a oportunidade de fazermos nossas escolhas. E embora ela tenha sofrido na relação conjugal com meu pai, era uma mulher que encontrava uma forma de aproveitar bem a vida, então foi uma mulher que sempre trabalhou, trilhou a carreira dela na área de educação, era supervisora pedagógica, e para mim a minha mãe era um grande exemplo.
Ela já não dançava, mas ela jogava cartas, ela adorava. Participava de mil torneios. Participava do cruzeiro onde ela ia jogar, ela jogava desde o SESC até com as amigas, no Sírio-Libanês. Minha mãe era uma pessoa que estava em diferentes ambientes; eu percebia que era para não estar sozinha, ela se ocupava.
Infelizmente minha mãe teve uma doença terminal, ela teve um câncer no cérebro, em 2007 foi descoberto. Como era uma mulher que tinha boa saúde e acho que tinha vontade de viver, teve uma sobrevida de dois anos e meio. Foi muito sofrido, ela entrou em um estado de demência e durante esse tempo eu estive ao lado dela.
Foi um momento de me desapegar de uma pessoa que eu amava tanto. Foi uma despedida em vida, porque no momento em que ela começou a demenciar já não estava ali a minha mãe.
O que eu posso dizer da família da minha mãe? É uma família tradicional, conservadora. Como eu disse, meu avô [era] médico, minha avó era senhora do lar, mas era uma senhora da sala, não era uma senhora da casa toda. Ficava muito brava de ver minha mãe fazendo serviços domésticos, dizia que ela não tinha sido criada para isso. Acho que [era] uma família muito boa, de muitos valores, mas carregou também coisas nada boas, como, por exemplo, preconceito, que é algo que eu preciso desconstruir até hoje. Uma família que por ser tradicional, por ter o privilégio de estar em ambientes que nem todo mundo tem o privilégio de estar… Eu nem sei dizer se sempre é um privilégio. hoje eu coloco um ponto de interrogação nisso, mas a minha mãe mesmo dizia que era preconceituosa e ela não sabia como se livrar disso. Apesar de ter bons valores, carregava algumas crenças bastante limitantes nesse sentido, mas acho que minha mãe já tentou romper. No momento que você reconhece já é um primeiro elo que você quebra, porque quando você reconhece você se dá conta que isso não é legal. E aí vem as outras gerações para ir quebrando, até que essa corrente não exista mais.
O que eu tenho para dizer? Falaria da minha mãe o dia inteiro, mas acho que eu consigo encerrar por aqui.
(00:11:52) P/1 - A gente ainda vai voltar a falar dela, fica tranquila. Eu queria que você fizesse então a mesma coisa em relação ao seu pai e o lado paterno da família?
R - Falar do meu pai é um desafio, porque meu pai não foi uma pessoa muito próxima, e não porque ele não tenha vivido comigo, porque ele viveu comigo, mas é porque acho que nós não criamos vínculos.
Meu pai é professor, cursou quatro faculdades. Ele é professor de Matemática, pedagogo, é engenheiro civil e tem mais alguma formação que eu não me recordo; eu lembro desse número, espero não estar enganada. Uma pessoa boa, não acho que não seja uma pessoa má. [Veio] de uma família simples.
Meus avós… Meu avô era descendente de italiano, morava vamos dizer em uma… Não sei se eu posso dizer roça. O que eu sei do meu pai é muito do que minha mãe contava, não por um relato dele; eu não me lembro de nenhum relato do meu pai a respeito dele, mas o que eu escutava a minha mãe dizer é que meu avô era um homem muito simples, e que eles iam à escola iam de chinelo Havaianas, às vezes arrebentava no meio do caminho. Até as irmãs do meu pai contavam essa história, rindo muito.
Meu pai, infelizmente, ele tinha uma… Se bebesse o primeiro copo era um problema. Acho que hoje, já na minha idade, eu posso dizer que meu pai era um alcoólico, mas ele não fazia uso diário. Quando ele fazia o uso da bebida ele se ausentava, então eu cresci vivendo a ausência do meu pai por algum tempo. Era assim, ele passava dois meses bem, de repente ele se ausentava por quinze dias. Até o momento que minha mãe pôde, ela nos privou de saber o que acontecia, mas com a idade a gente passa a entender que aquilo não está legal, alguma coisa acontece. Isso acho que foi um fator limitante da nossa relação, do nosso vínculo. Quando meus irmãos cresceram, o meu irmão, o mais velho do casamento do meu pai com a minha mãe, ele começou [quando] adolescente a questionar, e aí começou a haver brigas mais intensas na minha casa. Isso era muito ruim, porque eu vivia um clima de muita tensão.
Nesse momento a minha mãe decidiu pela separação. Minha mãe vivia dentro da crença limitante de “como assim, se separar, ser uma mulher divorciada? O que os amigos vão dizer?” Era mais a fala da minha avó. Minha mãe já desconstrói isso quando assume, porque ela já tinha tentado outras vezes e acabou voltando atrás, por pedidos do meu pai.
A minha avó, mãe do meu pai, é uma mulher [que], embora simples, parecia muito sábia. Eu tenho alguma lembrança dela porque sempre que me encontrava me entregava alguma coisa que ela mesma tinha bordado, um vestido que ela tinha costurado para mim, mas era uma relação superficial. A família da minha mãe e a família do meu pai eram famílias muito diferentes. Como eu estava muito próxima da família da minha mãe, quando eu estava próxima da família do meu pai eu estranhava, porque era tudo muito diferente, mas era uns encontros periódicos, não era uma coisa que acontecia sempre.
Meu pai é vivo, está com noventa anos. Eu estive no aniversário dele de noventa anos. E é isso.
(00:17:39) P/1 - P/1 - E você sabe como seus pais se conheceram?
R - Sim, eu sei. A minha mãe era diretora de um colégio aqui em São Paulo. Meu pai era professor desse colégio e era um professor que dava um certo trabalho. Minha mãe contava que, quando ela entrou, ela começou a colocar todo o corpo docente na linha, e o meu pai, acho que era o primeiro da fila. Independente deles se aproximarem e começarem a namorar, a regra era mantida igualmente, talvez até um pouco mais dura, porque ela tinha que dar o exemplo. E foi assim, minha mãe já era viúva, já tinha o meu irmão mais velho. Foi assim que eles se conheceram.
(00:18:40) P/1 - Tinha alguém da sua família materna ou paterna que você tinha muita proximidade na sua infância?
R - Eu tinha muita proximidade com a minha avó materna, tanto que a minha primeira filha tem o nome da minha avó materna. É Mariana, minha avó.
Quando meu avô faleceu, eu estava com sete anos. Meu avô faleceu no ano de uma copa, agora se foi 74, ou 76… Foi alguma, era o jogo do Brasil e Zaire, eu não esqueço. Meu avô faleceu e ele estava em casa. Como médico, ele ligou para minha mãe e avisou que estava infartando; ele foi a óbito e eles arrumaram, ele estava em casa.
Minha mãe levou os filhos, para que dessem adeus ao avô. Essa cena eu tenho na minha memória, porque é uma cena que efetivamente marcou, acho que foi a primeira pessoa que eu vi sem vida. E no momento que eu vi minha avó ali do lado do meu avô, eu imediatamente falei: “Eu vou morar com você”. Falei para minha mãe: “Você deixa eu morar com a vovó?” Porque eu me solidarizei da dor dela estar sozinha e eu tinha muita afinidade com ela.
[Era] uma mulher bastante diferente da minha mãe, mas era uma mulher que eu admirava também. Uma mulher bastante sábia, uma mulher muito elegante, eram coisas que me chamavam a atenção. Uma mulher resiliente, porque era esposa de um médico, teve que abrir mão de muita coisa, porque meu avô era um homem muito dedicado à profissão.
Enfim, eu morei quatro anos com a minha avó, até tomar pau na escola e a minha mãe mandar eu voltar para casa.
(00:21:10) P/1 - Conte então um pouco da sua relação com os seus irmãos.
R - Bom, eu sou a única mulher. Somos cinco irmãos, eu sou o recheio do sanduíche. São dois irmãos mais velhos e dois mais novos.
