Entrevistadoras Paula Ribeiro / Patricia Ramalho
10/08/2021
Realização: Museu da Pessoa
Projeto: Mulheres da Maré Dignidade Resiliência e Arte
Entrevista número MDRA_HV007
00:01:27
P/1 - Bom dia Iraci.
R - Bom dia.
P/1 - Eu quero agradecer, primeiramente por você ter aceitado compartilhar conosco, um pouco da sua história, da sua memória, da sua trajetória como moradora aqui da Maré, como cantora e compositora. Agradeço imensamente a sua disponibilidade.
R - Muito obrigado pela atenção de vocês, estou adorando, pois até hoje eu não pude contar a minha história, porque tenho histórias, mas não tive gente para ouvi-las, porque a história é grande e as pessoas só andam correndo e os velhos perderam o valor. Se a gente estiver conversando com uma pessoa, se aparecer uma criança fazendo palhaçada, o que a gente falou, a pessoa já passa a não se interessar mais, vai voltar a atenção para a criança.
00:02:35
P/1 - Então estamos aqui hoje e muito dispostas para ouvi-la. Nos diz seu nome todo, sua data de nascimento e nome da cidade em que você nasceu.
R - Meu nome é Iraci Rosa de Oliveira, nasci em 26 de janeiro de 1940, tenho 81 anos, nasci na cidade de Rio Pomba.
00:03:19
P/1 - Qual estado fica?
R - Minas Gerais, é depois de Juiz de Fora.
00:03:33
P/1 - Sua família era de lá?
R - Minha mãe sim, ela me deixou lá com 2 anos, ela não era casada com meu pai, a irmã do meu pai foi quem tomou conta de mim, dos 2 anos até os 4 anos de idade. Quando eu tinha 4 anos, minha mãe arrumou emprego e então foi me buscar.
00:04:10
P/1 - Você pode contar pra gente se você conheceu seus avós? Seu avô, sua avó, você lembra os nomes deles?
R - A minha avó se chamava Cecília, Maria de Jesus, o avô se chamava João Rosa.
00:04:37
P/1 - Você lembra deles?
R - Eu lembro muito pouco, né! Porque eu era pequena, mas lembro de ter convivido um pouquinho com eles.
00:04:53
P/1 - Mas esse lugar que vocês moravam, era uma área rural? Tinha agricultura, plantação?
R - Era uma fazenda.
00:05:23
P/1 - E sobre o seu nome, era uma homenagem a alguém? Sua mãe contava a história do seu nome?
R - Eu ouvi dizer que a minha avó era índia e que Iraci era uma cabocla. Eu sou descendente de índio.
00:05:50
P/1 - E o nome dos seus pais?
R - A minha mãe era Geralda Rosa de Oliveira, meu pai eu não convivi com ele, só me lembro de ele ter me colocado em cima de um cavalo e não gostei.
P/1 - Essa é uma memória muito antiga, você pequenininha né?
R - O cavalo pulava e eu ficava nervosa, essa é minha lembrança de quando eu tinha 2 anos de idade. Eu me lembro de uma pessoa de lá, que se chamava Zuvido, nunca vi isso, uma pessoa chamada Zuvido.
00:06:54
P/1 - Como que pode ter esse nome?
R - Eu não sei. Eu sei que tinha essa pessoa, de nome Zuvido. A minha avó morreu queimada num tacho de sabão, ela fazia sabão e foi subir e acabou caindo. Vou contar uma história interessante sobre a minha avó. Posso contar?
P/1 - Pode.
R - Quando eu fui trabalhar, o meu filho tinha uns 8 à 9 anos, ele engraxava sapatos e ele sozinho fez a caixa dele de engraxate, não sei porque ele ficou perdido agora. Aí ele engraxava sapatos numa casa e ele fez amizade com essas pessoas, eles arrumaram emprego pra gente, pra mim e para a irmã dele, quando eu fui pra essa casa para trabalhar, lá eu conheci a Maria Joaquina, que era pretinha igual a minha madrinha que morreu queimada, conheci o José Luciano que levava pão para a minha filha, ele era muito amigo da família, Leila era o nome mais bonito que eu achava. Eu conheci essas três pessoas, eles eram ligados a minha família e conheci esses nomes lá. Fiquei muito feliz, a Dona Joaquina já era velhinha também, mas foi uma história fantástica, de conhecer essas pessoas lá. Lá tinha também Tatiana e Alessandra, minha filha gostou tanto do nome Alessandra que colocou o nome na minha neta.
00:09:24
P/2 - E a senhora trabalhava de que nessa época?
R - A dona Leila foi muito boa pra mim, eu fiquei mais de trinta anos na casa dela.
P/1 - Isso aqui no Rio de Janeiro, já?
R - Isso. Foi aqui no Rio.
00:09:49
P/1 - Mas vamos voltar um pouquinho, antes de falar aqui do Rio de Janeiro. Conta pra gente como a sua mãe veio pro Rio. Ela veio pra onde? Ela veio morar onde?
R - No Chapéu Mangueira. Eu era pequena e deitada dentro de um caixote, eu cabia dentro de um caixote, bem magrinha. Lá tinha os parentes do meu padrasto, então tinha a Neidinha, o Wilson, eram meus primos.
00:10:49
P/1 - A senhora tem irmãos?
R - Não, sou filha única. Acho que é por isso que eu gosto de fazer as coisas sozinha, ´pra fazer tem que fazer igual à mim, se não tiver, não serve. Fazer as coisas tagarelando não dá certo. Eu vou fazendo as coisas, vou tentando, eu posso não saber mas enquanto eu não faço direito, não serve e não deixo aquilo, eu não faço coisa pela metade.
00:11:23
P/1 - Como era a vida da sua mãe quando vocês moravam no Chapéu Mangueira? Ela trabalhava onde?
R - Ela trabalhava na casa da Dona Alice, o Sérgio tinha 6 meses, quando eu fiz 6 anos eu fui tomar conta do Sérgio, eu ficava na praça lá embaixo, na rua Araújo Gondim, tomava conta do menino e ele era pesado, mas nunca deixei cair, ou seja, comecei a trabalhar com 6 anos. E hoje em dia, eu fico horrorizada que meninas de 10 anos, não sabem fazer nada.
00:12:04
P/1 - Mas a senhora morava no trabalho com a sua mãe?
R - Eu ficava com a minha mãe no trabalho e de lá, ela morava no Chapéu-Mangueira. Comecei a trabalhar lá, depois eu fui para a escola Marechal Trompowsky, hoje não existe mais, a professora me dava reguada, eu repeti o primeiro ano, mas depois eu fiquei inteligente. Na quarta série, a professora passou uma conta que todo mundo errou, eu também errei, eu risquei duas vezes, deixei uma em pé e eu ganhei, fui jurar bandeira e fiquei toda feliz. Eu gosto muito de matemática e pelo pouco que eu estudei, acho que sou inteligente até demais.
00:13:13
P/1 - Que bairro era a escola e essa casa que a senhora trabalhou?
R - A escola foi em Copacabana e a casa foi na rua Araújo Gondim, no Leme.
00:13:31
P/1 - A sua mãe fazia quais trabalhos na casa?
R - Ela arrumava, lavava a roupa do menino, ela tomava conta do menino. Ela ficava num quartinho arrumando as coisas do menino, eu ficava lá embaixo numa pracinha que tinha lá, com ele no carrinho.
00:13:55
P/1 - A senhora era uma criança também!
