Programa Conte Sua História
Depoimento de Maria Amélia Nunes Soares
Entrevistada por Danilo Eiji Lopes e Jonas Worcman
São Paulo, 01/10/2015
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV514_Maria Amélia Nunes Soares
P/1 – Maria Amélia, inicialmente, gostaria em nome do Museu da Pessoa, agradecer voc...Continuar leitura
Programa Conte Sua História
Depoimento de Maria Amélia Nunes Soares
Entrevistada por Danilo Eiji Lopes e Jonas Worcman
São Paulo, 01/10/2015
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV514_Maria Amélia Nunes Soares
P/1 – Maria Amélia, inicialmente, gostaria em nome do Museu da Pessoa, agradecer você por vir aqui e contar um pouco a sua história, oportunizar esse espaço com a gente, muito obrigado. E para inicio, para registro no nosso vídeo, eu queria que você falasse seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Eu que agradeço a oportunidade de contar um pouquinho de mim, meu nome completo é Maria Amélia Nunes Soares, nasci em Bom Jesus da Gurgueia, Piauí, dia sete de dezembro de 1954.
P/1 – Maria Amélia, antes da gente começar a sua história, eu queria voltar um pouco na origem da sua família, você conhece a história da sua família? Conheceu seus avós?
R – Hãhã…
P/1 – Você poderia contar um pouco? Sua parte materna, por exemplo.
R – Eu vou falar lá do casamento da minha mãe. A minha mãe ficou noiva três vezes, naquele tempo, as coisas eram muito sérias, assim e nenhuma vez deu certo o casamento. Sempre, as vésperas do casamento, ele acabava, não era para ser. Aí, um belo dia, numa festa de São João, foi para a cidade festejar, encontrou o meu pai e ele falou: “Vamos casar?”, ela falou: “Só se for hoje”, aí eles casaram. Incrível, né? Eles moravam em cidades próximas, mas não se conheciam. E aí, eles se casaram. Foram para a casa dos meus avós maternos e disseram para eles: “Olha, nós nos casamos”, aí eles falaram: “Agora você vai embora”, e aí, ela foi morar na casa dos meus avós paternos junto com o meu pai. Passou um determinado tempo, quando estava próximo do meu nascimento, a minha mãe falou para o meu pai: “Eu vou ter o meu bebê na casa da minha mãe”, e o meu pai falou pra ela: “Se você for, você não volta mais”, e ela falou: “Então, eu vou”, e foi. Aí eles se separaram e nunca mais ficaram juntos. É essa a história. Louco, né?
P/1 – Nossa, incrível! A gente vai querer retomar isso aqui, mas voltando um pouquinho, né, como que eles foram parar nessa região, você sabe, como que veio parar a família ali, se eles já são… enfim, outras gerações?
R – Então, a família do meu pai já era lá da região há muitos anos, eles, inclusive, até hoje são todos políticos lá na terra, mas a família da minha mãe, não, a família da minha mãe, meu avô raptou a minha avó, que era descendente de italianos e foi embora para um lugar distante que era onde eles fizeram a fazenda e que eles viveram. Mas a família do meu pai, não, já vivia lá há muitos anos. Agora, a minha avó materna foi raptada, né, pelo meu avô e para que eles ficassem juntos, porque o meu avô era escuro, negro, né, e a minha avó era muito branquinha, então a família dela não queria o casamento, então eles fugiram pra fazer a vida deles.
P/1 – Em Bom Jesus?
R – Em Bom Jesus.
P/1 – E no caso, eles trabalhavam com fazenda, agricultura?
R – Isso.
P/1 – No caso, ainda não era soja, eu imagino (risos).
R – Não, não era soja.
P/1 – O quê que era?
R – Era aquele plantio de subsistência, mesmo, então plantavam feijão, arroz, faziam uma farinha, criavam gado, gado de corte, gado de leite e o meu avô construiu uma casa perto de um ribeirão, onde tinha muita água, né, então era um lugar muito agradável, muito lindo lá, muito bem escolhido.
P/1 – Tá certo. Me conta um pouco então, da sua mãe, né, o nome, como ela era, o gênio…
R – Então, a minha mãe era mestiça, ela era morena, mas ela tinha o cabelo bem liso e ela era uma pessoa assim, de algumas… era muito decidida, né, muito determinada. E quando eu nasci, ficamos morando na casa do meu avô materno, que nessas alturas, já havia morrido, eu não o conheci, mas ficamos morando lá e minha mãe era analfabeta, mas era uma pessoa assim, de muita sabedoria, não tinha o conhecimento, mas tinha a sabedoria, legal, né? E aí, quando eu ia completar cinco anos de idade, meu pai esteve lá na região onde a minha mãe morava que eram cidades próximas e avisou ela: “Eu vou mandar buscar a menina para botá-la na cidade para estudar”, minha mãe falou: “É? Tá bom, pode vim buscar”, e pegou a menina com uma trouxinha nas costas e veio-se embora para São Paulo e não deu mais o endereço para ninguém da família dela e nem da família do meu pai, ninguém mais teve nem noticia.
P/1 – Então, a sua infância que você se lembra é daqui?
R – Então, quando eu saí de lá, eu tinha cinco anos de idade, que eu tava próxima a idade escolar, quando o meu pai queria que eu fosse, então, pra estudar, então ele queria, logicamente, me levar para a fazenda dele e a minha mãe fugiu, me levou embora. Eu me lembro de muita coisa de lá, ainda. O riacho era uma coisa maravilhosa, o barulho do rio, da chuva, que aqui em São Paulo, quando chove, né, nós abrimos o guarda-chuva e saímos, lá não, lá quando chove, vai todo mundo pra rua festejar a chuva, não é nem pra rua, é pro quintal, pro terreiro, que na frente de todas as casas tem aquele amplo espaço, então a gente vai tudo pra chuva. Então, essas lembranças são muito fortes pra mim, uma criança de cinco anos, mas eu lembro disso com muita alegria, era muito agradável. Minha mãe disse que passou por muitos momentos difíceis, de seca lá ainda, mas eu não me lembro disso, eu só me lembro de coisas boas. Lá eu achava a minha vida maravilhosa.
P/1 – E muita coragem, né, de vir e cortar os laços…
R – Minha mãe teve. Cortou os laços com a família dela, porque ela não dava o endereço com medo que eles; eu não sei até que ponto isso foi bom pra mim, não é, mas eu não tenho o direito de criticá-la, né? Porque eu acho que ela tinha por mim um amor tão grande, que ela focalizou na minha vida a vida dela, ela queria… ela vivia por mim. Então, um amor que transcende o nosso entendimento.
P/1 – Essa história, ela te conta com uma pressão, assim, um medo de te roubarem, assim, ou foi uma coisa do tipo: “Ah, não quero seguir esses padrões, quero sair, quero ir para São Paulo”, como que ela te contou essa história?
R – Ela me contou essa história assim, mesmo, com medo de perder a filha. Ela tinha medo de perder a filha, porque a família do meu pai tinha um poder econômico bem superior à família dela e naquele tempo, reinava ali o jagunço, né, então o meu pai mandaria alguém buscar. Ele não disse assim: “Me entregue, vamos a justiça…”, nem existia isso, né? E o casamento deles era aquele casamento religioso, casamento de festa de São João, que tinha valor para eles, não era nada que você diga: “Era errado”, não, para eles era correto, certinho, tinham sido abençoados no casamento pelo padre e tudo bem.
P/1 – E me conta essa chegada em São Paulo. Como foi? Chegaram onde?
R – Então…
P/1 – Não conhecia nada, não conhecia ninguém…
R – Agora, eu lembro de muita coisa dessa viagem, porque nós saímos de Parabatins de noite a cavalo, então eu era pequenininha, então saiu eu, a minha mãe e o meu tio, o irmão da minha mãe, que nos levou até a cidade de Bom Jesus. Em Bom Jesus, nós pegamos o ônibus que nos traria até a Bahia. Então, pegamos um ônibus e fomos até a Bahia. Então, essa viagem de lá até a Bahia, naquele tempo, durou cinco, seis dias. Chegamos na Bahia, descansamos uns três dias na casa de uma prima da minha mãe e pegamos novamente um outro ônibus que nos trouxe até São Miguel Paulista, na casa dos meus tios, que eu tinha dois tios que moravam em São Miguel Paulista. Esse caminho todo da Bahia até São Miguel Paulista em São Paulo, foram nove dias de viagem. Muita dificuldade, né? Muito cansaço.
P/1 – Você se recorda?
R – Me recordo.
P/1 – Lembra?
R – Foi nessa época que eu vi pela primeira vez um Fusca, eu nunca tinha visto um Fusca. Eu tinha cinco anos de idade e eu nunca tinha visto um Fusca e aí, na frente do ônibus, passavam os Fuscas e a gente ficava encantado: ‘Olha, um carinho” (risos), era muito interessante.
P/1 – E como foi essa chegada? Ficaram na casa dos tios… você assustada? Estava gostando?
R – Assustadíssima. Quando nós chegamos aqui, o primeiro susto: não tem árvore, onde que eu vou brincar? Porque lá, a gente brincava nas árvores. E agora? Primeiro susto. Quando nós descemos na estação de trem em São Miguel, eu, minha mãe e uma mala, a minha mãe teve uma crise de falta de ar, não sei se ansiedade, não sei o que foi, ela tava com o endereço dos meus tios, que a gente queria ir a pé da estação até a casa dos meus tios não era longe, hoje, eu sei que dava dez minutos, naquela época, a gente não tinha ideia, né? Então, nós descemos na estação e quando nós saímos para fora da estação, minha mãe teve uma crise de falta de ar muito forte e aí, nós paramos no portão e veio uma senhora e trouxe sopa pra minha mãe e deu a sopa, minha mãe comeu a sopa, melhorou um pouquinho e nós seguimos caminho com esta senhora e ela chama… poxa vida, ela já faleceu, né, essa senhora nos levou então, com aquele endereço, nos levou até a casa dos nossos tios. Aí que a gente se acomodou e ficamos por lá uns dias. Impressionante!
P/1 – Super, né? Então, vocês não ficaram com seus tios, vocês saíram de lá?
R – Ficamos lá pouco tempo e aí, minha mãe começou a trabalhar em casa de família, então ela era o que hoje, chamamos de diarista. Naquela época, não existia máquina de lavar roupa, então a minha mãe ia à casa das pessoas, lavava e passava roupa no decorrer do dia. E eu fiquei por ali um período, completei seis anos de idade, meus tios saíram, foram embora para outro local – que não me ocorre para onde eles foram – e eu ficava sozinha o dia inteiro enquanto a minha mãe trabalhava. A vizinha da frente dava uma olhadinha, né, e nós não tínhamos fogão. Nós tínhamos um fogãozinho chamado jacaré, já ouviu falar? Jacaré, é um fogão como se fosse uma espiriteira, que se coloca embaixo dele querosene e aí, ele faz a chama pra você cozinhar, então a gente cozinhava nesse fogão, jacaré o nome dele. E esse fogão era perigoso, porque ele corria risco de explodir, ele lidava com combustível, né, então eu não podia fazer comida. Então, eu comia frio aquilo que a minha mãe deixava pronto durante o dia. Então, eu fiquei durante um ano nessa casa com a minha mãe, então ela, durante o dia, ia trabalhar e eu ficava sozinha. À noite, ela voltava e nós estávamos bem, mas eu não era infeliz, não, viu? Eu gostava bem dessa vida, eu só ficava com medo no final do dia, né, no final do dia, tinham aquelas… perto da minha casa, tinham bananeiras imensas, aquelas bem altas e as folhas da bananeira faziam sombra, então eu ficava dentro de casa, quando dava o horário de seis horas da tarde, que ia escurecer, eu ficava dentro de casa, porque eu tinha medo daquela sombra da bananeira, olha que absurdo, né? (risos) Mas havia dias que eu ficava brincando lá fora no quintal e não percebia que estava anoitecendo e aí, muitas vezes, a minha mãe chegou e eu estava dormindo lá fora, na rua, que era uma rua de terra, não tinha asfalto e tinha uma cerca de madeira e eu ficava lá na beira da cerca e cochilava ali porque não tinha coragem de entrar para dentro de casa, não via que tinha anoitecido, brincando…
P/1 – Tinham outros amigos ali?
R – Muitos amigos! Muitas crianças.
P/1 – Então, na rua tinham outras crianças?
R – Ficavam brincando ali. Todo mundo tinha a sua mãe que chamava: “Vem comer, vem dormir, vem tomar banho”, e eu não tinha, então eu ficava…
P/1 – E você lidava bem? Você não tinha essa questão de solidão?
R – Não sentia solidão, não tinha medo, a não ser da bananeira, nunca fui agredida por ninguém, nunca sofri nenhum tipo de incomodo, assim. Eu era muito feliz, eu não me lembro de tristezas, não. Era ruim comer a comidinha fria, né? Não podia esquentar, tinha que comer frio, né? Mas d resto, tranquilo.
P/1 – Você disse que foi só um ano, o que aconteceu…?
R – Foi só um ano porque no ano seguinte, eu completei sete anos e aí, quando eu completei sete anos, eu faço aniversário em dezembro, estava construindo uma escola perto da minha casa, eu falei: “Opa, tá na hora de eu ir para a escola”, mas como eu já te disse, a minha mãe era analfabeta, não tinha nenhum tipo de conhecimento, nem da vida aqui, e tal e eu não tinha documentos e aí? Aí, quando começou a construir a escola, naquele período, eu ia pra dentro da construção junto com outras crianças e passava o dia com os trabalhadores lá, boa parte do dia eu ficava lá e às vezes, a gente ajudava eles a comer a marmita deles (risos), os trabalhadores da escola. Quando a escola ficou pronta, eu vi o movimento na rua, todo mundo fazendo matricula: “Ah é? Matricula na escola? Então, vou também, né?”
“O quê que tem que ter para fazer matricula?” “Tem que ter sete anos” “Eu tenho", eu vou. E eu fui sozinha pra escola. Cheguei lá, entrei e fiquei na fila esperando para fazer a minha matrícula, quando chegou a minha vez, perguntaram: “E aí, cadê seus documentos? Cadê sua mãe?” “não tenho, minha mãe tá trabalhando, ela não pode faltar no serviço” ”E os seus documentos?” “Não tenho documento, que documento? O que quê que é isso?” ”Tem que ter certidão de nascimento” “Escreve aí que eu vou levar para a minha mãe para perguntar se tem”, escreveram. Levei pra minha mãe. Minha mãe falou: “Olha filha, não tenho, tem que mandar buscar no norte” ”Ixi, e agora? Vou para a escola amanhã de novo, mãe, eles vão abrir a escola e eu vou estudar”, escola Carlos Gomes lá em São Miguel. Você conhece?