Minha referência, a pessoa que eu digo que eu tenho como exemplo, é meu irmão mais velho. Eu tenho uma grande admiração por ele. Digo que no momento que eu me separei ele adotou a mim e a minha família, e é uma adoção genuína, é uma coisa muito bonita de sentir, porque não é aquele compromisso de toda semana, de toda hora. Não é isso, mas é aquele compromisso que você sabe que você tem com quem contar. É aquela pessoa que nunca esqueceu o aniversário de um filho, é aquela pessoa que efetivamente para mim é um modelo. Ele é o meu irmão mais velho, ele tem hoje 61 [anos].
Depois tem o meu irmão do casamento do meu pai com a minha mãe. Eu digo que eu amo todos os meus irmãos. Eu não acho que amor de mãe é diferente, eu sou mãe, mas eu acho que o amor por irmãos tem uma configuração diferente. O meu irmão é um ano mais velho que eu, ele é bastante diferente de mim, então nós temos uma relação cerimoniosa, vamos dizer assim, porque quando a gente se aproxima muito, vamos dizer que a gente tem algum atrito; um atrito leve, mas é um atrito, porque pensamos de maneiras diferentes. Todos pensamos, mas existe uma dificuldade maior, acho que de ambas as partes, de entender, ou talvez de estar mais familiarizado com essa maneira de pensar. Mas é um cara muito correto, um cara que na doença da minha mãe foi exemplar com ela, deu todo o apoio - não só o apoio físico mesmo, de estar lá, de ajudar, do que precisasse fazer, então eu tenho bastante respeito pela pessoa dele. É um cara que também trilhou a sua carreira profissional, ele é da área de TI.
Tenho dois irmãos mais novos, que eu falo que são aqueles que a gente acaba dando um puxãozinho de orelha depois que a mãe morre. Vamos dizer que eles gostam um pouco daquilo que meu pai também gostava, então a gente se preocupa e acaba esquecendo que eles são adultos, mas é isso. São pessoas boníssimas, acho que é uma família de pessoas muito boas, que levam no DNA essa herança de termos defeitos, todos, inclusive eu, claro, mas somos corretos.
Nós nunca nos pegamos em conflito por mesquinharias que às vezes a gente vê em família. Somos diferentes, cada um com seus projetos de vida, mas eu acho que pessoas muito boas e que amam uns aos outros, cada um da sua maneira. Não somos absolutamente próximos; nos encontramos, mas não somos uma família que estamos reunidos aos domingos, não somos assim.
Depois que minha mãe faleceu, uma coisa que eu percebo é que quando eu falo eles me ouvem. É como se eu sentisse sobre mim algum respeito. Acho que minha mãe deve se orgulhar do que ficou por aqui.
(00:26:13) P/1 - Bom, então vamos começar avançar um pouquinho na sua infância. Você se lembra da casa onde você passou a sua infância com a sua família? Ou depois, com os quatro anos que você passou morando com a sua avó? Você se lembra desses ambientes, como eles eram?
R - Eu não lembro de muita coisa da minha infância. Dizem que quando a gente não lembra muito é porque a gente apaga aquilo que não foi bom, mas eu me lembro da minha casa, porque era uma casa. A minha mãe não gostava que a gente ficasse fora de casa, então era uma casa com muito espaço, onde nós tínhamos os ambientes para fazer as coisas, então tinha o quarto de estudo, onde tinha várias mesas, porque éramos quatro.
O meu irmão mais velho ficava muito na casa da minha avó quando o meu avô era vivo, então tinha as mesas e ainda tinha uma mesa de pebolim. Era o quarto de estudos e também um ambiente para descontrair.
Tinha outro espaço no quintal. Quando éramos pequenos tinha brinquedos tipo gangorra, trepa trepa, porque era para brincar em casa, um tanquinho de areia. Conforme a gente cresceu isso saiu, e a minha mãe fez um quarto que ela chamava de garagem. Ali podia brincar, podia fazer bagunça, era fechado. Podia fazer bagunça, porque dentro de casa não era para brincar; dentro de casa era lugar de dormir, tomar banho e ver TV.
Eu lembro dos ambientes. A casa tinha uma sala grande, que era a sala de estar e de jantar. Aí tinha o corredor, à esquerda tinha a copa, que era onde a gente fazia as refeições, e a cozinha. Entrando no corredor, o primeiro à direita era o quarto onde ficavam o Paulo, meu irmão mais velho do casamento dos meus pais, o Marcelo e o Beto, que são os dois irmãos mais novos, e um banheiro em frente. No segundo quarto à direita era o quarto dos meus pais, que era uma suíte, e o último quarto, no final do corredor, era o meu, que também era uma suíte. Eles sempre brincavam: “Ela é privilegiada, só ela tem suíte”, e a minha mãe dizia: “Ela é privilegiada mesmo.” Não sei, acho que eles não gostavam disso.
Meus avós maternos moravam em uma rua próxima dali, no bairro de Santo Amaro, em uma casa de vila, então eu lembro também porque tinha uma roseira muito bonita, que fazia assim… Era uma casa de vila, mas era a esquina da vila, então rodeava assim a esquina, era uma roseira muito bonita. Meu avô ficava sempre sentado lendo jornal nessa janela próxima, que dava vista pra roseira.
Eu lembro da mesa de jantar, lembro dele sentado na cabeceira da mesa. Eu lembro assim da minha avó na sala ou na cozinha, fazendo gelatina, que eu acho que era o que ela sabia fazer, e um bolo de chocolate, que ela botava umas bolinhas prateadas em cima. Lembro que também tinha uma área fora, onde tinha muitas plantas. E como era uma vila, a gente brincava de brincadeiras de rua, tipo queimada, jogos com bola. A gente jogava taco, e eu, mesmo menina, estava lá no meio, eu brincava.
A casa do meu avô ficava atrás do colégio onde a gente estudava, então tenho essa memória. E tenho memória da casa de praia, porque meus pais costumavam viajar muito para o Hotel Clube do Brasil, não sei se você conhece. Minha mãe gostava muito do Guarujá, e ainda, vamos dizer, era uma praia com pouquíssimo movimento há muitos anos, [em] 1970. Ela teve a possibilidade, fez uma proposta absurda por um imóvel e o dono do imóvel aceitou. Ela comprou a casa, eles compraram, e a gente ia todos os finais de semana para casa do Guarujá.
Essa casa existe até hoje, hoje ela é do meu irmão - não o do casamento do meu pai com a minha mãe, o mais velho, que acabou comprando depois que minha mãe faleceu. A casa está lá e se mantém lá, mas eu tenho essas memórias.
(00:32:04) P/1 - Você comentou que a casa dos seus avós ficava atrás do colégio onde você estudava. Eu queria que você começasse a falar um pouquinho sobre as primeiras lembranças que você tem da sua vida escolar.
R - Eu sou filha de educadores. Minha mãe não lecionou, mas trabalhou no magistério como diretora, depois supervisora pedagógica; meu pai, professor, sempre lecionou mais de um período.
Nós estudávamos onde meu pai era professor, que era o Colégio Doze de Outubro. Esse colégio era um colégio grande, um colégio de rampas; eu lembro muito da gente subindo as rampas intermináveis, não chegava, já tinha preguiça de chegar na sala de aula.
Não me lembro de [pensar:] “Nossa, como eu adoro estudar.” Eu fazia o que era solicitado, mas não era uma grande paixão. Lembro muito da dona Darci, professora de Matemática. Lembro do professor Nadeu, que era o diretor do colégio, que a gente tinha um tremendo medo e respeito. Lembro das aulas de Educação Física, e que eu me escondia lá no fundo, porque eu não gostava muito de fazer as aulas, então eu ia lá para o final, no fundo, para não ficarem me vendo muito.
Acho que eu gostava de ir lá conversar com as minhas amigas. Eu gostava mais da parte social do que de levar as coisas mais a sério, vamos dizer assim, mas eu tinha um compromisso de fazer as entregas, porque afinal de contas eu era filha do professor Rubens, tinha um holofote em cima da gente.