R - E tomava conta de outra criança. Me orgulho de ter tomado conta dele, porque nunca deixei ele cair, e com onze anos eu fui pra casa de outra professora. Quando eu cheguei lá, tinha uma gaveta de roupa pra mim, eu fiquei toda feliz, trabalhei na casa dela, ela me adorava, tinha dois filhos e eu fiquei com ela um ano, pra quem nunca trabalhou, já era muito tempo. Porque hoje em dia, todo mundo mora na favela, não trabalha e não faz nada e eu com seis anos já fazia. Depois fui com nove pra casa dessa professora e com onze fui pra casa da Maria das Graças, ela tinha cinco anos, a roupa dela servia em mim, as calcinhas dela serviam em mim, e eu fiquei toda feliz por ter encontrado tanta roupa pra mim. A Maria das Graças era terrível, ela saia na rua e queria soltar a mão, a dona Zilá tinha uma pessoa que às vezes levava a menina para o colégio, essa pessoa andava com as canelas roxas, porque ela chutava na perna da mulher, eu não sei como dominei aquela fera, nunca ela me deu um chute, eu transformei ela em uma aluna prendada. Eu tomava conta dela, eu ensinava ela a ler, eu tinha vontade de ser professora, ela ficou um amor comigo. Quando ela foi pra escola a professora perguntou com quem ela aprendeu, e a mãe dela falou, orgulhosamente, que era eu. E era outra criança né!, eu com onze anos para ensinar uma menina de cinco. Eu gosto de ensinar e tenho boa vontade, mas também quando a pessoa tem vontade de aprender. Eu tento ensinar as que moram lá perto, mas é o dia inteiro sambando, correndo atrás de cachorro, queriam que eu ensinasse desenho, eu não vou, eu gosto de fazer as coisas certas, não me interessa as coisas mais à toa.
00:16:54
P/1 - Iraci vocês moraram no Chapéu-Mangueira durante quanto tempo? Depois desse tempo, vocês se mudaram para onde?
R - Olha, nós moramos no Chapéu Mangueira, mais ou menos uns cinco anos, aí a minha mãe se desentendeu com o meu padrasto e fomos para o Macedo Sobrinho.
00:17:28
P/2 - Foi só você e a sua mãe para o Macedo Sobrinho?
R - A minha mãe só tinha eu.
P/2 - Sim, mas separou do seu padrasto, né?
R - Aí venderam um barraco pra minha mãe, com mais uma dona com um filho. Um barraco que eu nem sei como cabia essas pessoas todas, mas depois a minha mãe deu um jeito, eles foram embora e ficou só nós duas.
00:18:03
P/1 - Você pode contar um pouco como era a sua vizinhança? Como era a favela do Macedo Sobrinho? Que bairro era, qual vista vocês tinham?
R - O Macedo Sobrinho ele dava pra Lagoa e o Jardim Botânico. A vizinhança tinha muitas meninas, eu brincava, mas sempre fui compenetrada e quando tinha uma coisa pra fazer eu fazia, sempre procurando fazer o melhor.
00:19:44
P/1 - A senhora estava contando do Macedo Sobrinho e contou um episódio que a senhora tinha se machucado. Como foi isso?
R - A minha mãe tinha feito vagem, eu adorava vagem e adoro até hoje, eu fui comer o caldo da vagem e a gente tinha lamparina feita à querosene, meu braço ficou debaixo da lamparina e quando eu vi já estava pegando fogo, minha mãe correu e jogou um cobertor, fomos para o Miguel Couto, eu ela e meu padrasto, daí fui operada.
00:21:08
P/1 - Conta pra gente, mais detalhes da sua casa em Macedo Sobrinho, sobre os vizinhos, o que vocês cozinhavam? Já que você mencionou a lamparina.
R - Desde a operação de garganta que eu fiz, na casa da Dona Zilá, foi quando morreu o Francisco Alves.
P/1 - Te marcou a morte do Francisco Alves? Por quê?
R - Ah, porque tem uma música tão bonita que ele cantava à Deus, e eu achava linda, eu ficava triste porque não tinha ninguém que se chamava Iraci. Aí a mulher do Francisco Alves se chamava Iraci, por isso me marcou, foi a primeira Iraci que eu conheci.
P/1 - Como era essa música?
R - “...adeus, adeus, adeus, cinco letras que choram. Um soluço de dor, adeus, adeus, adeus, é como o fim de uma estrada, rodando as encruzilhadas, ponto final de um romance de amor. Quem parte tem os olhos rasos d'água, ao sentir a grande mágoa, quem fica também fica chorando, com um lenço acenando, querendo partir também…”
Aí eu sempre me lembro dessa música. Essa música é uma das músicas que me faz lembrar dele, e a da Dolores Duran também, quando eu ainda estava mocinha.
00:23:37
P/1 - A senhora gosta de música desde a sua infância?
R - Eu comecei a gostar quando eu fui pra casa de Dona Ilma, quando ele pediu pra mim, eu tinha nove anos de idade, a Emilinha fez aquela música: “assim se passaram dez anos..” e essa foi uma das primeiras músicas que eu gostei. Eu gostei da Emilinha, tinha aquela briga dela com a Marlene, mas eu gostava dela, achava bonito e fui acompanhar ela no teatro João Caetano, no dia do aniversário dela. Depois, eu já mocinha, fui na Rádio Nacional e cheguei perto dela, fiquei muito feliz, e ela cantou a minha música junto comigo. Eu mostrei pra ela a minha música, ela disse que se estivesse gravando ela teria gravado.
P/1 - Que bacana hein!
R - Eu estive com a Carmem Costa, eu gostei muito do meu nome ser Iraci Costa, porque foi homenagem à Carmem Costa e ela era pretinha igual a mim também. Quando eu estive com ela, eu disse: “Oh Carmem Costa, eu estou seguindo a carreira artística também.” Ela disse: “É muita luta minha filha, muita luta.” Eu entendi e fui lutar sozinha.
00:25:32
P/2 - Iraci Costa é o seu nome artístico então?
R - Eu era Iraci Rosa, compositora, mas o Carlos Moreira uma vez me viu, perguntou se eu não queria trocar meu nome, eu disse que não iria trocar, porque nem sabia como fazer isso. Ele foi na minha arrecadadora nos pés de Santo Antônio, sentou no banco e me ligou. Quer trocar seu nome, a hora é agora. Ele fez eu trocar meu nome, foi na minha arrecadadora e pegou todos os meus documentos, ele estava me esperando só pra assinar. E então eu troquei, ele gostava da Carmem Costa, eu dei sorte que a Carmem Costa era igual a mim na cor, aí eu disse à ele que seria Iraci Costa. Uma vez meu neto fez umas besteiras, foi parar na delegacia, eu disse que se ele aprontasse outra eu não iria, porque pra mim era uma vergonha, ele se misturou com outros meninos que faziam coisa errada, ele mesmo não fez mas estava no meio. Lá onde ele foi, estavam fazendo uma festa, eles deram um poema de Carlos Drummond de Andrade, eu vi o poema era tão bonito, a mãe dele me deu e eu não consegui ler o poema, só conseguia cantar. Ficou tão lindo que eu tive vontade de ir à Casa dos Poetas, mas só que eles não se interessaram, mas eu fiquei orgulhosa de eu ter feito a música, eu fui lendo e já estava cantando.
00:28:05
P/1 - Qual o poema? [ Poema de Thiago de Mello - “Amazonas – Pátria da Água”]
R - “Ser capaz, como um rio que leva sozinho a canoa que se cansa, de servir de caminho para a esperança. E de lavar do límpido a mágoa da mancha, como o rio que leva, e lava.
Crescer para entregar na distância calada um poder de canção, como o rio decifra o segredo do chão.