P/1 – O Carlos Gomes, sim.
R – A escola?
P/1 – A escola não.
R – Aí, no dia seguinte, eu fui lá para a escola. Aí cheguei lá, a moça falou: “Aquela menininha tá aí de novo” (risos). “E aí, cadê a certidão de nascimento?”, eu falei: “Não tenho, minha mãe mandou falar que eu não tenho, que tem que mandar buscar lá no norte” “Então, você não pode estudar” “Posso, eu tenho sete anos e eu posso estudar, eu ajudei a construir essa escola, eu ficava aqui o tempo todo vendo os homens taralharem” “não, mas não pode” “posso…”, e vai e vem, tal, sei que me levaram para o diretor, uma pessoa
que tava lá, hoje eu sei que não era o diretor, porque o diretor nem devia estar na escola, né, mas me levaram para a pessoa lá: “Faz o seguinte, vamos deixar ela vim aqui, chama a mãe dela pra conversar”, aí mandou um funcionário na minha casa, não tinha a mãe, né, aí conversou com os vizinhos lá, os vizinhos deram uma informação, “Deixa ela como ouvinte” “Não, eu não quero ficar como ouvinte, não. Eu quero estudar de verdade” (risos)
“Mas menina, ouvinte estuda de verdade” “Mas eu não quero ser ouvinte, eu quero ser igual aos outros. E aí?”, bom, não sei o quê que deu, eu sei que eu fiquei na escola, que jeito deram lá eu não sei. Uma professora, ela chamava Malvina, tava na escola nesse dia: “deixa ela na minha classe, pode deixar. Eu vou ficar com ela”, aí essa professora depois foi na casa da minha mãe, foi fim de semana em casa até encontrar a minha mãe em casa pra falar com a minha mãe: “olha…”, aí a minha mãe mandou buscar o documento e eu fiquei nessa sala dessa professora, dona Malvina e eu era uma das melhores alunas da dona Malvina. Dona Malvina gostava muito de mim (risos). Foi assim que eu entrei na escola. Entrei na força (risos).
P/1 – Escola perto, ia a pé, ao lado, né?
R – Interessante, porque naquele tempo, o horário escolar era das sete às onze, das onze às três e das três às sete novamente. E a gente ouvia da minha casa, o sinal, porque eu não tinha quem me mandasse me aprontar, quem me desse alimentação, minha mãe ficava em casa, assim, um dia ou outro. No dia em que ela ficava, ela me orientava: ‘olha, filha, é assim e tal…”, então nos dias que ela ficou em casa, ela falou pra mim: “Você tá vendo? Bateu o sinal”, eu tinha que entrar na escola às onze horas, meu horário era as onze, então, quinze para às onze, batia o sinal da turma que ia sair e onze horas… cinco para às onze batia o sinal da turma que deveria entrar. Onze horas batia o sinal para fechar o portão, depois não entrava mais. Então, a minha mãe falou: “você tem que ficar pronta e quando bater o sinal, o primeiro sinal, você tá ouvindo? Bateu, você já vai sair, já vai pra lá…”, que eu tinha que dar a volta no quarteirão para ir, “…você vai para a escola que é a hora de você chegar lá, tá bom?” “Tá bom”, então eu fiquei atenta aquilo. Então, na hora que batia o sinal, quinze para às onze, eu acordava. Acordava, pegava a roupa, o material, tudo e saía correndo pra escola e entrava lá, já… eu tinha o cabelinho mais comprido, fazia um coquinho, prendia assim e ia embora pra escola. Foi durante os quatro anos do ensino fundamental essa história aí.
P/1 – E em questão de material, essas coisas? Porque tinha essa dificuldade assim, de não conseguir, de…? Essa estrutura…
R – Você não deve conhecer papel de pão, conhece? Nunca ouviu falar em papel de pão. Não, né? O papel de pão é que naquele tempo, o pão não vinha no saquinho como ele vem hoje, então o pão era embrulhado num papel, é um papel pardo, a gente chamaria hoje como papel pardo, ele era mais fino do que o papel pardo, mas era aquilo. Então, esse papel de pão, ele vinha para todas as casas, o pão vinha embrulhado naquilo. Então, a minha mãe pedia para a patroa guardar o papel do pão, porque nós não comprávamos pão, né? Então, a patroa da minha mãe guardava o papel do pão e minha mãe levava e eu escrevia no papel de pão. Até que a dona Malvina viu aquilo e me deu um caderno (risos), e aí, as patroas da minha mãe também perguntavam… minha mãe chamava Vitoria: “Por que Vitoria você leva o papel de pão?” “Porque a minha filha não tem caderno”, as patroas levaram um susto e aí, me deram caderno. A partir de então, eu comecei a escrever no caderno que as patroas da minha mãe mandavam, que a dona Malvina conseguia, tal, assim.
P/1 – Você não guardou esse caderno?
R – Que coisa, né, não achava que era precioso, né? E era, viu! (risos)
P/1 – Me conta, então, você fez o ensino fundamental, o primeiro, né, o primário junto com essa mesma situação…
R – Sim…
P/1 – Final de semana você tinha um tempo com a sua mãe?
R – Sim.
P/1 – Tinha uma parte de lazer ou…?
R – Não. No final de semana, nós morávamos numa casa… eram três famílias no mesmo terreno, mas era um terreno grande. Então, tinha uma casa à direita, a minha casa à esquerda de quem olha da rua e uma casa na frente, então era um espaço grande. Então, nos finais de semana, eu ficava com a minha mãe em casa, a gente lavava a roupa, limpava a casa, minha mãe me dava as orientações, minha mãe pedia para eu pegar o material e estudar um pouco. Então, duramente os fins de semana era com a minha mãe, e nos dias que ela folgava, também e era muito agradável, eu não sentia falta de mais nada. Era muito bom.
P/1 – Legal. E depois, o quê que você fez? Continuou morando ali? Mudou de escola?
R – Quando eu estava no quarto ano, então a minha mãe conheceu um senhor, não sei se eu estava no quarto ano… isso mesmo estava no quarto ano, minha mãe conheceu um senhor lá e eles se juntaram, porque eles não se casaram, então, naquela época, falava que eles se juntaram e aí, nós saímos daquela casa e fomos morar numa casa bem longe da escola, dava meia hora de caminho até a escola e aí, em seguida, minha mãe… quando ela se juntou com ele, já estava grávida esperando a minha irmã, que é uma coisa muito preciosa na minha vida, o meu maior presente que eu ganhei nesse período foi a minha irmã. E a minha mãe estava esperando ela, então nós fomos morar nessa casa. Aí, a minha mãe parou de trabalhar fora, ficou em casa, ela ia assim, um ou dois dias e aí, eu ficava então, com a minha mãe, minha irmã logo em seguida nasceu e ficava com a minha irmã. Mas esse período, por incrível que pareça, foi o pior período da minha vida, porque eu conheci uma coisa chamada padrasto, inclusive, quando eu me casei, eu falei para Deus, falei: “Deus, eu nunca (choro/emoção) vou dar um padrasto para as minhas filhas”, meu padrasto levou uma filha dele que ele tinha de uns cinco, seis anos, um amor de criança. Nunca tive problemas com ela, chama Lolita, é uma graça, até hoje, a gente ainda tem um relacionamento esporádico. Mas ele chamava Antônio, ele era um bom homem, ele trabalhava a semana inteira, mas sábado e domingo ele ficava em casa. Então, no sábado, ele ficava em casa até umas dez horas da manhã bem, ele tinha muitos passarinhos, muitas gaiolas, ele cuidava dos passarinhos, tal, tal, tal. Quando dava por volta de umas dez horas, ele falava assim: “Vou ao bar tomar uma branquinha. Volto logo pra gente almoçar”, aí quando ele chegava era duas, três horas da tarde, aí ele chegava caindo de bêbado, aí ele pegava os pratos e jogava na rua, aí ele xingava, aí ele falava que ele tava me alimentando, era terrível (choro). Isso durou até quando eu tinha 14 anos, só que depois, a gente vai desenvolvendo estratégias para sobreviver, né, então eu comecei assim, quando a minha irmã tinha uns sete, oito meses, eu levava a minha irmã para passear de carrinho, então, eu colocava ela no carrinho e levava ela para passear na rua, para ela dar um descanso para a minha mãe, para poder fazer o serviço, né? Então, nessa época, eu tinha uns 11 anos, eu descobri que eu podia levar ela para passear na hora que ele ia chegar. Ele saía para beber, quando ele… quando eu sentia que ele tava perto de chegar, eu… eu nunca combinei com a minha mãe, mas eu acho que tacitamente, a gente sabia disso, né? Eu colocava a neném no carrinho e rodava a vila com ela, durante muito tempo, ficava três, quatro horas fora de casa, passava perto de casa, sentia o clima assim, se eu percebesse que ele tava calmo, que já tinha quebrado tudo que ele tava com vontade de quebrar, aí eu entrava bem quietinha, de preferencia com a neném dormindo, punha a neném dormindo e também me acomodava. Foi nessa época que eu fiquei conhecendo a igreja, né? Passando na frente da igreja um dia, uma moça chamada… aí, me foge o nome dela agora, Marli. A Marli me olhou e falou: “Menina, eu vejo que todo dia você passa aqui na frente da igreja com esse bebê. Onde você vai?” “A gente só fica passeando”, porque eu nunca reclamei nem para a minha mãe e nem para mais ninguém, nem professor, ninguém nunca soube dos nossos problemas. Aí ela falou assim: “Em vez de ficar passeando, vem pra cá”, aí eu entrei naquele dia, mas já tava acabando, era finalzinho. “Mas que horas?”, aí ela me deu o horário, falei: “Domingo que vem eu venho”, e aí, eu comecei a frequentar a igreja e eu acho que ali foi a minha salvação. Eu saía de casa, tinha um lugar para ir, não precisava ficar ouvindo ele falar todas aquelas coisas. Tem um passagem, inclusive assim, que eu não gosto de bolacha de maizena, não suporto, porque na minha casa sempre tinha um pote de bolacha (choro), era um pote transparente, de vidro e ele ficava em cima do armário. Às vezes, minha mãe tirava uma daquelas bolachas e dava para uma das minhas irmãs, ou para a minha irmã que era a filha dela ou para a outra menina que era a filha dele. Dava duas, três para ela e uma outra pra pequenininha e não dava bolacha pra mim, porque eu era grande e porque o meu pai não valia nada, ele não me deu nada, ele não me sustentava, tinha que comer o que tivesse. Aquilo lá, aquela bolacha era porque o pai das meninas comprava para as meninas, não era para mim e eu passei a odiar bolacha de maizena porque era um jeito assim de eu não precisar sentir vontade de comer aquela bolacha. Não é triste, é engraçado.
P/1 – Ele era violento com vocês? Batia na sua mãe? Ou ele quebrava tudo e dormia, assim?
R – Ele não batia, ele quebrava e ameaçava bater, mas a minha mãe, como eu disse pra você, ela era uma pessoa muito determinada, então, ela enfrentava. Se ele desse dois passos na minha direção, ela se colocava no meio e ela segurava, e ela tinha força suficiente, ela não permitia que ele batesse nela, nem em mim, mas a filha dele, ela se abraçava em mim e chorava desesperadamente, a filha dele e a minha irmãzinha, também. Então era desesperador, o fim de semana era muito sofrido. Isso durou uns quatro anos. Depois, um belo dia, ele pôs tudo num caminhão que tinha dentro de casa, ele tava bêbado, trouxe um caminhão e falou: “Eu quero mudar”, aí pôs tudo dentro do caminhão e foi embora e ficou eu, minha mãe, a minha irmã, que ele levou a menina dele dentro de uma casa vazia, não tinha nada, tudo ele levou embora.
P/1 – Não foi anunciado? Foi se preparando isso?
R – Não.
P/1 – Não foi? Chegou um dia…
R – Não. O dia que ele decidiu que ele ia embora, ele tava bêbado. Depois, ele voltou, quando ele não tava mais bêbado, pediu desculpa, queria voltar, minha mãe falou: “Não. Aqui você não põe mais os pés”. E aí, eu e a minha mãe fomos reconstruindo as nossas vidas devagar. Eu passei a cuidar da minha irmã, minha mãe trabalhava.
P/1 – Mas continuou frequentando a escola?
R – Sim. Nunca deixei de ir à escola, eu ia à escola religiosamente, todos os dias, não faltava e eu sempre fui muito boa aluna e a dona Malvina me inspirou a querer ser professora, que era a minha professora lá do primeiro ano. Eu achava fantástico, ela ensinava e ela colocava na lousa cores diferentes pra gente poder fixar na nossa memória, né, e era muito bacana, eu falei: “Eu quero ser professora quando eu crescer”, mas era um sonho muito distante, era muito difícil ser professora naquela época, ainda mais nas condições que eu vivia, que eu não sabia que eu vivia em condições ruins, eu não tinha clareza disso. Na hora que acabava tudo aquilo, eu tava feliz de novo (risos). Hoje, é mais sofrido lembrar do que propriamente passar, porque hoje, a gente tem consciência do que poderia ser, de tudo que aconteceu e é mais doído.
P/1 – Você fez o secundário ali, também? Nessa mesma escola, nessa mesma região ou você teve que se mudar para estudar?
R – Não. Depois desse período aí, nós precisamos sair da casa que nós morávamos, porque nós não tínhamos como bancar, ficamos ali um período, proprietário deve ter sido gentil com a minha mãe, ficamos um tempo lá e aí, depois, nós fomos morar de favor no fundo da casa de uma pessoa que eu conheci na igreja. Ele era presbítero da igreja e ele nos deu lá, seu José Anis nos deu um lugar para morar, um cômodo que ele guardava tranqueiras e aí, eu tinha então, 13 anos e eu parei de estudar e fui trabalhar. Eu fui trabalhar no Brás em confecção de roupas. Eu fazia camisa de motorista, fui trabalhar numa fábrica de camisa de motorista e naquele tempo, motorista de ônibus usava uma camisa que tinham uns botões especiais aqui, uma lapela aqui assim, era um uniforme, né, eu tinha 13 anos e eu fui trabalhar no Brás. Parei de estudar. Eu tinha terminado, então, o ensino fundamental.