Eu não tenho tantas lembranças. Lembro de algumas amigas do colégio.
Estudei, fiz a minha vida escolar no Colégio Doze de outubro até o momento que eu me mudei com a minha avó para outro bairro e aí mudei de colégio. E lembro que era um colégio muito gostoso, tinha um parquinho; quando menor tinha um parquinho delicioso que, entrando no colégio, estava do lado direito. Eu tenho lembrança daqueles brinquedos, tenho lembrança de tudo que era mais confortável do parquinho, de conversar com as amigas, da hora do recreio, dos passeios… Tudo isso eu lembro. As aulas eu lembro da dona Darcy, que era muito brava, muito exigente e dava a matéria que eu menos gosto, que é Matemática - a matéria que o meu pai também dava e que nunca entrou direito na minha cabeça. Além das quatro operações eu sou péssima em Matemática.
(00:35:34) P/1 - Falando um pouco ainda desse período da sua infância, fora da escola, você gostava de assistir TV, você gostava de ler? O que você gostava de assistir? Você se lembra dessas coisas?
R - Eu não era ligada em TV. Eu vivia em uma casa onde tinham meninos, meus irmãos mais novos assistiam muita TV quando estavam em casa, e eles assistiam juntos, tão juntos que às vezes eles estavam até de mãos dadas vendo TV. Lá na sala era aquela TV que era um móvel, abria assim a porta e achava muito bacana.
Não ligava para TV, não, eu gostava muito de ouvir disquinho. Eu tinha uma vitrolinha amarelinha; eu tinha uma estante no meu quarto, eu punha lá e adorava escutar disquinho. [Quando] mais nova era os disquinhos de história, Picolé ou Bonequinho de neve - eu lembro do disco verdinho, Festa no Céu, João e Maria… Eu achava o máximo aquela história de João e Maria.
Conforme eu fui crescendo o disquinho foi… Não, tem outra coisa curiosa dessa fase. Eu gostava de brincar com meus amigos imaginários. Eu montava, ficava no meu quarto, até porque ali eu tinha o meu banheiro, tinha todas as minhas coisas. Eu gostava de arrumar o meu quarto bem em ordem, arrumadinho. Então eu brincava de lojinha, eu fazia lojinha e eu era a vendedora e era a compradora. Eu fazia tudo.
Eu não gostava de brincar de boneca. Nunca brinquei de boneca; os bonecos, as bonecas eram para vender na lojinha. Essa história de trocar roupinha, pentear cabelinho, nunca gostei disso, não.
Conforme eu cresci um pouco eu gostava de ouvir fita cassete, eu troquei o disquinho. Gostava muito de MPB, ficava ali no meu quarto escrevendo. Não lembro muito da leitura; eu lembro que eu tinha muito acesso, tinha muitos livros, mas não era aquilo que detinha a minha atenção. Gostava mais de escrever e de ouvir música.
E se tinha uma festa que eu amava, amava, esperava com muita vontade era o Carnaval. Minha mãe sempre levou a gente para brincar o Carnaval no clube. Levava, mandava alguém levar. Conforme eu fui ficando mocinha, aí eu podia escolher minha fantasia. Eu participava de blocos. Fiz uma fantasia uma vez que escandalizou, porque era uma marombeira e era um biquíni na frente, saiu até no jornal, então era muito legal.
(00:39:08) P/1 - Desses bailes de Carnaval no clube tem alguma coisa que ficou na sua memória até hoje? Alguma coisa que aconteceu e você se lembra?
R - Com certeza. A minha mãe geralmente viajava nessa festa. Como eu falei que ela jogava, ela viajava com as amigas, e era muito comum eu estar sozinha em casa. Meus irmãos também viajavam. Aí uma amiga, uma grande amiga veio ficar comigo.
Em um dos dias a gente falou: “Vamos até o shopping.” Quando nós chegamos no shopping, “vamos comprar alguma coisa para colocar no Carnaval” e tal. Vimos um adesivo que era de colocar no seio e aí ela falou: “Vamos usar?” Eu falei: “Está louca, né? Como é que vamos usar?” Imagina isso, faz tempo. Ela falou: “Vamos, vai ficar legal. É grande, vai cobrir tudo.” Aí eu falei: “Ai, será?”
A gente ficou provando, botando na frente para ver.
Bom, compramos os adesivos, aí aquela emoção, lembro até hoje. A gente botando os adesivos, ficou assim, a gente achou o máximo. Pusemos os complementos, a sainha, uma jaqueta para ir para o clube, porque nós íamos sozinhas e provavelmente fomos de ônibus. Não me lembro de termos ido de outra forma.
Pois quando a gente está lá toda formosa no clube, dançando e sendo muito cortejada, os meninos fazendo toda a graça, eu vejo os meus irmãos chegando no clube. Foi um tal de sair correndo para o banheiro com ela, para esconder que a gente estava de adesivo no seio - só de adesivo, porque de costas não tinha nada, estava só a sainha, e para voltar com cara de menina muito comportada… Não que a gente tivesse feito nada de errado, mas foi engraçado, um negócio que eu não esqueço. Eles não viram.
(00:41:52) P/1 - Que sorte, né? Eles não viram!
Bom, avançando para o seu ensino médio, você se manteve na mesma escola, ou chegou a mudar? Como foi isso?
R - Quando eu mudei com a minha avó eu saí do colégio onde cursei o ensino primário e fiz o ginásio em outro colégio, lá perto da onde minha avó foi morar, que era aqui na região dos Jardins.
Acabei voltando para casa porque deu ruim. Um ano eu saí muito com a minha avó, fui muito para o clube, fui muito passear e não estudei, aí minha mãe mandou de volta, falou para eu voltar para casa. Voltei e aí ela falou: “Bom, não soube aproveitar a oportunidade”, porque eu estudava em um colégio caro, em um bom lugar. E a minha mãe era muito assim, o que é certo, é certo, o que não é, não é, aí eu fui estudar em um colégio do Estado. [Foi] a primeira vez que eu fui para um colégio público.
No colégio do Estado eu me deparei com a qualidade de ensino, porque eu entrei e eu era a melhor aluna; eu estava à frente do conteúdo, aquele conteúdo que estava sendo passado eu já tinha aprendido, e eu gostei de ser uma melhor aluna. E nessa de conquistar este título de uma boa aluna, eu fiquei nesse colégio e fiz o ensino médio técnico. Era um ensino profissionalizante na época em que eu fiz; tinha vontade de ensinar, eu queria ser professora, então eu fiz o curso de Magistério com habilitação nas séries iniciais, porque eu gostava, eu queria ensinar a ler e escrever.
Foi um curso muito bom, porque eu tive uma excelente professora de Didática. Eu devo muito ao exercício do magistério que eu pude ter a essa professora.
Estudei nesse colégio no Brooklyn, em um colégio do Estado, no ensino médio. Foram quatro anos de curso.
(00:44:38) P/1 - Então nesse período você já tinha na cabeça a ideia de que você gostaria de ser professora de ensino fundamental, dos primeiros anos. Dentro desses quatro anos você já começou a estagiar ou dar aula, ou você passou a fazer isso só depois que finalizou o ensino médio?
R - Eu já comecei no próprio colégio onde fazia o curso de Magistério, dava a possibilidade de estagiar ali. E ali eu já fui me percebendo uma pessoa inconformada. Ali, além de aprender o exercício da profissão, que era o ensinar, eu comecei a prestar atenção nessa questão da injustiça, na questão dos conflitos. Nunca me conformei em ser apenas a professora, desde o momento inicial.
Tem uma curiosidade, para mim que é uma coisa que ficou muito forte na minha lembrança, que foi um menino que ninguém se aproximava. Eu era estagiária. Ele ficava isolado mesmo na sala, porque ele cheirava muito mal. E quando eu chegava perto dele eu lembro que eu tinha que prender a respiração para poder conversar, poder explicar, porque eu era a pessoa que eu ficava auxiliando, e eu tinha um papel muito ativo, não precisam me mandar fazer. Acho que desde cedo eu tive uma pró-atividade.
