Plano Anual de Atividades 2013 Pronac 128976 - Whirlpool
Depoimento de Raimunda das Chagas Ribeiro, Saracá.
Entrevistada por Márcia Trezza e Eliete Pereira
Iranduba, 26/04/2014.
WHLP_HV020_Raimunda das Chagas Ribeiro, Saracá
Realização Museu da Pessoa.
Transcrito por Iara Gobbo.
P/1 – Saracá, a gente vai começar a entrevista. Fala o seu nome completo, por favor.
R – Meu nome é Raimunda das Chagas Ribeiro, conhecida por Saracá.
P/1 – Onde você nasceu?
R – Em Lábrea.
P/1 – Amazonas?
R – Amazonas.
P/1 – Em que dia e mês e ano?
R – Eu nasci dia 13 de Dezembro de 1944.
P/1 – Como é que você começou a ser chamada de Saracá? Conta essa história.
R – Essa é uma história, assim, que começou depois que eu conheci o Rio Negro, quando cheguei aqui no Rio Negro, que comecei, fui convidada pra dar aula aqui no Saracá - professora eu não era, mas fui convidada e aceitei o convite. Então eu comecei a trabalhar pro Novo Airão e no Novo Airão, com três anos, Iranduba achou de assumir, que diz que o município era Iranduba, como de fato é, né? E logo seguido, quando eu passei pra Iranduba, teve a intervenção no município, que veio um senhor chamado Antonio Ferreira Lima, que veio ser o interventor de Iranduba, que tiraram o prefeito, que era o Nelson Maranhão. E ele veio me fazer uma visita, quando ele estava com dois meses no Iranduba, ele veio me fazer uma visita, e ele não sabia o meu nome. E ele chegou duas horas da madrugada no meu porto e de lá ele gritava. Ele lembrou o nome da comunidade, que não era comunidade, era um... Aí ele gritava: “Saracá, Saracá”, e eu me acordei naquilo, Saracá. Digo: “Pessoal de Novo Airão, será?” E eu usava farda, né, aí me fardei e desci. Cheguei lá, era Iranduba. Aí eu cheguei: ”Seja bem vindo”, ele: ”Eu sou o interventor de Iranduba”, se apresentou e aí mandou me sentar. Eu sentei perto dele, eu tava com uma calça azul e ele começou a escrever assim na minha perna: “Saracá, Saracá”. No Iranduba tem poucas pessoas que conhecem o meu nome.
P/1 – Como Raimunda?
R – É, como Raimunda, só me chamam Saracá. E é um apelido que eu acatei, eu gosto, porque tem muita Raimunda aqui. Aí chama Raimunda, se chamar Saracá eu já sei que é eu, né? E se chamar outra eu fico respondendo à toa (riso), e eu gosto muito do meu apelido.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – Ah, o nome do meu pai era Lino Fernandes Ribeiro. A minha mãe, quando casada com ele, Francisca das Chagas Fernandes. Assim é o nome dos meus pais. Minha mãe ainda é viva até hoje, mas o meu pai faleceu com 52 anos, muito jovem meu pai.
P/1 – O que que ele fazia, Saracá? Ele trabalhava com que?
R – O meu pai cortava seringa. É seringueiro, né, que chamam?
P/1 – Seringueiro.
R – Eu sou de família humilde, o meu pai cortava seringa, plantava, agricultura, porque no Purus dá muito. Aliás, meu pai plantava todo tipo de alimentação, como feijão, arroz, milho, mandioca e etc. Melancia, jerimum, batata, tudo isso.
P/1 – E como trabalhador nos seringais você lembra?
R – Sim.
P/1 – Que imagem você tem dessa época, dele?
R – Ah, eu tenho uma imagem assim... É muito difícil, eu tenho uma imagem triste do meu pai como seringueiro. Porque ele levantava... Eu sou filha única, mulher, são nove homens, só eu de mulher, e eu fui criada assim muito paparicada, entendeu? E eu via meu pai levantar às duas horas da madrugada, não tinha negócio de lanterna, sei lá, usava aquela tal de poronga, não sei se vocês sabem, uma lamparina dentro de uma lata, um negócio que clareava. Mamãe fazia o café, botava uma farinha com ovo dentro de um saquinho, e ele ia embora pra estrada de madrugada, e só retornava pra casa duas, três horas da tarde. Aquilo às vezes nem aproveitava o produto da seringa, que com chuva ninguém podia tirar o leite, que eles chamavam assim: “A chuva tomou meu leite”. Aí com patrão, patrão também não gostava muito de vender as coisa assim. Só que a gente não comprava, ele não comprava muita coisa por causa que alimentação nós tinha de tudo, graças a Deus. Sempre eu digo pros meus filhos hoje, eu fui criada na fartura das coisas. Agora, como eles são criado hoje, a visão que eu tenho do meu pai naquela época era triste pra mim, sabe?
P/1 – Saracá, e você disse que ele também plantava. Tinha roça onde vocês moravam?
R – Tinha.
P/1 – E ele chegava do seringal e ainda trabalhava na roça?
R – Ele chegava do seringal, tinha o meu irmão mais velho, aí ele botava ele pra ir defumar borracha, o leite lá, e ele já ia pra roça com a minha mãe. Aí eu que ficava cuidando do resto da casa. Eu com sete anos de idade, eu tomei conta da casa da minha mãe, porque na época o meu pai adoeceu, teve uma doença grave, apareceu uma ferida na perna e que ferida foi essa que meu pai ficou prostrado 12 anos. E a minha mãe precisou trabalhar, aí nós passamos vida mais aperreada, entendeu? Que a minha mãe não podia dar conta da estrada e das roças, das coisa que a gente plantava. A gente não, meu pai, eu não trabalhava, só em casa. E nós passamos crises difícil.
P/1 – Mas Saracá, você disse que ela não dava conta da estrada. Como assim?
R – Sim, porque ela tinha que sair de madrugada, ela tinha medo de ir. Em vez de cortar toda a estrada, ela já fazia só a metade, porque ela tinha medo de sair. Meu pai saía duas horas da madrugada.
P/1 – Mas ela então trabalhou também como seringueira?
R – Trabalhou muito, muito. Quando ele ficou doente ela trabalhou muito.
P/1 – A parte que ele fazia da borracha, fazia extração, aí ele depois tratava?
R – Sim.
P/1 – Pra depois vender?