P/1 – Como foi essa experiência de trabalhar, você lembra dos primeiros dias? Como que era a dinâmica ali? Aprender um ofício, né? Tinham outras crianças, também?
R – Não. Eu entrei numa oficina que só tinham mulheres já mais maduras, né, não tinha criança e eu entrei para cortar a ponta das linhas, para terminar o serviço, cortava a ponta, dobrava, passava a ferro, dobrava e deixava pronta pra deixar na embalagem. Outra pessoa conferia o serviço e colocava na embalagem. Então, nessa oficina era tranquilo, eu gostava do trabalho, eu não tinha problema com eles, eu aprendia depressa, passou um tempo, eu comecei a pregar botões, tinha uma máquina que pregava botão, né, eu aprendi rapidinho a pregar botão, passou mais um tempinho, eu tava costurando, então fiquei nessa oficina acho que durante uns dois anos. Nós passávamos por muita dificuldade financeira, nessa época, menor de idade recebia meio salário mínimo, e ainda tinham os descontos, né, e era o meu salário… porque aí a minha mãe tinha muitas crises de falta de ar, então ela trabalhava um dia ou outro e eu trabalhava todos os dias. Sabe o quê que é o envelope de pagamento? Já ouviram falar? Não. Então, naquele tempo, a gente não tinha conta no banco, né, nada disso. Então, a gente recebia o salário dentro de um envelope, esse envelope vinha lacrado e fora vinha datilografado o quê que você tava recebendo e os descontos. Aquele envelope que eu recebia lá na empresa, ele vinha fechado pra mão da minha mãe, entregava para a minha mãe: “Mãe, tá aqui o meu salário”, era desse dinheiro que a gente comia durante muito tempo, durante acho que uns três anos, a gente comia desse dinheiro e morava de favor. Mas eu não era infeliz, não. Agora assim, a grande dificuldade para o trabalho era que a gente andava muito pra pegar um trem, eram 40 minutos de caminhada da minha casa até a estação para pegar o trem pra ir trabalhar e 40 minutos de caminhada para voltar do trabalho, descia do trem em São Miguel, no centro e andava 40 minutos, novamente, até em casa para poder chegar e descansar, né?
P/1 – Todos os dias?
R – Todos os dias.
P/1 – Final de semana?
R – Não. Não trabalhávamos no sábado e no domingo, né?
P/1 – Era uma empresa familiar? Muita gente? Pouca gente?
R – Não, era pouca gente, era coisa assim, de umas oito, dez pessoas na empresa, mas não era familiar, não. Então, aí nesse tempo, tinha um detalhe, eu nunca gostei muito de ficar chorando em cima do leite derramado, já derramou, vamos ver outro, né, eu nunca fui uma pessoa de ficar me lastimando, porque acho que não vale a pena, a gente tem que olhar para frente, tem que ter fé, tem que ter confiança, tem que também, buscar os nossos objetivos, né, porque senão, eles não vão chegar, né? Então, nessa época, eu passei alguns dias… passava alguns dias do mês, a gente não tinha marmita, não tinha nada pra por na marmita. Então, eu me lembro que eu ia trabalhar, e na hora do almoço, todos nós esquentávamos as nossas marmitas, sentávamos em volta de uma mesa grande e comíamos. Aí no dia em que eu não tinha marmita, eu falava: “meninas, olha hoje eu não vou comer com vocês, eu vou dar uma volta na cidade”, que eu trabalhava na rua Maria Marcolina, né, “Eu vou dar uma volta na cidade, vou comer um lanche”, aí eu saía, andava uma meia-hora e voltava. “E aí, Amélia, o quê que você comeu hoje?”. “Um cachorro quente”, eu, na verdade, não tinha comido nada, mas eu sou forte, porque a minha mãe me alimentou muito bem quando era bebê, sabe, me deu de mamar durante três anos e aí, eu passei muitos dias assim, eu não tinha o que comer na hora do almoço. Então, eu tomava um café de manhã, às cinco horas da manhã na minha casa e voltava, comia novamente, por volta das nove horas da noite, quando eu voltava para casa, outra vez. Mas as minhas colegas de trabalho nunca souberam disso. É coisa minha, né?
P/1 – Como foi mudando essa situação? Você disse que ficou dois anos… isso sem estudar…
R – Então, eu não sei exatamente o período que eu fiquei lá, eu sei que depois…
P/1 – Você já era quase adolescente, né?
R – Na adolescência. Depois, eu fiquei sabendo que balconista pagava melhor do que eu ganhava, eles pagavam um salário mínimo, mesmo se você fosse de menor, que a gente não falava menor de idade, falava “de menor”, aí falei: “Então, vou ser balconista” “Mas você sabe?” “Não, mas eu vou tentar. Eu não aprendi aqui? Vou aprender lá também”, aí passava na porta das lojas: “Precisa-se de balconista”, entrei: “Tá precisando de balconista?” “Tô. Você tem prática?” “Tenho” “Onde você trabalhou?” “Trabalhei muito tempo lá…” “Tem certeza? Tá bom, vem a amanha trabalhar aqui”, o rapaz falou pra mim. Voltei no emprego, pedi a conta: “Tô pedindo a conta pra trabalhar de balconista” “menina, mas vai dar certo?” “Vai. Claro que vai dar certo.”, tinha um senhor lá no emprego que era o rapaz que dobrava as camisas, ele falou: “Você é louca, aqui você tá garantida, todo mundo gosta de você”, eu falei: “Eu vou”, e fui. Aí, eu trabalhei dois dias, o cara me mandou embora, falou assim: “Você não sabe, não sabe trabalhar. O cara chegou ali e fez uma brincadeira com você”, naquele tempo tava lançando as calças jeans, né, porque antes da calça jeans, tinha aquela propaganda da calça de vinco, calca de homem masculina. Então: “Não amassa e não perde o vinco”, então era essa propaganda, então todo mundo queria ter aquela calça de tergal que não amassa e nem perde o vinco. Aí, veio a bendita da calça jeans e aí, tinham as imitações baratas, que eram assim, bem ruinzinhas, mesmo, né? E aí, tinha na porta da loja uma quantidade dessas calças mais chulas possível, né? E o rapaz chegou e falou assim pra mim: “Essa é daquela que não amassa e não perde o vinco?”. Eu fiquei olhando: Meu Des do céu, isso não vale nada, isso não presta, lavou uma vez e já era, e aí? O quê que eu falo pro moço? E o meu patrão viu isso, viu eu ficar perdida. Aí veio uma moça que era balconista, realmente, há muito tempo e falou assim: “Realmente, é isso mesmo”, fez uma brincadeira com o rapaz e ele me mandou embora, falou: “Você não sabe”, tá bom, saí de lá no fim do dia, isso, saí de lá no fim do dia, não falava nada nem para a minha mãe, ia em casa: ‘vou arrumar outro emprego de balconista, que agora eu já sei como é que é, agora eu já aprendi’. Aí no dia seguinte, fui de novo lá para a região, passei num lugar: “Precisa-se de balconista". Entrei: “Você tem prática?” “Tenho” “Onde você trabalhou?” eu dei o endereço daquela loja que eu tinha ficado dois dias, eu já tinha trabalhado dois dias lá, eu já sabia, né? Aí, ele falou: “Ah você trabalhou…”, falei: “Trabalhei” “Então, vamos fazer um teste” e lá eu fiquei durante mais de um ano. Lá nessa época, então, eu comecei a namorar, eu tinha 15 anos, aí eu comecei a namorar o meu marido, que eu já conhecia há muito tempo, que ele frequentava a igreja, tal e lá, nesse período que eu tava lá de balconista a gente começou a
namorar. Até então, morava eu, minha mãe e minha irmã no dito cujo lugarzinho. Assim que eu comecei a namorar, aí era um paraíso, ele ia me buscar na porta do trabalho e me levava até a porta de casa, mesmo que a gente andasse muito, porque ele também era pobre, né, mineirinho lá, pobrezinho que só, mas a gente andava muito, mas tinha companhia, né? Aí, assim que a gente começou a
namorar, minha mãe resolveu se casar de novo. Lá vou eu ter mais um padrasto, pensei com os meus botões, mas aí eu já tinha um namorado, minha irmã já era o meu apoio porque ela também não era filha dele, né, e com esse meu segundo padrasto, eu tive menos problemas, eu já tinha experiências em padrasto, então eu me tornava invisível, você é lutador, você sabe o que é isso, né, a gente dava um jeito de nunca estar por perto, sempre tava fora do momento que ele tivesse por ali, mas esse era um senhor que nunca bebeu, nunca fez nenhum tipo… não era uma pessoa que eu posso dizer assim que eu amava, que era querido, mas nunca tive grandes problemas com ele, até porque eu já era um pouquinho crescida, né, já tinha 15 anos quando a minha mãe se casou com ele e já tava um pouquinho mais cuidadosa, sabia mais ou menos me proteger, me defender, estava mais esperta.
P/1 – Você acompanhava isso? Você percebia quando a sua mãe estava começando a namorar com alguém? Você já ficava…
R – Eu tinha certeza.
P/1 – Você acompanhava, né?
R – Eu sabia. Quando a minha mãe começou a se interessar por esse senhor, ela me contava algumas coisas: “Olha, sabe assim, aconteceu, eu encontrei uma pessoa, ele tava me contando…”, e contava umas histórias… só foram esses dois maridos da minha mãe, né, que eu saiba, né, mas foi difícil.
P/1 – E no caso seu, esse namoro também era muito controlado?
R – Muito controlado. Hora de chegar, nem cinco minutos podia passar. Assim, nunca saí, assim, para passear com o namorado, nunca. Ele me buscava no trabalho, ele me levava pra casa. Olha, uma vez, para você ter ideia, foi tão engraçado, né, ele também era assim, bem simples. Ele é simples, ele é um homem muito estudado, pós-graduado, mas a simplicidade vem do coração, não é? E aí, uma vez, incomodada, lá em casa num fim de semana, acho que num domingo à tarde, falei: “Vamos dar uma volta na praça?”, ele vira pra minha mãe assim: “Dona Vitoria, mas vê se tem cabimento, a gente aqui, tranquilo, no conforto e essa menina quer passear na praça”, eu falei: “Mas que coisa, que namorado é esse, meu Deus do céu?”, era esse o namorado, com o qual eu namorei quatro anos e casei (risos). Muito controladinho, tudo assim.
P/1 – Ele trabalhava com o quê? Em loja também?
R – Não. Ele era representante comercial, na época. Tinha um salário melhorzinho um pouquinho que o meu (risos).
P/1 – Quatro anos depois, casaram?
R – Casamo-nos.
P/1 – Você era nova, ainda.
R – Eu casei, tinha 18 anos, ia fazer 19.
P/1 – E aí, como foi esse dia? Conte pra gente, como foi esse preparo pra chegar nisso?
R – No casamento? Foi assim, tudo muito natural, nada muito pomposo, eu costumo falar que eu sou uma pessoa que nunca me apaixonei por ninguém, eu amo meu marido, mas nunca tive paixão, porque eu acho que a paixão, ela nos prejudica, ela nos cega, então foi um namoro tranquilo, foi uma preparação para o casamento também tranquila, falamos: “Vamos casar no ano que vem? Tal época?” “Vamos”, aí próximo do casamento, ele ficou desempregado, “Mas e aí, a gente vai casar assim mesmo?” “Vamos sim”, aí alugamos uma casinha, compramos os móveis e fomos morar em dois cômodos, tranquilo, sem problema.
P/1 – Onde era? Como foi?
R – Então, nós morávamos em São Miguel e alugamos uma casa próxima da minha mãe, aí fomos morar perto da minha mãe. Então aí, eu continuei trabalhando, aliás, assim que eu me casei, parei de trabalhar, falei: “Não vou mais trabalhar, não, vou ficar em casa, cuidar da minha vida”, porque eu trabalhei a vida inteira, desde que eu sou criança, né? Eu não aguentei, três meses depois, eu já tava procurando serviço de novo. Aí fui trabalhar outra vez. Aí, que eu voltei a estudar. Diz o tal do Madureza que tinha na época, fiz rapidinho, em questão de meses, eu fazia aqueles exames da secretaria da educação estadual para o ensino fundamental, porque eu era bem esperta, bem ligeira com as coisas e eu aprendia rápido. Então, eu fui para a escola fazer o curso, aí no meio do curso, tiveram os exames, aí eu fiz todos os exames, fiquei só em Inglês e Química, não passei em Inglês e Química, mas falei: “No próximo, eu passo”. Aí no próximo, eu fui e passei em Inglês e Química, aí fui fazer Magistério, aí fui realizar o meu sonho que eu queria ser professora (risos). Mas esse sonho já tava enterrado há muito tempo, né, porque já fazia muitos anos que eu tinha saído de lá do Fundamental I, né, e era a minha instrução, só! Mas aí, eu fui. Entrei. Trabalhava durante o dia, estudava à noite. Na época em que eu fui fazer a minha primeira faculdade, eu já tinha as minhas crianças, já tinha três crianças quando fui fazer a primeira faculdade, numa época em que mulher não estudava, mulher não saía de casa e que mulher não dirigia, que os vizinhos cuidavam demais da vida dos outros e todos os dias, quando eu saía pra faculdade, tinha umas vizinhas no portão que me olhavam e falavam assim: “Já vai passear?”, e eu falava: “Já, já vou passear”. E eu esperava o meu marido chegar do trabalho pra ele ficar com as meninas. Eu tenho quatro meninas, na época, eu tinha só três. Aí, ele ficava com as meninas, tinha dia que ele não chegava, não chegava e não tinha telefone, não tinha celular, não tinha nada disso, né, então era telepatia: “Olha, tô saindo, você precisa chegar porque as meninas estão sozinhas”, aí as minhas meninas… eu ficava: “Olha, filha, mamãe precisa ir…”, porque durante o dia, elas ficavam na casa da minha mãe, minha mãe tomava conta delas pra eu trabalhar. Pra eu estudar, não, era luxo, por que que ela ia ficar com as minhas filhas, né? Então, eu deixava: “Filha, presta atenção, a mamãe vai deixar você, se a sua irmãzinha chorar, a mamadeira tá aqui…”, porque a minha mais velha, quando eu fui estudar, a minha mais velha tinha coisas de sete anos, por aí. Aí, meu marido chegava e assumia até eu chegar. Aí, de manhã, no dia seguinte, tem muita história aí, né? Porque aí, eu chegava da escola por volta de onze horas da noite, a faculdade era perto de casa, até então, porque eu morava em São Miguel, era a UNICSUL, eu sou da primeira turma de Artes da UNICSUL. E aí, quando eu chegava às 11 horas em casa, 11, 11 e pouquinho, lavava todas as fraldas que eu precisava lavar, pendurava dentro de casa, levantava às quatro da manhã pra passar, pra pegar todas as fraldas limpinhas, roupa limpinha, tudo bonitinho, botar numa bacia e levar para a casa da minha mãe, junto com as meninas de manhã cedo. Então, eu comecei a estudar nessa época que eu já tinha as meninas.