Quando eu me deparei com aquela situação e escutava as crianças dizerem: “Não chega perto dele, tia. Ele é o sujismundo”... Tinha até um desenho, o sujismundo, que tinha umas mosquinhas que voavam em volta da cabeça. Eu tinha que desconversar aquilo para também não chamar tanta atenção para o problema, mas eu consegui fazer um combinado com o menino, e durante quinze dias eu chegava mais cedo no colégio para que ele pudesse tomar banho.
Eu lembro do primeiro dia que ele chegou na fila e estava asseado, limpo e cheirava bem; até me arrepia, porque foi de ver a carinha das outras crianças. A criança tem uma tirania nata que você precisa ir educando, e um cutucava o outro. “Olha, ele está limpo.” “Olha, ele está cheiroso, ele está perfumado. O que aconteceu?” E de ver o olho do menino brilhar… Que tamanha humilhação aquele menino passava todos os dias, porque ele era o excluído.
Durante quinze dias ele pode estar próximo [dos outros], mas é claro que nada se constrói em quinze dias e infelizmente isso não foi o bastante para que ele pudesse continuar a fazer isso, porque ele era de uma realidade muito vulnerável, vamos chamar assim. Foi o que eu pude fazer e aquilo me deu incentivo para continuar e atuar em outras escolas de ensino público, onde eu poderia estar junto de realidades [em] que eu pudesse fazer algo mais.
Fui trabalhar em um outro colégio, depois, eu acabei efetivada e enfim, comecei a minha carreira nas oportunidades que surgiram.
(00:49:01) P/1 - E antes da gente entrar nessas outras oportunidades, no desenvolvimento da sua carreira, eu queria falar um pouquinho ainda sobre esse período da adolescência. A gente sabe que vão mudando os gostos, você vai frequentando outros lugares, você vai mudando o visual, você vai conhecendo coisas novas. O que você acha que mudou nesse período para você?
R - Eu acho que eu não rompi padrões na adolescência. Eu acho que eu vim romper padrões depois que eu me divorciei.
A minha adolescência se deu tarde. A minha adolescência se deu quase na menopausa, tanto que lidar com meu filho na adolescência foi difícil, porque estávamos em momentos muito parecidos.
O que eu lembro da minha adolescência era muito na companhia da minha mãe, porque foi o momento que eu comecei a perceber as dificuldades, as dores que estavam ali represadas na minha mãe, então a minha maneira de auxiliá-la, de amá-la, era estar ao lado dela. Eu fazia muita coisa junto com ela.
Como eu falei, com dezoito anos eles se separaram e eu podia ficar em casa em paz. Aquilo para mim era muito bom, porque quando eu estava na minha casa eu tinha sempre um medo constante: “O que vai acontecer? Será que o meu pai vai chegar e vai ter bebido?” Mas quando eu mudo com a minha mãe, com meus irmãos - dois irmãos que foram também, um ficou com meu pai - eu me deparo com essa tranquilidade e passo a usufruir da casa, a trazer amigos de vez em quando.
Namorei cedo, comecei a namorar firme com quinze anos. Com quinze anos eu já tive o primeiro namoradinho e minha mãe dizia: “Não, não namora. Aproveita a sua vida, deixa para casar muito tarde.” A lembrança dela boa era dos anos que antecederam o casamento, então ela dizia…
Ela queria que eu fosse estudar fora, eu não quis; Acho que não me permiti, nem tive interesse em estudar fora, porque eu me sentia assim, eu queria estar, proteger um pouco a minha mãe daquela dor que ela deve ter sofrido na vida dela. Então eu acho que eu fui tranquila.
Eu namorava e era um namoro assim, bem comportado, porque eu não queria desagradar a minha mãe, e minha mãe era uma pessoa conservadora. Eu posso dizer que eu tive um namorado que eu quis, eu quase saí do trilho, mas eu voltei para o trilho… Sei lá se eu voltei para o trilho.
Eu sei que não dei trabalho, fui tranquila. Casei cedo, com 21 anos, então eu não segui o conselho da minha mãe. A minha história é quase uma sessão de terapia, porque lá dentro existia uma necessidade de constituir um modelo de família que eu não tive, então eu casei muito cedo. Hoje eu olho e falo “21 anos” assim, mas foi uma adolescência [tranquila], minha mãe não se preocupou comigo.
(00:53:13) P/1 - Avançando nessa questão, você teve uma adolescência tranquila, digamos assim, comportada. E aos 21 anos você se casou. Você já namorava com o seu ex-esposo há muito tempo? Conta um pouco como foi esse período pré-casamento.
R - O meu namoro com meu ex-marido foi um namoro breve. Meu ex-marido é judeu e nós nos conhecemos porque fomos apresentados. Uma melhor amiga, que eu já citei aqui no meu relato, também judia, namorava um rapaz judeu e via o meu ex-marido muito assim, sem namorada, ficava muito em casa. Ela acabou sabendo pelo namorado dela que eu estava sozinha, então eles promoveram um encontro. Um dia chegaram sem avisar na minha casa. “Desce, desce. Estamos aqui, vamos sair.” E o sair foi passar o fim de semana no Guarujá.
Eu fui. Nem o conhecia. Uma pessoa que eu nunca tinha visto, mas ok, eu conhecia o casal que nos apresentou, e passamos o final de semana. Foi muito curioso porque ele era muito tímido, então ele não falava. Ele era uma pessoa absolutamente assim… Eu não sou nada tímida, então eu estava completamente inconformada com a timidez dele. Eu lembro que a gente foi para a praia, e olha, eu lembro até de comprar caipirinha e dar para ele, para ver se o homem perdia a timidez; não deu certo.
Quando foi no final do dia, domingão à noite, eu viro para ele e falo: “Escuta, você tem algum problema? Você não gostou da minha cara? Tem algum problema com relação a mim? Ou é porque eu não sou judia?” E aí foi a chave para ele desembestar a falar. Começamos a falar, conversamos a noite inteira; viajamos virados, sem dormir, só batendo papo. E daquele encontro eu fui trabalhar sem dormir.
Eu lembro que na hora da história com os meus alunos eu deitei no colchonete com um; quando eu reparo eu tinha cochilado acho que uns vinte minutos. Ainda bem que ninguém chegou na sala.
Dali em diante ele passou a me procurar todos os dias. E aí eu recebia telegrama, recebia flores; eu fui bastante cortejada, vamos dizer, mas eu dizia: “Eu nem gosto muito dele. Ele é meio chato, não fala, meio gordinho, está ficando careca. Não quero um namorado, uma pessoa que vai ficar careca. É uma pessoa que você fala e nada está bom.” Mas aí ele foi agradando muito, agradando muito.
A gente saía e demorou um mês para pegar na minha mão, porque ele era tímido. Imagina, nos dias de hoje demorar um mês para pegar, é muito. Até que eu o levei para conhecer minha família e ele foi bombardeado por meu irmão mais velho, de tanta pergunta que ele teve que responder. Eu acho que meu irmão tinha um pouco essa coisa de cuidar de mim, mas a minha mãe gostou muito dele. Putz, bingo, né? Para alguém que admirava tanto a mãe, a mãe gostar muito do rapaz? Bingo.
Aí o namoro acabou ficando mais sério, acabamos nos envolvendo. Em seis meses nós ficamos noivos. Seis meses foi o tempo da minha mãe organizar todo o casamento e da gente se deparar com o problema que a gente ia trilhar com a família dele, judia. Foi uma história… Eu falo que é quase história de livro. Eu tive que casar amparada pela polícia, fui jurada de morte; minha sogra dizia que não aceitava de jeito nenhum, que eu veria gotas de sangue no meu vestido, umas coisas assim, surreais, que fizeram a minha mãe ir até a delegacia e prestar uma queixa, e o delegado, comovido com a história, mandou um carro de polícia, ficou de guarda na porta da igreja.