R – Pra depois vender. Porque é assim: corta a seringa, aí defumava a tal de borracha, quando tava bem grandona que levava lá pro tal de patrão, que ele tinha um patrão lá que eu acho que financiava. Eu imagino assim um financiamento, né, mercadoria. Dinheiro meu pai não via, eu acho. Porque uma coisa que eu não vou ter vergonha de dizer pras senhoras, é que eu vim conhecer dinheiro – parece mentira, mas é verdade – eu vim conhecer dinheiro com 17 anos. Então eu imagino que meu pai não pegava dinheiro, ele vendia aquela borracha e o dinheiro parece que ele comprava as coisa, como açúcar, café e tantas outras coisa que um pai de família necessita pra casa.
P/1 – Talvez a vestimenta, alguma vestimenta.
R – Sim, um vestimento pra gente, que a gente não tinha assim calçados, entendeu? Eu tenho até um dizer comigo hoje, os meus filhos me acham vaidosa, porque hoje eu tenho onde guarda uma penteadeira, uma coisa. Aí aquilo quando você abre parece assim de uma menina, entendeu? Aí eles diz: “Ah mãe, a senhora já tá velha, vaidosa”, “Não, meus filho, eu sou vaidosa não, é porque aquilo que eu não tive, quando eu necessita ter, hoje eu posso, eu vou comprar. Se eu não usar, tem vocês, tem minhas netas, tem minha filha”, então ela pode usar, que negócio de batom, de maquiagem, essas coisas eu não uso, mas eu tenho tudo isso.
P/1 – Saracá, você disse que trabalhava desde os sete anos, mas mesmo assim brincava?
R – Desde os sete anos. Não, olha, eu não tive, por isso que ainda agora eu falei pra você que eu imagino que eu não tive infância, entendeu? Porque com sete anos tomei conta da nossa casa. A única coisa que eu não fazia em casa era lavar roupa do papai e da mamãe, porque era grande. Eu era bem magrinha e além de eu ser magrinha, ainda sou pequena até hoje, eu sofria asma, sabe o que é asma? Eu sofria, aí a mamãe não deixava eu lavar roupa dele e do papai porque pesava. Mas eu cuidava da casa, eu fazia limpeza do terreiro, o pessoal chama o quintal pra cá, né? Lá era um tal de terreiro bem grandão, da mamãe. Então a única folga que eu tinha assim era dia de domingo, mas eu fui criada, meu pai era muito rígido, ele não deixava a gente sair pra canto nenhum. A gente tinha alguns coleguinha, mas os coleguinha até tinham medo de ir na nossa casa, porque papai e mamãe não deixava a gente brincar assim, como tão aqueles meninos ali, olha. Então eu imagino que eu não tive juventude, infância, essas coisa, entendeu?
P/1 – E com os irmãos todos homens, nove? Oito?
R – É nove.
P/1 – Como que era a convivência com eles?
R – Era difícil assim, sabe, porque eles o papai deixava brincar bola. Faziam umas bolas de seringa, e eles brincavam bola. Às vezes iam pular n’água com outros meninos, aí eu pedia: “Pai, deixa eu ir tomar banho com eles?”, “Não, você é a mocinha de casa, você tem tomar banho só com a sua mãe”. Então era difícil e os menino ficava fazendo pouco de mim, sabe? Tem um que até ante ontem, eu tava falando com ele, ele mora na Cidade de Tapuá, ele liga pra mim: “Minha irmã, tu ainda tem saudade do tempo que nós era jovem?”, eu digo: “Não, meu irmão, para. Não quero nem lembrar que você...” Ele fazia pouco de mim: “A gente pula na água, a gente joga bola, e tu só aí, tá vendo? Só pra cuidar de nós”. Ai, me dava tanta raiva (riso)!
P/1 – Você não escapou nenhuma vez não? Não fugiu nenhuma vez pra pular?
R – Não, eu quando tentei fugir, já foi de vera.
P/1 – Como assim?
R – Meus pais separaram, eu fiquei tomando conta da meninada tudinho. Fiquei até com uma garota, minha irmã de oito meses, e daí eu fui me sentindo cada vez pior. Minha mãe deixou nós tudinho com nosso pai.
P/1 – Ela foi embora?
R – É, ela foi embora, deixou meu pai.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Eu tinha doze. Aí meu pai - aliás acho que quando ela saiu eu tava com onze, por aí. Aí meu pai deu de levar a gente pra festinha, sabe, tinha festinha ele levava a gente. Aí fomo a primeira, a segunda, a terceira, eu não gostei mais.
P/1 – Por quê?
R – Porque o pessoal dizia que quando a gente ia chegando, eles diziam assim: “Olha, essa criança casada com esse velho”. Porque eu tinha uma bebê no braço e eu fui me sentindo mal: “Pai, eu não sou tua mulher. O pessoal diz que eu sou casada com o senhor “, e eu fui me sentindo mal.
P/1 – Sei.
R – Aí nesse negócio de vai e vem, arranjei um namorado.
P/1 – Mas na festa?
R – Na festa. Aí o namorado gostou de mim, foi pedir pro pai.
P/1 – Você tinha que idade?
R – Ah, eu tô dizendo que eu tava com 12? Mas quando ele foi me pedir pra namorar, eu já tava completando os 13.
P/1 – E aí, você gostou dele?
R – Aí eu gostei dele. Mas eu não gostava dele com intenção de me casar, ou eu talvez pensava que casamento era assim como brincar de boneca, entendeu? Eu brinco hoje contigo e amanhã tu tá ali num canto, eu vou pra cá, pra outro, era o meu pensamento. E lá ele foi pedir, o papai não deu. Ele disse que eu era muito nova e que ele tinha a filha dele pra casar com um homem. Falou assim por essas palavras, não com um cabra safado. Eu não sei o que que ele via nele. Ele disse: “Tá bom, a filha é sua e a vontade é minha, tá bom”, e foi embora.
P/1 – E você?
R – Eu fiquei. Quando ele saiu – meu pai nunca me bateu, nunca me deu nem um beliscão. Aí ele chamou e disse: “Minha filha, você queria mesmo esse homem, de verdade?”, eu digo “Pai, eu não só queria, eu quero”, porque eu sempre fui muito sincera! Se eu tiver que dizer qualquer coisa pra você, mesmo que depois eu peça desculpa, mas eu vou dizer. Eu disse: “Pai, eu só não queria, eu quero ele. E por que você não deixa eu casar com ele?”, ele disse: “Não, você não é nem besta! Você nunca apanhou, mas se você começar com esse homem, você vai apanhar”, eu digo: “Tá bom”. Quando foi no outro dia, meu pai saiu pra trabalhar. Não demorou e ele chegou lá em casa, ele e uma senhora que era até minha comadre.