Se o tempo é de descer, reter o dom da força sem deixar de seguir. E até mesmo sumir para, subterrâneo, aprender a voltar e cumprir, no seu curso, o ofício de amar.
Como um rio, aceitar essas súbitas ondas feitas de água impuras que afloram a escondida verdade nas funduras.
Como um rio, que nasce de outros, saber seguir junto com outros sendo e noutros se prolongando e construir o encontro com as águas grandes do oceano sem fim.
Mudar em movimento, mas sem deixar de ser o mesmo ser que muda. Como um rio.”
A música era um poema, chegou na minha mãe, virou música. Não é bonito?
P/1 - Muito bonito!
00:30:24
P/1 - Iraci, você comentou e falou algumas vezes sobre o fato de ser negra . Como era isso na sua infância? Você trabalhava numa casa na zona sul do Rio de Janeiro, o fato de ser negra e mulher, sendo que você era babá. Você sofreu algum tipo de preconceito?
R - Eu ficava triste de ser preta, mas depois eu notei que gente preta pode fazer as mesmas coisas que branco faz, preto faz tudo, a pessoa não deve se desvalorizar só porque é preto, eu fui sentir apoio com o meu compadre. No dia em que ele chegou para a comadre e disse: “Olha Ieda, a mãe dos meus crioulinhos vai trabalhar aqui na minha casa”, ela disse: “Tu tá maluco?” Mandar uma mãe com quatro crianças aqui dentro. Mas eu me senti feliz porque quando ela me viu, me achou com cara de doente e mandou eu passar ao médico antes de ir para a casa dela, ela quis cuidar de mim e me tratar e eu servi muito. Então como ela não tinha esse negócio de negro, ela disse: “Eu não tinha nenhum filho e Deus me deu quatro crioulinhos”, ela assumiu a família inteira. Um dia eu fui limpar cinzeiro, na casa deles, eles me deram um salário. Quer dizer que ganhei dois salários, uma bolsa de comida, uma bolsa de presentes, eles não existem, ele pagou o táxi pra me levar até o Bonsucesso. Não é um compadre bom? Fala a verdade… Quando minha filha estava doente, ele ficou tomando conta dela, das 10h do dia até às 16h da tarde, dando remédios, coisa que o pai não fazia, então eu tenho que adorar esse compadre. Veio na minha casa, fez os doces da festa sozinho na véspera.
00:33:42
P/1 - A senhora viveu na Macedo Sobrinho até quando?
R - Até eu me casar.
00:33:50
P/1 - Como foi a sua juventude ali? O que vocês comiam? Onde sua mãe fazia as compras? Como era a vizinhança na Macedo Sobrinho?
R - Ela trabalhava e quando ela deixou a casa da dona Alice continuou a trabalhar, ela cuidava de mim, graças a Deus a vida foi dura e eu ajudei a enfrentar, não foi coisa de se admirar. Eu fui ficando mocinha, fui fazendo meus trabalhos, fui trabalhar com a minha professora da terceira série, pela primeira vez, eu passei pra quinta série e a escola era na Lapa, como a Lapa era suspeita e minha mãe não tinha dinheiro pra pagar a passagem todos os dias, então eu não estudei, mas o pouco que eu estudei eu valorizei. Me sinto muito bem o que eu estudei, aí casei, o sonho da minha mãe era ter a filha dela casada. Eu conheci gente com cinco filhas e nenhuma casou, já eu casei de véu e grinalda.
00:35:50
P/1 - Conta sobre o casamento pra gente. Como era o seu vestido?
R - O vestido foi bonito, eu me casei na Igreja Santa Margarida Maria, ainda existe, eu estudava na escola ao lado que é a Pedro Ernesto. A minha ficou tão preocupada que desceu comigo, preocupada com o povo que poderia jogar até ovo em mim. Porque é uma novidade, uma pessoa descer para casar e eu fiz esse gosto pra ele, pra mim também.
P/2 - Quantos anos você tinha?
R - Eu tinha vinte anos. Na época a maioridade era com 21 anos, a minha mãe teve que procurar um documento falso, pra poder que eu conseguisse casar. Minha filha nasceu quando eu tinha 22 anos.
00:37:30
P/1 - Você ainda morava no Macedo Sobrinho? Como era o nome do seu marido?
R - José dos Passos Germano.
P/1 - O que ele fazia de profissão?
R - Ele não tinha profissão, trabalhava com obras mas não tinha trabalho certo. Quando eu conheci ele, ele trabalhava no Mercado Livre do Produtor, que fica no Castelo. Tinha uma mulher abaixada pegando coisas, ele disse: “Mulher minha, nunca vai precisar catar.” Falou com uma boca tão grande que eu precisei catar. E eu catava, ficava brincando com meus filhos e pedindo, mas eu ficava com vergonha e ficava lá na esquina. Eu sempre fui honesta, graças a Deus, trabalhei por 30 anos e nas três casas que eu trabalhei, nunca sumiu nada, meus filhos também podiam entrar em qualquer casa que não carregavam nada. Foi então quando meu filho conheceu o compadre, o compadre me chamou, meus filhos andavam tudo limpinhos, depois eu descobri que ele trabalhava num banco, meu primeiro dinheiro que ganhei foi dez reais dele. Antigamente era bom porque era dez reais, agora dez reais não vale.
00:39:43
P/1 - Fala pra gente o nome dos seus filhos e a data de nascimento deles.
R - Minha primeira filha foi a Lucimar, a data dela foi novembro, porque eu pensava que ela iria nascer pra frente e nasceu antes. Eu me casei em 7 de Agosto, dizem que Agosto é o mês do desgosto. Houve um incêndio lá onde eu morava, eu estava trabalhando e meus filhos já estavam grandes, já tinha neto e tudo, e eu fiquei apavorada quando soube do incêndio. O segundo foi José Arlindo, a terceira foi Deisemar e eu vim com esses três filhos para a favela.
00:41:56
P/1 - Por que vocês saíram da Macedo Sobrinho? Foram nas remoções organizadas pelo governo?
R - Foi. A gente morava lá e não tinha água, quando colocaram água na favela, logo veio a remoção. Tivemos que sair e viemos para a Nova Holanda. Na Nova Holanda já era uns barraquinhos de tábua, não tinha água também, mas o Miro Teixeira e a Cidinha Campos queriam saber o que queríamos pra favela, todo mundo gritou: “água”. E foram eles que colocaram água corrente para nós. Quando eu vim, eu vim para a rua F.
00:43:14
P/1 - Em qual ano você chegou aqui, você se lembra? Quantos anos você tinha quando você chegou na Maré?
R - Eu tinha uns trinta anos, compadre conheceu a Flávia com três meses.
00:43:34
P/1 - Você já veio casada e com filhos. E a sua mãe?
R - A minha mãe também veio. Ela foi morar na rua 3, ela foi morar na parte de lá da favela. A minha mãe morava do lado de lá e eu morei na rua F, depois de um ano eu não me senti bem, fui morar na rua J. A Fábia nasceu, o nascimento dela foi interessante, porque eu perdi filhos antes de vir pra cá, perdi três filhos. Perdi um garoto, depois eu estava esperando uma garota, perdi também, e com isso eu cismei que a Fábia tinha que ser homem, quando a Fábia nasceu estava frio e não podia desembrulhar as crianças, eu passei muito mal e como não sou curiosa eu não desembrulhei, eu estava acreditando que era homem, porque eu achava ter escutado que era homem, quando ela chegou em casa e fez xixi no colo da minha mãe, a minha mãe: “Ih, a sua filha veio trocado, porque é mulher.” Como o último que eu perdi era mulher, eu achava que depois dela teria que ser homem, por ser sempre um homem e uma mulher. As crianças saíram gritando, “Ah o homem virou mulher!” (risos) Fizeram uma farra com o nascimento da Fábia.
