Projeto Ponto de Cultura - Museu Aberto
Depoimento de Charles Franz
Entrevistado por José Santos (primeira parte); Maria Lenir Justo e Laudiceia Benedito (segunda parte)
São Paulo, 09/05/2008 (primeira parte); 16/10/2008 (segunda parte)
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV114
Transcrito por Beatriz C. S. Rodrigues (segunda parte)
Revisado por Michelle de Oliveira Alencar/Viviane Aguiar
Publicado em 17/07/2009
P1 – Boa tarde, professor!
R – Boa tarde!
P1 – Queria começar a entrevista pedindo para o senhor falar o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome de nascimento é Francisco Carlos Jorge Jaschkowitz Breslaver, mas, na realidade, sou conhecido pelo nome Charles Franz, que é um pouco mais fácil (risos). Mais curtinho.
P1 – E o senhor nasceu em que ano?
R – Eu nasci na Alemanha, na cidade de Breslau, que é uma antiga cidade universitária, onde Kurt Masur fez o Doctor Honoris Causa. Uma cidade no leste da Alemanha, que tinha o próprio, que tem a própria orquestra sinfônica, ou seja, é uma cidade bastante interessante.
P1 – E o dia, mês e ano que o senhor nasceu?
R – Eu nasci em 8 de novembro de 1925, e atualmente estou com a respeitável idade de 82 anos.
P1 – Que beleza! E o senhor podia falar o nome dos seus pais e qual era a atividade deles?
R – Bueno, meu pai em sua juventude foi regente de orquestra, estudou em ____, Conservatório de Berlin, mas mais tarde ele estava mais dedicado a assuntos de diplomacia. Mas quem foi bastante célebre já em sua idade de juventude foi minha mãe. Minha mãe foi conhecida tanto na Alemanha, como em outros países limítrofes, como poetisa, e o extraordinário é que, aos 18 anos, isso foi único na história da Alemanha, ela já foi admitida entre os imortais. Aos 18 anos, tanto como poetisa, como também declamadora. Não sei se ela herdou o meu gênio, ou eu o dela (risos).
P1 – E qual o nome deles?
R – Meu pai se chamava Rudolf Jaschkowitz, e minha mãe, Edit Breslaver.
P1 – E o senhor tinha quantos irmãos?
R – Único exemplar.
P1 – (risos) Único exemplar! E qual é a lembrança mais remota que o senhor tem da sua casa materna?
R – Bom, há muitas, mas essencialmente quando eu escutei... Naquela época, não era como hoje, que vivemos praticamente rodeados de música, da mídia, e naquele, então, ainda não... O rádio estava em seu começo, e uma coisa que esse me contou é que, quando escutei música pela primeira vez, fiquei absolutamente estarrecido, ou seja, a música foi desde muito cedo, estou falando dos dois anos, certo? Fui muito receptivo à música, e aos quatro anos já dei minha primeira atuação com a flor em um fraque ante 300 pessoas.
P1 – Uma apresentação?
R – Uma apresentação, só que havia algo curioso: eu não tocava tanto piano. Como teria uma voz exímia, uma voz muito agradável, e tinha um pouco mais aos seis anos, já não apenas cantava, sim? Não teria essa particularidade, de que cantava e me conseguia acompanhar, eu mesmo, no piano.
P1 – E o seu pai foi o seu primeiro professor?
R – Meu pai não. Minha primeira professora, casualmente faz uma semana, recebi notícias de um professor da Columbia University de Nova York, que me esclareceu que minha primeira professora de piano era, à sua vez, aluna do grande compositor Franz Liszt. Assim que, imagine, em primeira, em segunda! (risos) Inclusive faz duas semanas, eu emulava esse caso, mas foi interessante, mas atualmente não foi o único. Meu verdadeiro professor importante foi, à sua vez, um aluno, um discípulo avantajado do mundialmente famoso Ferruccio Busoni, um dos maiores músicos da primeira metade do século passado. Então, eu estudei piano a sério desde os seis anos, digamos. Desde seis anos, logo mais tarde tem que compreender o seguinte: eu, na idade dos 12 anos, eu imigrei da Alemanha ao Uruguai primeiro e logo à Argentina. Então, no Uruguai eu tive essas aulas com esse professor, Misha Jessel, que era, como já falei, um discípulo de Ferruccio Busoni, e Busoni, por sua vez, era discípulo também de Liszt, e fez as grandes luminárias do século passado.
P1 – Vamos continuar ainda na Alemanha. Vamos falar um pouco ainda da sua infância. Fora a música, o que é que uma criança da sua idade fazia?
R – Teatro. Eu tinha uma memória fabulosa, certo? E era muito alto, sabe? Ou seja, isso foi algo que depois ficou, porque também hoje não sou muito alto também. Pelo menos em altura, agora mentalmente não falemos. Ou seja, falando sério, fazia teatro, tinha, claro, como se diz? Uma caída, como se diz? Uma caída pela música. Uma queda pela música. Uma queda pela música muito grande e tocava bastante piano já aos oito anos.
P1 – Nessa época dos oito anos, quem eram os compositores que o senhor gostava de tocar?
R – Nessa época, naturalmente, meus gostos musicais ainda eram um pouco indefinidos. Compreende-se que nessa época era a época das grandes operetas de Franz Lehár, certo? Então, eu gostava da música melódica, que naturalmente era essa a música que eu cantava também. Tenho que confessar que a minha paixão pela música clássica é na realidade recente, teve lugar mais tarde, quando eu comecei a ter aulas com esse professor, que era não mais alto que eu, mas era um grande professor e um grande pianista.
P1 – E, professor, como era Breslau nessa época, nos anos 1930?
R – Breslau foi, como já falei, uma cidade muito musical, eu me relembro, por exemplo, haver ido, meu pai me levou a concertos, mas concerto na Alemanha dessa época era algo diferente do concerto de hoje. Eu fui faz dois dias ver um concerto de Nelson Freire que logo me entrevistou uma vez, quando eu vivia na Argentina, quando ele era bem mais jovem. E, bom, não era um concerto como os de hoje. Nessa época, todo mundo tinha, não havia nem pilhas, havia uma pequena... Como se diz? Às vezes me falta a palavra em qualquer idioma. Uma pequena vila [vela], e as pessoas escutavam o concerto com a partitura na frente. Isso foi uma Europa que já não existe mais, uma Europa. E na realidade eu me criei no meio de uma casa com bastante ascendência a Portugal. A tal ponto que eu tinha ido todos os anos visitar uma tia que vivia na Alta Silésia, que era uma das mulheres mais ricas da Europa, que se chamava Espetta Zilberstein, em cuja casa minha mãe uma vez viveu no quarto de hóspedes que a irmã de Albert Einstein, de grande físico Albert Einstein. E eu pessoalmente em minha infância o vi e o chamava de tio. Era meu, era Tio Albert. Claro que eu não acredito que o professor Einstein tenha visto algo muito especial nesse pequeno, não tinha nada a ver com a relatividade, mas, de todas as maneiras, já havia chamado Einstein Tio Albert, já era uma diferença.
P1 – E como é que ele era no contato pessoal?
R – Seco.
P1 – Seco?
R – (risos) Sim, já era muito famoso nessa época, sua irmã, que era maior que ele, era bastante, apesar de ter vivido, como já mencionei, 40 dias no mesmo quarto de hóspedes, era de outra geração, ou seja, não mentiria se ela, minha mãe falou que não era particularmente amiga dele. Mas, claro, logicamente, nessa casa, nesse palacete, porque era um palacete, minha tia tinha cinco minas de carvão, era uma das mulheres mais ricas da Europa. E ia também Ignacy Jan Paderewski, o grande pianista também da primeira parte do século XX, que logo também foi, ele mesmo, presidente da Polônia. Ou seja, minha juventude não foi como assistir a momentos em que meu pai conversava com outras pessoas, sim, a conversa não era e aí passava, isso não era sobre canto, sobre algo, ou era, enfim, era uma conversa não quero dizer de intelectuais, mas de intelectuais que tinham intelecto e coração.
P1 – E, professor, esse seu talento precoce chamava muito a atenção dos adultos?
R – Sim, bastante. Bastante, mas tenho que confessar que inicialmente mais minha voz, porque minha voz era uma voz muito agradável, não me lembro muito bem como cantava, mas diziam as más línguas que eu cantava muito bem.
P1 – E, professor, nessa época a Alemanha passava por um momento muito turbulento. O que levou a sua família a sair da Alemanha?
R – Bom, primeiramente, porque meu pai tinha sangue judeu, não era judeu completo, mas tinha sangue judeu e também minha mãe tinha algo de sangue judeu. Então já havia razão mais do que suficiente para... Ou seja, meu pai fugiu da Alemanha em 1935 e foi a Viena, onde, como era... Ele falava 11 idiomas.
P1 – 11?
R – Onze, sim, e eu sou muito mais coitadinho, só falo cinco. Como vocês se dão conta, isso de que falo é um dever, porque o meu português está um pouco, se tocasse tão mal o piano como falo português, seria minha tristeza! (risos) Você possivelmente não estaria me fazendo uma entrevista.
P1 – Não, mas a gente entende o senhor perfeitamente!
R – Quanta indulgência! Vamos a muitas partes.
P1 – Bem, então seu pai estava em Viena...
R – Meu pai foi a Viena e queria que eu aceitasse um oferecimento que me foi feito pelos Meninos Cantores de Viena, e minha mãe que por suas turnês por toda a Europa e, sobretudo, pela Alemanha, mas repito, também em outros países europeus, aos quais muitas vezes me levou, muitas vezes à Suécia, à Holanda, Dinamarca. Eu já conhecia todos os países quando era muito “mais pequeno” que agora. Então, já se via nos países que rodeavam a Alemanha que alguma coisa havia de nuvens pretas e que alguma coisa ia acontecer. Então, minha mãe conseguiu se divorciar de meu pai para conseguir levar-me à América do Sul porque não queria, como ela falava, que eu fosse alguma vez carne de canhão. Podia contar várias coisas, naturalmente, nessa época, eu escutava mais que uma vez na rua os discursos de Hitler. Mas tenho uma coisa interessante para contar dessa época. Meu pai, nós tínhamos um apartamento de 13 quartos, o qual aqui seria algo pouco provável, mas na Alemanha era perfeitamente, muita gente tinha apartamentos grandes. E, quando meu pai estava na Alemanha, não podíamos ter empregados “ários”, ou seja, de raça ariana. Mas, quando meu pai foi embora da Alemanha, um dia já... Talvez tínhamos empregadas arianas, e, um dia, uma empregada veio apavorada ver a minha mãe e disse: “Minha senhora, na porta há dois Gestapos [polícia política alemã], dois SS [organização paramilitar do partido Nazista alemão].” Minha mãe acreditava naturalmente que isso era talvez o fim. “Faça-os passar ao salão.” Então, minha mãe entrou depois de um momento e, para o espanto de minha mãe, os dois SS se levantaram e lhe beijaram a mão e lhe falaram: “Senhora, viemos em cargo do nosso Führer Adolf Hitler. O Führer leu alguns de seus poemas e desejaria que você fizesse um poema para ele, para o aniversário dele.” Minha mãe lhes respondeu: “Veja, é uma grande honra, mas me chamou atenção que meu filho tem pais que não são ‘ários’ perfeitos.” E os dois se olharam entre si e falaram para minha mãe: “Achamos que a senhora deveria fazê-lo.” Minha mãe aceitou e, graças a isso, a essa relação, com esses Gestapos que eram altos funcionários na Alemanha, conseguimos no último momento os papéis para praticamente o último barco que sairia para o Uruguai, que era o nosso primeiro destino na América do Sul.
P1 – E, nesse ano que vocês vieram para o Uruguai, o senhor tinha quantos anos?
R – Eu tinha 12 anos. E aos três dias que já havia chegado a Montevidéu, ganhei um contrato de sete meses para cantar na emissora mais importante da época que se chamava Rádio Espectador de Montevidéu.
P1 – Um momentinho, professor, o senhor está muito rápido!
R – Eu sou muito rápido.
P1 – Então, olha, vocês saíram de navio, né?
R – Saímos de navio, sim.
P1 – E, quer dizer, hoje não são mais usuais as viagens de navio.
R – Não compreendi.
P1 – Hoje, não são mais comuns as viagens de navio por causa do avião.
R – Nessa época, eram muito lindos.
P1 – Quanto tempo demorava uma viagem da Alemanha ao Uruguai?
R – Veja, nós temos uma forte lembrança porque, passando Casablanca, nosso barco bateu com um banco de areia e ficamos dez dias parados no Equador, ou seja, no Equador era uma festa. Para que falar?
P1 – É?
R – Sim, ou seja, nossa viagem era muito linda, só que houve um assunto triste quando chegamos. Porque, quando chegamos, descemos do barco, e aí havia uns grandes contêineres, e minha mãe viu, e eu também vi, como um desses contêineres enormes caiu ao mar. Então, minha mãe falou: “Coitada da gente que são os donos desse contêiner!” Infelizmente, esses coitados éramos nós (risos). E aí havia uma bíblia de 1400, que dançava, e havia uma quantidade de objetos de valor.
P1 – Tinha uma bíblia?
R – Uma bíblia.
P1 – Uma bíblia de Mogúncia?
R – De 1400. Sim, uma famosa bíblia, certo? Então existe... Enfim, fomos nós os coitados a quem se passou isso. Mas, tudo bem, ou seja, uma criança não vive a realidade, a seriedade e as angústias dessa época. Para mim, tudo era aventura.