P/1 – O que queria namorar com você?
R – É, e aí ele foi lá com ela e ele perguntou se eu queria fugir com ele. Aí eu disse: “Como é fugir? Fugir como é?”, então ele disse: “Você vai embora comigo, você vai ser minha mulher”, e eu: “Não, vou nada, meu pai vai me matar. Tá doido? Vou não”. Aí essa minha comadre dizia: “Nada, vai com ele, deixa de ser besta. Senão tu vai ficar velha e teu pai nunca vai deixar tu casar”. E eu fui naquela conversa dela, aí fugi com ele, de verdade.
P/1 – Olha! Quantos anos ele tinha na época?
R – Ele tinha 21 anos e eu tinha 13.
P/1 – E como é que foi esse dia, esse momento de fugir?
R – Aí foi... É, assim, eu não fiquei com medo, entendeu? E fui me embora com ele e o irmão dele, nós três “fomo” embora por um caminho que era três horas de viagem, pra casa dos pais dele.
P/1 – Seu pai tava trabalhando nessa hora?
R – Papai tava cortando seringa de novo. Ele tinha ficado bom, e voltou cortar seringa de novo. Aí fui embora, quando passei na entrada do caminho onde meu pai cortava seringa, eu peguei e deixei uma escrita pro meu pai: “Fui embora pai. Se o senhor quiser ir atrás de mim, eu tô no canto fulano de tal”.
P/1 – Ah, você falou onde tava?
R – É, digo: “Eu vou estar em o canto fulano de tal”. Aí tá bom, fui embora, ele: ”Tá doida”, eu digo: “Nada, sou doida não, eu tô avisando meu pai”. Aí fui embora, os meninos ficaram tudo chorando, os pequeno, sabe? Aí eu fui me embora.
P/1 – Tinha irmãos mais novos que você?
R – Tinha, eu não tô dizendo que eu tinha uma menina de oito meses? Ficou com oito meses.
P/1 – Mais uma menina, eu achei que tinha só meninos, irmãos.
R – Não, tinha uma menina. Só que ela morreu com cinco anos, já grandinha.
P/1 – Saracá, e você fugiu com ele, e foi pra onde?
R – Sim, nós fomos pra uma localidade por nome São Roque, terra firme – a gente morava na beira do rio, né? Terra firme, com três horas de viagem. Aí deixei dito pro meu pai...
P/1 – Vocês foram como?
R – Três horas viajando a pé.
P/1 – A pé? E aí?
R – E aí eu só fui com um vestido e o outro por cima. Só levei dois vestidos. Aí deixei dito pro meu pai aonde eu ia. Assim, tipo, eu imagino que eu era muito infantil, entendeu? Porque tá fugindo, ainda tá dizendo pra onde vai, né? Quando chegamos lá, os pais dele: “Venha cá menina, quantos anos você tem?”, aí eu disse, “Você quer ficar com meu filho?”, aí eu achei graça, mas eu disse: “Olhe senhor, se eu não quisesse ficar com seu filho eu não tinha vindo com ele, não”. “Tá bom, então você vai dormir aqui em casa, vamos ver a reação do seu pai”. Mas eu sabia que meu pai ia atrás. Aí a velha disse: “Você vai dormir comigo”, eu digo “Eu vou dormir é com ele, eu vim com ele, eu vou com ele”. “Não!”, eu: “Vou sim, eu vou dormir com ele sim”. Aí eu fui dormir com ele. Quando foi cinco hora da manhã, tocou, o velho saiu: “Olha a gangue”, a polícia, meu pai e meus dois irmãos mais velho. Aí o delegado falou e o velho, pai dele, disse: “Ela está aqui”. Aí me chamaram, chamaram ele, aí a polícia: “Nós vamo embora agora, dona Raimunda e seu...” - é Raimundo o nome dele.
P/1 – Ah é?
R – Aí ele disse: “Aí Raimunda, agora?”, “Agora não, vamos até onde vai chegar esse negócio”. Aí fomos embora.
P/1 – Mas ele foi com você?
R – Foi, foi o pai, a mãe dele, tudo foram.
P/1 – Pra onde?
R – Aí fomo pra casa do delegado. Aí chegamo lá, fomos pro juiz de menor.
P/1 – E aí?
R – Aí quando chegamo lá, no juiz de menor, lá que foi o galho! Aí o juiz perguntou de mim se ele tinha sido meu autor. Claro que sim, uma menina de 13 anos ia conhecer outro homem sem ser aquele?, digo: “Sim”, “E você pretende casar com ele?”, disse: “Sim, se me entreguei pra ele, porque eu quero ser a esposa dele”. E o papai lá, em pé. Aí disse assim: “Aí seu Lino, a moça quer casar”, o juiz disse. Meu pai disse “Ela só vai casar se ela passar por cima do meu cadáver. Eu mato todos os dois, mas não quero ver ela casada com esse bandido”.
P/1 – E aí?
R – Aí o juiz disse: “E agora?”. Eu sei que a moral da história...
P/1 – E o Raimundo?
R – O Raimundo tava lá, ele disse: “Bom”, aí o juiz disse: “E você, você quer casar com ela?”, ele disse “Não, quero não. Eu roubei ela pra quebrar o tabu do pai dela, porque é muito orgulhoso, mas eu não quero casar com ela”.
P/1 – E aí, Saracá?
R – Aí sim, aí eu parece que eu morri naquela hora. Aí o juiz disse: “Bom, então agora é o seguinte, você vai pra cadeia” – porque naquele tempo honra de moça valia, hoje não, que não... “Você vai pra cadeia e ela vai ficar na minha casa”.
P/1 – O delegado falou?
R – O juiz de menor. “Até que ela complete 18 anos. Quando ela completar 18 anos, se ela quiser lhe tirar do xadrez, ela lhe tira, se não ela lhe condena”. Aí ele virou pra mim, perguntou: “Quando você completar 18 anos você me tira?”, digo: “Não, eu vou te condenar o máximo, porque você me enganou, você é covarde. Eu sou uma criança pra você, você tem 21 anos”. No caso, ele foi preso.
P/1 – E aí?