A nossa primeira proposta não foi casar na igreja. Nossa primeira proposta era casarmos e fazermos um [ritual] ecumênico, onde nós chamaríamos um representante de cada religião. Eu fui criada na Igreja Católica. E ela riu na cara dele, falou que isso era palhaçada, que isso não existia, e que para ela só valia se a mulher que ele escolhesse fosse judia. Aí mexeu nos brios do lado de cá, né? Porque aí minha mãe nos chamou e falou: “É isso que vocês querem? Vocês estão dispostos a encarar? Então está bom, vamos fazer o casamento. Se vocês se amam, estão dispostos. Você não quer fazer uma cerimônia mais reservada?” Aí ele dizia: “Não, eu quero vê-la entrar na igreja de véu, com tudo que ela tem direito”, e, claro, que mulher romântica não achou isso lindo, não comprou essa ideia?
Fomos conversar com o padre que aceitava o casamento e pedimos uma autorização para a cúria, para ser um casamento com disparidade de culto, porque quando você casa na Igreja Católica você apresenta o certificado de batismo do casal. Como ele era judeu, foi autorizado o casamento com disparidade de culto, então o padre já sabia algumas coisas que ele não gostaria de fazer, como ajoelhar, por exemplo, porque é algo que eles não fazem. Só que na véspera do meu casamento o padre nos chama na igreja e avisa que não ia mais fazer o casamento, porque ele foi ameaçado, né? Ele era arrimo da família, cuidava de uma mãe idosa, ficou com medo.
Por ironia do destino, o padre que estaria de plantão na igreja… Era outra igreja em que eu ia casar, não a paróquia do padre que a gente acabou chamando para fazer o casamento. O padre da igreja onde eu ia casar e que nos casou era alemão, então nós não só casamos na igreja, como o padre que nos casou foi um padre alemão com sotaque. Foi uma ironia, né? Eu sei lá. Foi algo…
Casamos. Foi uma novela. Ela compareceu, gritou na igreja, pagou gente para dizer que não ia ter casamento do lado de fora. Teve convidado que foi embora, mas nós nos casamos e vivemos vinte anos juntos. E tivemos os três filhos que eu tenho.
(01:02:19) P/1 - Falando, então, sobre esses três filhos, como foi para você a experiência de ser mãe?
R - Assim como eu identifiquei como o meu propósito ser professora, eu tinha muita vontade de ser mãe. Eu tinha muita vontade de viver o lar que eu não tive. Eu tinha o desejo de ser mãe, de promover um ambiente tranquilo, de ter pai presente, de poder contar história. Eu tenho no meu DNA a educação como guia, e eu gosto muito de educar. Ser mãe é poder colocar esse propósito em ação, então eu não tinha uma visão romântica da maternidade; eu tinha muito daquilo que eu vivi com a minha mãe, queria ter os meus filhos.
Tive a minha primeira filha com 22 anos, foi incrível. Eu nunca tive a sensação de “puxa, que saco, tenho que ficar com meu filho.” Não, sempre foi muito prazeroso. Ele foi um homem bastante presente por muitos anos. Foi realmente um pai que eu gostaria de ter tido em termos de presença física, de dar banho, de contar história, de rolar no chão, então fazia, casava bem. Era gostoso, era legal, era bom estar ali com ele. Eu acho que como a minha infância teve uma história de algumas dores, essa fase da minha vida foi uma fase de regozijo mesmo, onde eu pude ter um ambiente gostoso para lidar com as crianças. Ele estava ali, ele me ajudava, ele estava comigo, e foi muito bom.
A minha segunda filha nasceu quando a primeira tinha um ano e oito meses, aí uma tinha companhia da outra para brincar. Minha mãe sempre muito junto, sempre ajudou muito com elas, e elas foram crescendo. Elas eram meninas saudáveis, boazinhas, sabe? Era muito gostoso.
Eu conseguia fazer uma rotina muito bacana, porque eu dava aula em um período e no outro período eu ficava com elas. Eu cuidava de casa, tinha muito prazer nisso; era muito gostoso, era gostoso mesmo.
O meu terceiro filho é temporão, veio onze anos depois da segunda filha. Já vem em outra fase da vida, onde você já está mais madura, você já criou dois filhos. E nós já estávamos em uma outra condição financeira, a gente estava em uma situação mais confortável, vamos dizer assim, então também foi muito gostoso. As meninas me ajudaram com o nenê.
Foi uma novidade, foi menino. Eu queria ter mais uma menina, mas aí vem um menino; isso foi uma descoberta para mim. O que não foi bom é que eu me separei quando meu filho era pequeno, então aí desconstrói um pouco, mas era muito legal ser mãe.
As duas meninas hoje são minhas amigas, sabe? A gente se dá super bem. O menino, que está com vinte anos, é o único que ainda mora comigo - [uma] adolescência mais desafiadora.
(01:06:45) P/1 - Eu gostaria que você comentasse… Você chegou a citar que chegou a ter uma adolescência tardia depois da sua separação, então eu queria que você comentasse como foi esse processo.
R - Eu me casei como alguém que ouviu muito disquinho de contos de fadas, “casaram e foram felizes para sempre”. Quando eu me deparei com uma realidade que não foi essa, foi assim… Uma separação é muito complicada, acho que foi um fato na minha vida que me obrigou a amadurecer, e foi algo que aconteceu junto com a doença da minha mãe. Foram dois acontecimentos muito marcantes na minha vida, que aconteceram no mesmo momento, porque foi descobrir a doença da minha mãe e me separar, acho que quatro ou cinco meses depois.
O desafio foi: e agora? Apesar de eu ter uma atividade profissional, nesse momento eu não estava mais lecionando. Eu cuidava de uma loja que nós montamos; era uma loja de conveniência e eu que cuidava dela. Eu tive que cuidar de começar tudo de novo, porque eu estava afastada do magistério. Eu tive que entregar a loja, porque inclusive ela estava com um problema de ordem judicial, que eu não tinha conhecimento, e eu precisei recomeçar, com três filhos, sendo que um deles tinha apenas seis anos.
Foi nesse momento que eu digo que o meu irmão mais velho foi o meu porto seguro, porque eu precisava ser forte. Eu precisava ser forte, precisava dar conta, porque eu estava perdendo a minha mãe e perdi o meu casamento. Mesmo que a gente tenha crises, quem casa para permanecer casado é como se você construísse essa história na sua cabeça, você vai enfrentando as adversidades.
Fui aprendendo a viver um dia de cada vez e fui descobrindo coisas que eu não fazia, então acho que fui sofrendo uma série de mudanças, já em uma fase mais madura. E fui me dando, como é que eu posso dizer, eu fui me permitindo.
Isso não se deu assim do dia para noite, foi um processo. Eu cuidei por dois anos e meio da minha mãe. Eu falo que eu creio em um Deus perfeito, Deus prepara as coisas em um tempo certo, no devido momento. Por mais que aquilo doa, aquilo tem um propósito, aquela crise é uma oportunidade. E a crise foi a oportunidade para eu não focar tanto na dor da separação e me dedicar a cuidar da minha mãe, que precisava de mim.
Nisso, meu filho começa a crescer e eu tenho as dificuldades de cuidar de uma criança sem o pai, então eu tinha uma dor dupla, que era… Eu não tinha, eu estava sozinha para decidir tudo, e eu não estava dando para o meu filho aquilo que eu tanto queria, que eu dei para as minhas filhas. Eu não tinha um pai ali para compor… O meu ambiente familiar se tornou um ambiente não igual ao que era o meu, porque o problema foi diferente, mas onde estava instalada a ausência de um pai; isso foi bastante sofrido, mas, enfim, a gente vai superando.
Eu sou filha da dona Lucy, e a dona Lucy me ensinou: está com medo? Vai com medo. Está doendo? Vai doendo, vai. Está ruim, mas vai ser ruim mesmo. Está bom? Que bom que está, vai assim.
O tempo passou, eu fui superando. Comecei uma carreira na área administrativa. Eu tinha muita vontade de voltar a estudar; comecei, fui fazer Relações Públicas, mas eu tive que parar por questões financeiras, porque eu perdi o trabalho. Eu tive algumas perdas de trabalho, mas aí eu fui aprendendo de um mercado que eu também não tinha conhecimento, porque eu sempre trabalhei nessa escola. Eu fui conhecendo um pouco, fui aprendendo do universo digital, então isso foi um preparo importante para a época que a gente vive hoje. Olhando para as coisas com maturidade a gente enxerga as conquistas, não olha só os tombos.