P1 – É verdade. E como é? Vocês desceram em Montevidéu?
R – Bem, Montevidéu, é claro, tive que compreender que eu já tinha feito meu oitavo ano de escola, tive que começar de novo, ou seja, um novo idioma e fui à escola em Montevidéu. Fui à escola em Montevidéu e comecei a dar concertos também, ou seja, comecei a dar pequenos concertos, não concertos como comecei a dar mais tarde. Ou seja, não vou comparar os concertos que dei no Carnegie Recital Hall ou o que dei há dois anos no Cultura Artística agora em 2006, em novembro. Eram pequenos concertos com já 100, 150 pessoas.
P1 – E quem conseguia isso? Era a sua mãe que o agenciava?
R – Sim, havia pessoas a que chamavam atenção à minha personalidade musical (risos). Ou seja, teria já um certo carisma quando era pequeno.
P1 – E conserva até hoje, né?
R – E sempre fui muito pequeno, ou seja, já que você me pergunta sobre a minha infância... Na Alemanha, as crianças de menos de seis anos não pagavam bonde, não pagavam bonde porque se andava em bonde naquela época. E eu, aos oito anos, ainda ia gratuitamente. Agora, o meu professor, que teve... Agora não, o senhor disse que sou rápido demais, vamos lá!
P1 – Vocês estão chegando ao Uruguai, um país que vocês não conheciam. Vocês tinham parentes, amigos em Montevidéu?
R – Tinha apenas uma irmã de minha mãe. Sim, que justamente nos chamou, nos enviou uma chamada, que se chamava assim, para poder entrar no Uruguai.
P1 – Isso, a Carta de Chamada, né? E o que pareceu Montevidéu, então, nessa época, para o senhor?
R – Lindo. Lindo! Era maravilhoso. Uruguai nessa época era chamado de “Suíça sul-americana” e era um país de gente muito gentil e tive muitas, tive depois... Mais tarde, minha vida depois, fui durante sete anos seguidos a Punta del Este, ou seja, Uruguai sempre foi um país que eu gostava muito, talvez até mais que a Argentina, onde vivi muitos anos, mas estou me adiantando.
P1 – Em que bairro o senhor morava em Montevidéu?
R – Em Malvín, a dois quarteirões do mar, não é mar, mas do Rio de la Plata, que era praticamente mar, não?
P1 – E então o senhor já trabalhava?
R – Bom, eu tive esse contrato de sete meses na Rádio Espectador como criança cantora, certo? E me acompanhava, não eu mesmo, se não me acompanhava por casualidade, o diretor da rádio. Ou seja, durou sete meses e quando passaram esses sete meses fui fazer uma procura com a minha mãe para ver se pegava outro contrato. Porque, claro, nesses sete meses, eu ganhei praticamente como um diretor de banco! (risos) Teria no Uruguai o que me tinha direito, não? Então, fomos fazer uma procura nas praias do Uruguai e, não sei, na casualidade ou como chama Jung, um sincronismo, não? E, nesse momento, o vi nesse momento em que eu caí nessa rádio. Estava o grande diretor, regente de orquestra mundialmente famoso, Erich Kleiber, um grande compositor ancião, não tão ancião como eu, mas ancião, Fabini, o pianista, Osvaldo... Teve vários, e que me escutaram cantar. Então, perguntaram à minha mãe: “Ele só canta?” “Não”, dizia a minha mãe, “ele também toca piano”. “Também toca piano?” Então, me fizeram tocar piano e o veredito foi determinante: “Senhora, pelo amor de Deus, essa criança tem talento, talvez até gênio, mas você tem que tirá-lo absolutamente da música popular, tem que levá-lo completamente para a música clássica. Nós o levamos para o melhor professor que há no Uruguai”, que eu já mencionei, Misha Jessel. Que era a maldade total.
P1 – Maldade?
R – Maldade. Para explicar bem: nessa época, se andava em bonde. Eu não chorava depois da aula, eu já chorava quando ia à aula, já adiantado. Ele não batia em mim, não. Não, não batia. Ele batia com palavras, mortificava. Então, eu chorava por adiantado. E, uma vez, saí da aula e batendo os braços, falei: “Quando eu for grande”, e nunca fui muito grande, como músico é outra coisa, mas, enfim, nunca fui muito grande de estatura, e falei: “Quando eu for grande, eu vou ensinar de outra maneira!” E efetivamente tenho hoje uma idade respeitável, mas coloco o meu crédito que nunca em minha vida fiz, em minhas quatro décadas, ou cinco de professor também, nunca fiz chorar uma criança. Possivelmente, é uma verdade, sabe por quê? Porque nunca tomei crianças (risos). Minha especialidade logo foram adultos, mas estou me adiantando.
P1 – Mas, professor, as suas aulas eram difíceis porque o professor era então muito bravo?
R – Bom, eram difíceis, me faziam estudar três horas por dia, mas tenho que dizer, para crédito dele, me converteu em pianista, porque mais tarde fui um pianista um pouco diferente dos pianistas habituais clássicos. Porque desde muito cedo desenvolvi uma especialidade que no total, ainda hoje, existem apenas, em todo o mundo, três ou quatro concertistas que dominam essa vez. Ou seja, essa especialidade chama-se a arte da improvisação nos estilos dos grandes compositores, ou seja, você sabe que cada compositor, Bach, Beethoven, Mozart, cada um tem uma linguagem diferente, uma linguagem musical. Então, hoje, e em toda a minha vida, quando tive muitos concertos, logo na Argentina – mas estou me adiantando muito –, dava 20 concertos cada ano.
P1 – E, professor, já que nós estamos falando de música, quais foram os primeiros grandes compositores da música clássica a que o senhor teve acesso nas suas aulas?
R – Bom, atualmente... Os compositores que me interessavam muito quando eu era jovem eram diferentes dos de hoje. Eu gostava muito de Tchaikovsky, Beethoven. Enquanto hoje eu gosto ainda de Tchaikovsky, mas gosto muito mais de Bach e gosto de Rachmaninoff, que é meu compositor quase preferido, tudo bem, você... Mas há muitos naturalmente. Sabe, os gostos musicais são como se nós subíssemos a escada remando de um barco, à medida que subimos, vimos mais barcos, nosso horizonte se torna mais completo. Então, hoje, falar de quais seriam hoje meus compositores favoritos...
P1 – Não, não. Na época que o senhor tocava música popular, aí o senhor foi aprender com esse professor, o clássico.
R – Sim, ou seja, me foi totalmente proibido, proibido terminantemente de seguir tocando música popular. E como eu tinha, desde muito cedo, certo talento para os idiomas, e o único idioma que falo mal é o português – nessa época eu não falava ainda.
P1 – Mas que outros o senhor fala? Alemão...
R – Alemão, francês, italiano, não. Italiano mal, inglês, holandês, espanhol. Alemão é minha língua materna, não? Agora, meu pai já falava 11. Bom, já falei. Mas, então, como eu tinha muito talento para os idiomas, não na minha juventude, não, me dediquei à música. Fora dos meus estudos, estudava as três horas regulamentadas com esse professor diabo, porque era o diabo em pessoa, mas me converteu num pianista.
P1 – E a sua outra parte de vida de adolescente, o que o senhor fazia?
R – Música.
P1 – Também?
R – (risos) Este não. Era uma criança. Podia contar uma anedota, o grande escritor Gabriel Márquez...
P1 – É, García Márquez.
R – É, García Márquez disse que, quando se chega a uma certa idade, e eu cheguei a uma certa idade, se tem muito para contar. Então, eu sou um pouco um perigo, mas, tudo bem, se vocês querem...
P1 – Queremos.
R – Meu pai que ganhou, apesar de sua condição de não “ário” puro, ganhou a cruz de ferro na Primeira Guerra Mundial e contraiu a malária e durante um ano teve que ficar de cama. E, como minha mãe viajava, como já mencionei muitas vezes, a turnês de sua arte, de sua arte, como já mencionei, da declamação de suas próprias obras, eu ficava, nessa época, que foi o ano de 1929, que foi um ano bravo na Europa, que muitos perderam partes de suas fortunas e suas honrarias também. Então, era a única época que não tínhamos empregadas, e eu estava sozinho com meu pai, que tinha que suster raiva, e, como não havia ninguém perto, era eu que os recebia. Então, um dia, meu pai me mandou ir a um encontro, que era uma vergonha para uma criança. E em sua raiva tomou meus brinquedos e os atirou contra a parede. Para uma criança de quatro anos, eu tenho uma anedota que acho que nem Dalai Lama estaria envergonhado de tê-la, porque eu me uni a meu pai, tomei também meus brinquedos e também os atirei. Ou seja, eu depois os vi em toda minha vida um filme, nem de Unesco, nem de nenhum dos grandes, que tivesse uma ideia maravilhosa, um pai atirando os brinquedos da criança, e a criança também atirando contra a parede. Ou seja, era gandhiano, era “mais grande” da resistência passiva já em quem não passava de um metro de altura. Bom, assim, glimpses, como se diz, se diria glimpses?
P1 – Mas, então, estamos falando da sua adolescência no Uruguai. O senhor tinha aula de música, depois mais música, e a sua mãe, o que ela fazia, nesse período?
R – Veja, minha mãe, era algo muito duro para a minha mãe, porque minha mãe, o idioma dela, o idioma de Goethe e Schiller, certo? O idioma alemão. Minha mãe era completamente, era muito triste, na realidade, para uma pessoa de repente ter que estar em um país completamente diferente. Mas minha mãe não se arremeteu. Mas a carreira, porque minha mãe não era apenas crítica de cinema, era uma quantidade de coisas. Ela fez uma, um dos grandes compositores, agora o nome não me lembro o nome, mas um discípulo de Richard Strauss, ela fez a obra, uma ópera, o livreto de uma ópera, ou seja, minha mãe tinha muitos méritos.
P1 – Mas lá no Uruguai, ela continua escrevendo poesia? Ela continua produzindo?
R – Sim, mas havia uma colônia de imigrantes que eram tão pobres como nós. Então, não se podia fazer grandes coisas. Mas, evidentemente, ou seja, você me perguntou as atividades de minha mãe, ou seja, foram, se vou lhe dizer a verdade, muitas vezes indo de porta em porta vendendo lápis, era o destino.
P1 – Muito bem, então estamos contando da sua adolescência em Montevidéu e se passaram os meses do contrato. Que outros concertos apareceram? Que outros trabalhos?
R – Não. Bom, então, já aos três anos, Uruguai era um país muito lindo, mas muito pobre, então decidimos ir para a Argentina. Ou seja, minha mãe me levou para a Argentina, e eu completei, isso é bastante interessante. Nessa época havia vários de meus professores de escola, mas um professor de escola dessa época era uma personalidade, tinha um status social altíssimo e eu me lembro que os meus professores eram doutores em Filologia, doutores em Física, ou seja, eram eminências. Estou falando de professores de escola primária. Então, já no Uruguai, minha mãe contratou um dos meus professores, que também era imigrante, que completou muito de minha cultura que perdi pela perda da continuidade dessas instituições universitárias, dá para entender? Podia contar uma coisa muito interessante. Resulta que esse doutor em Física e Filologia, acho que era, na realidade, em um certo momento era o homem que trazia o leite ao nosso lugar com uma charrete e um cavalo. E eu me lembro que, quando não me orgulho, estava sentado ao lado do meu professor, que era um Deus para mim, que na realidade era leiteiro, eu estava sentado como estaria ao lado do rei da Prússia. Ou seja, essas coisas são interessantes, mas marcam a gente bastante, porque, se tudo só fosse alegria e facilidade, talvez nossa formação humana não fosse a mesma.
P1 – Ah, sem dúvida. E vocês viveram quantos anos no Uruguai?
R – Três anos.
P1 – Três anos. E por que é que vocês decidem ir para a Argentina?
R – Porque a Argentina era um país com mais dinheiro, com mais possibilidade. Já lhe mencionei que acompanhava a minha mãe de porta em porta vendendo lápis, certo? Que as pessoas de lástima, como os imigrantes, e solidários com pessoas que estavam em dívidas, sofrendo. Porque nem tudo, apesar da minha contratação no Uruguai, quando isso terminou, passamos algumas épocas, porque havíamos perdido nossa fortuna, ou seja, vivemos anos dos quais até não gosto muito de me lembrar.
P1 – Então, professor, vamos agora passar para a sua fase argentina. Em que ano vocês se mudam para a Argentina?
R – 1939.
P1 – 1939. E aí vocês vão para Buenos Aires?
R – Fomos para Buenos Aires, sim. E em Buenos Aires é uma época da qual me lembro pouco. Lembro que, já falei que tinha um certo talento para os idiomas, então, me empreguei em uma agência de notícias, ou seja, minhas ocupações eram ouvir um grande rádio Hallicrafters, essas rádios de ondas curtas, as últimas notícias da guerra. Eu as traduzia rápido, em qualquer idioma, inglês, alemão, francês. Como tinha... Corria, batia à máquina, que nunca cheguei a tocar piano tão rápido como batia à máquina. Era um verdadeiro virtuoso na matéria. E tinha certa fantasia, quando os alemães, por exemplo, suponhamos, entravam em Lisboa – não entraram nunca, por sorte – mas eu não escrevia “os alemães entraram em Lisboa”, “os alemães entraram em Casablanca”, porque eu tinha um mapa. Então, eu escrevia história à minha maneira.
P1 – (risos) E vocês moraram quantos anos na Argentina?