R – E eu fiquei aí. De três em três mês, reunião, aquelas audiências, né, e ele dizia que não.
P/1 – E seu pai?
R – E o papai ficou conformado, ele disse que tava bom eu ficar lá na casa. Só que o cara, se saísse, ele matava o cara, ele dizia.
P/1 – E morar na casa do juiz, como foi?
R – Morar na casa do juiz foi muito ruim pra mim. Foi muito ruim, porque eu não sei se foi paixão, porque foi o meu primeiro homem, eu me apaixonei muito pelo cara e o juiz tinha três filho solteiro e tinha um que era morto e vivo por mim e eu não queria saber do cara de jeito nenhum, e eu queria ir me embora dali. Aí pedi do juiz, fui pra casa do delegado, passei três mês na casa do delegado, o delegado tinha dois filho também. Foi muito ruim. Aí quando foi na última audiência, já pra ele ser condenado mesmo, aí ele perguntou: “Raimundinha, se você completar 18 anos você me tira do xadrez?”, digo: “Não, eu vou lhe condenar ao máximo”. Aí ele ficou assim, e aí o juiz disse: “E agora?”. Aí ele disse que casava comigo, mas maldita hora que ele disse aquilo!
P/1 – Mas depois de quanto tempo isso?
R – Ih, já tava com seis meses, naquela... Aí tá bom, aí ele disse que casava. “Vai casar? Então você vai dormir no xadrez e trabalhar pra aprontar a noiva”. E meu pai disse que não, não, não casava, eu digo: “Eu caso sim, pai. Ele é o meu dono”. Aí eu sei que, moral da história, casei. Foram cinco anos de sofrimento muito doído. Parece mentira, apanhava tipo criança.
P/1 – Puxa, Saracá.
R – Ciúme, ciúme, ciúme! E na casa dele, sabe quantos irmão tinha, solteiro? Dez, tudo solteiro, e nós fomo morar junto com eles, com os pais dele. Eu sofri muito, mas muito mesmo. Aí tive filhos com ele. Eu até digo hoje, graças a Deus que meus filhos foram nascendo e foram morrendo.
P/1 – Eles morriam logo depois que nasciam?
R – Morria. Minha primeira eu tive, ela nasceu, com dois meses e 16 dias de nascida ela morreu. Aí depois fiquei grávida de outro. Com sete meses eu tive ele, eu peguei uma queda e parece que ele quebrou o pescoço, eu sei que tive morto. Aí engravidei de outro, esse eu tive de tempo, de nove mês esse. Desculpa (choro).
P/1 – Você não quer falar, né, você tinha dito.
R – Esse, pois é, esse morreu com dez anos, né, e assim por diante. Pra encurtar a história, eu sou mãe de oito filhos, eu não tenho nenhum das minha entranha. Tem o Ézio, que é o dono dessa casa, e a Iolanda. O Ézio eu criei desde o ventre da mãe dele, ela me deu ele no ventre, com três meses. Eu sou parteira. Levei pra minha casa, cuidei dela, fiz o parto dela, aí ela me deu por tinta e papel, passado em cartório. Ele é registrado no meu nome. E a Iolanda, eu já peguei a Iolanda com 11 anos. A mãe me deu também.
P/1 – A mãe é viva, da Iolanda?
R – Não, já morreu. Mas ele me deu ela em vida, ela ainda deu pra mim.
P/1 – Esses são seus filhos?
R – É, meu filho é do coração, eu não tenho nenhum das minha entranha.
P/1 – Sim.
R – Tenho dois do coração, né? E o Ézio já me deu, eu considero neto, ela me deu dois neto. O Ézio me deu três, que um é o meu filho também do coração, que é eu que crio, tá com 16 anos.
P/1 – Como ele chama?
R – Audren Coldren.
P/1 – O Audren que mora aqui, na sua casa?
R – O Audren que mora comigo. E o Ézio é um filho, ele não chegou a substituir a falta dos outros, mas encobriu um pouquinho, entendeu? Mas os outros é uma cicatriz, eu quero dizer pros senhores que quem nunca perdeu um filho, peça a deus nunca perder, porque é uma cicatriz que nunca vai sarar, nunca. Perdi meu pai, perdi irmão, vó, um bocado da minha família. Mas o que me feriu que até hoje é uma cicatriz grande, é meus filhos, que é um pedaço de ti que vai embora.
P/1 – Com certeza.
R – Mas mesmo assim, querida, desculpe se eu não tô... Quer fazer alguma pergunta? Faz aí que eu...
P/1 – Não, pode falar.
R – Mas mesmo assim hoje, entendendo a palavra de deus, a professora que sou, eu aprendi muito, já vim me formar professora já velha, conheci o Rio Negro aqui, vou mudar de Purus pra cá. Conheci o Rio Negro, conheci esse rapaz que é meu marido, eu conheci criança.
P/1 – Então a gente vai só dizer, eu vou perguntar só isso. Você viveu cinco anos com seu marido, aconteceu tudo isso, e como é que você veio pra cá?
R – Ele faleceu, faleceu. Que deus me perdoe, pelo amor de deus, foi uma morte que eu não senti, entendeu?
P/1 – Você tava com ele ainda?
R – Tava e fiquei só. Aí meu pai faleceu, antes do meu marido morrer, o meu pai faleceu também. Ficaram só os irmãos, todo mundo foi casando, tomando rumo e quando eu fiquei viúva já tava só, né? Aí fiquei com um filho de dez anos, esse que morreu com dez anos. Quando ele morreu aí que eu disse que ia-me embora, os meu sogro apelaram, tiraram o meu filho. Essa é a parte mais doída pra mim (choro).
P/1 – Tiraram qual? Esse?
R – Tiraram esse que tava comigo, sim. ”Quer saber, vou embora”. Minha mãe eu não sabia notícia, “Eu vou embora, vou procurar rumo”. Voltei pra casa do meu irmão. Aí cheguei lá triste, ele: “Minha irmã, fica aqui, tal”, eu digo: “Não, meu irmão, aqui traz muitas recordações. Eu devo ir embora pra Manaus”. Aí tinha um senhor que tinha sido patrão do meu pai, eles gostavam muito de mim. Me chamou pra ir morar na casa deles, eu fui. Passei um mês e 15 dias, aí ele veio aqui pra Manaus, ele disse: “Raimundinha, quer ir pra Manaus comigo? Eu te levo”, eu digo: “Eu vou”. Aí vim, quando cheguei, aí fui morar na casa de uma pessoa que conhecia a minha mãe aqui no Rio Negro.