00:46:07
P/1 - Como era antigamente a questão da assistência à mulher, você ainda no Macedo Sobrinho. Seus filhos nasceram em hospital ou nasceram de parteira?
R - Meus filhos nasceram em casa. Quando a Fábia nasceu, foi que me jogou pro hospital, porque eu estava trabalhando, a mulher queria que eu lavasse rede e ela estava quase nascendo, aí então eu tive que largar meu emprego para segurar minha filha.
00:46:44
P/1 - E os outros filhos nasceram em casa?
R - Sim, nasceram em casa com parteira, e eu podia até ter morrido né!
00:46:50
P/1 - Lá no Macedo tinha parteira? Aqui tinha parteira também?
R - Não, os que nasceram aqui, nasceram todos no hospital. Só os primeiros que nasceram com parteira.
00:47:04
P/1 - Você se lembra de um dos partos que você possa nos contar? Dos seus filhos em casa, lá no Macedo.
R - Eu podia até ter morrido, meu marido e minha mãe eram dois ignorantes, então eu tive os filhos em casa. Quando eu fui pro hospital pra ter a Fábia, eu passei mal, quase morri e a Fábia também. Ela nasceu com uma tosse, eu levei ela em vários hospitais e disseram que a tosse da minha filha não tinha jeito, que ela iria ficar a vida inteira com tosse, Deus é tão bom que veio a coqueluche e foi ela quem varreu, mas ela ficou internada três meses no Hospital do Fundão, hoje ela tem quase cinquenta anos, meus filhos já estão todos velhos. E na Nova Holanda nasceram a Ieda, a Catarina. Meus compadres me orientaram se não estava tendo filhos até hoje. Esses me deram gosto, só o garoto que eu vou dar jeito nele, se Deus quiser. Deus está me ajudando e vai ajudar ele também.
00:49:14
P/1 - Como era a sua vida aqui na Nova Holanda quando você chegou, mãe, com criança pequena. Como era a sua vida, sua luta aqui?
R - Olha, eu levei dez anos sem poder trabalhar, porque eu só tinha filhos. Então o marido bebia, e bebia quase todo o dinheiro, metade era pra ele beber e a outra metade pra comer, não dava pra nada!. Então eu tinha que pedir mesmo, tinha vergonha mas precisava colocar a vergonha de lado, só depois que a Fábia nasceu e meu compadre apareceu e me ajudou.
00:50:15
P/1 - Como era esse casamento, com essa pessoa que bebia muito?
R - Bebia, tinha vezes que brigava e batia, uma vez bateu em um filho e eu fiquei com raiva, outra vez bateu na filha e eu também fiquei com raiva, quase coloquei ele preso, mas fomos levando até bodas de prata. Eu falei para meu compadre: “Vou fazer bodas de prata.” Ele disse: “Igual uma palhaça, vinte e cinco anos de porrada e de pobreza, você tem alguma coisa pra comemorar?” Aí o meu castelo despencou, procurei a separação. Achei que a separação seria melhor do que fazer bodas de prata, vou bater palmas sozinha. Minha patroa fez o divórcio, Dona Leila não me cobrou nada, e os filhos já eram grandes.
00:53:28
P/1 - Iraci, quando você chega na Maré, o que tinha de diferente ou melhor do que a Favela do Macedo Sobrinho?
R - Aqui era tudo baixo, já tinha essa vantagem, porque lá era ladeira de dar volta. A gente encontra as coisas com facilidade, encontra de tudo, quando eu vim pra Maré, tinha até vestido de noiva, só precisava arrumar o noivo que casava na mesma hora. Aqui tinha vestido de noiva, tinha fogão, tinha geladeira, agora tem coisas que não tem mais. Agora mesmo eu tenho uma geladeira barata, direitinha, comprei um ferro de segunda mão, direitinho e tem anos comigo, aqui tem coisas boas.
00:54:53
P/1 - Lá na Macedo, a senhora comentou que para lavar roupas tinha que ir longe.
R - Tinha que ir, atravessar a rua, subir lá no outro morro pra lavar roupa. A minha mãe ia com bacias e trouxas, hoje em dia eu lavo roupa todo dia, porque tem torneira tem tanque, graças a Deus, mas lá não podia, tinha que juntar roupa. Hoje em dia eu detesto juntar roupa, tiro a roupa do corpo e já coloco dentro do tanque, são as facilidades.
00:55:46
P/1 - Como que foi o começo da sua vida? A senhora falou que tinha um casamento difícil, quando a senhora trabalhava fora, os vizinhos ajudavam?
R - Como eu disse, o compadre ajudou, com o nascimento da minha filha e aos três meses, me jogou para a casa do compadre.
P/1 - Quem é o compadre? Como é o nome dele?
R - Maurício e a comadre é Ieda. Quando a minha filha estava para nascer, eu disse: “Se for homem vai se chamar Maurício e se for mulher vai ser Ieda, aí vieram 2 mulheres juntas.” A Fábia foi a primeira que me jogou lá, onde eu achei apoio e a família toda me ajudou, se faltava alguma coisa na minha casa, a comadre fazia vaquinha e me dava.
P/1 - E eles moravam onde, o Maurício e a Ieda?
R - Moravam lá na Urca, naquele pedacinho que vira pra Urca e Copacabana. Nós fomos pra casa do compadre, a comadre disse: “O que você está esperando? Porque eu já quero comprar as roupinhas.” Ela deu tudo pra Ieda, e a Ieda não era afilhada dela, a afilhada era a Fábia. Ela comprou até as roupas pra Ieda ir pro colégio.
00:57:55
P/1 - A senhora continuou morando aqui, ou morava com as crianças na casa?
R - Não, eu morava na minha casa, mas o compadre às vezes fazia pastéis para as crianças. A comadre assumiu minha filha, quando eu tive a Ieda, o compadre foi com o pai dela me buscar no hospital, já levou um berço e montou na mesma hora que chegou.
P/1 - A senhora veio pra sua casa quando o neném nasceu, e veio pra casa aqui na Maré?
R - Essa já é a filha que nasceu aqui. Meu compadre é especial, ou não é?!.
00:59:07
P/1 - E seu marido, como é que ele era?
R - Meu marido bebia, era fora da realidade.
00:59:17
P/1 - Era um casamento mais violento?
R - Ele era assim, se eu estivesse contando alguma coisa e rindo, ele já tinha motivo de uma briga, me tirava do ar, ele não podia me ver sorrindo. Eu aguentei isso tudo até as bodas de prata. Quando o compadre falou aquilo tudo pra mim, o mundo caiu.
01:00:01
P/1 - Qual foi a música que você cantou?
R - Meu mundo caiu e me fez ficar assim, você conseguiu, mas agora diz que tem pena de mim. Não sei se me explico bem, eu não fiz, nem a você e nem a ninguém, não fui eu que cai. Sei que você entendeu, sei também que não vai se importar, se meu mundo caiu eu que aprenda a levantar.
01:00:40
P/2 - Ele aceitou o divórcio?