P/1 – Só uma pergunta, uma curiosidade, na verdade, porque você disse bem, né, era uma época em que as mulheres não estudavam, não dirigiam, não fumavam, enfim, e de repente, você fez isso. Qual foi a sua influência? Da onde que veio essa vontade de fazer? Ou é só da dona Malvina lá de trás? Da onde que… enfim, suas amigas? O quê que te deu esse pulo? Seu marido?
R – Eu acho que a necessidade minha era assim, eu olhava para as minhas filhas e todo casamento, no começo, tem rusgas e o meu tinha, também. Eu tinha alguns problemas que eu não sabia como lidar. Eu queria conversar com o meu marido sobre os problemas e ele nunca estava disposto a conversar, como ele até hoje não gosta de conversar sobre problemas – acho que é por isso que eu falo tanto, tem que falar fora de casa porque lá em casa, não pode – e aí, eu comecei a olhar para as minhas filhas e a olhar para mim e pensar: ‘meu Deus, o que as minhas filhas vão falar de mim no futuro? Que mãe é essa?’ e eu comecei a sentir necessidade de fazer alguma coisa. Mas eu sempre trabalhei, embora… mas eu ganhava pouco, também, aquele salário pequeno. Nessa época, eu tinha feito um concurso para a secretaria estadual de educação e tinha passado e tinha sido chamada. Então, eu tava trabalhando como inspetora de alunos. Eu ganhava um salário bem pequenininho, não chegava a um salário mínimo na época, era muito pouco. Depois, até veio uma lei que complementava esse salário, porque ninguém poderia ganhar menos que o mínimo e tava na Constituição de 88, mas enfim, eu não sabia disso e eu tava muito feliz que eu tava recebendo alguma coisa. E aí, nessa época que eu tive um pouquinho mais de tempo de pensar, né. Porque as coisas sempre foram muitos difíceis, tive aquele tempinho de pensar, porque antes disso, eu trabalhei muito tempo vendendo tempero na feira, coisinhas, miudezas na feira livre. Aí nesse tempo que eu tive esse tempinho de pensar, eu falei: “Eu vou estudar, porque se eu estudar, as coisas vão melhorar. Aí eu tive várias barreira, a primeira foi a minha mãe: “Pra que estudar? Tá criando as filhas, tem que criar as filhas…”, meu marido sempre foi neutro, ele nunca me disse: “Vai” e nem: “Fica”, tanto faz, mas ele me apoiava no que eu decidia, se eu decidisse: “Eu vou”, então tá bom, se eu falasse: “Não vou”, então tá bom. Então, isso era um ponto a meu favor, né? Aí, quando eu passei nesse concurso, eu falei: “poxa, eu sou inteligente. Nunca nem estudei, não sei nada e passei nesse concurso. Então, vou estudar mais um pouquinho”, porque até então, eu tinha o ensino fundamental, tinha terminado a oitava série, só, eu tinha feito lá no Madureza. Aí fui estudar no primeiro concurso que teve depois, eu estudei, eu fiquei três anos nesse cargo de inspetora, um pouquinho menos, dois anos e pouco, aí quando eu tava concluindo o meu curso de magistério, que tinha um concurso, eu entrei e passei. Falei: “Não é que eu sou inteligente? Eu vou para a faculdade, agora”, e fui indo, sabe? Aí, eu fiz Artes, inicialmente, e depois eu fiz Pedagogia e agora, eu tô fazendo Direito. Estudei errado, vou fazer Direito, agora.
P/1 – Voltando um pouquinho, né, casamento, daí você já foi tendo as filhas, parou um pouco? Como foi essa fase aí de dinheiro, relacionamento…?
R – O meu marido é uma pessoa assim, muito boa. Ele é conhecido na minha religião, lá, como pastor do amor, ele é pastor evangélico, pastor do amor. Mas ele é um pessoa satisfeita com a vida. Para ele tá tudo sempre bom e não é o meu caso, eu tô sempre querendo fazer alguma coisa para as coisas melhorarem, né? Então, essa fase inicial de casamento, para mim, foi muito difícil. Só que eu casei, depois de um ano e meio, eu tive a minha primeira filha e eu tinha colocado na minha cabeça, lá na minha infância que nunca minhas filhas teriam um padrasto, nenhum dos meus filhos teriam um padrasto. Então, eu falei: “Essa casamento tem que dar certo, nós vamos caminhar com ele e ele vai dar certo”, e aí, a gente foi, a gente conversava, aliás, a gente não conversava, era um monólogo, eu falava, né? Mas até que chegou um momento em que as coisas foram… um acostuma com o outro, né, um habitua-se ao jeito que o outro é e a gente vai aparando as coisas devagar, né? Por outro lado, assim, eu sempre… ele é um homem muito justo, respeitador, trabalhador, é um pai exemplar, então tudo isso pesava, né? Então, a gente vai continuando, vamos vivendo até quando for possível, sendo assim, estamos juntos há 40 e… 40 e muitos anos, 42 anos. Hoje estamos melhor do que já estivemos no passado, mas assim, financeiramente foi sempre que a coisa pegou mais, por quê? Porque quando nós tivemos a nossa primeira filha, nós morávamos ainda numa casa que a gente pagava aluguel. Aí nós começamos a construir e aí, nós construímos dois cômodos e não tinha muro, e as pessoas passavam por dentro do nossos quintal, olha, era uma coisa assim, bastante difícil e a gente foi aprimorando, a gente tem essa casa até hoje (risos).
P/1 – Vocês compraram o terreno, vocês construíram?
R – Nós compramos, nós construímos, eu construí literalmente, porque eu cavei lá os alicerces da casa com uma enxada, e ajudei a fazer massa para construir aquilo ali, então foi bem assim, mesmo, literalmente.
P/1 – Deve ter dado aquela apertada com o dinheiro por causa da construção…
R – Muito aperto na hora da construção. Eu me lembro que quando eu tinha, assim, as duas meninas, nós passamos por um momento, assim, extremamente apertado, meu marido ficou desempregado, foi quando eu comecei a trabalhar na feira. E na feira, a gente ganhava o básico para… porque era camelô, então era uma pouca coisa que se vendia, que tinha que repor o que vendeu, tinha que levar o pão pra casa e eu lembro que nós ficamos com umas contas de água e de luz atrasadas e toda hora que o caminhão da luz passava na rua, Eletropaulo, eu falava: “Meu Deus, não deixa cortar minha luz”, morria de vergonha, eu não queria que os meus vizinhos soubessem o que eu tava passando, eu não queria que o nosso nome ficasse, assim, exposto como mal pagadores. E assim, a gente passou por uma situação bem difícil mesmo, mas… tudo tem o “mas”, né? E tem sempre uma pessoa que mesmo não sabendo dos seus problemas, mesmo não conhecendo, Deus coloca ela ali e ela te apoia. Então, nós tínhamos… perto da minha casa, tinha um lugar que naquele tempo, a gente chamava de venda, é um tipo de mercadinho hoje, né, um mercadinho muito modesto, então era uma venda: “Vamos na venda”, e na venda, tinha um casal que cuidava da venda, que vendia as coisas ali também, hoje eu sei, tão pobres quanto eu, né, mas enfim e aí, a gente falava: “Meu Deus do céu, hoje não tem o que comer nessa casa”, quando eu tinha as duas meninas pequenas, foi
época mais difícil, era a Rodes e a Meire. Aí, eu fui lá um dia e falei: “olha, eu tô com um probleminha…” “Eu sei dona Amélia, tem muita gente passando dificuldades, o que a senhora precisar, a senhora pode levar” “Não é assim, eu não quero ficar devendo para vocês, eu quero que vocês me vendam meio quilo de arroz, de tarde quando eu voltar, eu pago”. E aí, ela me vendeu meio quilo de arroz. Aí, eu fui pra casa, fiz o arroz, comemos, no dia seguinte, eu fui para feira, ganhei o dinheirinho, voltei e paguei o arroz. Passavam dois, três dias, apressava de novo, eu ia lá: “Preciso que você me venda um litro de leite”, ela me vendia um litro de leite… então, eu comprei nela várias vezes meio quilo de arroz e meio litro de leite, não era um litro, era meio litro porque vendia meio litro naquele tempo, o litro era realmente de vidro e eles colocavam meio assim, né, meio litro. Me ajudou muito.
P/1 – E a sua família, nessa hora, a sua mãe estabilizada, a sua irmã? Ou precisando também de apoio?
R – A minha mãe tava bem, não tinha grandes problemas, não era uma vida muito confortável que o meu padrasto era uma pessoa bastante ignorante, do ponto de vista assim, de que ele era duro, ele era ríspido, entendeu? Mas não lhe faltava nada, não, mas eu não ia levar esses problemas para ela, jamais. Mas assim, não foi um período muito longo, passou e nós nunca passamos fome, graças a Deus, nunca precisamos passar necessidade, assim, fome, não. Foi só um tempo difícil.
P/1 – O quê que deu uma guinada?
R – Então, eu estudei, então eu terminei… nessa época, eu falei pra você, passei no concurso e aí, caiu a minha ficha: “Eu sou uma pessoa inteligente, então eu poso fazer alguma coisa. Vou estudar”, aí eu estudei, fiz Magistério, na primeira vez, entrei no concurso público para professor do estado, os professores me ouvem falar isso hoje, vão falar: “poxa, mas com a miséria que a gente ganha?”, não, mas era muito pra mim, era muito. E eu entrei então, no concurso depois de uns três anos, quando a minha filha mais velha tinha dez anos, eu entrei num concurso como professora e aí, eu entrei no paraíso. Primeiro, porque eu entrei para fazer uma coisa que eu sempre sonhei em fazer; segundo, que tinha só meio-período, eu tinha tempo pra ficar com as minhas filhas, embora, eu trabalhava muito longe de casa, muito distante de casa, mas eu tinha tempo pra ficar, porque nos primeiros anos, você não consegue chegar perto de casa, né? E aí, trabalhei esse período, fui trabalhar na educação e lá, eu fiquei durante 30 anos. Trabalhei como professora I, depois como professora II, depois passei num concurso da prefeitura de São Paulo, comecei a trabalhar como professora na prefeitura de São Paulo, depois passei num concurso de coordenador, fiquei só três anos na coordenação. Passei num outro concurso e encerrei a carreira como diretora de escola. Trabalhei como diretora de escola 17 anos.
P/1 – Conta um pouco, conta um causo, uma questão marcante nessa sua profissão como professora, primeiro.
R – Poxa, como professora tem muita coisa bacana. Eu sempre gostei de trabalhar com as séries iniciais, porque quando você pega um aluno que já tá caminhando, eu me formei em Artes, então, às vezes, você não percebe, não encontra uma aprendizagem que seja, realmente, importante quanto você trabalhar com os alunos do ensino fundamental II em diante. Então, eu gostava das séries iniciais, os primeiros anos, porque você ensina e aprende com eles e percebe claramente o desenvolvimento dessas crianças, sem contar o afeto que a gente pega, embora eu sou da opinião que professor não é pai, não é psicólogo, não é médico, é professor. Então, a gente precisa separar isso, é uma profissão, não é uma missão, né? E eu trabalhei muito tempo como professora, especialmente nas séries iniciais e eu contei pra você a respeito de algumas coisas emocionantes, uma dela foi o Maxwell, que foi um garoto de 14 anos que estava na terceira série e que tinha muita, mas muita vergonha de ir na escola levando o material, por quê? Porque era uma turma que estava à tarde e o fundamental II, onde ele deveria estar, ele já tinha 14 anos, deveria estar na sétima, oitava série, todos estudavam de manhã, o fundamental II estudava de manhã. Então, ele não queria ser visto chegando na escola à tarde, porque ele tinha muita vergonha. E essa classe foi uma classe que eu peguei, mais ou menos, em abril, era na prefeitura de São Paulo, uma escola chamada Elias Chamas e no começo do ano, eu fiquei sem turma e aí, fui designada para essa escola, fui lá, escolhi, tal… quando eu cheguei na escola, mais ou menos, meados do primeiro bimestre do ano, mas já havia passado nessa escola quatro professoras, eu era a quinta nessas turma, porque era uma turma que eles tinham selecionado todos os alunos difíceis e colocado naquela turma, porque se formava naquele tempo, classes homogêneas, se é que é possível isso. Então, os alunos melhores ficavam no A, os razoáveis no B e aí, chegava até o F, essa daí deveria ser já o H. E aí, quando eu cheguei, assim, entrei na sala, comecei a conversar com eles, aliás, eu entrei e eles não me deixaram falar, todos começaram a gritar, berrar: “Mais uma… tal”, tirando um barato assim, com a minha cara, como eles dizem: “Mas ela vai embora também”, não sei o que… e eu deixei eles falarem, falarem e cansaram. Aí eu comecei a falar, porque eu sempre falei calma, sempre fui tranquila para falar, e aí, eu comecei a falar com eles, que a gente tava ali, que a gente queria fazer uma coisa nova, que eu ia ficar, que não adiantava eles brigarem, eles me ofenderem, porque eu ia ficar. Primeiro, eu gostava deles; segundo, eu precisava do dinheiro que eu ganhava ali. Eu falei para eles que eu tinha filhas, que eu tinha que sustentar minhas filhas, na época, então já eram quatro. E conversei com eles e tal. E foi indo, muito bem. A classe acalmou, comecei a dar alguma atividade, passavam pela porta, passava outro, até que uma hora, entrou uma garotinha. Uma garotinha negra, bem maltrapilha, ela entrou, chegou assim: “Dá licença”, eu falei: “Você é dessa turma?” “Claro” “Então, pode entrar, pode sentar” “Você não vai me mandar para a diretoria?”