P/1 – E você sabia disso, ou alguém sabia?
R – Que a minha mãe tava pra cá? Sabia. Esse senhor que me trouxe, sabia. Só que o pessoal daqui do Rio Negro não, não sabia, que nessa parte minha mãe não foi muito fiel com a gente. Ela dizia que meu pai era falecido, mas não, ela tinha deixado, tinha separado do meu pai. E aí um senhor disse: “Você sabe onde a mãe dela mora?”, disse: “Sei”, “Então você vai me levar lá, que eu vou levar ela”. Aí eu vim na casa da minha mãe. Cheguei aí, minha mãe tava com um buchão do meu irmão que é caçula hoje, por parte de mãe. Aí ela nem me conheceu mais. Eu conheci ela! Aí ela disse que era pra mim ficar, eu digo “Não mãe, fico não, vou voltar pra Manaus, vou trabalhar”.
P/1 – Ela tava por aqui?
R – Tava. Ela mora bem aqui perto. Perto não, ela mora duas hora de viagem daqui.
P/1 – Saracá, e quantos anos você tinha, mais ou menos, quando veio pra cá?
R – Quando eu vim pra cá?
P/1 – Quando saiu de lá, pra Manaus?
R – Dezenove anos.
P/1 – Até ali você era dona de casa, cuidava dos filhos.
R – Sim, dona de casa, cuidava dos filhos, dos irmãos. Até lá eu era isso.
P/1 – E trabalho? Aí como foi em Manaus?
R – Aí sim, aí que eu vim me embora pra cá pra Manaus, aí mamãe queria que eu ficasse, digo: “Nada, fico nada”. Eu já tinha arrumado um emprego numa casa de família. Só que eu trabalhei um mês e dias, não gostei. Primeira porque eu não nasci pra cozinha, eu não nasci pra ser doméstica assim, dona de casa, entendeu? Desde quando eu comecei estudar, o meu pensamento era ser professora.
P/1 – Você estudava quando criança?
R – Eu estudei bem pouquinho quando criança. Vim estudar quando cheguei em Manaus.
P/1 – Aí você queria ser professora.
R – Eu queria ser professora, só que minha possibilidade era pouca, eu estudava e trabalhava. Aí eu trabalhei esse tempo na casa dessa família, aí não gostei muito. Aí eu tinha uma prima em Manaus, ela arranjou um emprego pra mim num restaurante e eu fui trabalhar. O nome do restaurante era Blue Star. Fui trabalhar, mas eu não tinha um documento. Aí quando foi um dia o patrão pediu documento pra assinar minha carteira: “Eu não tenho”, ele disse: “Então vamos fazer o seguinte. Eu tenho outro restaurante lá no centro da cidade. Você vai trabalhar lá de noite, pra de dia você tirar os seus documentos”. Aí assim eu fui. Eu entrava três horas da tarde, saía meia noite.
P/1 – E o que você fazia no restaurante?
R – Eu era balconista. Aí fui crescendo, fui estudando, fui crescendo.
P/1 – Você estudava à noite?
R – Estudava à noite. Depois que eu comecei trabalhar de noite, não, não estudei mais, parei. Aí deu a doida em mim, saí do emprego, aí tirei pro Rio Negro.
P/1 – Mas aí tinha estudado um pouco?
R – Tinha estudado um pouco, mas aí eu tinha apenas a terceira série, que era antigamente. Aí tirei pro Rio Negro, fui pra São Gabriel da Cachoeira, sem conhecer ninguém.
P/1 – Mas por que você escolheu esse lugar?
R – É assim, porque eu vim pra casa da minha mãe, passar um final de semana, e a minha mãe, o esposo da minha mãe era muito jovem. E ele se apaixonou por mim. Não tô dizendo? Ah, se eu for te contar essa história! Ai eu digo: “Quer saber?“. Eu fui pra Manaus numa viagem com ele e uma irmãzinha que eu tinha, que hoje tá velha já. Aí fomo pra Manaus, quando chegamos na viagem, ele parou a canoa – nós fomos de canoa, ele parou a canoa numa beira e botou a gente lá em terra e depois ele me agrediu. Nós lutamos muito, eu com ele, a valência que ele tinha um terçado canoa. Eu peguei o terçado, não matei ele porque deus é bom. Aí tá bom, aí digo: “Nós vamo agora pra Manaus, não soltei mais o terçado”. Aí fomos pra Manaus, chegamo em Manaus, no outro dia em vim me embora, eu digo: “Vou contar pra minha mãe”. Aí em vim embora pra casa da mamãe. Cheguei aí, contei pra ela, ela não acreditou. Ela disse que era eu que tava puxando pra cima do marido dela. Aí eu sei que acaba que a gente, ela até me expulsou de casa. Tá bom, aí eu pra Manaus de novo. Cheguei em Manaus, aí encontrei uma amiga que ia pra São Gabriel da Cachoeira: “Vamo embora, Raimunda?”, eu toda doida, aí eu fui. Lá eu cheguei, passei três dias na casa dessa moça, não gostei, fui no colégio das freiras, falei com as freira, contei um pouco a minha história, aí eu fui interna no colégio das freira, aí lá que eu estudei. Eu estudei também com a cabeça meia doida, porque naquele tempo tinha uma regra, a gente não saía, a gente pra sair era vigiada 24 horas por dia e acaba que eu saí do colégio pra ir pra casa do prefeito, trabalhar.
P/1 – Mas já tinha estudado?
R – Já tava estudando. Aí saí do colégio, fui pro prefeito, trabalhar e estudar. Só que lá o negócio era mais sério. Eu fui, como é que diz? Eu que tomava conta da casa do prefeito, de tudo.
P/1 – Governanta?
R – Governanta da casa do prefeito. Mas foi uma vida boa pra mim, eu tinha da lavandeira à costureira.
P/1 – E lá em Manaus ele era prefeito, não? Era aquela outra cidade.
R – Ele era prefeito de São Gabriel da Cachoeira.
P/1 – Ah, São Gabriel, tá certo.
R – E aí passei um tempo lá, depois não gostei mais, vim me embora. Aí gostei de um rapaz lá, perto da minha mãe, aonde eu vivi, fui, fiquei com ele, vivi 14 anos com ele. Sofri muito também na mão dele.