R - A minha patroa fez o divórcio, explicou tudo direitinho. Olha, quando eu me casei, ele morava na Catacumba, lá todos as mulheres já foram dele, eu descobri isso só depois que eu casei, fiquei muito triste. No meu noivado, ele foi dormir com uma pessoa que era amiga da irmã dele e minha também, aí eu fiquei pensando: “Eu caso ou não caso.” Já tinha dito o primeiro casamento que já desmanchei, aí eu prometi que o primeiro que aparecesse eu iria casar, apareceu essa droga na minha vida. Então a única coisa que restou foram os filhos, graças a Deus poderiam ser piores, mas não foram, tem educação e podem entrar em qualquer lugar. Ninguém foi parar numa cadeia, são todos direito, o outro que é meio atravessado, também nunca foi parar na cadeia, graças a Deus. A coisa que eu mais honro, é o pedacinho de papel que é o meu nome. Eu pedi sim, mas nunca roubei e nunca ensinei meus filhos a roubarem, porque quando eu morava aqui, uma vizinha minha roubou uma padaria, ela e as filharadas, tudo atrás dela, só tem uma filha que é direitinha, que vergonha. Eu graças a Deus nunca roubei, tenho a minha vida integra, tenho vergonha na cara, coisa que hoje em dia já não tem mais, educação não tem, vergonha não tem, saúde não tem, não tem nada no Brasil.
01:03:37
P/1 - Quando a senhora fala que precisava pedir ajuda pra se alimentar?
R - Quando a Fábia estava com três meses, eu sonhei com um sabonete chamado Dinheiro, aí eu fui experimentar o danado do sabonete. O sabonete tinha a capa de um homem e os dinheiro tudo voando, aí eu saí com a Fábia e o primeiro dinheiro que eu ganhei foi dez reais, o compadre apareceu na minha vida e depois disso, teve um Natal que eu ainda não estava trabalhando na casa dele, mas ele me deu cinquenta reais pra eu comprar presentes pra todo mundo; que compadre faz isso? Ele me deu cinquenta reais e eu ia batizar um garoto, comprei a roupa com o dinheiro que ele me deu. E eu fui na casa dele pra limpar cinzeiro, me deu um salário só pra limpar cinzeiro, ele me pagou o salário e eu carreguei bolsa de comida que sobrou do Natal, eu carreguei bolsa de presentes e ele ainda pagou o táxi pra eu vir pra Nova Holanda. Ele aceitou meus filhos na casa dele, só de aceitar crianças, criança é bagunceiro que mexe em tudo, Deus me livre, mas meus filhos são educados, Graças a Deus. Eles dormiram lá, quando eu cheguei de manhã, estavam com os cabelos penteados e já tinham tomado café. Qual compadre que faz isso? Então, tudo que eu estou contando no meu livro, é a minha verdade.
01:05:55
P/1 - Iraci, a música está na sua vida desde quando? Desde jovem você gosta de cantar?
R - Eu tenho uma das filhas, quando ela estava com treze anos ela inventou umas músicas, e eu estava querendo ajudá-la, aí o dia que teve um incêndio aqui, o Wanderlei tocava berimbau e ele falou comigo: “A Manchete está precisando de pretinhas para uma novela de escravos. Eu não fiz fé, mas eu deixei ir, porque pra ficar aqui pra ver crimes, coisas violentas, então era melhor ir na Manchete porque iriam ver alguma coisa. Eu me lembrei que a minha filha tinha feito música, aí ele disse: “Ela fez música, você procura registrar.” Eu achei as músicas bonitas e quando eu percebi, quem estava fazendo músicas era eu. Ela me inspirou, quando eu percebi veio uma música em cima da outra. E essa não foi a minha primeira música, a primeira música eu fiz quando eu desmanchei o noivado, foi fofoca que desmanchou e eu fiz A Dona Candinha.
P/1 - Canta um pouco pra gente.
R - A Dona Candinha me falou, que você falou falou, mexerico é, mexerico é, o homem que mexerica usa saia de mulher.
Eu não gostei da brincadeira, pensei que só mulher fosse fofoqueira, mas o homem não dá pé, afinal de contas você é homem ou é mulher?!
Essa primeira música foi inspirada quando eu terminei o noivado. A primeira que eu fiz em cima disso e depois eu disparei.
P/1 - É uma marchinha…
R - Eu ainda vou gravar ela. Depois dela, veio a Fofoqueira.
Todo mundo fala mal do homem que pega a mulher de pau, quando ele sai pra trabalhar, ela não limpa nem o quintal. Fofoqueira só vive na esquina para fofocar, falando da vida dos outros até a noite chegar, falando da vida dos outros até a noite chegar. O marido chega e pergunta, mulher cadê o jantar, ela lhe responde botei o feijão para cozinhar, menino chorando porque está querendo mamar, cadê a mamãe foi para a esquina para fofocar, cadê a mamãe foi para a esquina fofocar, cabelo voando cabelo voando, se você tem um pente para pentear, vê se olha no espelho e já é hora de se manca, vê se olha no espelho já é hora de se mancar, fofoqueira só vive na esquina para fofocar, fofoqueira só vive na esquina para fofocar, a semana inteira só quer fofocar.
Eu só vivo fazendo sucesso. Um sucesso que virou foi o Chico Anysio.
01:10:45
P/1 - Essa música Fofoqueira, como você se inspirou pra fazer essa música?
R - Ela saiu depois da primeira música, a primeira ficou Fofoqueira, mas a primeira escrita é a Dona Candinha, que foi inspirada quando eu desmanchei o noivado, agora a Fofoqueira já trouxe uma chuva, logo veio O Nazareno.
O Nazareno, o que é que está havendo?
E essa música quando veio, eu estava fazendo faxina, aí o meu patrão chegou na cozinha e falou pra empregada: “Não sei o que está havendo, que não tem comida de cachorro no supermercado.” Agora o que que comida de cachorro tem a ver com Nazareno? Aquele “havendo” ficou nos meus ouvidos, aí foram aparecendo as rimas e eu estava fazendo a faxina, aquilo me incomodando, quando eu acabei de fazer a faxina eu acabei de fazer o Nazareno.
O Nazareno, o que é que está havendo? O Nazareno, o que é que está havendo?
Você deixou sua mulher dormindo no sereno! Você deixou sua mulher dormindo no sereno!
Coitadinha da Sofia , como gemia, dormia no sereno numa noite fria.
Você ainda diz, está com pena leva pra você. Se alguém agarrar, você vai se arrepender.
01:12:35
P/1 - Você falou da inspiração. O que te inspira quando você escreve? Você fala muito de casamento, de homem malandro, como é isso nas suas letras?
R - Eu falo de muita coisa, eu falo do dólar, na época do cruzado com o cruzeiro, disseram que o cruzado era muito dinheiro, também me inspirei nisso e fiz. Eu fiz duas pra gatos, eu nunca achei que faria música pra mim mesma, mas eu fiz, também foi uma das primeiras.
P/1 - Essa eu gostaria de ouvir!
R - Eu gosto de cantar para me alegrar, eu gosto de cantar para me alegrar, por isso estou curtindo a minha nova inspiração, vai Iraci o caminho da glória apareceu pra tí, vai Iraci o caminho da glória apareceu pra tí. Os amigos disseram que eu vou vencer, por isso estou animada com o que vai acontecer. Estou de cabeça erguida, vai em frente minha querida, bonito você vai ver, eu estou torcendo por você. É bonito você ver, eu estou torcendo por você.
Aí então o caminho da Glória que eu fiz, mas o Nazareno que pegou mais. E eu estava com o Nazareno nas mãos, e queria fazer uma música com Deus, não sabia que Nazareno já era Deus, eu já tinha a mão e não sabia. Aí Deus me deu assim, a música foi tão especial que gastei três folhas de papel, por conta das repetições.