“Por quê?” “Porque eu tô atrasada”, falei: “Não, pode entrar e pode sentar”, ela entrou e começou a
tumultuar. Tumultuou, tumultuou. Passava o outro na porta, pra lá, pra cá… e nada de entrar, até que uma hora, ele decidiu: “Dá licença”, falei: “Pois não, o que você deseja?”, um garoto lindo, bem vestido, bem arrumado. Naquela época, usava umas camisas coloridas, todas cheia de flores, assim, tipo Hawaii, e ele tava naquela. “Pois não menino, o que você quer?” “Eu sou dessa classe, posso entrar?” “Pode” “Você não vai me mandar para diretoria?” “Por que que aqui todo mundo pergunta?” “Porque quando chega atrasado, vai pra diretoria”, eu falei: “Aqui, não. Comigo não. Chegou atrasado, vai entrar e vai sentar. Deixaram entrar no portão? Tudo bem pra mim”, aí eles entraram e tumultuaram e tal. Terminou essa tumultuação toda, ficou mais ou menos até a hora do recreio e eles assim… mas a classe, eu já tinha ganho a classe, o restante dos alunos estavam comigo. Então, eles começaram a falar para o menino, para a menina: “Fica quieto”, “Vamos lá gente, vamos colaborar”, e aí, outros ficavam só assim, tipo: nós combinamos de ficar quieto, então vamos ficar, né? E assim, a classe era conhecida na escola. As quatro professoras que tinham passado não tinham suportado, eles não tinham deixado. Então, quando foi na hora do intervalo, eu chamei os dois pra conversar. Eu falei: “Eu quero conversar com vocês”. Eu já havia percebido que a menina tinha alguma deficiência mental, mas assim, no taxei, não era da minha competência, chamei, conversei, aí logo ela pediu licença, falou que não queria ficar e foi embora e eu fiquei com ele e nós começamos a conversar e aí, eu perguntei para ele assim: “Por que o seu nariz tá tão vermelho?”, que ele achou que eu ia dar bronca, né, “Não, eu tô doente, isso aqui é doença”, depois fiquei sabendo que era câncer e por quê? Porque ele ficava o dia inteiro no sol soltando pipa. E aí, eu comecei a conversar com o Maxwell e ele não me dava oportunidade de chegar até ele, né, parecia que era uma rocha, batia e voltava. Mas no dia seguinte, ele veio novamente na hora do intervalo pra ficar comigo. Então, ele gostou da conversa, ele queria ficar e então, eu passei a não ir a sala dos professores, eu ficava com ele na sala na hora do intervalo, porque era o único momento que ele se aproximava de mim. E aí, nessas conversas, eu descobri que o Maxwell não sabia ler, ele não sabia escrever, por isso ele era tão arisco, né? E eu comecei a analisar a situação dele e da garota, que também não sabia ler e não sabia escrever, mas a garota fazia garatuja, então pra ela, ela já estava escrevendo, depois, encaminhei para um serviço médico e ela realmente, tinha problemas. O Maxwell não, o Maxwell, eu comecei a tratar com ele, comecei a conversar com ele e quando chegou num determinado ponto da situação, ele falou pra mim: “Eu não sei ler, eu não sei escrever e eu morro de vergonha de trazer caderno porque senão, os outros vão saber que eu tô no terceiro ano”, falei: “Ah, então a gente tem um jeito. Vamos fazer o seguinte, eu vou trazer caderno para você, lápis, deixo no armário e você não precisa levar e você também não precisa entrar na fila, você entra na escola a hora que você quiser, tá bom?” “Tá bom”. E o Maxwell ficou, ficou, ficou. Quando foi em outubro daquele ano, isso era por volta de abril, maio, em outubro daquele ano, o Maxwell escreveu para mim, escreveu um bilhete dizendo assim: “Professora, eu te amo – tudo junto – eu era a rosa e eu tava dormindo e você veio, me espinhou e eu acordei”, e ele entendeu isso como sendo um poema. Eu tenho guardado com muito carinho, porque pra mim, realmente, foi um poema. Garoto de 14 anos que não sabia ler, que não sabia escrever, que não tinha respeito por ninguém, que ninguém segurava ele dentro da escola, nem fora dela, ele entrava e saía por onde ele queria e de repente, ele diz pra mim que eu fui o espinho que espinhei ele e que fiz com que ele acordasse. E ele tava lendo, ele tava escrevendo e ele tava muito feliz e eu, muito mais. Então, olha, essas coisas assim; desse tipo de coisa, aconteceram algumas vezes e eu acho que não tem dinheiro que pague a alegria de um professor quando ele consegue um feito desse, porque é claro, não é só a técnica, não é só o conhecimento, é um pouquinho de tudo que eu vivi que ajuda a gente a (choro/emoção) entender esse sofrimento do outro, né, essa dor que ela não é aparente, não tá ali, mas você sabe que tem, porque a pessoa enfrenta, a pessoa luta com as armas que ele tem e ele não sabe que tá fazendo contra si mesmo, mas é o jeito que ele tá tentando esconder a sua deficiência, a sua dor e a sua angústia, porque Maxwell nada mais era do que uma criança abandonada, né? Que não tinha uma família que se preocupasse com ele, que amasse, que entendesse.
P/1 – E como foi mudar o outro lado da mesa? Pra coordenação e depois, direção? Porque é outro papel, né?
R – Outro papel.
P/1 – Como foi essa sua experiência?
R – Então, eu acho que professor, ele nunca pode esquecer que a profissão dele é professor. Quando você vai para coordenação, você tem que olhar os seus colegas de trabalho, seus companheiros com o olhar de professor, você não pode querer cobrar, porque o professor tem aqueles dias em que ele chega na escola querendo dar tudo de melhor que tem nele, mas tem o dia que ele não tem nada para oferecer. Eu acho que a coordenação e a direção não podem esquecer disso, que tem dia, que ele só tá ali, mas ele também tá um bagaço, ele também tá sofrido com as dores dele, da família, da casa, e com as dores dos alunos dele, também, que não respeitam, porque também têm as suas dores. Então, vêm jogar isso em cima da escola, não é? E a gente, às vezes, também não tem estrutura para suportar tudo que a vida nos impõe. Ninguém tem culpa disso. Então, estar do outro lado tem que ter esse olhar, de que eu sou professor, eu só estou exercendo uma outra função, mas a minha formação, o que tá me permitindo exercer essa outra função é o fato de eu ter sido professor. E eu acho que assim, eu fui feliz no meu trabalho como coordenadora, inclusive, fiquei pouco tempo na coordenação, acho que foram três anos, só. Depois, eu fiquei 17 anos na direção. E na direção, quando eu fui me aposentar, quando eu pedi a aposentadoria, uma das coisas que o meu supervisor que me atendia naquele momento falou, foi assim: “Você é uma das poucas diretoras que nunca respondeu um processo por assédio moral”, então eu acho que é porque eu gostava muito do que eu fazia, fazia o meu melhor, quando eu saí, eu saí assim, orgulhosa da minha escola, porque ela tinha recebido prêmio do governo federal pelo desenvolvimento do trabalho, sendo uma escola ainda nova, porque não tinha pichação nas paredes, porque a escola estava inteira e isso é porque a gente faz com que o aluno ame essa escola, goste desse lugar e isso não é mérito meu, é claro, mas eu acredito que tinha um grupo de professores ali que também tinham o mesmo interesse que eu, né, em que as coisas funcionassem, que as coisas dessem certo.
P/1 – Conta um desafio como diretora, alguma situação.
R – Uma situação… como diretora… a gente tem muitas situações, né, que de repente, são tão particulares, tão você e o professor, o outro profissional, então mas teve uma professora uma vez que ela chegou para mim e falou assim: “Eu não aguento mais. Eu estou aqui cuidando dessas crianças, fazendo papel de mãe, de psicólogo, de professor e os meus filhos estão em casa sozinhos, como pode uma coisa dessa? E ninguém me respeita”. Então, a gente olha para esse caso assim, e fica pensando: ‘meu Deus do céu, cadê a dignidade que essa pessoa emprestou a sua profissão? Porque ela veio falar que tá cuidando das outras crianças, que os filhos dela estão sozinhos, então como que tá a cabeça dessa pessoa? Então, eu chamei ela e falei: “Olha professora – chama Ester – você precisa tirar um afastamento, tira uma licença medica, vai ao médico. Isso que você me falou conta pro médico”, aí ela foi, saiu nervosa comigo naquele momento, brava. Aí ela foi ao médico, o médico deu um tempo pra ela de licença e aí, o médico constatou que ela estava com um alto novel de estresse e passou um tempo e ela veio falar pra mim: “Amélia, nunca na minha vida eu ia imaginar que eu estava doente, se você não tivesse me falado, eu nunca ia pensar, aliás, eu saí daqui falando que você era louca, que a louca era você”. Eu não falei pra ela que ela tava doente, ela que tomou pra ela essa situação. Então uma situação desse tipo é muito normal a gente encontrar. Esse é um caso que eu tô te contando. Tem vários.
P/1 – Mas tem uma parte administrativa, também, financeira, dessa parte da direção que não é do professor, né?
R – Não é.
P/1 – Como que você lidou com isso, por exemplo?
R – Em que sentido você diz?
P/1 – Aprendeu na marra?
R – Quando eu assumi a direção, foi assim, como todos os concursos, eu não tinha me preparado para assumir a direção, eu tinha uma diretora, dona Rosana, que era uma pessoa maravilhosa, uma excelente diretora e aí, ela falou pra mim: “Amélia, tá aberto concurso pra diretor, vamos fazer?”, eu falei: “Não, Rosana, eu tô muito ocupada”, na época, eu tinha dois cargos, eu trabalhava no estado e na prefeitura, ela falou: “Não, vamos fazer”, eu falei: “não, Rosana”, ela: “não paga nada porque você é da rede, então não paga nada, é concurso de acesso”, falei: “Tá bom, então faz”, e a Rosana fez e eu fiquei no centésimo lugar, era número 100. Então eu fui chamada na primeira chamada e então, eu caí lá de paraquedas, não sabia nada! Não sabia o que fazer, não tinha noção administrativa, não tinha noção de nada. Comprei um bando de livros, eu lembro que eu fui lá na Saraiva, aquela época, a gente tinha um cartãozinho que a gente comprava com desconto. Eu fui na Saraiva, tudo que era livro sobre administração, pessoa, pá, pá, pá, pá… comprei muito livro. Naquela época, inclusive, um dos primeiros que eu li foi “O Monge e o Executivo”, né? Li vários livros e fui me achando e eu fui para uma escola muito difícil, inicialmente. Eu acredito que Deus nos coloca nos lugares certos na hora certa com a pessoa certa ou com a pessoa errada, que seja. E essa escola tinha ficado vários anos sem diretor titular, então ficava um três meses, seis meses, outo meses, tal, então era uma escola que tava ao Deus dará. Quando a gente chegava na porta da diretoria e falava assim: “Olha, eu venho de tal escola” “Aí, meu Deus!”, as pessoas falavam, né? Aí, quando eu assumi a escola, na primeira semana que eu assumi, eu falei para a supervisora: “Eu vou embora daqui, eu vou apresentar um projeto na secretaria de educação porque isso aqui é um hospício, eu não vou ficar aqui, porque isso é coisa de louco, vou apresentar um projeto e sair fora”, porque eu só podia sair para uma função acima da minha, hierarquicamente falando. Aí, eu falei pra você da minha fé, que eu acredito em Deus, muito em Deus e eu não acredito em um Deus que treme parede, que derruba coisa, que isso não faz efeito nenhum, mas um Deus que trata com a gente. E naquela semana, eu fui pra igreja e falei: “Senhor, eu preciso da tua orientação, Deus, e agora?”, e aí, a pessoa falou assim: “Ester foi uma grande rainha, mas ela era uma judia que não era ninguém na época e ela ficou com medo na hora que falaram para ela que ela tinha que defender os judeus porque eles iam ser massacrados. E um tio dela que a havia criado, falou para ela: ‘Quem sabe se não foi para esse momento da história do povo judeu que Deus te colocou nesse lugar’”, e eu tomei pra mim: quem sabe não foi para esse momento da história daquela escola que Deus me colocou lá. Vou chegar lá com um olhar diferente, vou mudar isso, vou ficar lá. Só vou sair de lá… tinha uma lista – fazendo um parênteses aqui – tinha uma lista na diretoria do ensino, na época, a prefeitura municipal tinha 547 escolas e tinha uma lista das 77 piores escolas. Adivinha onde nos estávamos? Lá nessa lista. Nunca me disseram qual era a nossa classificação, ali dentro dos 77, mas nós estávamos entre as piores escolas de São Paulo, as 77 piores, então, a gente tinha vários cursos de formação, então também, isso foi bom, porque eu não sabia nada, fui aprender, né? Quer dizer, não sabia nada, eu tinha um diploma de Pedagogia, enfim, fui para esses cursos, tal e falei: “Essa escola vai ser boa”, e quando essa mensagem veio pro meu coração, porque não adianta vim para cabeça, tem que vir para o coração, eu falei: “Vou ficar lá, só vou sair de lá quando a nossa escola estiver entre as melhores e isso será em cinco anos”, determinei, né, e fui para a escola. Naquele dia, eu cheguei lá diferente, eu cheguei lá seis horas da manhã, porque os funcionários que deveriam chegar às seis nunca chegavam, tinha dia, para você ter uma ideia que a escola não era aberta no horário de aula porque não tinha ninguém para abrir a escola, que era às sete. Aí eu cheguei lá às seis, não chegou ninguém., seis e quarenta chegou a primeira: “Nossa, a senhora já tá aqui?”, falei: “Já, qual é o seu horário mesmo?” “Seis”, dia seguinte, eu cheguei às seis, aí chegaram umas duas ou três às seis e meia: “Você já tá aqui?” “Já tô aqui”, passou mais um pouquinho. Dia seguinte, seis horas eu tava lá, seis horas, elas chegaram comigo. Eu não precisei falar nada. Todo mundo começou a chegar no horário, sabiam que eu chegava e a partir daí, eu olhei naquele dia que eu tomei a decisão de ficar depois de umas duas semanas que eu já tava louca pra ir embora, eu andei pela escola inteira, olhei todos os lugares, pedi as chaves de onde estava fechado, abri, sentei e esquematizei o que essa escola precisava. As portas das salas de aula estavam todas deitadas no chão, tudo quebrado, vídeo não tinha, lâmpada também não. Para você ter uma ideia, isso faz 15 anos, 16 anos e a gente tinha um pedaço da escola que era de madeira, era uma das ultimas escolas que tinha de madeira, né? E aí, nós começamos a trabalhar, chamamos para nós, os problemas, juntamos com os assistentes, que naquela época, eles eram escolhidos pelo conselho de escola, que o conselho de escola era muito poderoso, porque ninguém queria trabalhar e aí, foi assim, para você ter uma ideia, chegou uma moça para mim no ano seguinte e falou assim: “Eu vou pedir remoção”, falei: “Por quê?”, ela falou: “Porque eu não concordo com o seu jeito de trabalhar e eu já vi que você não vai embora”, eu falei: “Não vou”. Então, ela foi embora e ela tá bem, porque ela não concordava com o meu jeito e eu sei que quando foi depois de quatro anos, a minha escola ganhou o primeiro prêmio do MEC como uma escola, porque o MEC não olha se tá quebrado, se tá arrebentado, eles não têm condições, mas o resultado é a aprendizagem. Então, naquele ano, nós ganhamos o prêmio porque a nossa escola melhorou muito o nível de aprendizagem do aluno, mas a aprendizagem tem tudo a ver com o ambiente agradável, com o clima bom, com uma interação entre os profissionais que se respeitem, que gostem do que estão fazendo.