As meninas se formaram. As duas são formadas; a minha filha é mestre, a minha filha do meio está na segunda graduação. As duas já estão em um relacionamento, estão bem. O menino também, meu filho se formou no ensino médio técnico; hoje ele está em uma segunda universidade, porque a primeira não gostou, ele está tentando uma segunda universidade.
Eu aprendi a tomar cerveja, coisa que eu não fazia de jeito nenhum, e pior, eu aprendi a gostar, mas eu bebo com muita moderação, afinal de contas a minha vida me traz toda a história [que] hoje eu não quero repetir. Eu tenho muito prazer em sair com as minhas amigas. Realizei um sonho esse ano, que foi viajar para a Europa, conhecer dois países e foi demais, viajei com amigas. Tenho muita sede de viver, tenho muita vontade de conhecer outros lugares.
Eu navego nos aplicativos para conhecer pessoas, para ter novos relacionamentos. Eu tive um relacionamento que durou três anos, vivi com ele, ele morou comigo; quando eu percebi que “nossa, isso aqui já não está me fazendo feliz, vamos manter isso cada um na sua casa”, eu percebi que é possível a gente reconstruir. Vamos tentar de outro jeito? Se não, está bom assim. Vamos tentar de outro jeito? Porque eu quero viver. Eu quero ter vida em abundância, por mais que às vezes não tenha algumas coisas em abundância. O dinheiro é pouco, o que dá pra fazer em abundância… Então é isso, eu passei a enxergar outros prazeres da vida.
Eu tenho dores? Tenho. Tenho dias tristes? Eu tenho. Mas eu tenho muitas alegrias, eu tenho muitos motivos para agradecer, e eu cresci muito. Acho que eu cresci muito com tudo o que eu vivi e com tudo que eu pude enfrentar, com os tombos. Eu me considero uma pessoa feliz.
(01:16:17) P/1 - E avançando um pouquinho nisso, você disse que você foi mudando de área. Você começou a ir mais para administração. Atualmente com o que você trabalha? Conta um pouco pra gente.
R - Quando eu me separei eu me deparei com o desafio: “E agora? Eu preciso trabalhar. E eu vou trabalhar com o quê?” Porque somado com a separação veio a dificuldade de receber a pensão, então eu tinha que ter uma garantia. A área administrativa foi um respiro porque eu fui indicada para um trabalho, ingressei em uma instituição de ensino de renome aqui em São Paulo, e fui trabalhar na área. Eu falo administrativa, mas eu fui para área de eventos, e na área de eventos eu cuidava do mailing list, hoje eles chamam CRM. Eu fui cuidar… Eu não fazia ideia do que eu ia fazer. Foi tudo muito novo.
“Você dá um Google”, eu escutei isso das minhas colegas que eram jovens. E eu falei: "O que é dar um Google?” Eu não sabia, então é por isso que eu digo… Imagina, né? Quando os jovens já dominavam isso eu não sabia o que era dar um Google, porque eu estava dentro de uma sala de aula. Eu era nada digital. Ali, na área de eventos, eu fui me familiarizando com ferramentas, fui aprendendo, fui melhorando a área; fui me envolvendo no projeto, nos eventos, me dava muito bem com a minha chefe, tinha muita abertura com ela. Era um trabalho bacana, o lugar era bom de trabalhar, tinha eventos muito legais.
Aí eu migrei para área de marketing, porque como eu cuidava mais da área de CRM fui para o marketing. Fui aprendendo muita coisa, fui aprendendo o que era uma área de marketing, área de planejamento, área de mídias, a área de criação. Eu estava ali envolvida e com uma galera superjovem, só gente jovem. Eu era, sempre fui a tia, a tia dos espaços. Só que teve um corte nesse lugar que eu trabalhava e eu entrei no corte, eu fui dispensada. Falei: “Putz!” Eu estava fazendo faculdade e precisei parar, porque fazia faculdade nesse lugar que eu trabalhava, e é uma das faculdades mais caras aqui de São Paulo. Aquilo para mim… Esse foi um tombo. Aquilo me doeu demais e eu falei: “Cara, e agora?”
Como eu já tinha alguma bagagem, eu fui pegando o que dava. Fui trabalhar em escritório de advocacia, fui trabalhar em uma clínica de nutrição funcional onde eu ajudava nutricionista e a médica, onde eu fazia de tudo, varria a entrada da clínica, levava o paciente até consulta, [sabia] como mexia nos arquivos digitais. Até que eu sou convidada a trabalhar em uma organização do terceiro setor, por um professor dessa instituição que eu trabalhava. Ele me chamou para um freela. Eu criei uma MEI, eu nem sabia o que era isso. Aprendi também a respeito da vida, do que é ser um prestador de serviço autônomo. Fui trabalhar, fazer esse freela para ele, relacionado a mailing também.
Montei o mailing dele, e aí ele me chamou para trabalhar na organização que ele dirigia, que era uma ONG. E aí eu fui trabalhar no universo da política, totalmente desconhecido; fui convidada para atuar como responsável pela governança. E eu lembro também que eu aceitei, vibrei, né? Avisei minhas filhas: “Olha, eu consegui o trabalho. Vou ser responsável pela governança.” “É mesmo, mãe? O que é isso?” Eu falei: “Olha, boa pergunta. Não sei se eu entendi direito. Eu só sei que eu vou lá ajudar o diretor, tem uns conselheiros nessa ONG e eu vou fazer o trabalho.” O nome é bonito, eu achei muito chique, me achei muito importante. E ali eu fiquei quatro anos.
Eu estive dois anos como uma secretária executiva, vamos dizer, porque eu atendia o diretor executivo e os conselhos da organização. E ali foi outro aprendizado. Aprendi muita coisa. E na mudança de gestão eu fui convidada a ser a coordenadora-geral da ONG. Aquilo para mim foi o must. Porque eu falava: “Como assim, eu vou ser? Eu nem terminei a faculdade. Eu não vou conseguir.” Mas ela me deu essa chance, essa oportunidade. Foram dois anos de muito desafio, de muito trabalho, e mais, de uma experiência incomparável, onde eu aprendi muito a respeito de pessoas, porque como coordenadora-geral de uma ONG que trabalhava com política, que trabalhava com diversidade e sustentabilidade, eu comecei a lidar com pessoas diversas, com assuntos muito sérios, com desafios enormes, e ali eu me descobri querendo entender mais, estar mais nessa questão de gente, de gestão, de pessoas.
No ano fatídico da pandemia, o meu contrato não foi renovado e ali foi um tombaço para mim. Dormir como coordenadora e acordar desempregada é muito complicado, mas como eu falei, Deus faz tudo perfeito. Aquele tempo ali me permitiu fazer uma reserva que me garantiu um ano sem sucumbir, porque foi uma dificuldade para todo mundo, né? E como eu fiquei muito down, acho que entrei em um estado de depressão, eu me desafiei a voltar a estudar. Aí “vamos marcar o médico, o médico vai agitar, né? Vai dar o que eu preciso para levantar o meu humor, me dar mais energia e vou voltar a estudar.” Esse é o momento. O momento que meu filho já cresceu. É o momento que eu tenho tempo, que como coordenadora eu já não tinha muito. Eu estava sempre ocupada.
E aí eu comecei. Eu estava com vontade? Não, mas é o que eu falei. Está sem vontade? Vai sem vontade mesmo. Uma hora alguma coisa acontece.
Vou me formar ao final desse ano. Pra mim é um troféu que eu me dou, porque eu sempre me sentia um pouco aquém; eu não tinha o curso superior, e eu sabia que o curso superior era uma questão de diploma. Sabe? Claro que você aprende, mas o exercício da prática é onde você mais aprende. O diploma abre portas - não necessariamente, as coisas estão mudando um pouco, mas tendo um curso superior, vou dizer que eu teria tido mais facilidades. E faz bem para o meu ego, faz bem para minha autoestima, me faz bem.