R – Muitos, ou seja, até depois da guerra, ou seja, estou falando de 1939, 1945 terminou a guerra. Então, nessa época, como já falei, me empreguei em uma agência de notícias, mas, às sextas, que era a época em que na Argentina, simultaneamente no Brasil, apareciam os bares americanos. Esses pequenos barzinhos onde as pessoas iam escutar piano, piano bar. Então, eu tinha um amigo, que era um pianista, que tocava nesses bares e, às sextas-feiras, uma vez por mês, eu ia. Claro que, ao lado desse pianista, eu era um Horowitz diretamente, sem falar mais. Mas eu tocava uma rapsódia, já nessa época era um compositor. E naturalmente a gente aplaudia. E Lazaña me disse um dia: “Franz, por que não vem tocar aqui?” “Ah, não senhor. Nunca, nunca, nunca! Tsc, tsc, tsc.” “Na música clássica, eu sou, eu não faço mais música popular.” Mas, ao mês, Lazaña me perguntou de volta, me perguntou: “E, Franz, quando?” Eu ganhava 60 pesos, não sei quanto era isso, mas não era grande coisa, e este: “Quanto ganharia com você?” “450!” “E quando eu começo?” Então, ele já falou para mim: “Na semana que vem.” Só que essa semana que vem não comecei, sabe por quê? Porque era a semana da vitória dos aliados! Mas na semana seguinte comecei com 450 pesos. Só que houve uma coisa esquisita: aos dois meses, já não ganhava 450 pesos, só ganhava 380.
P1 – Ah, diminuiu!
R – Porque havia passado. Eu, naturalmente, pianisticamente, estava em cima de qualquer outro pianista dos arredores. Mas havia alguma coisa que faltava, e não se sabia que faltava, e alguma coisa faltava. E, um dia, chegava sempre às sete da noite, chego e havia um acordeonista, sanfoneiro, tocando muito bem, que escutei e me sentei ao piano acompanhando o homem, e, para espanto meu, ele colocou seu instrumento na mesa de lado e falou: “Com esse pianista, não toco! Não sabe nada!” (risos) Eu, desesperado, sabia perfeitamente que tinha razão. Então, lhe falei cara a cara: “Você é...”, um gigante que tinha mais ou menos duas cabeças a mais que eu, ou uma cabeça e meia, não me lembro muito bem, mas nesse momento pareciam duas cabeças, então perguntei: “Você... Que bonde toma para ir à sua casa?” Nessa época, se andava em bonde, me disse ele: “Quatro.” Lembro ainda. “Então, esta noite vou contigo.” Eu era muito pouco raro, era muito raro que eu me rebaixasse a falar assim. Ele falou: “Você que sabe.” Quando já estávamos no bonde, já a diferença sobre nossa cabeça era pequena, estava mais perto, e disse: “Você vai permitir que eu te acompanhe, porque, se você me permitir te acompanhar durante um mês, em um mês, eu te supero.” Devo o ter superado, porque, um ano mais tarde, eu já não ganhava 450, ganhava cinco mil pesos.
P1 – Dez vezes mais!
R – Havia inflação nessa época! (risos)
P1 – E, então, o senhor estava ganhando cinco mil pesos.
R – Sim, que chegaram logo mais tarde a ser até sete mil.
P1 – Mas isso em outro lugar?
R – Na Argentina.
P1 – Sim. Não, mas em outro bar?
R – Na Argentina, em outro bar, lógico. Porque quis, e o havia passado. Eu tocava tecnicamente melhor do que qualquer pianista, mas me faltava tudo aquilo que hoje é a essência do meu ensino. Hoje, eu não ensino em minha carreira, logo depois da carreira de pianista que tive durante 15 anos, na qual tive uma conduta absoluta, ou seja, não me misturava com a vida noturna, estive no meio da vida noturna, mas não me deixei cativar pela vida noturna. Eu lia nos intervalos, lia meus livros de Schopenhauer e Liszt. Ou seja, não tomava parte para sorte. E acredito que, se tivesse tomado, nunca gostei de álcool. E caipirinha nem se fala! Então, eu não estaria neste momento conversando com você. Minha conduta nessa época foi bastante boa. Só que me fez um branco agora. Quando já fui em minha carreira, depois de professor, as pessoas que estudavam comigo não queriam ser grandes pianistas. Da mesma maneira como os esportes, a cultura esportiva não é apenas para formar atletas, e música, eu considero até hoje que é muito importante, mas muito importante mesmo para a nossa sociedade, que exista o diletante amador, aquela pessoa que não quer ser um grande pianista, mas que quer tocar para seu prazer pessoal. E isso foi durante 40 anos agora minha profissão, mas eu diria algo mais: mais que minha profissão, era a minha paixão. Ainda hoje, a essa idade respeitável de 82 anos, quase todos os dias, escrevo novos arranjos, ou seja, faço. E quão é importante, quais eles são os arranjos. Eu não conto com pessoas que tenham ouvidos fabulosos, eu não acredito nos ouvidos fabulosos, mas acredito no bom gosto. Então, até hoje, eu funciono, na minha profissão, com um não sei o quê de bom gosto, de acordes um pouco requintados, porque todos somos um pouco requintados. Ou seja, eu, todos temos gosto por ir de vez em quando a um restaurante fino, nos vestir agradavelmente, nem todos os dias usamos gravatas, mas uma vez por semana estamos de gravata. Então, eu estou convencido que as alunas que tive esta manhã, que com grande prazer estavam tocando algo que estava a seu alcance, porque tem que compreender que a música clássica, que é na realidade a música que eu mais gosto, que mais escuto, gosto dela, mas minha especialidade é e sempre foi a música melódica, a música melódica de todos, até por que não? Cheguei a fazer 20 anos quando cheguei ao país, fiz, eu que havia tocado no Carnegie Hall, que havia tocado nas principais salas, de repente inventou de fazer um disco que se chamava Charles Franz, o pioneiro caipira.
P1 – Ah é?
R – (risos) Porque eu acredito que na melodia está algo muito importante, é algo amado e adorado por milhares de pessoas. Imagine todos os CDs que se vendem! As pessoas estão convidadas a escutar música, mas não a fazer música com suas próprias mãos. Então, conseguir que pessoas que nunca haviam tocado, pessoas de 40, 50 anos, de 60 anos, que nunca haviam tocado piano, que não tinham o piano em seu mapa, a música em seu mapa, de repente conseguem, como falo desta manhã, como essa aula que dei. Pessoas que estavam encantadas! Encantadas de que também existe, em questão de música, algo como em idiomas, já foi uma revolução. Antes, você queria aprender francês, inglês e tinha que aprender verbos, gramática. Hoje, aprende a falar falando com um professor. Então, minha especialidade, que depois desenvolvi, foi a de ensinar a tocar desde a primeira aula, a tocar tocando. Não sei se me expresso?
P1 – Professor, nós vamos falar mais da parte do ensino. Mas eu queria voltar lá então para Buenos Aires. O senhor já está com 20 e poucos anos, ganhando muito bem, tocando na noite. O senhor devia ter muitas admiradoras, não?
R – Sim, tinha tantas que escapava muitas vezes de Buenos Aires, e me ia ao Chile porque estava cansado, que sempre havia alguém e me tocando: “Olá Franz, como vai?” Eu era muito popular! Mas não popular, era muito popular em certa classe social. Mas foi muito agradável, ou seja, era costume das pessoas dizerem: “Vamos essa noite, vamos escutar Franz.” E eu tocava a mil por hora.
P1 – E qual era o seu repertório nessa época?
R – Bom, nessa época, claro, voltei à música melódica. Comecei, ou seja, durante uma época, gostei muito de jazz, depois me cansei. Interessou-me tudo em minha vida a improvisação, o tocar algo que em inglês se diz: “You never know what will come next”, “nunca você sabe o que vem no próximo minuto”. Essa surpresa de desfrutar do que nasce naquela hora, debaixo dos dedos, e que nasce naquela hora e nunca mais se vai poder fazer igual. Então, em tudo na minha vida, essa foi a minha paixão, essa imprevisibilidade. Hoje, em meus concertos, o público me diz um tema, me dá um tema, me dizem, sei lá... Bom, qualquer tema, então eu improviso ele, minha arte é improvisar sobre esse tema. E fiz isso com o que deveria ter feito Bach, isso o que teria feito Bach, Beethoven, fiz o que teria feito Rachmaninoff, ou Bartók, se ele tivesse tido a inspiração desse tema. E na realidade é interessante, porque no total do mundo atual há apenas três ou quatro pianistas que cultivam essa arte com seriedade. Porque a música não é brincadeira.
P1 – Ah, não é mesmo. E, professor, depois da Argentina, o senhor vai para os Estados Unidos, é isso?
R – Sim, ou seja, fazendo um pulo grande.
P1 – Ah, é um pulo grande? Quer dizer, o senhor fica até que idade na Argentina?
R – Eu fiquei até os anos 70, ou seja, fiz, fazia muitas viagens à Europa, onde dava pequenos concertos, não dava concertos em salas muito grandes, mas era conhecido em vários países: Alemanha, mas também Bélgica, Holanda e Suíça, sobretudo. Dava pequenos concertos dessa especialidade que acabo de explicar-lhe, que era muito apreciada, porque ao público encanta participar. Era uma interatividade entre concertista, não era um pianista que está acima, tocando seus dez minutos exatos. Se não era um pianista, que isso se notava, estava tocando algo que nascia nesse momento. É uma arte que na realidade foi cultivada por quase todos os grandes compositores da arte musical, Schubert, para começar, Bach foi um extraordinário, era mais conhecido durante sua época como improvisador do que como compositor. Em nossa época, essa arte a cultivam apenas uns poucos.
P1 – E, professor, quando o senhor começa, quando criança no Uruguai, o senhor fez a profecia com seu professor que, um dia, o senhor iria ensinar e ensinar de uma maneira diferente, né?
R – Não, meu professor me ensinou o método tradicional. E o método tradicional tem plena vigência, é completamente lógico e compreensível e, se Deus quiser, nunca vai acontecer que o Sistema Charles Franz seja para todos. Não. O Sistema Charles Franz é exatamente para aquelas pessoas que não querem ser concertistas, que querem tocar música porque querem fazer algo muito bom para si mesmo. Quem quer ser concertista tem que ter os dedos, tem que ter solfejo, o que comigo, com o meu sistema, não precisa. Ou seja, com os sistemas tradicionais é impossível que uma pessoa adulta se sente ao piano e na primeira aula comece a tocar, sem falar dos que já estudaram alguma vez, porque os que já estudaram alguma vez se aclimatam, não sei se essa é a palavra exata, se adaptam muito bem. Em 95% dos casos, há uma maneira diferente, algo que exige, não exige essa dedicação incondicional. É o mesmo que os esportes, um nadador que não estuda, que não nada cinco horas por dia é um ex-nadador, não é verdade? Então, na música se passa o mesmo, não se estuda três horas por dia para ter a digitação para poder tocar todos os clássicos, está perdido. Tem que haver, e há, graças ao Sistema Charles Franz, que haveria que falar bastante mais sobre isso, uma possibilidade para que a música seja um prazer.
P1 – Mas, então, vamos botar isso historicamente. Quando o senhor tem a ideia e começa então a ensinar música? Isso acontece na Argentina?
R – Bom, passou que, durante um tempo, eu estava tocando, logo quando já ganhava cinco mil, que já mencionei, tocava em um hotel. E nesse hotel paravam quase todos os grandes pianistas que vinham ao famoso Teatro Colón, e estou falando de grandes nomes desde King, enfim, dos grandes pianistas de nossa época.
P1 – Como é que se chamava esse hotel?
R – Se chamava Hotel Cajón, Hotel Cajón, em Santa Fé, um lugar muito chique, eu em toda minha vida fui bastante chique. Bom, enfim, vamos seguir em frente para não... (risos)
P1 – E aí o senhor tocava no hotel e foi conhecendo...
R – Então, eu tocava e, no que passava, eis que havia sempre três ou quatro grandes pianistas no bar escutando em silêncio ao pequeno pianista que estava ao piano. Naturalmente, isso chamou a atenção, então, as pessoas que estavam em outras mesas, mais afastadas do piano, conversando, deixaram de conversar e começaram a escutar o pianista. Mas por quê? Eis que um pianista, um grande pianista... Faz dois dias, fui ver Nelson Freire, que me entrevistou uma vez, como se eu mesmo uma vez entrevistei Nelson Freire faz 30 anos. Faz 20 anos, não? Então, é o que tinha que fazer um pequeno pianista que tocava música popular para um de seus grandes crânios da música. Foi tudo, porque não consegui tocar. Não consegui tocar, não consegui nem improvisar, é uma arte à parte que, como já falei, durante toda a minha vida foi minha paixão.
P1 – Mas vamos falar um pouquinho mais disso. O que é essa arte da improvisação?
R – Bom, veja. Da mesma maneira como um idioma tem muitos dialetos, a música é um idioma que se fala em vários dialetos. Se você passa com um carro, rapidamente por um negócio de música e aí estão passando uma obra de Bach, você escuta: “Ah, é Bach que estão tocando!” “É Mozart!” Não precisa ser músico para dar-se conta que é uma linguagem diferente. Então, ter esse conhecimento, e vou ser um pouco modesto, profundo conhecimento dos estilos musicais habilita as pessoas, há poucas pessoas que se dedicam a essa arte especificamente, a realmente tomar, sei lá, um tema que o público lhe diz e na hora fazer uma canção, que é o que teria feito, como já falei, mas quero repetir, que é o que teria feito Bach, que é o que teria feito Mozart, que é o que teria feito Bartók, ou Rachmaninoff, se ele tivesse tido a inspiração desse tema. E, falando de inspiração, eu, hoje, não me interesso em ser um grande pianista, me importa ser um pianista inspirado. Porque no mundo em que vivemos há tanta confusão que eu sei que muitas das pessoas que estudam meu sistema vêm porque acham aí um porto de tranquilidade, de algo gostoso. É muito importante que haja, que nem todos sejam grandes músicos, mas que haja gente que ame a música, e que haja um ensino específico para essa gente que não quer ser grandes pianistas. Não sei se respondi a pergunta que o senhor fez.