“O dia já amanheceu, as coisas podem melhorar, tenha fé em Deus, a fé não pode faltar, tenha fé em Deus, a fé não pode faltar…” Não vou cantar direto porque se não…
“... tenha fé em Deus, a fé não pode faltar. Eu andava desanimada de tanto trabalhar, mas tenho fé em Deus, a vida pode melhorar, mas tenho fé em Deus, a vida pode melhorar. Toda noite eu rezo, e peço a Deus pra me ajudar, para não deixar faltar comida no meu lar, mas tenho fé em Deus que a vida pode melhorar. Ganhando um salário mínimo desse jeito não dá, tenho ainda seis filhos pra criar, os outros estão casados por isso eu não vou contar, mas tenho fé em Deus que a vida pode melhorar. Ganho um salário mínimo e desse jeito não dá, quando entro no mercado meus cruzeiros ficam lá.
Olha, eu fui cantar isso, essa música, lá no Dudu. O Dudu mandou todo mundo ficar de pé pra bater palmas pra minhas músicas, eu fui elogiada que fiquei até besta. Agora, quando eu estou lá na esquina e vou chegando, já estão batendo palmas.
P/1 - Qual é o nome dessa?
R - A Fé.
01:17:45
P/1 - Qual época da sua vida você escreveu ela?
R - Bom, eu criei quando eu disparei a fazer músicas. Eu fiz o Nazareno, não sabia que era Deus, da Fé em diante apareceu um monte.
01:18:11
P/1 - A senhora tem muita fé?
R - Quando eu era criança eu comecei a ter catecismo na escola, eu comecei a pedir a Deus pra me dar uma bicicleta, um patins e depois casar de véu e grinalda. Eu já tinha fé. Tinha vontade de ter um patins e uma bicicleta e casar de véu e grinalda. A única coisa que eu fiz foi casar porque a bicicleta, o primeiro tombo eu desisti, já patins nunca chegou perto de mim. Quer dizer que eu era pequena, mas já tinha fé em Deus.
01:19:42
P/1 - Iraci, eu acho bacana ouvir a forma como você cria as suas músicas, e as situações que te levam a criar, a sua facilidade para captar certas situações. Você pensa e logo coloca no papel, como você cria as suas músicas?
R - As vezes eu penso numa coisa e a música vem inteira, mas às vezes eu penso e até vem a música, mas fica o resta bolinando na minha cabeça. Quando eu vejo eu rimo, eu já me acho e coloco. Tem música que às vezes é difícil achar a rima. Eu achava que era difícil fazer com meu nome, mas eu consegui fazer, e até mais de uma. As coisas vêm em pensamentos e às vezes vêm em sonhos, mas o Nazareno foi interessante porque quando o meu patrão foi chegando e eu fazendo faxina lá no quarto, aquilo ficou me incomodando.
01:21:08
P/1 - Sobre o seu viver aqui na Maré, você fez alguma música pensando na forma de vida que você tinha aqui?
R - Eu tive a Favela. “Eu sou aquela que morava numa favela, pessoa que Deus esqueceu dela, hoje em dia eu venho brilhar, estou numa escola de samba, junto com gente bamba, hoje eu vivo a cantar. estou numa escola de samba, junto com gente bamba, hoje eu vivo a cantar. Até manchete virei, a imprensa muito me ajudou e o Joaquim muito me apoiou e até o Conjunto Só Preto que veio nos mostrar, que nego também tem seu valor.
Ah, essa música pode servir, não era essa e saiu ela.
“Favela, ô favela, eu ainda me lembro do tempo que eu estava na favela. Favela, ô favela, eu ainda me lembro do tempo que eu vivia na favela. Lá nasceu sambistas, nasceu cantor e também compositor, para mostrar que na favela tem gente de valor, para mostrar que na favela tem gente de valor. Dizem que lá só tem gente ruim, mas eu tive amigos sim, mas eu tive amigos sim, e foi na favela que eu me descobri, hoje sou outra e não mais aquela”
Está tocando no Youtube. Eu queria lembrar de uma outra favela, tem três da favela e eu nem sabia.
Eu estava pensando na música da história da Barra, essa música eu vim chorando da Barra até a Central, mexeu muito comigo, eu achei uma coisa triste e gravei ela.
P/1 - Você se lembra do nome da música?
R – “Eu não sou mais aquela”. Tem “O Amendoim” também, tem a música da Xuxa.
01:25:50
P/1 - Como é a música da Xuxa?
R - Quem é que levanta a galera e o astral do nosso Brasil, é ela é ela, Rainha dos baixinhos é ela, é ela é ela, Rainha dos baixinhos é ela. Antes do amanhecer as crianças te esperam em frente a tv, o seu programa é sensacional, está em todas as revistas e jornal, o Xuxa você é a tal, o Xuxa você é a tal.
P/1 - Você gostava da Xuxa?
R - Gostava.
01:28:55
R - Tem a Rainha das Águas: “vem, me embala ô Maré, vem, me embala ô Maré, vem, me embala ô Maré, me embala ô Maré.Vem rainha das águas, vem com a força das ondas do mar, com as águas cristalinas eu vou me banhar, com a força de Yemanjá tenho o corpo fechado, ninguém vai me derrubar. Com a força de Yemanjá tenho o corpo fechado, ninguém vai me derrubar. Vem me embalar, vem…"
01:29:49
P/1 - Você escreve, pensa nas rimas, e coloca as músicas?
R - Eu sou cantora, eu coloco a música, não sabia, mas agora eu estou colocando música. Porque eu já faço a música completa, eu canto, escrevo e componho.
01:30:20
P/1 - Como é esse processo, pra você pensar numa música. Como que é?
R - A música já vem, e eu começo a cantar, quando eu vejo já peguei todo o esquema. E eu não tinha ritmo, nem sei o que é ritmo, porque pra cantar dizem que precisa ter ritmo. O Franco Xavier, foi uma pessoa que teve paciência pra me ensinar e me ensinou direitinho. Ele disse: “Olha Iraci, a sua música tem erro aqui, tem erro ali, mas não há nada no mundo que não se possa consertar. E ele teve a paciência de me ensinar como fazer.” Graças a Deus eu consegui sozinha. Quando eu faço uma música, eu mostro pra pessoa ver o que ela acha, eu fiz uma música assim ó: “Ô Dona Laurentina como vai sua menina, eu soube que ela entrou em cana com um quilo de cocaína” Aí a pessoa dizia: “Você não pode falar de cocaína na música”, aí eu pensei: “Mas o que eu vou falar?!” Aí a minha cabeça rodou e ficou assim: "Ô Dona Laurentina como vai sua menina, eu soube que ela entrou em cana brigando lá na esquina” (risos) “Se estivesse comigo, isso não teria acontecido, eu tiraria ela de jogada, mas em confusão não tinha se metido, eu sou solteira e se fosse casada e tivesse uma filha, eu juro que ela não andava com as más companhias e hoje em dia não estava nessa fria, ô hoje em dia.” Mas na hora veio ‘a briga da esquina’. Ficou bonito né?
P/1 - Ficou muito bacana.
01:33:01
P/1 - O bacana do seu trabalho é que a senhora se inspira, cria e modifica se necessário, tem uma sacação boa também. Mas no final quem decide é a senhora, né?
R - Olha, eu fui fazer a música de Nossa Senhora da Aparecida, eu fiz com uma pessoa estudada, estudou o ginasial e eu não estudei nada, só estudei até o quarto primário. Eu fui mostrar à ele a música, e eu fiz: “Estava triste, desempregada e sem saber o que fazer da minha vida, mas um milagre aconteceu, a padroeira veio me ajudar, mas um milagre aconteceu, a padroeira veio me ajudar. A comadre Delvina estava ouvindo uma oração quando meu nome ela ouviu chamar, ô Iracy o Pedro Augusto está te chamando na Tupi, ô Iracy o Pedro Augusto está te chamando na Tupi. Fui convidada para essa festa fazer, minha filha Lucimar me acompanhou, ela ficou comovida ao assistir a missa , na basílica de Aparecida. Se você for bom amigo, vai acontecer contigo o que aconteceu comigo, se você for bom amigo, vai acontecer contigo o que aconteceu comigo. Lá encontrei Imaculada, naquele instante virou a minha vida, obrigado Pedro Augusto e Nossa Senhora Aparecida.