P/1 – Você conseguiu montar uma equipe?
R – Consegui.
P/1 – E manter ela na escola?
R – Mantive ela na escola durante muito tempo.
P/1 – E o entorno? Como era o entorno da escola? A participação dentro da comunidade?
R – O entorno da escola era cheio de bocas de fumo. Ele não era, ele é ainda, cheio de bocas de fumo. Muito difícil. Para você ter ideia, uma vez, eu recebi um dos proprietários de uma boca, que ele foi lá porque naquele ano estava distribuindo leite, nas primeiras vezes que estavam entregando leite e ele foi lá e falou pra mim: ‘Fulano, fulano e fulano você não vai entregar o leite porque eles me devem”, olha a ousadia do sujeito! E aí, tive que ter muito jogo de cintura para conversar com ele, para explicar para ele que eu no podia entrar nisso, que não tinha nada a ver comigo, que o leite iria ser entregue sim, para a criança, que o que a criança ia fazer com o leite a partir dali, eu não sabia, mas o leite ia ser entregue. Então, é terrível aí o entorno, bem difícil.
P/1 – Chegavam na reunião de pais… queriam bater no professor? Tinha essas coisas?
R – Com certeza! Algumas vezes, eu precisei fazer reunião de pai junto com determinada professora para ela não ser agredida. Muito difícil.
P/1 – Daí, se aposentou na rede?
R – Me aposentei no ano passado.
P/1 – O ano passado? E o Direito veio a partir disso? Da onde veio essa ideia?
R – Então, quando eu pensei na ideia de me aposentar, eu falei: “Eu vou me aposentar e não vou aguentar ficar sem fazer nada, quero fazer alguma coisa, o que será?”, e aí, eu acho que algumas coisas na vida não deram muito certo por falta de conhecimento das leis, das coisas que acontecem. Falei: “Quem sabe ainda posso aprender, mesmo que não seja para o meu uso, mas beneficiar uma outra pessoa, né, o que custa? E eu vou me aposentar e não vou aguentar ficar parada, então vou estudar”, aí fui e fiz três anos, mas fiquei meio adoentada, porque era puxado, eram oito horas de escola e escola você só tem hora para entrar, não tem hora para sair. A escola é de responsabilidade do diretor 24 horas por dia, inclusive sábado, domingo, feriado e qualquer coisa que acontecer, o vigia liga, daí eu fiquei um pouquinho adoecida, né e aí, eu parei e retomei agora, depois que eu me aposentei. Tô lá.
P/1 – Você falou que foi fazer para repensar algumas coisas que talvez você tivesse tomado outra… enfim…
R – Exatamente.
P/1 – Por exemplo?
R – Por exemplo, até mesmo na questão do conhecimento hoje com advento da internet, com o advento de algumas leis que meio que forçam todos a prestarem as informações aos demais melhorou muito, mas em alguns anos atrás, você não tinha noção, não tinha clareza de informação, não tinha… e hoje ainda acontece isso, é que nós vivemos numa grande capital, então a gente pensa que todas as pessoas têm acesso à internet. Por exemplo, o hospital do servidor público, municipal, eles dizem assim: “Olha, você precisa ser atendida por essa especialidade, nós ligaremos para a sua casa, dois números, um número fixo, um número qualquer coisa, você entra no site”. O que significa isso para uma pessoa da minha idade, por exemplo, que não tem nenhum conhecimento? Nada. Ele nunca mais vai ser atendido. Então, ainda hoje, o conhecimento ainda… a internet, a informação, não é nem o conhecimento, é a informação, ela ainda não é universal; aqui no Brasil, eu não sei se em outros lugares é, porque eu só conheço o Brasil, mas tem muitos lugares que a informação não chega, não é? E eu acho que a falta de informação, por exemplo, na administração da escola, você precisa acompanhar o cara que faz o serviço de encanamento, você precisa acompanhar os processos de valores, dinheiro que é encaminhado para escola, você precisa preparar esse processo, encaminhar, né? Como? Você não tem esse conhecimento. Então você vai naquilo que o técnico tá te informando, você não conhece. Então, muitos diretores e muitas pessoas na administração respondem a processos porque faltou conhecimento na hora dele redigir, na hora dele dar informação, na hora dele agir, faltou informação. Eu acho que o Direito dá pra gente essa base desse conhecimento que eu acho que me fez falta, sim, em muitos momentos.
P/1 – Uma pergunta se junta a isso, então. Agora que você tá aposentada, assim, a sua relação com a religiosidade, você foi muito atuante em alguns momentos, né, outros…
R – Sou atuante.
P/1 – E você vai aplicar o Direito, é isso mais ou menos?
R – Então…
P/1 – O quê que você tem feito, hoje? Qual que tem sido a sua atuação?
R – Olha, eu frequento uma igreja, não é uma igreja muito grande e ali, eu trabalho com jovens, com os adolescentes, eu aconselho, eu trabalho com mulheres, a minha denominação… é uma igreja grande que fica em todo Brasil, Igreja Evangélica Congregacional. Ela tem o sistema de federação e confederação, então, eu sou presidente da federação de mulheres do estado de São Paulo. Então, eu atuo nessa área, no que é possível… É claro, a minha fé acima de tudo, né, creio em um Deus todo poderoso, que não deixa nenhuma folha cair da arvore se não for da permissão dele, não é, não importa o tamanho do universo, ele é maior, então eu creio nesse Deus que criou todas as coisas. E assim, eu tento ser útil para as pessoas naquilo que é possível, até mesmo na questão de orientação, eu acho que a minha formação ajuda nisso, o fato de ter atuado tanto tempo como professora e eu até costumo dizer que eu não fui professora eu sou professora, né, porque é uma coisa que tá comigo e eu oriento, ajudo, nesse sentido. Fora disso, acho que não tem uma atuação muito…
P/1 – Só pra entender, durante a sua vida profissional como diretora, professora, você continuou sendo atuante na igreja? Sempre acompanhou?
R – Sempre.
P/1 – Nos momentos de…
R – Não importa, com dinheiro, sem dinheiro, muito trabalho, sem trabalho, no importa…
P/1 – E sempre nessa religião?
R – Sempre na Igreja Evangélica Congregacional. Já atuei em várias igrejas diferentes, estive na Vila Jacuí, estive no Jardim Nazaré, no Jardim dos Ipês, estive em Poá, junto com o meu marido, claro, ele é o líder. Trabalhamos muito com música, eu, né, trabalhei sempre com música e com grupos de adoração, sempre atuante na igreja, independente da minha situação e dos meus perrengues, né, porque nos nossos perrengues, a gente sabe que quando a gente não aguenta mais, Deus traz o socorro, mostra para a pessoa, coloca a pessoa no lugar certo, né, para nos dar o apoio que a gente precisa, creio nisso.
P/1 – Você já ouviu um chamado?
R – A minha fé é uma fé muito prática e objetiva, sabe? Então, eu acho que eu nunca ouvi, assim, um chamado não, mas está escrito lá na Bíblia: “Amar Deus sob todas as coisas e ame o teu próximo como a ti mesmo”, esses são os dois maiores mandamentos que podem existir. Então, quando eu me dedico a Deus fazendo o melhor que eu posso, eu também preciso me dedicar ao meu próximo e buscar entender, buscar fazer dele um ser humano melhor, se isso estiver ao meu alcance. Então, um chamado assim: “Oooooo…”, nunca ouvi não (risos), mas eu creio que Ele me chamou porque isso tá escrito lá na Bíblia, a Bíblia para mim, é uma regra de fé e prática, nos dois sentidos, tanto na prática no sentido de praticar, como na prática do sentido de ser algo prático, algo objetivo, algo simples e sem muito… não precisa de mandingas.
P/1 – Outra curiosidade, e as suas raízes no Piauí? Você foi atrás alguma vez?
R – Olha, isso daí é outra história (risos). Não tá cansado ainda não?
P/1 – Não.
R – Falei pra você que nós viemos embora. Eu e a minha mãe?
P/1 – Sim.
R – Viemos embora.
P/1 – Só com uma mala.
R – Só com uma mala de papelão. Aqui, eu estudei, passei por todas essas coisas, sempre senti Deus sempre me protegendo em todos os momentos, sempre senti Deus muito próximo de mim, casei, tive quatro filhas maravilhosas, minhas filhas… olha, minha profissão acabou interferindo tanto, né, que eu tenho quatro filhas professoras (risos). Então, cada uma numa área diferente e algumas fizeram pós-graduação e tudo. E aí, quando foi mais ou menos 14 anos atrás, minha mãe morreu. Quando a minha mãe morreu, eu fiquei muito desesperada, eu fiquei uns dias, assim, que eu parecia mais velha do que eu sou hoje. Eu fiquei abatidíssima, muito… porque a minha mãe sempre foi muito importante pra mim, minha mãe era uma pessoa rude, difícil, mas ela me amava acima de tudo e tudo que ela fez assim de bom ou de ruim que me atingiu de uma maneira positiva ou negativa, eu sei que era baseado nesse amor que ela tinha por mim. E aí, ela faleceu. Antes dela morrer, eu falava pra ela algumas vezes: “Mãe, eu gostaria muito de conhecer o meu pai” “De jeito nenhum, porque ele não vale nada, porque ele te abandonou, porque ele deveria ter ido te buscar e ele nunca foi”, então ela falava muito mal dele pra mim, ele não prestava na fala dela. E eu sentia que ela ficava, realmente, irritada quando eu falava nele. Mas quando eu fiz 18 anos, ela começou a se corresponder com a família dela, mas não com o meu pai, com o meu pai, nunca, jamais. Aí quando ela faleceu, fiquei um ano assim, muito acabada, muito sofrimento, muito difícil, mas ela faleceu com 74 anos, ela teve um ataque do coração e morreu. Aí passando aquele período do luto, da dor, eu falei: “Eu vou ver o meu pai”, ainda uma das minhas filhas: “Mas a vó nunca quis que a senhora fosse, mãe, e a senhora vai”, eu falei: “Eu sempre respeitei a vontade dela, obedeci ela viva. Agora, ela se foi. Eu vou”, mas sabe de um detalhe? Eu não sabia o nome dele, eu só sabia que ele chamava Aderli e que morava numa cidade próxima a Bom Jesus, nem era em Bom Jesus. Aí, tirei umas férias, comprei uma passagem e quando eu comprei a passagem, o meu marido teve um problema de saúde, ele também é professor, né, e ai, ele teve tendinite, ficou bem ruim na época. Aí quando eu comprei a passagem, ele foi ao médico, o médico deu 20 dias para ele, falei: “Então, vai comigo”, fomos eu e ele. Pegamos um avião, descemos em Teresina, em Teresina, pegamos um ônibus, viajamos acho que mais seis horas, chegamos em Bom Jesus. Quando nós chegamos em Bom Jesus, descemos sem saber para que lado íamos, né, descemos, aí tinha um taxista, perguntei para o taxista e aí, o taxista falou assim: “Vocês querem ir para um hotel? Para onde vocês vão?”, que parecíamos estranhos, né, todo mundo ali sabia que você não era dali. Aí, nós falamos pra ele assim: “A gente tá pensando” “não pensa muito porque só tem esse taxi na cidade e se você ficar pensando muito, eu poso ir embora e você fica sem taxi”, eu falei: “Ah não, então espera ai”, pra começar era Curió o nome do homem. Curió falou assim: “Tem dois hotéis na cidade, para onde você quer ir? Tem o melhorzinho… não, deixa, eu vou levar vocês para o melhorzinho”. Levou a
gente para um hotel e no meio do caminho, falando com o Curió, era pertinho, não era longe, não, coisa de dez minutos. “O que quê vocês vieram fazer aqui? Vocês não são daqui” “não, não somos” “O quê que vocês vieram fazer?” “Eu vim procurar uma pessoa que chama Aderli, você conhece? Já ouviu falar?” “Claro! Aderli tem dois aqui na região. Tem um que bebe bastante, chama Aderli Conceição, ele bebe muito e ele deve ter uns 37, 40 anos”, eu falei: “Não é esse, é o outro” “Ih, esse outro então, não é fácil de chegar até ele” “por quê?” “Porque a família dele é toda politica, são todos políticos aqui da cidade e eles têm umas reservas pra gente chegar, mas tem uma pessoa aqui que é sobrinha dele que eu tenho algum contato, vou falar com ela”, aí a gente abriu a situação para o Curió: “O Aderli é meu pai” “Nada! Imagina!” “É, ele é meu pai”, aí ele falava assim: “Então, eu vou falar com essa moça que ela é sua prima. Vou lá, vou tentar localizá-la, vamos ver se eu consigo falar com ela”, porque o nordeste ainda é muito preconceituoso, pobre e rico são duas categorias distintas, embora a gente saiba que um precisa tanto do outro quanto o outro precisa do outro, né, se precisam mutuamente. Aí, o Curió falou… isso já era fim de tarde: “Então, amanhã cedo eu venho pegar vocês para levar até lá”, aí Curió foi, não sei o quê que ele fez, no dia seguinte, ele tava lá, umas dez horas da manhã para nos pegar. Nos levou para essa outra casa, eu falei: ‘Você foi lá e conversou com a moça?”, ele falou: “Não deu, porque eu não consegui ser recebido”. E fomos. Aí, fui eu, o meu marido e o Curió. Batemos lá na porta, uma casa grande lá no fundo e um terreno bem vasto aqui na frente, mas um muro alto, que não é natural de lá, da cidade, só gente rica que tem esse muro lá. Lá, a maioria das casas não tem nem muro. Aí, aquela pessoa… tinha uma mulher lá, aí a mulher veio andando, quando a mulher veio na nossa direção, ela falou: “Virgem Maria, é Maria Amélia”, eu falei: “É, sou Maria Amélia”, e aí, já me abraçou, já me levou pra dentro, já conversando: “Tia, a senhora não sabe como o meu titio procura pela senhora, ele procura muito e tal…”, ela me chamava de tia, mas na verdade, ela era minha prima, ela é filha de um irmão do meu pai. “Mas o titio procura demais a senhora, mas ele já rodou o mundo procurando a senhora, pediu informação pra tudo quanto é… mas ninguém dá” “Mas como você sabia que era eu?”. “Porque a senhora é muito parecida com a minha tia Maria Helena”, e aí, eu vim a descobrir que eu tenho 22 irmãos, que todas as meninas dessa família se chamam Maria, não sou só eu. E aí, nós conversamos um pouquinho, ela falou: “O titio está em Brasília, que um dos filhos dele, o Marcelo acabou de se formar e ele foi para a formatura. Então, ele não está aqui, mas ele chega amanhã”. Aí passou um pouquinho, tocou o telefone: “Titio chegou, titio tá ai” “Ah é? Onde?”, ele tava numa cidade próxima, uma cidade chamada Palmas, eu tem lá, aí ela falou: “Então agora eu vou avisar ele que você tá aqui, mas eu vou primeiro, chamar o outro tio, porque se não, o meu tio morre”, que era o meu pai. Aí, falou com o outro tio que eu estava lá e que eu queria ver o meu pai, esse meu tio combinou… combinamos, né, enfim… no dia seguinte, Curió nos levou de novo até essa cidade de Palmas e lá estavam todos os vereadores da cidade, todas as pessoas influentes da cidade ou não, a cidade inteira estava lá me esperando quando eu cheguei, inclusive o meu pai. Aí foi que eu conheci. Ele é um homem loirinho, minha mãe, eu já falei pra você era mulata, né, ela não era mulata porque tinha o cabelo bem liso, que parecia mais do índio, mas ela era escura e o meu pai é clarinho, tem o olhinho verde, assim como o meu e um senhorzinho de 70 e poucos anos na época, né, com um filhinho de dois anos (risos), que era o meu 22º irmão. A partir daí, aí o meu pai me recebeu muito bem. Eu fui meio com o pé atrás, porque então, eu já tinha tido algum conhecimento de que eu tinha por parte dos meus parentes da minha mãe, que eu tinha alguns irmãos e eu fiquei preocupada: de repente, esses meus irmãos vão imaginar que eu estou indo lá em busca de alguns dos bens do meu pai e não é isso, eu quero ver o meu pai, saber que, ele é, conhecer minha raiz. E aí, o meu pai me recebeu muito bem, mataram um rezes, lá, mataram um monte de coisa lá e fizeram um almoço gostoso, mas eu já tava com o pé na estrada que eu tinha um pouquinho de medo, tava um pouquinho preocupada com essa recepção. E aí, no dia seguinte, eu fui me embora, eu não cheguei nem ir na casa do meu pai. Conheci nesse dia, três dos meus irmãos, os menores e fui embora e depois, a gente teve outros contatos, né, parte desses meus irmãos moram em Brasília, tem alguns que moram na Bahia que eu ainda não conheço, mas esses meus irmãos que moram em Brasília, um deles, inclusive, trabalha, é advogado, o Marcelo é advogado, trabalhou na procuradoria geral da republica, né, e de vez em quando, meu pai vai até Brasília fazer um exame, alguma coisa assim. Então, eu já fui a Brasília depois disso, algumas vezes, encontra-lo. Então, os meus irmãos lá de Brasília me ligam: “Amélia, pai tá aqui”, aí eu vou até lá e a gente se encontra e tem sido assim, o nosso contato.