P1 – Sim, sim. E, professor, o senhor podia fazer um resumo do que é que consiste o método?
R – Bom, o método consiste em algo que tem vários nomes. Um seria a neurolinguística, ou seja, a neurolinguística tem a ver com a possibilidade de ter uma, que as duas mãos toquem juntas. Tem a ver com reflexos condicionados, ou seja, a diferença máxima é que meu sistema funciona sem solfejo. Solfejo são aquelas notas que separam dentro da música. As pessoas veem uma clave de Sol, uma clave de Fá e acham que isso é a música. Pois não é, a música não é um bicho de sete cabeças, porque solfejo, por culpa do solfejo, que meu sistema não tem, milhares de pessoas não estudam música. Então, eu inventei, fui o criador e patenteei, tive minhas patentes. Isso que faço há 40 anos foi inventado por mim em momentos de situações extremas. Até não quero ir tão longe para falar de ir a campo esotérico, mas evidentemente... Evidente, talvez, na criação disso, que hoje significou, hoje em meu computador, tenho três mil matérias escritas sobre isso, tenho arranjos e, outro dia, perguntei a um técnico de computação quantos arranjos teriam começado em meu computador, lhe falei: “Devo ter uns 450.” E aos três dias ele me disse: “Não tem 450, tem quatro mil.”
P1 – Quatro mil arranjos!
R – Então, eu... Sabe quando nós dois acendemos e apagamos a luz? É muito fácil, mas para que aos outros seja tão fácil acender e apagar a luz, vamos ter que fazer uma obra. Então, se eu dei aqui um dos primeiros, os cinco primeiros concertos que dei aqui foram no Museu da Imagem e do Som, esses concertos chamavam Minha Vida, Minha Obra, o Piano e Eu, tudo isso poderia parecer um pouco imodesto, mas na realidade um homem apaixonado pelo que faz não é um homem imodesto, é um homem apaixonado, que o que consegue, e sua profissão na vida é apaixonar outros, que outros compartilhem. Eu sei hoje, meus alunos, que são muitos, estou hoje quase tão ocupado como um médico, muitos dias eu tenho que começo às nove da manhã, às onze, e não me canso, apesar dos meus 82, eu gosto! E meus alunos me pagam com dinheiro, sim! Mas mais importante que o dinheiro para mim é “la sonrisa”, o sorriso de meus alunos, ou seja, me compreende?
P1 – E, professor, a ideia de criar o método, ela foi um crescendo ou um dia o senhor teve uma súbita inspiração? Como é que foi a gênese disso?
R – Veja, eu vivia na Argentina nessa época e, como já lhe falei, era uma época em que as pessoas diziam: “Vamos ouvir Franz!” Só que era irremediável que, de repente, algumas das pessoas que me admiravam como pianista me perguntassem: “Mas, professor...” Eu disse: “Não, Franz.” Não era melhor professor nessa época. “Franz, você não ensina?” E aconteceu que na vida social que faziam os grandes pianistas que lhe mencionei, uma vez perguntaram, um senhor da alta sociedade argentina dessa época, este perguntou a um de seus grandes pianistas, que me deram aula, que me deram classes magistrais também, perguntou: “Eu tenho um filho, que é um gênio, mas não quer estudar.” Então, lhe perguntaram: “E por que não lhe dá a Franz, que é um músico fabuloso e que tem a mesma idade de seu filho?” E, a partir daí, um mês mais tarde, tive 50 alunos. Agora, na Argentina, logo mais tarde, logo de várias, de alguma, sempre um programa de televisão me trazia pelo menos, na Argentina, me trazia às vezes 80, às vezes 100 pessoas. Aqui no Brasil, quando li minha entrevista em Mulheres em Desfile, sabe quantas chamadas tive? 180.
P1 – Que beleza!
R – Há muita gente! Muita gente que ama a música, mas que não está disposta a pagar alto preço que a música, que querem tocar para o seu prazer, que querem tocar, por favor, rápido.
P1 – Então, professor, a história toda começa com o primeiro aluno, que é esse rapaz?
R – Não. Passou que um de meus alunos, aluno de fala inglesa, este um dia me falou: “Franz, vai vir um irmão gêmeo meu que quer estudar com você.” Vinha de outro país, eu perguntei: “Tem conhecimento?” Porque nessa época quem era, qual era a minha especialidade? Eu havia ganhado alunos que eram apaixonados, nessa época, por duas classes de música. Uma era a música americana, as melodias de Frank Sinatra, algumas melodias francesas muito gostosas que havia na época, eu mesmo cheguei a acompanhar a Edith Piaf, por exemplo. Enfim, minha vida teve muitos e, sim, impossivelmente abarcar minha vida inteira em uma entrevista, mas tudo bem. Então, o primeiro que o perguntei: “Ele tem conhecimento de música?” “Não, não tem.” “Mas se dá um jeito.” A primeira aula, o cara chegou à Argentina, esse irmão gêmeo, e eu estava enlouquecido tratando de ensinar-lhe Dó, Mi, Sol, o cara não entendia. Até que o meu desespero e na situação limite, em que teria um cara importantíssimo para estudar comigo que não, que eu não podia atender...
P1 – Ah, ele era importante?
R – Sim, era um cara importante, era diretor de McCann Erickson. Ensinei um triângulo, “pum”, o cara tocou.
P1 – Como? O senhor desenhou um triângulo?
R – Um triângulo, triângulo. Em vez de Dó, Mi, Sol, e aquele dia, quando fui para minha casa, não fui dormir, inventei mais 50 símbolos, que hoje são só dez, que logo mais tarde se converteram em um banco de dados musicais que hoje está ingressado no computador. Hoje, um aluno que aprende comigo pode fazer a pergunta: “Sim, eu gosto das aulas, mas o que vai passar daqui a três anos?” E: “Professor, quando tiver 85 anos, será que ainda vai me ensinar?” Então, comigo se aprende algo muito importante: se aprende música, não se aprende solfejo, mas se aprende música, se aprende a fazer seus próprios arranjos, para toda a sua vida. Aprende comigo algo que não lhe serve para hoje, todos, hoje aprendemos algo que te servem para toda a vida. Antes, você comprava uma lâmina de barbear e lhe servia a vida inteira.
P1 – Então, para o senhor contar para a gente, que somos leigos, o senhor falou que descobriu um primeiro símbolo que foi o triângulo. O que significa isso em termos de...
R – Bom, veja. Existia na época em que eu tinha 40 anos, ou seja, há tempos, havia uma ciência que se chamava Estruturalismo, que dizia, tinha uma coisa que a criança não diz “p”, “a”, “i”, a criança diz pai, ou seja, você fala globalmente. E música tocar um acorde de Sol, Si, Ré é sobre os pentagramas, essas famosas cinco linhas. O solfejo é um Sol, que em inglês se chama “g”, um Si, que em inglês se chama “b”, e um Ré, que em inglês se chama “d”. “G” e “b” sobrepostos. Ou seja, alfabetizar. E, na verdade, na realidade dos idiomas, de todos os idiomas, é que não se alfabetiza, se aprende justamente através de algo que se chama Semiótica. Semiótica é o quê? Quando se vai por uma carretera, e há um símbolo de umas cruzes rápidas, ou seja, você não precisa ler “curva”, os símbolos lhe dizem curva, certo? E hoje sabemos todos muito bem o que são os reflexos condicionados. Então, o sistema incorporou uma quantidade de coisas que o século passado contribuiu à nossa essência. Se hoje ainda se ensina música como se ensinava faz 100 anos... Bom, por sorte sempre vão ver e tem que se ver, não por ser revolucionário – e sou revolucionário porque fui revolucionário em toda a minha vida – mas um revolucionário de revoluções boas. Não desprezam as fontes, ou seja, meu sistema simplesmente é um sistema de símbolos que a pessoa vê um triângulo e já cai a mão. Da mesma maneira que você na rua tem um farol e diz verde, e quer dizer “vá para frente”, Semiótica é isso. Quando vivi nos Estados Unidos, porque eu fui diretor, durante sete anos, em Manhattan, do Charles Franz Studios of New York, onde tínhamos em aula 360 alunos, que tivemos em Buenos Aires. Claro que eu não era professor, eu era o diretor que entrava 15 minutos nas aulas. Mas em Nova York tínhamos 150 alunos em plena Manhattan, o qual era um bom número. E você já não brinca em serviço porque falando exatamente das pessoas que proporcionaram o nosso dinheiro, você não brinca em serviço, certo? Então, graças a Deus, toda a minha vida eu tive... Mas não vou falar de minha vida, senão, não vou tratar de responder a sua pergunta, que era em que consiste a diferença, como se diferencia o ensino tradicional do ensino atualizado. Não atualizado porque teria que ser forçosamente o ensino, se não simplesmente tem que ser não o ensino do futuro, mas o ensino sim, uma opção. Porque vivemos uma época em que as alternativas, as opções são necessárias, você não acha? Então, meu sistema foi feito através de algo que... Primeiro foi minha carta matriz, ou seja, foi uma organização, um replanejamento total da harmonia. E uma forma incrivelmente fácil de entrar na cabeça das pessoas algo que era fácil. Porque era fácil, não? Importante é fazer fácil o que na realidade é difícil. Não sei se me explico.
P1 – Sim, é a metáfora do interruptor de luz, é perfeito.
R – Então, o sistema hoje realmente tem essa possibilidade de que uma pessoa venha à primeira entrevista, à sua entrevista, e toca. Toca, toca, porque não há outra, não há outra, não há outra. Já tem que ser uma pessoa. Mas eu tenho paraplégicos e tenho que explicar que eu também intervenho, em minha longa vida, em oito congressos de musicoterapia. Mas eu acho que a musicoterapia é interessante, mas não é tudo. Eu me negaria terminantemente que meu sistema só fosse chamado de musicoterapia, porque hoje, em nome da rua, eu e você como se chama? Necessitamos também da música, necessitamos amar a música, a música faz falta em sua vida. Mas eu lhe pergunto: para pessoas que vão cinco, seis, sete, 15 anos ao conservatório, será que todos eles conseguem seus objetivos? Essa é a pergunta, compreende? Quantos nessa sociedade tão competitiva ficam na metade do caminho? Então, você não acha que minha proposta de criar algo que a pessoa comum, que está no meio de sua vida, não faz como um maravilhoso hobby de bom gosto, isso sim, com acordes, com harmonia que, precisamente, para responder sua pergunta, embora era difícil explicar, sempre muito difícil de explicar com palavras o que funciona, o que funciona é difícil.
P1 – Certo, então, no caminho de entender melhor isso, vamos voltar para os seus primeiros alunos. O senhor teve o aluno gêmeo e o senhor tem esse momento? E depois, como é que continuou?
R – Sim, claro, claro. A coisa foi a seguinte: como eu era um músico formado, eu escrevia meus arranjos dessa época e, no estrito solfejo, ensinava todo mundo. Só que havia algo diferente, meus alunos gostavam nessa época da música americana, tipo Cole Porter, tipo Gershwin, ou então adoravam, na Argentina especialmente, a Música Popular Brasileira daquela época, ou seja, Tom Jobim era tão conhecido na Argentina como seria em... Então, o que era? Eu tinha alunos, por dizer, um pouco mais ou menos que podiam dar-se ao luxo de vir uma vez por mês ao Rio e comprar o último disco de um tal de João Gilberto, ou de uma tal de Elis Regina, que já era... Então, o que eu ia fazer? Metade do disco eu fazia arranjos escritos com a escrita dinâmica de meu sistema. Não, não, não. Estou mentindo. Tsc, tsc, tsc. Esqueça o que acabo de dizer! Eu fazia arranjos e os escrevia em rigorosos solfejos, ou seja, tinha de ter estudado muito para poder ser aluno meu. Até que finalmente eu me dei conta que estava numa prisão, porque tinha, por minha qualidade de pianista, uma enorme quantidade de pessoas que tivessem gostado de estudar comigo, mas que não estudavam porque havia solfejo também. Então, isso que eu lhe contei, desse aluno que, ao escrever-lhe um triângulo, compreendeu em seguida, suscitou então um mar de consequências, ou seja, eu comecei a fazer uma obra que pode parecer um pouco imodesto o que eu digo, que era matematicamente perfeito. Ou seja, talvez em mim havia a convivência de um músico que sabia fazer música gostosamente. Sabendo que era, na realidade, enraizado em um músico que tocava rigorosamente música clássica, mas que também gostava do quê? Da música melódica. E quem era da música melódica? A música brasileira era muito melódica, a música americana, a música La Vie en Rose, eram coisas muito lindas! As melodias que hoje chamamos de imortais, até os Beatles fizeram não só meninas histéricas, fizeram lindas melodias. Então, hoje existem as pessoas, eu tenho hoje, na maturidade, pessoas que querem, por que não? Também tem os sertanejos, ai que lindo os temas sertanejos! Eu tenho feito um disco...