Quando eu voltei da Basílica de Aparecida, ele queria que eu tirasse a palavra Basílica, eu disse que não, pois a Basílica é a coisa mais importante, minha basílica fica.
01:35:58
P/1 - Olha, no dia em que Pedro Augusto veio aqui, quando aquilo ali já estava aterrado e virou lá para o aeroporto, Linha Amarela, aí eu fiz a música eu coloquei basílica e ele queria que eu retirasse.
P/1 - Mas quem veio visitar aqui?
R - O Pedro Augusto veio aqui, eu contei pra ele, desfilando pra ele, mas ele também não ligou pra minha música, ele não fez nada, mas tudo bem. Se eu retirasse a basílica, a música ia ficar morta, porque o principal é a basílica. Eu aprendi uma coisa, se eu mostrar pra pessoa e eu colocar uma coisa, não é a pessoa que vai tirar, porque sei que eu estou certa, então eu vou deixar. Agora aquela pessoa da música que eu cantei agora a pouco, da cocaína, aí eu vi que eu estava fazendo, mas não poderia falar, mas agora fala até palavrão. Uma coisa que eu vejo que é importante eu não tiro. Ainda mais agora que eu sei que melhorei e melhorei sozinha, graças a Deus.
01:38:50
P/2 - A senhora se apresentava aqui na Maré?
R - Me apresentei na Maré das Artes, fiz filme, eles tiveram coragem de me colocar quando eu ainda nem sabia cantar. Montaram um show pra mim, quando eu não vi ninguém eu disse: “Posso vir daqui quinze dias?” No outro dia que eu fui lá, eles disseram: “Você não veio e suas amigas vieram te procurar.” Aí eu fiquei tão feliz que fiz o show com as minhas amigas.
01:39:34
P/1 - O que você sente quando você canta?
R - Uma alegria, eu não gosto de música triste, eu gosto de música alegre. Ela até pode ser triste, mas quando eu canto eu não mostro tristeza, não sei como eu consigo fazer isso. Um homem me mostrou uma música e perguntou se eu gostei, eu disse que não gostei. Eu sou sincera, não sei falar por trás. O Menino da Porteira eu não gosto dessa música, porque eu acho muito triste e dá uma tristeza, aquela Sentada na Porta também eu acho uma música triste, eu nem consigo escutar.
01:40:58
P/1 - A senhora se considera uma compositora aqui da região da Maré? É uma moradora antiga, que se formou e se inspira aqui. Como você se sente?
R - Quando eu vim pra Maré foi quando as músicas afloraram, quando eu estava no Macedo Sobrinho só apareceu a música da briga, do noivado desfeito, mas aqui que vieram as músicas e eu consegui fazer.
01:41:49
P/1 - E esse sentimento que a música te proporciona e traz, algum outro sentimento se aproxima dessa alegria?
R - Por exemplo, o Plano Real mexeu muito comigo, eu consegui fazer a música do Plano Real. Eu senti que tudo ali era mentira, não sei se outras pessoas também sentiram, eu fiz assim: “O que é o que é, parece mas não é. O que é o que é, parece mas não é. Dizem que o Real é muito dinheiro, é maior que o dólar e maior que do cruzeiro, é moeda forte que tem o seu valor, é sim senhor um dinheiro enganador, é sim senhor um dinheirinho enganador. Você vai na feira ou no supermercado, não tem violência mas no sapatinho você é roubado. O que é o que é, parece mas não é”.
Eu faço coisas que vão acontecer lá na frente, hoje em dia, tudo tem rabinho, a palhaçada de 1,99 e agora que pegou, tudo tem rabinho. Quanto dinheiro esse pessoal não está roubando? Eu digo, fala logo que é 2 reais, porque fica 1,99 e a gente fica pensando que tem troco e não tem. Se é 2 reais, tira o 1,99 já que ninguém dá troco.
01:43:56
P/1 - Eu gostaria que você contasse, quando você se muda para o bairro de Cosmos e como é a sua vida lá?
R - Eu achei uma porcaria, porque eu vou andar muito, mas como a plataforma vai pagar alguma coisa pelas músicas, se eu melhorar eu pretendo fazer alguma coisa pelo Brasil. A primeira coisa que eu pretendo fazer, é dar os remédios dos doentes. Com tanta gente rica no Brasil, não podiam fazer isso? Porque gente rica o dinheiro não se evapora igual a gente, que tem um dinheiro hoje e nunca teve nada, rapidinho é capaz de ficar duro. Eu estou pensando em quando eu tiver dinheiro, fazer alguma coisa pelos pobres que estão nos hospitais, condenados. Eu já estou fazendo alguma coisa, juntando caixa de leite e lavando, para fazer mantas para os pobres que estão morando na rua, já é uma grande coisa. Se cada um no Brasil desse 1 real, até pobre dava, mesmo se o povo rico desse só 1 real, porque eu acredito que o pobre 1 real ele tem.
01:46:11
P/1 - Iraci, você mora em Cosmos, o que tem lá que não tem aqui, o que tem aqui na Maré e que você não encontra lá em Cosmos?
R - Tudo! Lá em Cosmos a coisa mais simples que eu queria um dia, andei muito e não achei quiabo, não achei em lugar nenhum. Já aqui na Maré eu vim e achei mostarda, quantos anos que eu não como mostarda. Vou fazer um angu e vou comer amanhã.
01:48:10
P/1 - Você sente falta daqui, da Maré?
R - Eu sinto. Mas eu me desgostei daqui, os filhos entraram para o modo errado e eu não concordo, eu consegui vê que aqui está arruinando muita gente, uma criança vê coisa errada e já faz coisa errada, eu acho um absurdo. E eu fui porque eu também estava doente, se eu não estivesse doente, ninguém me levava. Eu tive dois AVC e um anti derrame, deu aneurisma, deu desvio e ainda tem falta de oxigênio. Mandaram eu fazer exame do coração e ir mostrar ao médico, o exame ficou 4 anos, depois agravou a situação e eu tive que fazer de novo, tive que pagar novamente. Eu paguei o exame com o meu dinheiro, achando que seria mais rápido, mas depois eu não achei um médico pra ver. Se eu estivesse esperando pelo médico ver, eu morreria. Agora eu peguei minha aposentadoria e eu me tratei na minha casa. Tive que fazer exame da cabeça e meus filhos se reuniram pra eu fazer o exame.
01:50:43
P/1 - Como é o seu dia, hoje?
R - A primeira coisa que eu faço é agradecer a Deus por mais um dia de vida, depois eu começo a pensar no que eu vou fazer nos meus serviços. Às vezes eu vou fazer um serviço e nem sei por onde vou começar, mas eu vou devagarinho, desenrolando, quando eu vejo chego no fim e já está tudo pronto. Graças a Deus, ele me ajuda, eu sinto a mão de Deus.
01:51:35
P/2 - A senhora mora com quem lá em Cosmos?