P/1 – Botando o pão em dia?
R – É. É muito antigo, né?
P/1 – Nossa, e essa ressignificação do seu pai pra você, assim? Como que tá sendo isso? Que era uma coisa, né, escondida e era para ser negada, né, e agora…
R – Quando o meu pai contou o lado dele da história, porque o meu pai disse que nunca ele mandou a minha mãe embora, nunca eles brigaram, nunca tiveram problema nenhum. O que ele disse para a minha mãe foi: “Se você for embora para ter o bebê – que seria eu, no caso – lá na casa da sua família, você vai precisar voltar sozinha, porque eu não vou te buscar”, e ela falou: “E se você não for me buscar, eu não volto”, e aí, ele nunca foi buscar ela e ela nunca voltou, entende? Agora assim, eu não tenho com o meu pai uma relação de afeto, de companheirismo, impossível realizar a essa altura, mas eu sou muito bem recebida pelos meus irmãos, por todos eles, Maria Helena, Marcelo, Maria Eduarda…
P/1 – Você foi a sensação…
R – Quando eu vou lá, é impressionante, quando eu vou lá, todos eles se juntam na casa onde eu estiver, todos! Fazem, praticamente, uma festa. Todos! E aí, um saindo, outro chegando, tenho primos, tios por parte de pai, muita gente que eu não conhecia e que quando eu estou em Brasília, eles vão muito lá para poder me conhecer. Agora, os que já me conhecem, vão me ver novamente, é assim a nossa relação. Eu tô pretendendo ir ver o meu pai agora em janeiro. Agora eu tô pretendendo ir no Piauí, novamente, para vê-lo.
P/1 – Ganhou uma nova família agora?
R – Ganhei uma nova família. E eles, assim, o jeito como eles me receberam foi impressionante, porque eu nunca imaginei. E eu sou a filha mais velha da família. Para você ter uma ideia, na última vez que eu estive com o meu pai, o meu pai, ele é um homem muito forte, saudável, apesar da idade e ele caiu de uma moto, bateu a cabeça e ficou com uma dor de cabeça. Aí o meu irmão levou ele para fazer uns exames, né, e aí, os meus irmãos todos que estão em Brasília, que são mais ou menos, uns 12, 15 lá em Brasília, se reuniram e falaram: ‘não vamos mais deixar o papai voltar para o Piauí, porque o papai não tem condições, ele tem idade, tal, tal, tal”, e eu estava lá no dia e naquela reunião, me chamaram: “Amélia, o quê que você acha?”, falei: “Olha, na minha opinião, se o papai não voltar, ele morre, se ele voltar, ele também pode morrer porque eu também posso morrer, qualquer um de nós pode morrer. Agora, tirar um homem de mais de 80 anos, 90 – ele vai fazer 90 agora – do seu ambiente, do ambiente que ele ama, das caatingas do Piauí, que ele corre solto ali, que ele monta a cavalo, que ele cuida de gado, da terra dele, do lugar dele, que ele viveu lá durante toda a vida pra trazer ele pra cá? Ele não sabe dormir na cama, ele dorme em rede”. O meu irmão, o apartamento chiquérrimo que ele tem lá, botou um gancho de um lado e outro gancho do outro pra poder pôr a rede dentro do apartamento para ele não ter que dormir na cama, ele não consegue dormir na cama. “Vocês vão trazer esse homem pra cá? Brasília, um lugar de clima ruim, de um abafamento insuportável e que não tem mais espaço. Papai não vai se dar bem, não, não vai ser bom”, e ele lá longe, deitadinho numa rede que tinham colocado pra ele. Aí passou um tempo, os meninos lá se reuniram novamente: “É, a Amélia tá certa. Se a Amélia falou, ela é a mais velha, ela sabe”, eu: “Oi?”, olha aí eu podendo dar algumas sugestões. E aí, quando a gente foi embora, meu pai muito discreto, na dele, não ouviu nada, não viu nada. Na hora de embora, duas pessoas aqui e eu pra entrar aqui no carro, ele falou: “Não, Jacó vai na frente eu vou atrás com você”, aí ele sentou aqui: “Filha, obrigada” “Do que, pai?” (risos) “Porque filha, se você não falasse que não era para eles me prenderem aqui, eles iam querer me prender aqui, mas eles não iam conseguir me prender porque eu ia embora de qualquer jeito, eu não preciso do dinheiro deles pra ir embora e nem da autorização e eu sei sair de lá da casa de qualquer um deles e conseguir alguém que me leve para o aeroporto. Então, muito obrigada, filha, muito obrigada. Foi a sua palavra que salvou a família de ter uma confusão”, coisa linda, né? Então, eu tinha que encontra-los para que essas coisas acontecessem, para a gente viver essas coisas assim, interessantes.
P/1 – Amélia, eu vou começar a encaminhar para um fechamento da nossa conversa…
R – Eu acho que eu falo demais…
P/1 – Tá ótimo! Uma ótima narradora. Bom, a gente já tá numa outra fase, né? Agora, você tá numa fase avó?
R – Estou.
P/1 – E como foi? Muda ser avó?
R – Eu tenho uma filha que ela diz uma coisa interessante ao meu respeito, aliás cada um lá tem uma teoria ao meu respeito, eu não sei se isso é normal, mas enfim… eu reúno a minha família uma vez por mês na minha casa, todos que quiserem e puderem vir, inclusive a minha irmã querida que é filha da minha mãe. E os filhos dela e os genros e noras, vão todos. E essa minha filha, ela fala que eu tenho um amor prático, minha filha Meire. Eu não sou assim, de ficar muito… não, não, eu sou assim de no sentido que se precisou de mim, pode contar, eu tô aqui, em todos os sentidos, meu tempo, do que eu possuir de bens, eu tô ali. Então quando eu tive a minha primeira netinha, a Tais, que agora tem 20 anos, está fazendo Letras, uma garota muito bonita e quando a Tais nasceu, a minha preocupação era assim, era orientar a minha filha sobre os cuidados básicos, mas nunca fiquei assim, de paparicar e tal. Mas todos os meus netos, aparentemente, me amam, porque eu falo para eles que independente deles me amarem ou não, eu amo eles, amo muito, muito mesmo. Faço o que tiver ao meu alcance para o bem-estar deles, mas o meu amor, inclusive, eu costumo dizer que é um amor incondicional, não veio na minha casa, não tem problema, eu vou na sua. Eu que tô sentindo falta de você, então eu vou na sua casa. E eu achei muito interessante que outro dia uma netinha minha que tem nove anos, a Yasmim falou isso pra mim: “Vó, a senhora nunca deixa de visitar as suas filhas, né?”, eu achei tão lindo, falei: “É, por quê?” “Porque quando a minha mãe não vai na sua casa, você vem aqui” ‘Exatamente” e eu também não cobro, não: “Venha me ver…”, não, eu vou. Então, a minha relação com os meus netos é uma relação boa, nós somos bastante companheiros. Tem uns que são mais próximos que contam as suas coisas pra mim, né, que tem mais vontade de ouvir as broncas. Tem outros que são mais reservados, não contam muito para não ouvir as broncas, mas…
P/1 – Tem uns que te compõem música…
R – Olha que coisa linda! Uma compôs uma música para mim, a Leticia. A Leticia compôs uma música dizendo que aquela Amélia era a mulher de verdade, mas que essa Amélia que é, olha! É bem legal a música que ela compôs.
P/1 – Fantástico! Fala uma coisa, hoje assim, quais são os seus sonhos?
R – Meus sonhos hoje são mais amplos. Eu me preocupo de ver como nosso país tem caminhado, porque os meus sonhos, eles são sonhos para a posteridade, eu acredito que Deus foi maravilhoso comigo, de uma menina pobre, filha de uma família que não tinha nenhum conhecimento (choro/emoção), ignorante, de um sertão do Piauí, um lugar esquecido por Deus, porque o Piauí ainda é o estado mais pobre da federação e Deus me amparou, me protegeu, me ajudou a me estudar, a me formar e a casar e ter um marido abençoado, que me ama, que gosta… que a gente se entende e ter uma família bela como a família que eu tenho e ter os amigos maravilhosos que se preocupam comigo, até na hora que eu tô passando a hora de comer, os meus amigos na escola sempre chegavam: “Olha, Amélia, você esqueceu de comer, olha aqui uma comidinha pra você” “Amélia por favor, dá uma paradinha, descansa um pouquinho que você tá com o aspecto de cansada”, isso os meus amigos faziam por mim, né? E os amigos que eu ainda encontro muito que continuam se preocupando comigo, mandando mensagens maravilhosas para mim. Como eu recebi hoje mesmo a mensagem da Edite dizendo que eu sou amida que sempre vai ficar no coração dela, que ela amarrou no coração. É tudo, né? Então, eu acho que Deus me deu muita coisa boa, agora, eu tenho sonhos. Eu quero me formar, eu quero a carteirinha da OAB (risos), quero passar, esse é o meu sonho particular e assim, eu sonho com um lugar em que a gente possa viver em que os meus netos, que os meus filhos que as pessoas que vêm agora depois de mim, encontrem um lugar melhor para se viver e não um lugar pior. E isso é uma coisa um pouco, assim, lacônica, né, porque a gente não vê a coisa caminhando para que seja melhor. Eu me preocupo um pouco assim, principalmente com a quantidade de jovens e adolescentes sem rumo, sem norte, sem direção. Isso é muito triste, porque o que será dos nossos filhos ou daqueles que têm alguém que direciona, que orienta, vivendo no meio dessa orbita de pessoas que estão perdidas, que estão desorientadas. Os pais perderam o prumo com os seus filhos, as famílias se desestruturam. Então, eu tenho o sonho de que a nossa politica mude um pouco, que nós tenhamos governantes que se preocupem com as pessoas, com o povo. Eu acho que não adianta dar bolsa de estudo para quem não quer estudar, então, precisa despertar nessa moçada, nesses jovens, nesses adolescentes o desejo, a vontade e o motivo, tem que ter motivação, eles não têm. Tanto é que a gente observa que tantas coisas belas que nos tivemos na época da ditadura em termos de arte? Por quê? Porque as pessoas tinham uma motivação, eles queriam passar a mensagem deles, mas tinha algo que os impediam então, eles tinham que ser criativos para passar a mensagem. Como é rico, musicalmente, o período da ditadura, né? Por conta disso e que não precisa vir uma ditadura para isso, não tô defendendo a ditadura, longe de mim, não é isso. Eu estou defendendo que nossos jovens, adolescentes, crianças sejam motivados, que tenham o interesse em aprender, em se tornar uma pessoa de bem e que a gente não precise respeitar mais o dono do morro, o dono da boca de fumo, sabe? Eu acho que isso é o meu sonho.