P1 – Ah, você fez um disco com os grandes clássicos da música...
R – Claro, claro! De uma maneira, mas não clássico no sentido ortodoxo da palavra, se não tomando a música a sério, tomando a música a sério porque, com música, não se pode brincar. Mas sim, se pode reduzir ao máximo os inconvenientes, há que derrubar esse muro entre a pessoa comum e a música, e esse muro se chama solfejo, se chama exercícios digitais, que não se necessita para a música melódica. Se você quer tocar uma música brasileira ou uma música, não necessita de dedos rápidos, necessita do quê? Acordes bem ouvidos, gostosos. Eu não tenho nenhum medo da palavra “gostoso”, porque, quando vamos a um restaurante e comemos uma comida agradável, se nos escapa: “Ai, que gostoso!” E com música não existe isso? Sim! Porque todos temos uma pequena quantidade de requinte, nos custa de vez em quando, eu não uso gravata todos os dias, mas de vez em quando me encanta ir com ela.
P1 – E, professor, voltando para a trajetória de vida do senhor. Então, começa, tem os primeiros alunos em Buenos Aires. Nós estamos falando de que ano isso?
R – 1965.
P1 – 1965. O senhor está com 40.
R – Sim, com 40, 50 alunos. Só que aí aconteceu o que logo passou várias vezes: entrevistas. Mas não entrevistas como as que eu gosto, se não entrevistas comerciais, como dos Jô Soares da vida (risos). As que sempre trazem muitos alunos, certo? Sempre traz muito porque há uma enorme quantidade, incontáveis pessoas que amam a música e que dariam muito, que vêm: “Ah, eu daria anos da minha vida se pudesse tocar piano!” Quando, na terceira aula, já estão tocando como se tivessem tocado sempre, toda a sua vida já não dizem mais isso. Já não dão nem um ano de vida, não sei se me explico. A música se faz tão normalmente, carne e unha nas pessoas. Então, se algo me importa, se eu tenho paixão, trato de compartilhá-la, trato de contagiar. Por isso, um aluno que vem, as pessoas vêm fazer o curso Charles Franz, não vêm: “Ufa, que droga a aula de piano!” Não, é uma festa.
P1 – É uma festa!
R – Então, por quê? Porque há uma técnica, há uma equação matemática, desculpe a imodéstia disto, mas sim, em mim talvez conviva o músico com o engenheiro. Então, o meu sistema é algo que tem uma lógica imbatível. Com essa lógica, a ela devo um sucesso que agora sim, um sucesso, porque ter na Argentina 360 alunos, algo assim, mas 350, 340, 300, sabe? Mas muitas vezes 360, em Nova York, em plena Manhattan, a um quarteirão do Carnegie Hall, onde já dei concerto. Já toquei, dei um concerto da arte da improvisação, este mesmo concerto em inúmeros lugares.
P1 – E, professor, o que o leva a sair de Buenos Aires para ir para os Estados Unidos?
R – Em Buenos Aires, era o primeiro, queria ser o primeiro em Nova York (risos). Mas depois não era tanto isso, era que eu tinha algo que encantava as pessoas. Então, não fui só aos Estados Unidos, porque também cheguei ao Peru, também em Lima fizemos. E os meus professores tinham, eu sempre fui muito cuidadoso com as pessoas que eram portadores, que despersonalizavam o meu sistema. Eu tinha professores que tinham a sua vez, a oportunidade de ter próprios alunos em seus respectivos bairros. Isso foi uma linda coisa, porque dava aos meus professores, que éramos gente feliz, certo? Sempre me interessou ter ao meu redor gente feliz que tinha prazer de ensinar o que já estava digitado anteriormente por mim através de meus arranjos. Chame-os gostosos.
P1 – E aí, o senhor vai com a sua mãe, o senhor vai sozinho para os Estados Unidos?
R – Não. Fui convidado para ir aos Estados Unidos várias vezes por amigos. Eu tinha um professor meu que imigrou da Argentina, que era um discípulo de Coleridge e Bartók, que eram dois grandes compositores dessa época, que me convidou à sua casa, em Hollywood. E meus primeiros lugares onde fui eram particularmente Los Angeles, ou seja, Oregon, não exatamente Oregon. Só que depois de uma entrevista que tive, quando um colega meu, que tocava na calçada da frente, que se chamava La Lechffriner (risos).
P1 – Ah, La Lechiff!
R – Recebeu-me em seu castelo, praticamente em Beverly Hills. E me falou: “Franz, você não dirige?” Porque eu tenho cegueira noturna. “Eu tenho dois lugares para você, vá para Nova York, é o umbigo do mundo.” Então, fui a Nova York, e há cidades que eu... A primeira vez que fui a Nova York tinha a visto em comercial, mas depois não. Então, a questão era: para poder ter um instituto em Nova York, ou eu teria que casar como uma americana ou, pior, não digo pior, ou então, vamos dizer, com uma porto-riquenha. Coisa que eu não queria. Então, viajei nesses sete anos 35 vezes da Argentina a Nova York, de passo, fazendo o triângulo. Porque não era só Buenos Aires, Nova York, era Buenos Aires, Genebra, Nova York, ou Buenos Aires, Paris, Nova York. Ou Buenos Aires, ou Nova York também. E assim fui.
P1 – E o senhor ficava o período do visto, três meses, voltava?
R – Três meses, certo? Tantas vezes que eu fiz isso que uma vez, na brigada da alfândega, me disseram em inglês: “You cannot go. Usted viene y va!” Como diz: “Você vai e vem!” E eu lhe perguntei: “Estou fazendo algo ilegal?” “Não!” “Então, o quê?” Eu tinha o meu domicílio em Lexington, na Rua 61, ou seja, estava entre o mais chiquérrimo que se pode estar. Estas minhas coisas estavam na Rua 57. Mas tive depois oportunidade que grandes autoridades musicais, entre eles o irmão de James Levine, o famoso regente da Filarmônica de Nova York, e muitas outras pessoas deram testemunhos muito sérios e muito claros sobre a qualidade e as bases, as sólidas bases fundamentais de meu sistema, ou seja, estavam sobre sólidas bases. Na Argentina, eu ganhei 400 cartas de reconhecimento, no Brasil ganhei não menos que 150. Ganhei um manifesto de 200 alunos, um abaixo-assinado, ou seja, em minha longa vida, tive muitas satisfações, eu diria até mais satisfações que desgostos.
P1 – Que bom, que bom! (risos)
R – Não sou muito dramático, certo? Não sou porque, na realidade, se me falarem, se o caminho desandasse, se o faria de volta? Talvez eu o faria de volta.
P1 – Professor, estamos aqui no fim dessa fita, então, eu queria convidar o senhor para retornar aqui, para a gente continuar a trajetória, porque o senhor tem uma vida muito rica, nós não falamos ainda de Edith Piaf, do concerto no Carnegie Hall, mais da escola de Nova York, falar mais do método, da passagem dele para o computador.
R – Será um grande prazer para mim.
P1 – Então, eu gostaria de agradecer o senhor por essa tarde agradável que tivemos e convidá-lo para retornar em breve para a gente continuar a sua entrevista.
R – Bom, eu vou fazer o meu comentário: eu agradeço esse tipo de entrevista, porque entrevistas tenho feito muitas vezes em minha vida, mas não desse tipo de entrevista, na qual a gente não está sentado sobre um pedaço de madeira quente, se não na qual há um pouco de.... Bom, a esse momento de minha idade, faltam palavras.
P1 – Mas está ótimo. Então, muito obrigado, professor!
R – Foi um momento que para mim foi um momento muito bom, em que as perguntas foram muito bem colocadas, e eu agradeço profundamente.
P1 – Ah, nós é que agradecemos!
R – Um grande prazer.
Segunda parte
P1 – Bom dia, professor Charles!
R – Bom dia!
P1 – Vamos começar a segunda parte da sua entrevista. O senhor contou até quando o senhor estava na Argentina, não é isso? E o senhor estava pretendendo migrar para os Estados Unidos, paramos nesse ponto. O senhor quer falar um pouquinho mais sobre o método, o senhor já quer começar indo para os Estados Unidos, como o senhor quer?
R – Sim, tudo tem que ver uma coisa com a outra, ou seja, é um método que engendrou, na realidade, é por algo que caía de sobre maduro. Em esportes, cultura, existe a cultura esportiva, existe a cultura musical, ou seja, na cultura musical há um grande acento sobre a atividade esportiva do indivíduo. Mas há duas coisas: o amador e o profissional. Ou seja, em uma palavra existem, e tem que haver sempre, um país tem importantes atletas que dedicam sua vida a ser atletas e a representar o país. Agora, estranhamente, por estranho que pareça, para a música não há alguma coisa, não há nada parecido. Então, na realidade, em todos os países existem, e em todas grandes cidades existem centenas de conservatórios, de lugares de ensino onde se aprende música durante anos, com os métodos tradicionais que são todos bastante parecidos. E houve pouca, por estranho que pareça, houve pouca atenção sobre a enorme importância que tem para o indivíduo ter uma atividade musical, mas não uma atividade musical de escutar música, uma atividade importante que tenha a ver com a operatividade própria do indivíduo que sente que o piano, o teclado, um instrumento musical acessível cubram a vida debaixo dos seus dedos. Eu acho isso importante, mas, por sorte, houve em minha trajetória, ao longo de minha vida de pianista, claro, porque eu comecei, como já contei, como pianista, pianista de uma atividade também um pouco alternativa, diria. A arte da improvisação, da qual já falei, certo? A arte que, na realidade, a arte não é tanto da digitação mais ou menos rápida dos dedos, e sim as pulsações espirituais que o indivíduo tem em todas as artes, um escritor vive com pulsações espirituais, mas que, com acontecimentos, não importa o que aconteça, o que vale é o fluir do qual algumas... É difícil dizer isso com palavras, certo? Porque a gente pode cair na tentação de algo poético. Pois não, no meu tem muito disso, tem muito, eu consegui e, já que falamos em primeiro lugar da Argentina, sim, realmente na Argentina eu tive um sucesso impressionante, com 360 alunos. É claro, não estudavam comigo, estudavam com os meus professores, com meus multiplicadores. E houve isso, sim, um entusiasmo, um entusiasmo de algo que havia estado no sonho de muitas pessoas, muitas pessoas sonharam porque não haviam estudado piano, estou falando de adultos, sobretudo. Porque não haviam estudado piano, que lástima! Que não haviam estudado teclado. Nessa época, existem pequenos teclados até transportáveis, no qual o indivíduo pode se “despejar”. Pois, sim, isso pertence na realidade ao mundo do ensino alternativo, porque não é o mesmo ensino de um conservatório, onde você está durante anos, e isso é muito grave, porque a nossa sociedade precisa de gente que faça música de câmara, que faça música de concerto, mas e onde fica... Isso traduzido aos esportes, um nadador que tem que nadar sete horas por dia é muito importante para nós, mas pergunto: e onde fica o aficionado leigo que quer exercer seu hobby com máxima eficiência? Eu vou dizer uma frase: nadar, eu gosto de nadar, nadar me faz bem, mas nadar só me faz bem, só me diverte profundamente se sei que estou nadando bem. Isso, traduzindo para a música, ficou órfão, existe pouco ou nenhum ensino que consiga, como consegue o meu sistema, que o aluno em sua primeira aula, estou falando de duas classes de alunos: o que alguma fez já estudou durante anos pelos métodos tradicionais, e o outro zero quilômetro, que não tem nenhuma história musical. Esses dois protagonistas merecem a maior atenção, são muito... O que o famoso que marchou na lua chama “The man like you and me”, “o homem como você e eu”, para mim, essa é a maior importância. Diria, só para terminar esse trechinho, que vemos hoje nos hospitais coisas que antes eram impossíveis pensá-las, por exemplo, a acupuntura não existia nos hospitais, hoje temos em dois hospitais acupuntura. Então, caminhos alternativos que, no século XX, são apontados como algo muito positivo e põem-se cada vez mais. Ainda não é o melhor momento para falar que meu ensino na realidade é ensino também de informática musical, vamos falar logo ainda disso. Ponto, parágrafo, vamos seguir em frente! Desculpem minha verborragia.
P1 – O senhor então começou com seu método na Argentina, quando o senhor estava lá na Argentina?
R – Sim, ou seja, chamou a atenção como pianista. Como pianista, eu tocava em lugares mais ou menos elegantes, onde, por coincidência, havia os grandes pianistas que vinham ao Teatro Colón de Buenos Aires, residiam num hotel onde eu tocava, um hotel muito elegante onde eu tocava e havia mesas de gente conversando, mas também sempre havia no bar alguns dos grandes pianistas, Ziggy Weinsenberg, Daniel Ericourt, enfim, celebridades mundiais, que estranhamente, curiosamente, as mesas que falavam, eles estavam atentos ao pequeno pianista que estava no piano, porque os grandes pianistas sabem tocar muito bem suas obras, que aprendem de memória, mas não sabem a arte da improvisação e se fascinam com isso, ou seja, não é uma casualidade que não só Nelson Freire se fascina com isso, se fascinam porque eles fazem algo que eles não sabem fazer. Então, isso correu na voz, e de repente eu estava com 40, 50 alunos todos. Ou seja, fui um pouco pianista da moda e, sobretudo, professor de moda. Ponto, parágrafo (risos).
P2 – Desculpa, fale de como começou com o teu aluno difícil.