P/1 – Não teve filhos com ele?
R – Tive só um, morto também, nasceu morto. Aí ele fez uma pergunta, qual deles que deixa recordação? Foi ele, esse rapaz que eu tô falando. Foi o homem que eu amei.
P/1 – Como chama?
R – Eli, ele é vivo até hoje.
P/1 – E você sofreu também com ele, Saracá?
R – Sofri muito. A última surra que eu peguei dele, eu passei três meses no hospital.
P/1 – Saracá...
R – Aí eu conheci essa família aqui, que hoje é meu marido. Conheci ele e...
P/1 – Como que você conheceu?
R – Eu conheci que eu vim numa festa aqui. Eles festejavam São Sebastião mesmo e ele tinha umas colegas que tudo conhecia pra cá, aí eu vim pra festa. Quando cheguei aí na festa, eu conheci ele, era rapazinho novinho.
P/1 – É mesmo?
R – Mas aí eu me dei logo com a família dele, sabe? E o rapaz também se deu comigo. Só que eu pensei que ele tinha se dado comigo, assim, como amigo, sabe? Mas não, eu acho que ele se apaixonou na primeira vez que me viu.
P/1 – Você disse que era bem mais novo, né?
R – É, ele é mais novo do que eu 17 anos. Só que naquele tempo eu era metida a gaiata, né, e o cara passou pra minha onda, e a família toda queria demais. Eu sei que a gente se conheceu, aí quando foi um dia a família me peitou pra mim ficar com ele. Eu digo: “O que? Quero não, vou criar menino não, gente! Estou cansada de lutar com criança, é uma criança pra mim isso aí”. Não, mas ele queria e queria. Certo é que a gente se acertou, fiquei com ele, estou com 34 anos com ele. Criamos o Ézio. Eu quando eu fiquei com ele, o Ézio tava com três anos. Criamos o Ézio, ele nunca encostou um dedo no Ézio e a gente se dá muito bem.
P/1 – E foram felizes?
R – Nós somos felizes até hoje! É assim um cara que é meu marido, meu parceiro, meu amigão, meu pai, minha mãe, aquele filho que eu gostaria de ter tido e eu não tive, ele é esse filho. Na hora de marido é marido, na hora de pai ele é pai e na hora de filho ele é filho, e o certo é que a gente nunca brigou. Mas eu acho que ele não briga, porque é assim, quando eu me casei com ele, eu já era a Raimunda que eu sou hoje, a dona da minha venta, né? E não queriam que eu trabalhasse, eu digo: “O que? Vou trabalhar sim, eu tenho um filho pra criar”, e eu botei pra trabalhar e ele trabalhava em madeira. Depois adoeceu.
P/1 – E você começou a trabalhar em que?
R – Eu trabalhava lá na fazenda do coronel Galvoso, eu era chefe de uma turma de 60 mulher.
P/1 – Fazenda de que?
R – Seringal, todo tipo de planta.
P/1 – E você que era líder das mulheres?
R – Era líder das mulheres. Tinha o líder dos homens, que era o tio da Iolanda, e tinha eu que era a líder das mulheres. Eu trabalhei muitos anos com o coronel. Eu ganhava o dinheiro como folha de pau. Aí não deram emprego pro meu marido, aí meu marido ficou em casa. Ele era a mulher naquela hora. Eu às vezes digo pra ele: “Tu nunca me deixou, porque eu sempre fui a dona de casa, né? É tanto que o meu marido é difícil as pessoas que chega em casa pra fazer negócio com ele, que chama ele pra fazer negócio. Sempre é comigo, sabe? Eu digo: “Olha, gente, eu tenho um homem aí, que vocês queiram, que não queiram, ele é o meu marido” (riso). Mas a gente é feliz.
P/1 – E ele continuou trabalhando em casa?
R – Em casa, ficava com o Ézio.
P/1 – Até hoje?
R – Não, aí depois eu conversei...
P/1 – Como ele chama?
R – Idelfonso. É irmão da Iolanda. Aí arranjei trabalho pra ele lá, e nós trabalhava nós dois. Mas aí é o seguinte, não trabalhava nós dois, “Mas aí é o seguinte Idelfonso, vamos trabalhar nós dois. Nós tem um filho” - eu não trabalhava ainda na escola, “Aí nós vamos pro trabalho, mas quando chegar você vai fazer comida, eu vou lavar a roupa, você varre a casa, eu lavo a louça, nós vamos dividir”, e até hoje nós divide isso, hein? Quando ele tá em casa, que eu tô com ele, nós dois trabalha, não tem negócio de “Ah, eu vou passear”, nada, vai fazer comida. Eu vou fazer as coisa, então...
P/1 – Saracá, só conta rapidamente como era esse trabalho, de ser líder das mulheres na fazenda.
R – Olha, de ser líder é assim...
P/1 – Não sei se era esse nome. Tinha esse nome?
R – De líder?
P/1 – Não, disse que você comandava as mulheres.
R – Ah sim, era assim, olha, o coronel me chamou e reuniu, disse: “Bom, a partir de agora vai ser dona Raimunda” - ele chamava pra mim, “que vai dominar vocês. Dominar não, vocês vão entrar em acordo com ela. Tudo o que ela pedir pra vocês fazerem, vocês vão ter que obedecer à dona Raimunda. Tudo que vocês quiserem, vocês vão com ela. Tá bom?”, “Tá bom”. E eu toda vida, eu tenho muita facilidade de fazer amizade, graças a Deus. E eu me dava muito bem com elas. Era moça, era menina, tudo trabalhava comigo. Aí cada qual tinha sua tarefa. Tinha dia que ia um grupo plantar, outro grupo ia capinar, outro grupo ia aguar as plantas, outro grupo ia mudar os filhinhos das planta. E assim eu trabalhei sete ano com o coronel, aí aparece a escola.
P/1 – Nesse meio tempo você disse que se formou em magistério. Quando foi?
R – Sim, mas aí quando eu passei pra dar aula aqui. Aí sim, isso aí é uma parte também que foi muito pesada pra mim, porque eu tinha a terceira série. Não, mas aí o prefeito de Novo Airão me colocou aqui como professora, e eu vi que o pessoal daqui precisava. Não tinha professor, não tinha comunidade. Aqui era um matagal.
P/1 – Quando você chegou?
R – Quando eu cheguei aqui era matagal.
P/1 – Quem morava aqui?
R – Ninguém.
P/1 – Ninguém?