P/1 – Você citando a ditadura, você estava com quantos anos nesse período?
R – Na ditadura, eu tava com… foi entre os anos 60, eu tinha entre 14 anos e 20 e poucos anos.
P/1 – Você acompanhou esse? Como era o seu olhar?
R – Acompanhei…
P/1 – Desse momento politico, perseguição, de censura? Você sentia isso?
R – Não, não senti. Nessa época, a juventude mais esclarecida, aqueles que estavam dentro das universidades, aqueles que tinham acesso à cultura, eles tinham esse conhecimento. O pessoal que estava mais distante, não percebia, não notava. A gente via assim um movimento, sentia que tinha algo errado, você via… então, você ficava pensando: ‘puxa vida, mas quem tá certo?’, a gente não tinha clareza desses acontecimentos, eu, pelo menos. E acredito que os jovens… porque nessa época, inclusive, eu vivia com um grupo de jovens muito grande, eu falei pra você que eu sempre participei de uma igreja e na igreja onde eu vivia nessa época, era um grupo grande de jovens, um grupo de pessoas que nos reuníamos, que… mas a gente não tinha muita clareza do que estava acontecendo, na época.
P/1 – Mas vocês discutiam isso?
R – Discutíamos, por exemplo, o que a gente sabia na época, o que a gente discutia: “Puxa vida, o jornal hoje publicou uma receita, poxa, então teve um problema porque o jornal… que o editor… aliás, que a policia – para nós era policia – não permitiu que fosse publicado o conteúdo, o que será?”, então gerava aquela curiosidade: “O que será que o escritor fez e não foi publicado?”, então, tinha essas questões que a gente via, mas não era muito claro para nós, na época, não. Para mim, se tornou mais claro depois que passou a época, quando veio por exemplo, a anistia. Então, a gente ouvia gritarem: “Anistia ampla, geral e restrita”, e o quê que é anistia? Então, para os jovens da minha convivência, a gente precisou ir lá perguntar o que era a anistia. E por que ampla, geral e restrita? Então, a gente até conhecia os outros termos, mas a anistia não, então nós precisamos… eu me lembro, nós fomos juntos, assim, um grupinho: “O quê que significa isso?”, aí alguém um pouco mais esclarecido: “Tal…” “Ah!”. Então, a gente foi… tanto que na época, os meios de comunicação vendia a ideia de que todos aqueles que estavam sendo deportados, eles eram bandidos, eles eram vagabundos, eles eram pessoas perniciosas ao bom andamento das coisas no Brasil, era essa ideia que se vendia.
P/1 – Você nessa época, já estava estudando, né, a questão de artes, etc.?
R – Não.
P/1 – Foi depois, né?
R – Foi depois que eu fui estudar.
P/1 – Que aí, teve um outro contato, né?
R – Exatamente.
P/1 – E aí, você era influenciada, por exemplo, pelos festivais? Você assistia isso?
R – Assistia muitos. Uma coisa interessante, né, na época, tinha a Jovem Guarda e a Jovem Guarda era… o Roberto Carlos sempre foi uma pessoa que ficou em cima do muro, pode-se dizer, ele nunca defendeu a causa, mas ele também nunca… então, tanto é que tosos os grandes artistas da época tiveram problemas com a ditadura e ele, não. Então, o programa dele bombava e aí, se falava numa questão outras vezes, assim, no meio de uma conversa numa sala, na minha casa não tinha TV, então a gente via a Jovem Guarda uma vez ou outra na casa de uns amigos, né, como eu disse para você, eu era muito presa, não tinha essa liberdade de estar saindo assim, né, e eu não era presa porque a minha mãe me obrigava, mas eu entendia que era melhor pra mim. Então, quando a gente assistia, alguém falava assim: “Vamos pôr em tal canal porque lá vai dar uma dica do que tá acontecendo, porque dava umas pinceladas, assim, de leve, que era, por exemplo, o Ronnie Von que era um pouco mais envolvido com o grupo, né? E aí, o Ronnie Von tinha um programinha num outro canal, mas que não fazia tanto sucesso, né, era mais assim. Mas assim, a gente não tinha muita clareza, realmente, do que tava acontecendo, não. Inclusive as músicas, você ouvia música, por exemplo, na época, tinha uma música Dom & Ravel, já ouviu falar desses caras? Era uma dupla que eles fizeram uma música que dizia assim, que falava do sol, do nascer do sol, uma coisa bem alienada, mesmo e depois num pedacinho, no finalzinho, ele dizia assim, a respeito da escritura que naquele tempo tinha o MOBRAL no Brasil, né, Movimento Brasileiro de Alfabetização. Então, tinha uma musiquinha [cantando]: “Você também é responsável, então me ensina a escrever”, e eles cantavam isso e ficava assim, uma coisa meio estranha, porque você ficava ouvindo falar da faculdade que fechou, do curso que fechou, disso e daquilo, então ficava meio estranho, sabe? Mas não dava pra gente ter clareza, pelo menos o pessoal do meu nível, né, do meu meio.
P/1 – E não tinha medo de policia, amigos que sumiram, essas coisas?
R – A gente teve alguns amigos presos, mas eles foram presos porque eles não tinham carteira profissional assinada, como pode, né? Hoje, tudo que a pessoa quer é ter uma carteira assinada, naquele tempo… eles foram presos, ficaram pouquinho tempo ali porque a ditadura se preocupava com quem tinha cultura. A preocupação dos ditadores era com quem tinha capacidade de promover algum tipo de defesa do país em relação a ditadura. A ditadura não se preocupava com aqueles que não tinham conhecimento, que não detinham poder financeiro, econômico, não. Nossos amigos que oram presos foi assim, presos…
P/1 – Outro tipo de perseguição, né?
R – Outro tipo de perseguição. Até porque eu acredito que assim que a polícia prendia, verificava que era um João ninguém, né, então não interessa.
P/1 – E na faculdade se Artes, por exemplo, essas questões, experiências, novidades plásticas…
R – Quando eu fui fazer a faculdade já tinha terminado a época da ditadura. Eu fui fazer acho que uns dois, três anos depois e ainda se falava pouco na ditadura, não se falava assim, muito da… o povo ainda tinha um certo receio, né, ficava assim, meio… mas na faculdade, sim, a gente já discutia bastante sobre a ditadura, fizemos muitos grupos de estudo, trabalhamos muitos textos literários na época para fazer a compreensão desses textos, né? Me lembro muito que a gente fez da música do Roberto Carlos, mesmo, embora eu tenha acabado de dizer que eu achava ele em cima do muro, mas ele escreveu “Por baixo dos caracóis dos seus cabelos”, para fazer uma referência a Caetano Veloso. As músicas do Chico Buarque como “Cálice”,
“Carolina”, que Carolina é uma música linda que fala que o tempo passou na janela e só a Carolina não viu, né, então nós estudamos essas coisas, estudamos alguns textos também bastante interessantes da época, né, inclusive foi aí que a gente ouviu falar de Vladimir Herzog, como ele tinha morrido, de fato, porque até então, a impressa nossa era que ele tinha se suicidado, era isso que a mídia tinha passado, depois que começou essa abertura foi quando eu comecei a entender um pouco melhor isso.
P/1 – E assim, essas discussões politicas, você levou pra casa, por exemplo? Será que durante a escola, ser politizada, isso é uma coisa que entrou na sua vida?
R – Entra na casa da gente, eu acho que todo conhecimento que você adquire acaba entrando um pouquinho em casa. E eu acho uma coisa interessante que minha mãe, eu falei pra você que ela era analfabeta, bastante rude, mas como ela tinha clareza das coisas que aconteciam no mundo, então quando a gente falava pra ela nos nossos termos lá de universitário, das coisas, ela falava: “É mesmo, porque…”, e aí, ela tinha uma posição a respeito daquilo e de como ela viu acontecer. Então, por isso que eu valorizo tanto a experiência, acho que a experiência é uma coisa boa ou não, né, porque a experiência, às vezes, também nos impede de caminhar, porque a gente fala: “Não vai dar certo”. Quem não tem experiência, vai, porque não sabe que não vai dar certo.
P/1 – Tem mais alguma história que eu não perguntei, algum tema, alguma questão que eu não perguntei e que você gostaria de contar, falar?
R – Eu acho que eu falei muito, já, não é não? (risos)
P/1 – Então, Jonas, por favor.
P/2 – Queria perguntar se você teve algum sonho dormindo, assim, que marcou na sua vida? Sabe, quando você dorme?
R – Sonho dormindo?
P/2 – É.
R – Eu tive sim. Tive alguns sonhos que perturbam a gente, parece que é verdade, que tá mesmo acontecendo. Um deles foi em relação a minha mãe. Uma vez, fazia assim, uns quatro, cinco anos que ela tinha morrido e eu ficava me culpando: “Por que eu deixei de fazer isso? Por que eu deixei de fazer aquilo? Por que eu não fui atenciosa em determinado momento?”, no dia em que ela morreu nós tínhamos uma consulta médica para três dias depois. Então, achei que se eu tivesse levado ela antes naquela consulta, né, porque ela teve um ataque do miocárdio e nós íamos justamente no cardiologista três dias depois, estava marcado. Mas ela tava bem e tal. Então, eu ficava muito angustiada, às vezes, eu me pegava pensando que eu poderia ter mudado alguma coisa, que ela não precisava ter morrido naquele dia. E eu sonhei, eu dormi, tive aquele sonho assim… aí, nesse sonho, a minha mãe gostava muito de espaços abertos, tanto é que nas casas que ela construiu, que ela morou depois, ela sempre fazia um alpendre, tinha sempre um espaço aberto e a minha casa hoje tem também. E aí, eu sonhei que eu estava no alpendre, o lugar era assim, aberto, tinha um tanque de lavar roupa e eu estava lavando roupa e aí, eu lavava roupa junto com a min ha mãe e a gente conversava e tinha uma jardineira que é aquela for que dá umas flores roxas ou rosa ou branca, tem várias cores diferentes, né, ela derrama os cachos de flores, assim, pelos muros, pelos jardins e tinha uma jardineira naquele lugar assim, ali era muito bonita aquela jardineira e era um lugar onde eu nunca estive, a gente estava… tinha um tanque de lar roupa e a gente tava ali e eu conversava com ela e depois, ela virava pra mim e falava assim: “Não se preocupa comigo, eu tô bem”, e eu acordei assim, muito assustada, falei: “Meu Deus do céu”. Aí, a gente fica pensando que são as nossas preocupações mesmo que nos levam a ter os sonhos, né, ou Deus tá querendo tranquilizar o nosso coração, fala: “não se preocupa, não, porque…”, até porque tem um momento só que a gente pode fazer alguma coisa na vida, o momento que a gente pode fazer é o agora, hoje, presente. E por isso que chama presente, né? Esse momento. Ontem, não posso fazer nada, amanhã, eu também não posso fazer nada. O que eu posso fazer é hoje. Então, esses pensamentos, essa forma de enxergar a vida que a gente vai absorvendo, a gente vai amadurecendo, tranquiliza também os nossos corações em relação a essas coisas.
P/1 – Jonas, mais alguma questão? Leticia, alguma pergunta? Maria Amélia, então gostaria em nome do Museu da Pessoa, agradecer pela entrevista, muito obrigado. Eu queria saber se você gostou de contar a sua história.
R – Eu quero agradecer o Danilo, eu não me lembro o nome do jovem…
P/1 – Jonas.
R – Jonas e o?
P/1 – Gabriel.
R – Gabriel, Leticia por essa oportunidade rica de falar um pouquinho das origens da gente, de como nós vivemos, de como era o mundo há alguns anos atrás, vocês podem observar que é bem diferente, né, e inclusive uma coisa que eu dei numa entrevista recentemente sobre o trabalho escolar, que quando eu cheguei em São Paulo, a coisa que eu achei mais absurda é as pessoas comerem pão com manteiga, eu fiquei com muito nojo daquilo, aquela gordura que passava no pão, falei: “Gente, o quê que e isso?”, porque no meu lugar da onde eu vim, a gente comia beiju que aqui, chamam de tapioca e lá a gente chamava de beiju. E beiju a gente comia com carne, né, então o desjejum lá é um almoço, é esse beiju com carne, queijo, muito leite e o pão já era uma coisa estranha, aquilo oco, aquilo sem sabor, aquilo sem nada. Manteiga, então, pelo amor de Deus! E margarina é pior ainda, né? Então, só mundos diferentes, são pedaços do Brasil que só Guimarães Rosa e outros aí para descrever tão bem. Então foi um prazer estar aqui com vocês, eu não sabia desse lugar, é uma instituição?
P/1 – Isso.
R – Então, não sabia desse espaço e foi um prazer muito grande. Eu devo isso a Leticia, que me inscreveu e falou: “olha vó, eu inscrevi você para contar a sua história no Museu da Pessoa” “menina e o quê que é isso?” “É dia primeiro tal hora” “Tá bom, então vamos. O que será que essa menina tá me criando?”. Foi um prazer, sim, muito grande. Eu espero ter construído positivamente com alguma coisa, com toda essa minha história. E tem muitas histórias de outras pessoas dentro dessas histórias e isso que é legal. Às vezes, a gente nem sabe, nem imagina, né, um momento que de repente, eu estou muito bem e aí, acontece alguma coisa, a gente fala uma palavra para uma pessoa, diz alguma coisa que ajuda ela a crescer e aí, passa um tempo, você se perde daquela pessoa. Um dia, você encontra novamente e ela fala: “Olha Amélia, aquilo que você me falou tal dia salvou a minha vida, aí a gente pensa: “obrigada, não sou tão inútil assim, sou pequena mas sirvo em algum momento para aliviar a dor de alguém, para aliviar um sofrimento, para dar um rumo, apresentar um caminho”. Então, eu espero que essa história sirva, sim, pra gente crer que dias melhores virão. Às vezes, a gente olha e não enxerga, mas vamos acreditar e vamos trabalhar por isso, né?
P/1 – Obrigada, Amélia.
R – Obrigada, eu.
P/1 – Em nome do Museu da Pessoa, muito obrigado pela entrevista.
R – Obrigada eu.
FINAL DA ENTREVISTARecolher