R – Sim, claro. Posso passar? Posso seguir? Sim, ou seja, um de meus alunos era presidente da General Electric, em Buenos Aires, e como eu falo cinco idiomas, falávamos naturalmente em inglês. Só que, em um dia, ele já havia estudado piano antes e era muito bom aluno, alto, loiro, e que um dia me disse: “Franz, na semana que vem, vem meu irmão gêmeo, ele vai ser presidente da McCann Erickson, quer aprender piano contigo.” Eu digo: “Estudou música antes?” Porque era necessário, naquela época, tinha que ter estudado música para poder tocar bem meus arranjos. “Não, nunca, mas você o vai ajeitar.” Bom, na próxima semana, eu me encontro na casa dele e, como seja você sentado aí, como evidentemente o meu aluno, mas quando o vi um pouco de perto, não era o meu aluno, porque não reconhecia a mim. O único possível, era igualzinho. Então, lhe falei: “Você é o tal?” “Sim, sim, eu sou o tal e eu quero tomar aulas contigo, com o senhor.” Foi só. Então, nos sentamos, e eu lhe dei uma pequena, que na Medicina se chama o contato afetivo, sempre há uma entrevista na qual o aluno se dá conta que vai bater, se o que eu tenho, o que tem no sistema bate com o que ele estava sinceramente pensando. Então, tudo bem, só que, na primeira aula, foi uma tragédia, porque ele não conseguia fazer o simplíssimo Dó, Mi, Sol, que é o mais simples que se pode fazer no piano, era impossível! E no meu desespero me ocorreu fazer um triângulo, um triângulo. Um triângulo é um, três, cinco. Tecla um, tecla dois, tecla três. Dó, Mi, Sol era isso: um, dois, três, quatro e cinco e, oh! O homem saiu tocando! E eu havia inventado nesse momento o que mais tarde se compreenderia como Semiótica, como escrita alternativa do sistema. Ou seja, naquela mesma noite eu não fui dormir, se não inventei 56 posições geométricas, mas das quais hoje felizmente sobreviveram dez. Com essas dez se pode tocar todas as músicas de Orlando di Lasso até nossos dias. Isso parece um pouco pretensioso, e é a total verdade. O que passa é que depois escrevi sete livros sobre isso. O método começou como um método realmente alternativo, porque antes eu estava viajando em águas conhecidas, daí em frente estava viajando em águas revolucionárias. Revolucionária, tem que ter cuidado com a palavra revolucionário, há muitos que usam mal o termo, mas revolucionário é o que consegue mudar, em algum sentido, a alma, a psique da pessoa. E o que isso tem importância? Logo mais tarde, esse sistema, que foi se depurando através dos anos – hoje tenho muitos, estou já à beira dos 83 –, está verificado em centenas de cartas de recomendação, de cartas não de recomendação, mas de alunos entusiasmados que acham que meu sistema é algo importante, é um valor importante para a nossa cultura. Tem um manifesto, em algum momento eu gostaria até de mostrar à câmera algumas dessas coisas, pois é muito importante o que opina a pessoa que pensava que a música não era a sua praia e, de repente, descobre que sim, a música, e não a música que se aprende nos conservatórios, se não, a música melódica que todos existem, ou seja, existem milhares de CDs, a existência dos CDs te mostra o quanto o ouvir música está maduro e está cultivado, essa parte está. O que não está, absolutamente, é o que ia fazer o indivíduo. O indivíduo tem que aprender solfejo, fazer exercícios, uma quantidade de coisas que é verdade! (risos) É isso. Isso teve um sucesso impressionante, porque ter 360 alunos, formar e nessa época em turma unicamente, porque não se podia estudar comigo pessoalmente sozinho, porque eu entrava 15 minutos em cada aula. Hoje não, hoje sou muito humilde, hoje dou minhas aulas eu mesmo.
P1 – Então, naquela época, o senhor formou... Contando a sua vida. Vamos? Então, professor Franz, a partir daí o senhor formou outros professores, foi isso? Para lhe ajudar nessa tarefa lá na Argentina? E depois o senhor morava com a sua mãe, era isso, na Argentina?
R – Sim, não. Não, minha mãe vivia numa casa muito linda nos arredores. E, na realidade, eu estava, ao mesmo tempo, bastante bem de vida porque ainda era pianista e tinha uma quantidade impressionante de alunos. Mas não vivia junto com minha mãe, se não não teria meu instituto, o que era uma cobertura muito completa de dois apartamentos, era um lugar maravilhoso no qual se via a cidade de Buenos Aires, que não tinha arranha-céus, porque o meu era no último andar de um arranha-céu. Então, era muito lindo, era um clima de alegria, de realização, as pessoas estavam simplesmente felizes, e estar importante, criar algo que as pessoas estão começando a fluir, começando um pouco a sair do seu dia a dia, a música como isso. Porque o concertista tem que competir, todo o ensino musical atual e anterior era sempre, sempre, para competir. Ainda hoje, acredite se quiser, os conservatórios começam primeiro em fevereiro, quando começam as aulas, começam em janeiro, quando começam as aulas, começam a estudar para o concerto que vão dar no fim do ano. Acredite se quiser! Pleno 2000!
P1 – E como foi que o senhor foi para os Estados Unidos? O senhor foi convidado, o que aconteceu?
R – Veja, na realidade, em mim, no profundo de meu coraçãozinho, do meu coraçãozinho, naturalmente, sempre havia um desejo, sim. Eu sou o maior, mas em Buenos Aires. Odiado, há uma palavra, pelos estabelecimentos musicais que me emulavam olimpicamente. Faço conta certo? Mas eu queria ser o primeiro em Nova York. Então, não faltou gente que se associava comigo para fazer o Charles Franz Studios de New York, exatamente em Manhattan, no lugar mais lindo de Manhattan com saída para... Agora, não me recordo exatamente (risos). Lindo! Bom, muito bem. Ou seja, em pleno Manhattan, em plena Apple, em pleno...
P1 – E como foi lá em Manhattan?
R – Sucesso! (risos)
P1 – Sucesso!
R – Muito grande sucesso mesmo. Não tínhamos 300 alunos, mas tínhamos 150 alunos, com alguma diferença, que eram muito bem pagantes (risos).
P2 – Mas como foi essa viagem? Como o senhor saiu de Buenos Aires pra chegar em Nova York?
R – Bom, primeiramente, eu tive, ou seja, houve gente que se associou comigo para criar o Charles Franz Studios, que era uma espécie de resposta a algo que também surgiu nessa época. Antes, eu tive em minha juventude, entre minhas várias noivas, uma que, como de costume, tinha uma cabeça a mais que eu, que todos os dias de nosso noivado, que durou três anos, eu tinha que levá-la ao Instituto Carnegie – eu não sei como se chamava – onde ela aprendia “I have, you have, she was”, a conjugar verbos etc. E o meu sucessor, durante, antes de se casar logo, também durante um ano ou mais. Mas nesse momento apareceram os primeiros laboratórios de idiomas onde o aluno, logo na primeira aula, fala com o professor e sai falando. Então, o meu sistema na realidade é uma coisa muito parecida. O aluno, em sua primeira aula, já toca a primeira melodia, na segunda aula, toca a segunda melodia. Essa sequência de melodias que são de menor à maior, mais elaboradas, e que muito rapidamente desembocam em algo muito importante, música de bom gosto e bom gosto tem muitíssima importância na relação com o Sistema Charles Franz. Agora não posso auto-olhar-me a atos muito bonitos, que soam muito bem. E estão encantados porque os estão ouvindo, são melodias que saem debaixo dos seus próprios dedos, isso em Buenos Aires, isso logo em Nova York igualmente. Ou seja, ter que, se disse bem, que se disse firme, o que não se faz em Nova York, não se faz em nenhuma parte. E, bom, foi muito bem, foi muito lindo! E nessa época eu não tinha um visa comercial, eu não tinha o que chamavam de Green Card, então, teria que viajar a cada três meses a Buenos Aires, que era minha nacionalidade de referência. Eu nasci na Alemanha, mas, nos anos 53, eu obtive a cidadania, então, meu ponto de referência era Nova York. E nessa época fiz 35 viagens de ida e volta. O que era muito lindo, porque eu podia ir a Madri, porque se podia fazer o triângulo etc.
P1 – E a sua mãe continuou morando em Buenos Aires?
R – Bom, em uma das resenhas, em uma das resenhas de comentários dos meus concertos, comentando o meu concerto no Carnegie Hall, se fala de um pequeno senhor de baixa estatura, bastante nervoso, que se movia no cenário enquanto sua mãe argentina, eu acho, estava seguindo com orgulho a carreira internacional de seu filho. Em uma palavra, a minha mãe, que não a podia transportar a Nova York, porque Nova York é proibitivamente frio, minha mãe ficava, mas eu estava muito ligado. E finalmente tive que interromper essa minha estadia em Nova York, porque minha mãe estava chegando a uma idade, não tão bem como eu aos 83, em que necessitava ver o filho com mais frequência. Então, havia que tomar uma decisão. Agora, o que significou Nova York? As pessoas já são, eram mais exigentes ainda que na Argentina. Na Argentina, eram muito exigentes quanto a bom gosto. E, aliás, o brasileiro também, porque o brasileiro tem não apenas... Ou seja, naturalmente, como “top” está Tom Jobim e companhia, mas fora de Tom Jobim há muita música maravilhosa que se fez nesse país. De músicos importantíssimos, de arranjadores, estamos no país dos arranjadores sensacionais, que ouvem, eu não posso agora... Mas, resumindo, é importante apontar isso: eu sou um arranjador de melodias que meus alunos conseguem tocar, isso é uma coisa diferente, conseguem tocar depois de quanto tempo? Os que já estudaram antes já começam com um mês a sentir que o que tocam é muito agradável, e foi isso o que me deu o sucesso, foi isso o que me deu 400 cartas de alunos e logo em Nova York a mesma coisa, e logo mais tarde no Brasil, também a mesma coisa. Não me deram tantas como na Argentina, ganhei 400 cartas e nos outros países ganhei menos, mas não menos do que isso.
P1 – Então, o senhor resolveu, a sua mãe, precisando do senhor, o senhor voltou para a Argentina?
R – Claro, eu estava muito, muito ligado à minha mãe, e minha mãe certamente não aguentava Nova York, porque Nova York é triste no inverno, não triste igual ao do europeu, mas para a minha mãe era. Então, tinha que escolher, há momentos na vida em que você tem que escolher, só que tive que fazer vários. Eu tinha chegado a um sucesso, a um êxito entre pessoas. Porque eu tinha o costume de ir a concertos, ia as palestras. Vou contar simplesmente uma: “Marcha na Lua”, o famoso homem da mídia, e meu instituto ficava a metros do metrô, onde estava a uma estação do World Trade Center, e a outra estação era a Columbia University, a Universidade de Columbia. Então, ao terminar meu expediente hoje, confere a palestra “Marcha na Lua”. Como eu fazia isso? Porque minha missão era, aliás, porque havia uma Associação Internacional do Sistema Charles Franz, do qual eu era presidente. Minha vida é tão rica que não posso falar de tudo, me esqueço, é claro! Mas qual era o objetivo? Introduzir esse sistema nos Estados Unidos, pois não, isso eu não consegui. Eu consegui, mas tive que interrompê-lo, porque minha mãe é mais importante que todo o meu sistema, mas isso é uma questão racional.
P1 – Então, o senhor voltou, e o sistema não continuou lá em Nova York?
R – Continuou, continuou porque, por exemplo, vou contar rapidamente uma situação que me passou já com o mencionado método. Eu sempre era cercado logo, a pessoa me dizia: “Você me daria dez minutos do seu tempo?” “Agora não precisa, estamos em fevereiro, apareça em cinco de julho, às nove da manhã, você pode ver-me.” Dava-lhe esses dez minutos. “Mas, por favor, são dez minutos, e diga exatamente o que queres. Porque não tenho tempo a perder.” Então, eu consegui isso. Entre as muitas, havia um, por exemplo, que depois da entrevista, depois da palestra, eu me cerquei e as pessoas diziam em inglês: “Would you give me ten minutes of your time?” “Você me daria dez minutos do seu tempo?” E o senhor me disse: “Que lástima! Porque me vai, “my home is”, meu país é o Canadá, eu viajo amanhã.” “Mas pode ser amanhã ao meio-dia, aqui na Columbia University?” “Claro! Imagina, é perfeito!” Então, enviou algo que depois gostaria de mostrar para a câmera. Ele perguntou: “Franz, você é pai da Semiótica musical?” Está certo? Falei assim: “Por isso me coloca um pouco triste, porque você parte hoje.” Então, me disse: “Não, não se preocupe!” Ou seja, três dias mais tarde, me chamou um famoso professor da Columbia University, Atkinson, famoso Atkinson, que mais tarde se tornou célebre por sua audiência e me fez, nessa época, um dos primeiros videotapes da história, em branco e preto, que se passou em todas as universidades do país. Ou seja, não foi só apenas uma de tantas mencionadas. Mas valeu a pena mencionar o comentário a um dos livros escritos por mim, de James Levine, o regente famoso da Filarmônica de Nova York, que falou que havia revisado os livros: “O professor Charles Franz, que o encontro, como uma importante contribuição, que serve para introduzir essa grande obra aqui, nos Estados Unidos.” Mas estou contando de uma, consegui dúzias desse tipo de manifestação que não é muito fácil de consegui-las, especialmente se você vem de baixo. Porque eles são muito exigentes.
P1 – E, professor, que período foi esse? Em que ano o senhor foi lá para os Estados Unidos? Até que ano o senhor ficou?