R - Eu moro sozinha. É chato porque eu tomo remédio sozinha, eu tomo seis remédios, faço minhas coisas tudo sozinha, não quero ninguém atrás de mim pra me perturbar. Eu na minha casa não sei nem andar, é uma casa que parece até um palácio. Meu neto fez a casa, eu estou na casa do meu neto até fazer a minha, ele pega coisas no lixo mas não tem coragem de lavar, ele pegou uma janela, a janela deu um trabalho pra eu lavar, mas eu lavo e coloco perfeita, só acho um desaforo eu comprar uma coisa que vem do lixo, e eu ainda ter que limpar. Ele estava me devendo um dinheiro e queria que eu pagasse mais pela janela, estava trambicando comigo, eu falei pra ele: “Você tem coragem de fazer trambique com a sua avó?” Então eu estou vendo que o Brasil está todo errado, pelo o que o Crivella fez a Flor de Lis, não dá nem pra acreditar.
01:53:39
P/1 - Ainda tem sonhos de vida, o que gostaria de realizar?
R - Uma vez, uma pessoa disse pra mim, que era pra eu acreditar em mim mesma. Olha quanta coisa eu tinha e que estou realizando. Eu vou fazer um livro, e é a minha história, uma história de pessoa pobre e é tudo verdade, eu não gosto de mentiras, tudo que eu falo é verdade. Se eu falo que vou te pagar e você me diz que é tanto, eu trago o dinheiro e pago, por isso que eu não tenho grandes amigas, não gosto de ficar ouvindo abobrinhas, contar vantagem. Quando eu era mocinha eu ia pro posto, tinha aquelas mulheres que também tinham crianças, elas falavam cada besteira e eu fingia que estava acreditando, não acreditava em nada. Mas eu disse, o dia que eu tivesse a minha verdade pra contar, eu ia contar. Naquele tempo eu ainda não tinha nada na cabeça, só tomei conta dos meus filhos, filho que ficou doente, filho que está morrendo, graças a Deus eu consegui melhorar meus filhos. Eu tenho um neto que ficou doente, a minha filha brigou com o pai dele e foram no juizado de menores, eu fui junto, eles entenderam que ela estava querendo internar o menino, pegaram o menino e enfiaram no camburão e levaram pro interno. Aí a primeira vez que eu fui ver o menino, ele ainda estava gordinho, mas a segunda vez ele já estava magro, porque estava sentindo falta do peito. Minha filha era menor de idade, e precisava de alguém maior de idade pra retirar ele, como era minha filha e meu neto, eu me responsabilizo. A minha filha disse que eu estava tomando ele, eu disse à ela: “Não minha filha, eu não estou tomando seu filho, porque eu já tenho os meus, eu estou querendo melhorar ele.” Tirei ele de lá e passei pra minha responsabilidade, e disse que um dia levaria ele ao médico, ela levava em vários médicos e não conseguia nada. Eu fui levar o menino lá no Rocha Maia em Copacabana, coloquei ele perto do meu peito, só pra ele sentir um calor, num é que o danado puxou o meu peito e mamou!. A enfermeira falou: “É teu filho?” e eu: “Não, é meu neto.” Eu fiquei muito feliz daquele dia pra cá, ele está com 38 anos, é meu filho, fiquei muito feliz. E eu também salvei uma pessoa de um incêndio.
01:58:17
P/1 - Conta a história do incêndio pra gente, pra irmos encerrando. Como aconteceu esse incêndio?
R - Eu estava fazendo faxina, limpando janelas, a mulher lá no outro lado da rua. A mulher ficava virando o rosto pra baixo e eu fiquei invocada, fiquei tomando conta da mulher, e ela virava muito a cabeça pra baixo. Aí eu falei com o porteiro: Olha, tem uma mulher lá no outro lado da rua, na terceira janela, você presta atenção. Mas ele não entendeu nada, e lá fui eu, com a flanela na mão, descalça, quando eu olhei pra trás, veio uma marcha atrás de mim. Eu estava tão nervosa que contei de cima para baixo o terceiro andar, mas eu estava no décimo segundo andar, mas eu esqueci que era 12 e fui, quando chegamos na portaria o porteiro queria saber o que houve, tem gente pedindo socorro aí e você não viu, eu falei pra ele. Aí nós subimos e tinha um fumaceiro danado, uma mulher dentro do quarto com uma criança de 2 anos, uma panela de pressão prestes a explodir. O cara disse: “O que fazemos? Vamos esperar o bombeiro?”, eu disse: “Não, vamos arrombar a porta.” E quando chegamos na outra porta, a mulher ia fazer a criança dormir, imagina se essa mulher dorme com essa criança?! A casa estava dominada de fumaça, era uma quitinete e estava trancada, ela não conseguia abrir nem a porta pra tirar a panela do fogo. Ia pegar fogo no prédio inteiro e eu ia ficar com remorso, pois eu fui a única que vi.
P/1 - Que bom você viu e pode ajudar, né?!.
R - Graças a Deus eu salvei. Não tinha celular, porque se tivesse celular, teriam me filmado e eu estaria na Globo, e eu não me interessei e fui fazer a faxina na outra casa. Mas fiquei feliz porque a mulher não morreu.
02:00:50
P/1 - Iraci, o que você achou de compartilhar um pouco da sua história? A gente agradece e gostou muito desse compartilhar de experiências, uma trajetória de batalhas, mas de muita criatividade. Você é compositora, cantora...
R - Eu estou muito feliz porque eu canto o que eu faço, todo mundo gosta. Música é sucesso, tem mais de trinta anos que eu faço isso. Quando a minha filha fez as músicas, eu convidei ela pra ir comigo onde eu fazia shows, conhecemos o Serginho Bafo de Onça, ele era velho e minha filha se encantou com ele, aí pronto, arrumou um filho com ele. Eu fiquei muito triste pois disseram que eu era culpada, porque ela andava comigo. O que eu pude fazer pelo menino, eu fiz, ele já tinha mais dois filhos, então minha filha ficou com três filhos, eu fiz tudo pra tirar minha filha da casa dele. Eu dei sorte, porque o pai havia colocado na rua, eu achei uma pessoa que me ajudou e era amigo dele, eu achava que era o melhor neto, mas era um trambiqueiro, deve e não paga, se me pagasse eu até adiantava a minha casa, tem outros filhos que me devem também, tudo são mal pagadores, então eu estou fazendo a minha casa com a minha aposentadoria. Eu pegava latinhas, mas agora as latinhas estão mudando, está virando uma garrafinha de cerveja. Então eu não tenho como fazer as coisas que eu fazia, eu limpo rua mas não ganho nada, faço pelo prazer de ver a minha rua limpa. Tem gente que me elogia, pois vê a rua diferente, eu fico mais contente, não ganho nada, mas faço alguma coisa. Porque eu acho que se eu ficar à toa, eu vou ficar pensando besteira, então eu varrendo rua ou carregando tijolo, já não estou pensando, porque eu penso muito e tem gente que não pensa.
02:04:56
P/1 - O que você achou de dar esse depoimento hoje?
R - Eu achei bonito, agradeço muito, estão me reconhecendo que eu faço alguma coisa importante. É muita honra, porque olha, se eu fosse uma pessoa desligada, quando não vi ninguém lá perto de mim, não teria vindo pra cá. Eu coloquei a roupa sozinha, me preparei do jeito que eu pude e estou aqui e não podia faltar. O horário é muito cedo, tem gente que está trabalhando, tem gente que está levando os filhos no colégio, mas eu vim sozinha. Fiquei muito feliz e pedi tanto a Deus pra dar certo, e deu, mesmo eu com pouco estudo.
02:07:06
P/1 - Iraci, vou te agradecer, muito obrigada pelo seu depoimento, por compartilhar com a gente a sua história e trajetória de vida, compartilhar suas composições, sua criatividade. Muito obrigado.
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