R – Aqui não, lá – que a gente chama Saracá velho, sim, lá morava a vó do Idelfonso, a mãe dele e o tio dele. Só três famílias moravam lá.
P/1 – E a escola era onde?
R – A escola começou na casa do tio dele, lecionei 16 dias na casa do tio dele, era uma casa assim. Aí com 16 dias o tio dele tomou uma birita e me expulsou com um montão de aluno.
P/1 – Quantos alunos mais ou menos?
R – Na época, quando eu comecei, eu só tinha lecionado 16 dias, eu tinha 42.
P/1 – E quem eram os alunos? De onde eles eram?
R – Era daqui mesmo! Aqui tinha muita gente. E lá do inglês, a maior parte dos meus alunos era inglês. Mas eu tinha aluno desde a entrada do Ariaú, eu tinha aluno que estudava aqui.
P/1 – Quem que pediu pra você dar aula? O prefeito?
R – O prefeito de Novo Airão.
P/1 – Aí avisou e todo mundo veio.
R – Aí ele veio, trouxe os “material” e mandou eu matricular e já com todo o material, né? Aí o homem me expulsou da casa, eu vim, eu tinha uma casinha lá, fui dar aula lá.
P/1 – Que casa? Era sua?
R – Era, uma casinha minha, e aí até sair a escola que quando saiu a escola, foi aqui, mas era uma escola que minha residência era dentro também. Uma escola bem grande.
P/1 – Sei. Você passou a morar na escola?
R – Aí sim, passei a morar na escola, mas aí passei a morar, estudar e lecionar, porque aí todo final de semana eu tinha que ir estudar em Novo Airão. Aí em Novo Airão tudo bem. Quando passei pro Iranduba aí sim, aí me acocharam mesmo, aí eu tive que passar três meses em Manaus, lá no Padre Anchieta, eu não sei se vocês conhecem o colégio. Na época era um colégio, eu passei três meses lá estudando direto, nem saía de lá pra canto nenhum. E ele aqui com meu filho.
P/1 – Ele quem?
R – O Idelfonso, meu marido. Quando eu sentia saudade, eu escrevia, não tinha telefone, né? Ele ia levar o menino lá pra mim. Aí terminei o primeiro ano, o fundamental. Aí já fui entrar no segundo ano.
P/1 – Segundo do Ensino Médio?
R – Sim, Ensino Médio. O Ensino Médio eu estudei a longa distância.
P/1 – Daqui mesmo?
R – Daqui do Saracá. Eu dava aula até sexta-feira. Sexta-feira de tarde eu tinha que ir aqui pra Iranduba. Aí eu estudava sexta à noite, sábado o dia, à noite, domingo até meio dia eu estudava. Estudava e fazia prova.
P/1 – Você estudava à distância?
R – Eu estudava, assim, eu trazia um monte de módulo que era aquele projeto Logus Dois, não sei se a senhora sabe. Aí eu trazia um monte de módulos, que até hoje eu tenho. Aí eu vinha estudar, quando chegava lá eu fazia prova daqueles que eu tinha estudado e ia estudar outros. Assim eu tirei em três anos e três meses, mas sofri muito.
P/1 – Você fez durante três anos assim, essa vida?
R – Três anos e seis meses.
P/1 – Aí você se formou?
R – Aí me formei. Aí sim.
P/1 – Recebeu um diploma e um anel?
R – Recebi um diploma, um anel, aí sim.
P/1 – Esse anel, quem te deu?
R – Meu anel quem me deu foi meu marido. Na época custou 30 reais, meu anel. Tá lá guardado. Minha mãe ralha porque eu não uso. “Mamãe, eu vou usar um anel desse aqui? Chama atenção, ele é muito grande, a pedra dele é muito grande, aí eu vou andar com um anel desse, o ladrão vai torar até minha mão. Ando nada, deixo aí guardado”. “E aí, quando tu morrer?”, “Fica aí, ele usa”, “Mas ele não é professor”, digo: “Ele guarda”. Então é a minha vida até me formar professora foi muito sofrida. Mas mesmo assim eu me sinto uma Raimunda hoje, não realizada, porque eu tenho um sonho ainda grande.
P/1 – Depois você vai me contar esse sonho. Mas você tinha vários alunos, né?
R – Vixe.
P/1 – Quantos? Fala pra gente quantos turnos você trabalhava?
R – Eu tinha 64 alunos só da parte da manhã.
P/1 – À tarde...
R – À tarde eu tinha 25 e sete horas da noite eu tinha mais 15.
P/1 – E eles gostavam de você, pelo jeito, né?
R – Gostavam, meus alunos me adoravam e eu adorava eles. E, olha, que eu era uma professora rígida, heim? Eu era uma professora meio rígida, assim.
P/1 – E qual segredo deles gostarem?
R – Segredo deles gostarem é esse meu modo. Eu fazia brincadeiras com eles, a gente estudava, mas a gente brincava também. Escutei até a Iolanda falando numas brincadeiras, que a gente fazia como pata cega, barra bandeira, pé na lata, cabo de guerra, corrida de saco, apostas. Eu levava a marcha, ninguém aqui sabia o que era parada. Eu ensinei tudo! A gente ia pra fora marchar com eles lá pra banda de Cajatuba.
P/1 – Sete de Setembro?
R – Sete de Setembro, tudo fardado. Eles gostavam muito de mim por isso.
P/1 – Tinha até uma fanfarra, né?
R – Tinha, tinha uma fanfarra, que nossa fanfarra era um tambor desses de 20 litros, sabe, com couro de veado raspado, amarrado na boca e um tarol, que nós compramos. Reunimos a tal de tabaca e compramo um tarol. Então era essa a nossa fanfarra, mas era muito animado, muito animado mesmo. Eles gostavam muito de mim.
P/1 – Saracá, e você se aposentou hoje, né, você tá aposentada.
R – É, por tempo de serviço.
P/1 – Por tempo de serviço. E como é que você se aproximou do restaurante?
R – Ah, do restaurante eu me aproximei...
P/1 – Como chama o restaurante?