R – Estou falando dos anos 80. Eu fui primeiramente à Califórnia, mas aí não fiquei, tive uma conversa com ______, o famoso compositor, já que em minha juventude havia tocado na outra calçada que eu, na calçada da frente, em um barzinho. E, bom, aceitei, disse: “Não fiques aqui, ande em Nova York, que é o umbigo do mundo.” Então, tudo bem, não sei se estou respondendo bem a sua pergunta.
P1 – Eu queria que o senhor me falasse mais ou menos o período. Quantos anos o senhor ficou lá?
R – Eu fiquei quase oito anos e tinha e vivia, não era o lugar de Charles Franz Studios, o Charles Franz Studios em Nova York era na Rua 57, com saída à Columbia Circle, na Rua 58. Mas meu apartamento estava em Lexington, 61. Ou seja, eu era nessa época muito chique, hoje já não sou tão chique como fui. Desculpe, tinha uma barbinha que também não tenho mais, e tenho uma bengalinha que é a diferença de hoje para aquela época, que não a necessitava, hoje a necessito.
P1 – E o senhor voltou para Buenos Aires e depois como foi? O senhor continuou?
R – Voltei para Buenos Aires. Bom, eu era amigo, eu fui ao congresso, um dos oito congressos de musicoterapia que entrei, do qual fiz parte, em um deles eu conheci e me fiz, na realidade, talvez é o melhor amigo de minha vida, que foi o Rolando Toro, o criador da Biodanza. E Rolando Toro quando, como tinha, esteve no mesmo congresso que eu, teve também sua... Só que a apresentação de Rolando Toro foi estar junto dos limites, e ele foi muito pouco tempo um homem célebre. Mas eu tive um sucesso não tão enorme, um sucesso bom, mas o outro... Ele aterrissou no Brasil e simplesmente insistiu que eu, que o Brasil era um país muito interessante, coisa que acredito até hoje.
P1 – E aí o senhor veio pra cá?
R ¬– Sim, aqui estou.
P1 – Definitivo, não voltou mais? (risos)
R – Sabe, árvores de certa idade já não se... Eu estou muito cômodo aqui, gosto muito de estar aqui.
P1 – E quando o senhor veio para cá para o Brasil, que ano foi?
R – Em 1983, ou seja, já estou há tanto tempo que deveria falar melhor esse idioma!
P1 – O senhor veio para o Brasil, o senhor falou que veio por causa do seu amigo, que o senhor conheceu, foi isso?
R – Ele me convidou para dar um concerto num congresso dele, e foi tão, poucas vezes em minha vida tive um sucesso de... Ou seja, eu tive, agora em novembro de 2006, um concerto muito lindo na Sala Cultura Artística, com 800 pessoas me aplaudindo de pé. Só que era muito entusiasta, só que eu não tinha nada que ver com entusiasta, aplauso que tive nesse congresso de meu amigo. Então, não sei, me senti muito legal, me senti muito bem compreendido. Foi legal, sabe?
P1 – Foi bem recebido.
R – Sim, sucesso de idoso, certo? Então, fui, achei que este era um país com música muito importante, muito lindo, mais linda, sinceramente, que os tangos argentinos, me desculpe. Essa música brasileira era muito interessante nessa época, não é incondicionalmente interessante atualmente.
P1 – E aí deu tudo certo quando o senhor veio?
R – Veja, eu tive meu primeiro instituto na Rua Quarto Centenário, e na República do Líbano, não com 300 alunos, mas era muito boa, como uma vez tivemos 220 alunos. Nessa época, eu tinha um público muito interessante, tudo foi fácil fazer e tive muito sucesso. Depois, meu próximo instituto foi porque o que passou, depois que eu estava aqui, a deportação! A deportação!
P1 – Como foi isso?
R – Bom, porque alguns conservatórios não gostavam muito que eu tivesse tantos alunos, o establishment não estava muito feliz comigo. Eu não quero falar muito disso, mas evidentemente existe. Porque ser... Não quero usar a palavra revolucionário, mas vir com algo novo, com algo que as pessoas aceitam e, se eu falei de 400 cartas na Argentina, pois muito... Não ganhei aqui 400, ganhei 150. Eu acredito que número não é importante, o importante é a pulsação humana de cada um dos indivíduos que escreveu uma carta, que estava feliz quando... E que aceita. Eu tenho um manifesto, quando eu ganhei essa deportação, porque eu estava ganhando dinheiro em um país no qual era apenas turista, nessa época. Então, me agarraram no calcanhar de Aquiles e fui, de repente fui citado pela polícia e eu perguntei ao delegado: “O que passa?” “Senhor, o senhor está ganhando dinheiro aqui, você é um turista.” “Mas já faz, tem 400 pessoas, não seriam 400, quatro mil estrangeiros que estão na mesma situação!” “Sim, mas eles não tem inimigos.”
P1 – Professor, então, voltando. O senhor estava contando que teve um problema, que foi extraditado. O senhor não queria falar muito sobre isso, então, vamos pular.
R – Sim, vamos pular porque da extradição... Não sei nem porque eu teria um amigo deputado que não permitiu que fosse extraditado. Mas estive três anos sem trabalhar, três anos vivendo de meu dinheiro.
P1 – Depois desses três anos, o senhor voltou para Buenos Aires?
R – É, uma vez eu teria que voltar por lei, a cada três meses, eu voltava a Buenos Aires de novo, e havia feito os 35 já. Vivia de Buenos Aires a Nova York, viajar de São Paulo a Buenos Aires não era muita viagem.
P1 – E quando o senhor resolveu esse problema em definitivo, aí ficou no Brasil? Como foi?
R – Sim, em definitivo, depois de três anos, em que eu ganhei um contrato de trabalho e tudo. Agora estava mais no país.
P1 – Ficou legalizado.
R – Fiquei legalizado e fiz meu próximo instituto na Rua Tucumã, na mesma calçada que o Clube Pinheiros. Como se viu, sempre fui muito chique, certo? Mas a parte chique foi uma insônia, tive muito sucesso com seres humanos, e isso é o importante. Ou seja, há muita gente que não apenas estava entusiasmada, se não que sentiu que fazer algo tão maravilhosamente inútil, como tocar piano, ou tocar teclado, era uma coisa importante em suas vidas. E que o que me pagavam e continuam me pagando hoje, por quase 83 anos, estou com muitos poucos horários livres, ou seja, sou como um médico que querem, quase todos os horários tomados. Então, essa gente me paga com dinheiro, sim, mas muito mais do que com o dinheiro, me pagam com seus sorrisos, com sua felicidade. E, na realidade, a minha profissão hoje é essa, não é simplesmente musical, é uma tarefa humana que, já que eu me divertia, e me divertia como falava o famoso Rosera, me divertia profundamente. Eu, em toda a minha vida, me interesso muito que as pessoas venham para as suas aulas não como: “Ai, que ódio, que ódio, que droga é a aula de piano!” Não. A aula de piano é uma festa! Também hoje, muito mais porque hoje tenho que fazer a canção. O Brasil me mudou um pouquinho.
P1 – Como foi a sua adaptação aqui?
R – Sim, bom, eu era, sinceramente, ouvia falar mal na Argentina, que era um país de pobre, mas os argentinos são um pouquinho prepotentes, certo? (risos) E pode não ser, eu acredito que eu era muito pouquinho prepotente também. Ou seja, eu não era um violino agradável, desculpe o autojulgamento, hoje acho que sou mais pacífico. Pelo menos, minhas aulas transcorrem com um riso, com um clima lindo, não aprende apenas música, se não nos enriquecemos, eles e eu, porque isso é muito importante que quem ensina se enriqueça com quem estuda com ele. E eles enriquecem comigo, que sempre escolhem os meus lindos arranjos, porque o aluno, tenho que ser rapidamente, ele aprende o clássico, aprende a tocar as peças de Chopin, de Brahms, de Bach, que evidentemente processaram maravilhosamente as suas músicas. Mas o ensino, arranjadores de música que sabem escrever uma música, passando por cima do solfejo, que precisa anos, porque o solfejo serve, só que serve apenas aos que o sabem perfeitamente, e isso só os concertistas, que não precisam ter lugar, tem bastante lugar que acabo de julgar que tem um lugar. Onde ficam os outros que não vão a ser músicos? Onde ficam eles? Então, sem o dinheiro desse sucesso, eu, Franz, muito “mais pequeno”, como um Franz muito menos prepotente em outras épocas, porque havia de ser um pouco prepotente. Você não pode controlar mais de 300 alunos sem ser um pouquinho mais autoritário. Hoje não, porque detesto o autoritarismo. Hoje, ensino meus alunos a serem autoritários consigo mesmos, mas de uma maneira muito doce.
P1 – E como foi essa sua convivência aqui? O senhor deve ter vários tipos de alunos, como são seus alunos?
R – Sim, bom, veja, eu tenho uma certa versatilidade. O fato de que, em algum momento, eu fiz, quando cheguei ao país, me apaixonei pela música sertaneja, acredite se quiser. E fiz um disco que se chamava Piano Caipira Charles Franz. Que foi em um concerto em que... Um concerto que pude dar através da Doutora Nise Yamaguchi, na Sala São Paulo, que infelizmente o piano maravilhoso em que toquei aquela vez, muita gente sabe que se incendiou. E foi faz muito pouco. E eu pude, ou seja, agora perdi o conceito, perdi o que eu estava falando.
P1 – O senhor estava falando que o senhor se apaixonou pela música caipira.
R – Sim, e eu fiz um disco que se chamava Charles Franz, Pianista Caipira. Como disse, sou um pouco versátil. Ou seja, claro, a maioria de meus alunos, que estudam comigo, gosta das grandes melodias internacionais americanas, francesas, italianas, que melodias, não música. Música melódica, não música rítmica. Mas essa música melódica se pode escrever com arranjos de acordes de harmonia que soam beleza, que soam lindos aos ouvidos. Os muitos CDs que se vendem, que as pessoas, ou seja, fazem essa diferença entre a música que podemos ouvir, e se dá muita importância à música que podemos ouvir, mas muita pouca importância à música que o indivíduo pode produzir debaixo do sossego de seus dedos. Por quê? Não se compreende porque, em nossa sociedade, a importância não ficou. Eu tenho medo que estou falando, estou explicando-me demais.
P1 – Eu gostaria que o senhor falasse um pouquinho dos tipos de alunos que o senhor tem. Que tipo de pessoa lhe procura? São adultos, não é isso?
R – São adultos exclusivamente. Tenho ultimamente uma aluna de 93 anos que nunca, ganhei faz três semanas, que nunca havia tocado piano, não posso dizer o nome que o filho dela é um homem muito célebre aqui no Brasil, por isso não vou dar quem é, mas é uma senhora que está encantada! Nunca havia tocado piano e está encantada que está conseguindo tocar. E disso, claro, conseguiu tocar como uma pessoa de 93 anos, eu tenho, que é totalmente diferente do que uma pessoa de... Isso hoje é possível, embora eu tenha algumas turmas. Eu tenho algumas turmas onde as pessoas, para que a estima, para que se amparam etc., virem pessoas que estão encantadas de estarem juntas. Porque uma disse: “Ah, porque pode a minha companheira, posso eu também!” Então, as aulas em pares também, as aulas em pares para os meus alunos são mais em conta do que os outros (risos).
P1 – E o senhor nunca deu aulas pra crianças, ou em algum momento deu?
R – Não dou, porque meu sistema tem muito a ver com a neurolinguística, e as leis que na neurolinguística são tão importantes, como as leis que eu criei para a música. Uma criança tem outra mentalidade, mais imediatista, ou seja, com o meu sistema poderia ser, mas poderia ser interessante para professores, para multiplicadores que a tomem assim. Eu pessoalmente adoro criança, gosto muito de crianças, mas não é meu público, porque é outro. Existe algo que se chama em inglês “motivational training”, ou seja, o aluno está aprendendo algo com o qual tem um laço afetivo grande. Lógico, quem tem hoje 40 anos, eventualmente, as melodias de Tom Jobim ou de Milton Nascimento lhe dizem algo com respeito, e as pessoa de mais idade de repente adoram Orlando Silva, não? Podem fazer o Cartola, tá certo? (risos) Meu disco foi premiado com cinco estrelas, as mesmas cinco estrelas de Cartola em... Meu disco não podia ser o único, é claro, eu fiz muitos outros discos de música, sobretudo de composições minhas, mas isso fiz de outro, que sou compositor, mas não posso falar de tudo.
P1 – Quer falar um pouquinho sobre as composições?
R – Sim, mas muito pouquinho, porque muito pouquinho. Muito pouquinho sou compositor, sim, e há gente que acha que eu sou um dos compositores mais importantes do século! Desculpa! (risos) Eu ainda compartilho a ideia, eu componho música para mim mesmo, porque desse eu sou um “pouquitinho”. Dou aulas, eu faço para feliz humanidade, faço música, faço para mim. Não me interessa o êxito. Então, estou também encostado à margem, não sei como se diz em português, dessas escolas, ou seja, eu faço em pleno 2001, não em seguido da corrente que são os compositores que têm que fazer música supermoderna, superatonal, pois eu não segui esse caminho. Acho que o que nós, qualquer homem de nossa época necessita é sonhar um pouco. Então, minhas composições são mais um pouco mais sonhadoras, muitas vezes são. Eu tenho, sim, como compositor, o amor, o cultivo da música tipo século XX, evidentemente minha música pode ser bastante moderna também, que os músicos se interessam bastante. Mas a composição é meu hobby pessoal, o qual eu não posso ensinar a que outros façam o que eu faço no piano, essa é a minha própria incumbência que me dá muita felicidade, mas não é a coisa mais importante da minha vida. Eu tenho a impressão, muita certeza, de que tenho uma missão, e essa missão foi maravilhosamente explicada em um manifesto que fizeram meus alunos quando eu ganhei essa extradição, que escreveram cerca de 300 assinaturas, que falaram muito claramente o que, na opinião dessas 200 pessoas que assinaram esse manifesto que tenho aqui, que gostaria até de mostrar, certo? Que acharam que era muito importante. Como também consegui nos Estados Unidos muita gente importante musicalmente, gente que sabe muito, que sabe que o meu sistema não é um, não é feito por um pequeno amante da música, senão por um homem profundamente, que ama profundamente o que faz. Eu tenho medo de que apareça o Franz modesto, não sou nada modesto! (risos)
P1 – As suas composições são música mais clássica ou música popular?