Nesse momento que eu volto a estudar e estou sem emprego, eu me candidatei a uma vaga de estágio. Eu li e falei: “Mas eu vou ser estagiária?” Como coordenadora da ONG, eu coordenava sete estagiários, mas agora vou ser uma estagiária e vou ganhar dez por cento do que eu ganhava. E no processo junto à Maturi, que é o programa dedicado para profissionais 50+, a recrutadora… Eu já tinha avançado no processo, porque eu falei: “Vamos nos inscrever só para ver como é que é”, totalmente descrente. Eu já tinha avançado no processo, e ela fala: “Ana, puxa, você não sabe o quanto você vai motivar as pessoas. Vai ser muito bom para você.” Aquilo ali acendeu uma luz, uma esperança, uma vontade, enfim.
No final eu fui aprovada na entrevista pela empresa e fiquei, fiz o estágio de treze meses. Saí agora no mês de julho. Gostaria de ter avançado até o final, que seria até o final do ano, mas mudou a direção, mudou a proposta da área, e não cabia mais a minha posição ali.
No momento que eu estou estagiando, me surge por aquele diretor da ONG que eu trabalhei uma nova proposta de trabalho, uma proposta como prestadora de serviço, mas para dar suporte em uma instituição de ensino superior que está em fase de credenciamento pelo MEC. E aí a Ana entrou de novo: “Você já fez isso, Ana”? “Eu não.” “E agora?” “A gente aprende. Já aprendi tanta coisa, vou aprender mais essa”, aí fui.
Eu entrei para revisar o currículo Lattes de todos os docentes. O que eu sabia? Nada. Mas aí a gente lê, a gente fuça, a gente pergunta, a gente tem internet. A gente dá um jeito de saber, e até de não saber, de dizer para as pessoas: “Eu não sei, me ensina? Me ajuda?” Eu também aprendi que é muito importante a gente ser humilde, que com humildade a gente conquista muita coisa. E para uma família tradicional, às vezes é mais difícil a gente ter essa consciência. Às vezes a gente não é tão humilde.
(PAUSA)
(01:28:36) P/1 - Retomando, você estava falando sobre essas experiências, as várias experiências que você teve profissionais nos últimos anos, inclusive durante a pandemia, e a sua retomada dos estudos que você está finalizando agora. Eu queria te perguntar o seguinte: você chegou, em algum desses momentos, desses vários lugares que você trabalhou, a sentir algum tipo de preconceito em relação à sua idade?
R - Olha, eu acho que o preconceito etário, o etarismo, às vezes ele… Eu acho que ele é muito velado. A gente acaba percebendo quando você passa a ser um pouco descartado de algumas atividades. Você, me perguntando isso, e eu fazendo aqui uma retrospectiva, eu me lembro que no lugar onde eu fui trabalhar e onde eu pude estudar durante dois anos e fiz Relações Públicas, tinha o mantenedor, o diretor principal; quando ele podia não me deixar participar era o melhor dos mundos para ele. É que a minha superior, ela sempre, vamos dizer, me protegia. Por quê? Porque era um universo de meninas bonitas, jovens; eu destoava na questão da idade. Então eu percebia, era de forma velada, mas eu percebia que em alguns eventos eu não era recrutada, e é porque não precisava ter uma pessoa mais velha que ia destoar do grupo de moças, jovens, todas lindas, todas do jeito que aquele diretor gostava. Foi um primeiro momento, acho, onde eu percebi.
Na ONG nunca percebi. A ONG tinha um movimento diferente, é aquilo, e valorizava-se a diversidade, então nós buscávamos incluir. Eu representava uma pessoa de mais idade, uma pessoa 50+. Eu contratei uma pessoa 60+, mas eu também entrevistava jovens transexuais, negros, enfim. Ali, efetivamente, como as pessoas se identificam com o propósito, e a cultura era verdadeira, eu não sentia; [era] muito mais confortável, você se sente verdadeiramente incluído.
Nesse processo de estágio que eu passei recentemente e que eu fiquei treze meses, eu sentia, mas é isso, a forma é velada. É um universo de pessoas mais jovens. O movimento da pessoa mais jovem é diferente da pessoa com mais de cinquenta anos, a maneira de se comportar… Enfim, por mais que a gente busque ser jovem, a gente já viveu mais, a gente já tem… Eu sou uma pessoa que se adapta, costumo me dar bem com as pessoas, mas você percebe que existe um… Parece que é um desconforto. Por mais que isso seja uma percepção minha, particular, talvez não seja a realidade da maioria; eu falo talvez, porque efetivamente eu não sei.
A nossa prática digital, por mais aperfeiçoada que ela seja, nunca vai ser a prática digital de uma pessoa que nasceu mais próxima da revolução digital. A gente evolui, a gente aprende, a gente faz, mas a gente agrega outros atributos, outras características que não essa super habilidade digital. Eu acho que sei mexer em muitas ferramentas, sei fazer muitas coisas, assim como eu também não sei fazer outras, e isso acaba pesando, então eu acho que o meu estágio não se estendeu mais e acredito que a idade também pesou, talvez por eu não ter a agilidade que uma pessoa muito mais jovem que eu tem, né? Quer dizer, ela tem uma performance digital melhor.
São deduções, isso não foi dito abertamente, mas a gente viveu mais, a gente já entende algumas coisas sem precisar de mensagem. Acho que é nesse aspecto, mas isso também não me intimida. Eu acho que - acho não, estudos comprovam que o sucesso das organizações se dá em uma equipe diversa, e a diversidade inclui a pessoa mais velha, a pessoa com deficiência, a pessoa que viveu em vulnerabilidade, em ambientes mais vulneráveis, os pretos, os pardos, os índios, os mais jovens. É uma união de características e de competências, uma não se sobrepõe à outra, elas se unem. Só que para você ter isso revertido em resultado, você precisa ser um bom líder, e é o que o mercado mais carece, porque efetivamente nada disso é fácil. Acho que os líderes são cobrados de resultado, sem dúvida, então na cobrança por resultado ele precisa de rapidez. E o trabalho com a inclusão talvez requeira mais tempo, porque o repertório de uma pessoa que viveu em ambientes mais vulneráveis é outro do que de uma pessoa privilegiada. Não tem como você exigir a mesma coisa nessas duas pessoas, mas tem como você somar, você colocar esses dois trabalhando juntos, para um ajudar o outro.
Eu gosto do meu olhar. Eu gosto disso, isso para mim é propósito para eu continuar, tentando fazer alguma coisa. Eu não sei o que vai ser porque é na oportunidade que surge. E a fala é um pouco mais bonita do que aplicável. Ela é muito legal. Ela vira um debate maravilhoso na TV, em workshops de empresa; ela é um debate lindo, mas a realidade é aquela nua, crua, difícil, dolorosa.
Acredito que em mais alguns anos - não, não são anos, mas décadas - a gente vai estar em um mundo melhor, e eu não me coloco em uma caixinha onde eu já superei todas as minhas… Hoje eu não chamo de preconceito, hoje eu chamo de estranhezas. Outro dia até discutia isso com meu filho aqui: “Pra mim é estranho, isso.” Aí ele fala: “Não deveria ser.” Mas não é assim que você arranca, por isso que eu digo são décadas. Isso deixa de ser estranho a cada geração, e eu só fico feliz comigo de aceitar desconstruir todas essas estranhezas; já assumi que elas existem ainda, mas que quero desconstruir.
(01:38:40) P/1 - Puxando ainda por essa fala que você estava comentando, queria então te fazer uma pergunta dupla, digamos assim. Primeiramente, que diferencial você acredita que você tem, da sua experiência em trabalho? O que você contribui que os jovens não contribuem, essa diferença que você teria? E qual a importância dessa diversidade para você no mercado de trabalho?
R - Tem uma coisa que só a vida dá, só a trajetória, só anos de vida dá, que é sabedoria, que eu vou traduzir em paciência. O jovem, naturalmente, é mais impaciente, o jovem é mais imediatista; ele tem sede que as coisas aconteçam, aconteçam rápido, às vezes se tornam até intolerantes. Acho que a paciência que uma pessoa mais velha consegue imprimir em uma equipe jovem - paciência que eu também traduzo como resiliência, pensar até dez - é algo que você consegue agregar, e o jovem não tem isso porque ele não viveu.