R – Encanto do Saracá. Eu me aproximei do restaurante, porque eu conheci uma família, o doutor Virgílio, que acho que vocês tudo conhece, o Virgílio da FAS? E o Virgílio, a gente se conheceu numa mesa bem ali comendo churrasco, e o Virgílio tornou-se meu amigo. E quando foi um dia ele apareceu aqui, “Dona Raimunda”, apareceu com um monte de gente, tudo família dele. “Dona Raimunda, eu trouxe esse povo, eu quero um almoço amanhã pra esse povo, uma hora da tarde”. Eu digo: “Doutor, pelo amor de deus, eu não tenho nada pra fazer”, ele disse: “Tem sim”. E lá essa minha menina, já estudou assim, agronomia, como é?
P/2 – Num colégio agrícola?
R – É, estudou num colégio agrícola, lá que ela aprendeu a fazer pão, ela e o Ézio. Mas ela estudou esse de fazer comida, como é? Ela fez curso de...
P/2 – Culinária?
R – Sim! Então tinha uma senhora que morava ali também que tinha sido dona de restaurante. Aí eu conversei com elas: “Dá pra fazer?”, “Se a senhora arranjar as comida, a gente faz”. E assim fizeram a comida. Quando foi duas horas da tarde o pessoal vieram almoçar aqui na casa da Iolanda mesmo, eu botei as mesas, nós servimos tudo e aí o Virgílio no outro dia chegou, disse: “Dona Raimunda, a senhora tá de parabéns. O seu restaurante tá funcionando desde já”, eu disse: “Doutor, bem que eu tenho um sonho, mas infelizmente eu não posso”.
P/1 – Qual era o sonho?
R – Era de fazer um restaurante, de ter um restaurante, eu ser a dona do restaurante, entendeu? Aí ele disse: “A gente te ajuda”. Como tem esses Bolsa Floresta, a gente tem uma renda lá, aí reunimos, fizemos o restaurante, mas só que não foi eu a dona. É comunitário, mas aí eu passei a trabalhar com o Virgílio. Eu fui monitora dois anos dos alunos lá no Tumbira, onde tem até uma casa que tem o meu nome, a Casa do Professor, Virgílio deu o meu nome. Eu tenho muito honra por isso. Eu tenho um apreço muito grande pelo doutor Virgílio. E então eu trabalhei dois anos com ele e durante esses dois anos eu fui muito feliz, eu tive o prazer de... Até em revista eu saí, na televisão, através do Virgilio, né, trazer aquele pessoal, eu fui até convidada pra ir pro Jô. E conheci Cristiane Torloni, um monte de celebridade.
P/1 – Saracá, a gente infelizmente não vai poder continuar a entrevista, porque nós temos o horário pro barco. Mas se a senhora puder falar em poucas palavras, primeiro os seus sonhos, seu maior sonho. E o Consulado, vocês agora tem uma relação com o Consulado. Qual relação é essa, o que que a trouxe pra vocês? Isso, em poucas palavras, o sonho e essa relação com o Consulado.
R – O sonho era, os meus sonho eram, que ainda tem um que ainda não realizei, mas ainda tenho esperança.
P/1 – Qual é?
R – De fazer uma faculdade, como é que chama, essa do campo? Engenheiro agrícola não. Tem outro nome, Agronomia. Eu sou louca pra fazer aAgronomia e o Virgílio prometeu que vai trazer, eu ainda tô esperando. Esse é um sonho que eu ainda não realizei, mas de ser professora, de ter o restaurante já tem, só que não fui a dona, né? E com o Consulado da Mulher, a gente já teve um bom relacionamento assim, já trouxe várias coisas boas, pelo menos pro restaurante.
P/1 – O que que trouxe?
R – Como trouxe fogão, geladeira, freezer eu não sei ainda, e mesa, vasilhame, louça, essas coisa. Então já veio muita coisa do Consulado da Mulher aí pro restaurante. Hoje nós temos uma cozinha preparada que a hora que der pessoas, nós temos como trabalhar, com o que trabalhar, então isso através do Consulado. A gente já não tem mais vergonha, como eu fiquei da primeira vez, que o Virgílio trouxe, né? Ficava com vergonha, porque não tinha o que servir. Hoje não, hoje nós temos uma cozinha preparada, temos pessoas também preparadas pra fazer qualquer tipo de comida, então posso dizer que o Consulado da Mulher já nos ajudou além da FAS, o Consulado da Mulher já nos ajudou muito e a FAS tem nos ajudado bastante.
P/1 – Você fundou essa comunidade?
R – Sim, fui fundadora dessa comunidade. Parece mentira, se você chegasse aqui, isso aqui tudo era um matagal que só deus mesmo pra tirirical.
P/1 – E esse restaurante pra comunidade? Tem alguma influência? O que você acha desse restaurante pra essa comunidade?
R – É, eu acho que tem influência, porque através desse restaurante, o pessoal da comunidade já conheceu coisas que a gente nunca pensava em conhecer, como celebridades, pessoas estrangeiras, assim, pessoas de outros países que já tem vindo muito aqui. Então eles passaram até trabalhar em artesanato pra vender pro povo, todo mundo aqui já sabe fazer, e já tem uma renda de artesanato. Então esse restaurante influiu muito aqui.
P/1 – Abriu campo pra vender o artesanato?
R – Abriu campo pra vender o artesanato. Eles ainda não têm uma casa de artesanato, mas quando chega aí, como eu sou recepcionista, né, e sou gaiata mesmo, eu mando eles levarem prá lá ou aqui no Centro. Eu já fui representá-los lá no Hotel Tropical. Lá que eu tive o convite pra ir pro Jô, e então eu fui representá-los, eu vendi muito as coisas deles e muitas pessoas de fora que me conheceram lá, no outro dia vieram pra cá, sabe, conhecer, compraram mais material deles, então influiu muito. E através do Virgílio, eu agradeço muito a deus e à FAZ, através do Doutor Virgílio, e esse restaurante através de nós e agora o Consulado da Mulher.
P/1 – Muito bom, viu Saracá, muito obrigada, a gente gostou muito da história, queria continuar ouvindo.
R – É como eu falei pra vocês, se eu fosse continuar, vocês não iam sair daqui hoje não.
P/2 – Foi um prazer ouvi-la.
R – Mas obrigada, desculpa eu não ter falado tudo, porque não dá pra falar tudo. Uma vida: como eu hoje, tenho 69 anos, não dá pra falar desde 14 anos pra cá.
P/1 – Mas foi uma história bonita que você deixou registrada, de muita garra.
R – Obrigada.
P/1 – Parabéns.
R – Desculpa meus momento de fraqueza, mas...
P/1 – Parabéns pela sua história.
R – Obrigada.
FINAL DA ENTREVISTA
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