R – Sim, é música clássica, mas é totalmente melódica. Totalmente melódica, é música de paz. Música de paz, mas não sempre paz, às vezes pode ser bastante revolucionária, certo? Veja, quando se tem, como eu, mais ou menos umas três mil composições, então, é muito difícil falar. No meu computador, sobre meu sistema, tenho 3.800 arquivos, ou seja, eu escrevi sete livros, mas em meu computador há muito material para muito mais livro. O que passa é que não canso na vida para fazer, pelo menos a mim (risos).
P1 – Vamos falar um pouquinho da sua vida pessoal. O senhor falou que teve várias noivas! (risos)
R – Sim, sim.
P1 – Mas o senhor nunca chegou a casar?
R – Não, não.
P1 – O senhor não quer contar um pouquinho pra gente das suas noivas?
R – Posso até. Posso até sim.
P1 – Noiva, namorada.
R – Bom, na época em que eu tinha muito sucesso como pianista, naturalmente, apesar das minhas pernas serem um pouco curtas, eu tenho as pernas um pouco curtas, o qual me impediu, eu achei que não era muito apropriado como bailarino (risos). Este sempre teve uma boa porção de autocrítica e da capacidade de rir de mim mesmo, então. Bom, tive muitas noivas, muito bonitas algumas, mas sempre me importou nessa idade muito, estou falando de meus 20 anos, eu não me interessava muito pela beleza das pessoas, me interessava a vida interior delas. E então tive algumas experiências muito lindas, só que experiências que enriqueceram a mim e que não enriqueceram as pessoas que comigo tiveram essas experiências de, não diria um namoro, senão de uma relação que falo de um, com a qual podiam ouvir em silêncio oito horas de música clássica. Porque naturalmente é a música que eu escuto, é exclusivamente música clássica. Ou seja, essa experiência de pessoas que puderam compartilhar comigo o barulho da chuva, sei lá, o sorriso de uma criança, me importava isso mais do que a beleza das pessoas. Eu, na realidade, fui fiel, durante toda uma vida, a essa preeminência, ou seja, que sempre dizia essa sim e as outras 100 mil, não. Isso de minha experiência, ou seja, eu não sou um indivíduo que pode falar muito, porque não sou um conquistador, nunca fui, mas tive muito sucesso com as mulheres igual, apesar da minha perna curta, mas podia falar de... Teria que voltar.
P1 – Algum caso pitoresco?
R – Sim, tenho muitos casos pitorescos, mas contá-los só seria interessante com alguma pessoa. Foram eventualmente... Figuraram de alguma maneira a vida de que as pessoas não conhecem, não tenho muita gana de falar dessas experiências.
P1 – Não quer?
R – Foram muitos...
P1 – Não quer escolher alguma coisinha pra contar pra gente?
R – Sim, estive algumas vezes com noivas que tinham duas cabeças mais altas que eu, especialmente na época em que eu naturalmente era poderosíssimo, diretor do Instituto Charles Franz, onde as pessoas tinham muito poder. Tinham muito dinheiro, poder, não era tanto dinheiro, porque dinheiro me escorria bastante facilmente pelas mãos, sempre fui muito gastador, não gastador em... Quando vivo em São Paulo, não sou gastador. Mas, quando viajo, sou muito gastador, eu fui a muitos países. Então, falando ainda de... Bom, busquei sempre as mesmas cores, busquei pessoas que tiveram algo que ver afetiva, mais afetiva que intelectualmente. Tive uma experiência maravilhosa com uma mulher que eram as duas coisas: era intelectualmente maravilhosa e era afetivamente maravilhosa. Ou seja, tinha que falar dessa pessoa, que essa pessoa estava relacionada com Albert Schweitzer. Albert Schweitzer,o famoso médico, ou seja, teria que nominar. E tenho também... Já faz 13 anos que estou numa relação maravilhosa com um ser humano válido, que tem um defeito: ela acha que eu sou o melhor compositor de nossa época! (risos) Coisa que eu não... Que me adora por isso, que não tem um interesse absoluto no meu sistema, que acha que eu sou um compositor, ponto. Mas na realidade eu não compartilho essa ideia, porque, para mim, meu labor de professor e meu labor de minha obra, dos livros que eu escrevi. Estou preparando um livro que se chama Piano: Minha Obra, Minha Vida, o Piano e Eu. Como você vê, um título bastante modesto (risos). Pena que sou meio tímido para falar.
P1 – Desse relacionamento que o senhor tem há 13 anos o senhor falou?
R – Sim.
P1 – Como é o nome dela?
R – Vera Maria.
P1 – Que bom.
R – Certo, mas teria que voltar minhas coisas, porque é uma pessoa que é conhecida (risos), conhecida porque é sobrinha de um grande escritor brasileiro. Então, esta vem de uma família muito importante carioca que este, bom...
P1 – E ela é ligada à música também?
R – Não, não. É ligada à pintura, é uma grande pintora, uma grande artista em seu próprio... Eu também não sei, nossa relação é maravilhosa porque há muitos pontos de contato, ou seja, ela tem um sítio lindo em meio de uma montanha, de uma maravilhosa natureza, nos finais de semana eu viajo, muitas vezes, quando posso. Não posso sempre, certo? Mas só que nós, sabe? Muitos homens, quando se fala da companheira, enfim. Ou seja, meu amigo adotou, aos 80 anos, ainda teve mais uma filha. Eu não, ou seja, não tive nenhuma filha, nem filho, e não aprecio tão importante a beleza da pessoa, não me interessa, algo que também me sobra algo (risos).
P1 – Sobre esse livro que o senhor falou que está fazendo, seria uma biografia?
R – Sim. Embora sempre, em um livro, os acontecimentos tenham muito a ver. Mas meu livro tem, eventualmente, não apenas acontecimentos, senão tem pulsações humanas (risos), pulsações de momentos bons. Minha vida passou por muitos momentos de altos e alguns momentos bem baixos também. Em Nova York mesmo, com meu instituto, caí do cavalo quando uns sócios ganhavam cinco mil dólares com meu sistema, e eu não ganhava nada, apesar de ter feito um sucesso grande. Enfim, se você, em Nova York, cai do cavalo, cai bastante duro. Então, eu caí duro algumas vezes na minha vida, ou seja, tenho uma vida de um ser humano. Eu fui companheiro durante muitos anos de uma mulher que todo mundo, era um duplo de ______ senhora, era famosa atriz francesa. E, quando eu ia com ela a uma reunião, me passava o mesmo que passou uma vez a Schumann, famoso compositor Schumann. A esposa dele era pianista, então, uma vez, num concerto de Clara Schumann, um senhor lhe perguntou: “Você também faz música?” Ou seja, essa senhora, que foi minha durante muitos anos, era tão interessante que eu quase desaparecia (risos).
P1 – E a parte espiritual, o senhor tem experiências nessa área?
R – A parte espiritual eu teria que dizer, eu me sinto permanentemente bem em minha fé. Os acontecimentos, inclusive os negativos, e há bastante, houve bastante. Mas houve também muitos momentos bons, me afetam muito pouco. Eu tenho um estado de felicidade quase permanente. Cedo os sapatos que calço, com muita, agora lhe digo, com muita humildade. Cedo os sapatos, mas sei que alguma coisa deixei, alguma coisa deixei. Alguma coisa que mereceria ter continuidade porque a única tristeza, eu não penso nunca na morte, nunca penso em carpe diem, penso no dia de hoje e não me preocupo para nada. Mas a única coisa que me preocupa é que tudo isso que eu escrevi, que toda essa enorme obra, porque tenho três mil composições, muito mais obras eu tenho feito com o meu sistema, certo? Eu não sei de onde tirei tempo para toda essa obra. E tenho medo que algum dia isso fique, termine com a minha existência. A única coisa que gostaria é que, já que isso é no passado, que me enriqueceu tanto e segue enriquecendo tantas pessoas, não termine com a minha existência.
P1 – Mais alguma lição que o senhor tirou ao longo da sua vida, que o senhor queira contar pra gente?
R – Veja, minha vida foi sempre de um homem intimamente feliz, de um homem intimamente em paz. Se hoje revejo os diários íntimos de quando eu tinha 30 anos, e era um homem muito exitoso, só vou contar uma. Nessa época eu ganhava muito dinheiro, tinha muita gente que vinha à noite me escutar, porque era também a parte de todo o pianista, dava muitos concertos na Argentina, dava 20 concertos por ano. Fiz sete livros que eu nunca os incitei editar, publicá-los, porque não compravam os nosso alunos (risos). E, se foi, tenho que escrevê-los. Só que esses livros estão escritos em espanhol, não são atuais, e por isso que atualmente estou escrevendo a vida. Mas não sei, em minha vida teria que falar. As pessoas gostam muito de drama, as pessoas felizes não chamam tanto a atenção. A pessoa que grita, que chora chama muito mais atenção. E eu tenho que falar de uma vida que, pelo cuidado, eu, meu pai foi... Terminou sua vida num campo de concentração, eu tive muitos momentos de altos e de baixos espeluznantes em minha vida, eu sobrevivi. Hoje, sou uma pessoa em uma idade na qual chego a pensar em uma certa precariedade. Não sei explicar com palavras, mas estou muito bem comigo mesmo.
P1 – Tem mais alguma coisa que a gente não falou, que o senhor gostaria de colocar?
R – Importante é que isso, hoje, como pessoa de idade muito avançada, tenho, como já falei antes, meus horários de alunos quase, quase cheios, mas não ganho muito dinheiro, não! (risos) Mas ganho o suficiente para sobreviver. Tenho amigos. Há gente também que me apoia um pouco, me apoia bastante. Mas não sei. Há uma frase que uso muito: “A lo muy grande a que caerá el resto.” Eu não sei, não me importa levar uma vida terrivelmente importante. Eu acho que diria, havia um escritor que chamava ______, um escritor romeno que falou em certo momento da atenção que chamava um homem que caiu na rua cheio de sangue, pois, correm todos, todo mundo corre a ver isso. Os acidentes da alma, quando o homem, são invisíveis para as pessoas. Eu levei uma vida que, por sorte, os acidentes da alma foram poucos e consegui sempre sobreviver a eles muito bem. Hoje, levo uma vida na qual tenho perdido muito da minha agressividade anterior. Antes, eu era um homem muito agressivo, devo lhes confessar, era um homem muito agressivo. Hoje, não quero dizer não sou um novo médio, não, mas sou feliz. Não sei, falando com muita franqueza, é isso. Talvez isso não seja interessante como contar anedotas dramáticas, eu acho que o drama está em nossa vida, não todos os dias estamos iguais, certo? Minhas composições falam muito mais de mim do que minhas palavras podiam falar, elas falam de momentos de altura, de êxtases, em meio a uma cidade, minha companheira, que, num sítio, no alto da montanha, na alta montanha do Brasil. Eu agora fui nessa semana, gosto muito da natureza, gosto muito das tempestades, gosto muito de ouvir, ver chover (risos). Mas essas coisas podem passar sem importância. Para mim, têm muita importância e têm muita importância. E têm muita importância hoje. Estou em uma idade em que escrevo diferente do que escrevia eventualmente faz anos, é isso.
P1 – E como o senhor se sentiu dando esse depoimento aqui pra gente? O que o senhor achou?
R – Muito bem, muito bem, porque esse depoimento me tomaram muitos, começando com o Jô Soares, na época me trazia 80, 90 alunos. É que esse é um depoimento no qual me posso dar o luxo de ser eu mesmo, de não querer parecer outro e de falar muito humildemente. Mas na realidade talvez transluza de minha humildade, na qual falo, a existência de um homem que está bem consigo mesmo. Então, isso em uma entrevista, como hoje, não posso fazer, não pode ter essa... Ou seja, me sinto bem e sinto que posso falar assim de mim, embora talvez não seja tão, como se diz? Importante. A pessoa sempre está através dos acontecimentos, acidentes, enfim, acabo de passar... Anteontem, eu estava no hospital (risos). Eu sei, de repente. No momento, aprendi algo novo, sempre se aprende algo, se aprende todos os dias algo novo. E estar vivo podendo ir pela vida com os olhos abertos me enriquece ainda hoje muitíssimo, e tenho muita gana de viver muitos anos mais (risos).
P1 – Então, professor Franz, muito obrigada pelo seu depoimento. A gente agradece.
R – Eu peço desculpas por minha franqueza, talvez seja um pouco decepcionante ver um homem que fala tão abertamente de seus altos e seus baixos. Mas eu teria que dizer, falando de altos e baixos, os altos predominam. Muito obrigado!
P1 – É isso mesmo, obrigada!
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