Eu trabalhei com jovens de vinte anos, mais jovens, com dezoito; eles são digitais, eles têm tudo na palma da mão, têm tudo rápido. Eles não viveram, não precisaram passar nada no mimeógrafo, não sabem o que é papel carbono, são coisas que efetivamente são desconhecidas. A gente passou por muita coisa que esses jovens não passaram, e a gente tem isso no nosso interior. A gente assiste, por exemplo, o filme Um Senhor Estagiário; o que ele agrega ali? Um Senhor Estagiário agrega trazendo um pouco mais de calma para aquela mulher, que é super profissional, competente ao máximo, mas que tem uma vida ali sendo arruinada. Como ele repara isso nas entrelinhas, ele é capaz de arrumar uma mesa que estava caótica, e as pessoas começam a achar coisas que talvez estivessem perdidas ali há tanto tempo. E como ele é humilde, porque aquele homem que está sentado naquela mesa já foi um um chefe.
É você aprender que você nunca sabe tudo, conseguir passar isso para o outro é muito importante. Você dá esperança para o outro que [pensa] “puxa, não deu certo”, mas “tenta de novo, não desiste, porque pode dar certo de novo”. Perceber que aquele jovem está completamente sem condição de trabalhar, porque ele foi para a balada, porque ele dormiu mal, ou pelo motivo que foi e aquilo o abala tanto a ponto de tirá-lo do foco, e você conseguir dar àquela pessoa mais conforto para se permitir aquele momento, foram situações que eu me vi [com uma] pessoa jovem. Isso é muito bom, o rendimento dele no dia seguinte é duas vezes melhor. Então eu acho que é isso. Isso para mim é inegável. Então é um trabalho que se complementa.
(01:43:33) P/1 - Bom, então a gente vai para o bloco final de perguntas, Ana. Essas perguntas são um pouco mais pessoais, menos profissionais. Primeiramente, quem é o seu grupo de apoio?
R - Meu grupo de apoio. Bom, as minhas filhas são. Eu falo que as melhores amigas são as minhas filhas, são aquelas pessoas que eu posso falar tudo, e a gente fala tudo mesmo, eu conto tudo. Às vezes elas até falam: “Não, mãe, não precisa falar isso aí também”, mas eu conto tudo. O meu filho, eu acho que ele ainda é muito jovem, então acho que eu ainda sou mais apoio dele do que ele meu. Os meus gatos, que eu adquiri; um eu adotei um ano antes da pandemia e a pedido do meu filho - eu não pensava em ter gatos - e o outro eu adotei durante a pandemia. Cara, animal é tudo para quem vive sem uma companhia, para quem está por muito tempo sozinha em casa. É um apoio mesmo, porque em dias assim mais nublados, de repente o gato sobe em cima de você e põe a patinha para dizer “eu estou aqui”, e isso já aconteceu comigo, de estar em um dia muito difícil, muito complicado, e o meu gato deitar em cima de mim e encostar a cabeça assim no meu coração, e do meu coração se sentir abraçado.
Eu faço terapia, não abro mão da terapia. Fazer terapia para mim é muito apoio. Acho que eu quero descobrir por que penso determinadas coisas, por que ajo em determinadas situações de certa forma. Eu quero ser uma pessoa melhor, quero me tornar uma pessoa melhor. Eu sou uma pessoa inquieta, no sentido de… Eu já usei um termo aqui, eu sou inconformada com a mesmice. Eu não gosto de mesmice, tá? Eu gosto de…O quanto melhor resolvido estiver, é assim que eu quero estar.
Acho que nas redes sociais a gente encontra gente muito boa para nos amparar com relação a situações que a gente precisa de suporte; elas podem ser difíceis, como podem ser corriqueiras. Como passar base em uma pele madura? Cara, isso não existia. Aí você vai lá, você liga e você faz uma maquiagem olhando um vídeo. Isso para mim é uma puta rede de apoio. “É assim, cara? Eu não sabia.” Então você vai lá e você fala: “Puxa, não é que fica bonito? Vou fazer também.” E aí você se sente bonita e é muito legal. E aí você encontra um universo de coisas para você acompanhar.
De repente, estar sozinho acaba sendo quase uma opção, porque existem inúmeras maneiras de você se sentir, estar acompanhado. É uma boa música, é em uma boa palestra, é tendo animais, indo em um… Não tem dinheiro? Indo para um parque… Eu acho que é assim, não reduzo a alguém ou a um grupo só. Eu acho que é esse mix todo que eu falei e que é super importante.
(01:48:08) P/1 - E quais são as coisas mais importantes para você hoje em dia?
R - Bom, meus filhos.
Olha, agora Deus puxou minha orelha aqui, tá? Não sei se foi Deus, quem foi? Porque na minha fé amo a Deus acima de todas as coisas. Então Deus vem em primeiro lugar, a minha família, meus filhos em segundo, e aí eu estendo para a família, que entra em um terceiro lugar. Efetivamente, meus filhos são minha vida, é aquilo que eu amo demais. E a minha vida, para que estando bem eu possa ajudar outras pessoas, porque eu já entendi que quando não estou bem eu não ajudo ninguém, mas se eu estiver bem eu posso mudar a vida de alguém. Então acho que é isso.
(01:49:25) P/1 - E quais os seus sonhos para o futuro, Ana?
R - Viajar muito, conhecer o máximo que eu conseguir do mundo, o máximo. Eu tenho sede de conhecer novos lugares, de conhecer outras culturas, outras pessoas, de poder vivenciar isso. Isso me deu um ânimo enorme. Onde eu puder plantar alguma coisa boa de cada lugar que eu passar, vai fazer a diferença para mim.
Eu não quero falar o que eu quero com relação aos outros, por exemplo, ver meus filhos bem, felizes. Eu acho que é o meu sonho, então o meu sonho é para além disso que naturalmente eu tenho, poder conhecer muitos lugares. O máximo que Deus me permitir.
(01:50:45) P/1 - Então nós vamos para a última pergunta. O que foi que você achou? Como você se sentiu contando a sua história pra gente hoje?
R - Olha, sabe que foi uma experiência muito interessante? Quando eu aceitei, eu falei: “Nossa que diferente, mas não é nem… Sou uma pessoa tão comum, né?”
E enquanto eu estava falando para você foi gostoso, porque eu fui revivendo o passado, trazendo para minha lembrança memórias que às vezes eu já nem capturo, porque elas estão lá esquecidinhas e estão lá, estão lá na caixinha delas. Então foi bastante… Foi muito bom.
Eu sou uma pessoa que gosta bastante de falar, então não tive dificuldade, mas até para eu também entender que é a minha história, então por que eu vou desvalorizar a minha história de vida, né? Pô, olha quanta coisa aconteceu, olha quanta coisa passou, olha quanta coisa que você reconhece que foi bom, aquilo que não foi bom você pode olhar com o olhar que você está olhando hoje.
Claro, a gente não é essa contação de histórias, tem dia que a gente está para lá de Bagdá, que só o teu edredom, o teu travesseiro, o teu gatinho ali colado e você chora. É assim, a vida é assim, mas é tão boa, é tão bom estar viva.
Eu me senti bem, eu sou muito grata pelo convite. Espero que o projeto prospere, que outras histórias possam servir para incentivar outras pessoas, para encorajar outras pessoas. Acho que algum propósito existe nessa contação de histórias, né?
Que eu possa deixar a mensagem de que nada é para sempre. Tudo termina, mas enquanto está acontecendo, aproveita, aproveita. E aquilo que não é tão agradável, lembra? Não é para sempre, vai passar, não desiste. Eu acho que para mim essa é a frase principal. Não desista. Nunca. Uma hora vai dar certo.
(01:53:48) P/1 - Pessoalmente e também em nome do Museu da Pessoa, a gente agradece muito você ter aceito o convite e a conversa que a gente teve agora.
R - Eu que agradeço, Genivaldo. Foi um prazer!
Recolher