Entrevista de Lenice Silva Viegas
Entrevistado: Paula Ribeiro / Isabel Barbosa
26/07/2021
Realização: Museu da Pessoa
Projeto: Mulheres da Maré Dignidade Resiliência e Arte
Entrevista MDRA_HV002
00:01:08
P/1 - Boa tarde Lenice, muito obrigada por ter aceitado prontamente o convite para participar do nosso projeto, e contribuir com o seu depoimento, história de vida e narrativas para o nosso trabalho. Obrigada meninas pela parceria. Obrigada Isabel, pesquisadora também do projeto. Bom, no início.... Vamos começar do comecinho? Queria seu nome completo, local e data de nascimento, por favor?
R - Lenice Silva Viegas aqui do Parque União Rio de Janeiro, 20/12/1994
00:01:43
P/1 - Você conhece a história do seu nome?
R - Conheço, conheço o significado na verdade, significa flor imaculada.
P/1 - Sabe por que a mãe deu esse nome, ela gostava?
R - Na verdade, meu pai que escolheu, ele diz que era o nome de uma jornalista da época, que ele achou bonito e que ele colocou, mas cada um conta uma história de vez em quando, mas eu acredito muito nessa.
00:02:08
P/1 - Você tem apelido?
R - Tenho, quando eu era mais nova tinha o apelido de Leleca e até hoje me chamam de Lelê, para as crianças tia Ninice.
00:02:17
P/1 - E quem te chamava?
R - Uma amiga muito próxima quando eu era criança e agora quem me chama normalmente são os meus amigos próximos, meu esposo, minha irmã que me chama muito de Lelê hoje, é o mais presente.
00:02:30
P/1 - Sobre a sua irmã, o nome dela, data de nascimento, é mais velha, como é que é?
R - Mais velha, 10 anos mais velha que eu, somos só duas. Minha mãe só teve duas, esperou um bom tempo para ter eu de volta, e o nome dela é Jeane Viegas Silva, acho que eu acertei o nome da minha irmã, dia 12/03/1984 que ela nasceu.
00:02:53
P/1 - Nome completo da mãe, do pai, origem, se você conhece um pouquinho por favor?
R - Testando memórias. Não sei a origem do nome da minha mãe, nem do meu pai, mas o nome da minha mãe todo é Damiana Silva Viegas, e o do meu pai Janor Viegas Figueiredo.
00:03:09
P/1 - Como é que é a grafia do Janor?
R - É JA N O R.
00:03:15
P/1 - E eles nasceram onde?
R - Minha mãe nasceu aqui no Rio de Janeiro, e o meu pai era baiano, então a parte da família do pai é toda da Bahia, bem acarajé, bem de Caravelas, Ilhéus, Alcobaça.
00:03:31
P/1 - Dos avós, você conheceu seus avós?
R - Não conheci nenhum dos meus 2 avôs, eu conheço só as minhas duas avós, minha avó por parte de pai se chama Maria, é da Bahia, ela mora lá, inclusive faz alguns anos que eu não a vejo só pelo celular, é alguém que eu sou muito apegada porque é avó que eu tenho mais proximidade. Minha avó por parte de mãe era Romilda, e ela faleceu quando eu tinha 5 anos de idade, então não tive muito contato, lembranças que eu tenho são de fotos, ela morreu de AVC depois de 3 que ela teve, ela teve três infartos e aí morreu com o AVC logo depois, o máximo contato que eu tenho com a minha avó e dos meus avôs são histórias. Na parte da minha mãe não histórias muito boas, mas da parte da minha avó algumas histórias de que ele era pescador e é o que eu sei de memória deles
00:04:16
P/1 -E sobre família da mãe, você pode contar essas histórias.
R - É uma história longa, mas da parte da minha mãe ela é a irmã mais velha eu acho que de 8 irmãos, ela foi nascida e criada aqui no Rio de Janeiro se eu não me engano, pelo que eu me lembro, e ela sempre ajudou muito a minha avó dentro de casa. Minha mãe ela não terminou o Ensino Fundamental porque ela parou de estudar muito nova para catar lixo na rua para ajudar minha avó a criar os irmãos. Meu avô agredia muito a minha mãe, agredia muito a minha avó, então isso era uma situação muito ruim dentro de casa e minha mãe na verdade ela nem gosta de comentar sobre isso, minha mãe é muito sensível a esses pontos, a gente que vai arrancando um pouquinho outro, para entender a história dela, né...mas o meu avô ele agredia muito a minha avó e principalmente porque os meus tios fugiam às vezes para ir pra baile funk, para outras coisas, então isso gerava outras situações, mas a minha mãe ajudou meu avô a criar os meus irmãos, ela se parece muito com a minha avó, minha mãe se parece muito, a gente vê a minha mãe, a gente vê a minha avó e trouxe uma lembrança muito grande. Minha mãe mesmo depois que casou com o meu pai, ela ainda teve alguns conflitos com os irmãos dela, conflitos esses que geraram pouco distanciamento meu e da minha irmã dos meus tios, e a gente tem até um laço de respeito porque eu prezo muito pelo respeito, né? Por quem está na minha família, mas considero parentes por causa de situações muito ruins que eu acabei presenciando desde criança. Tenho cenas muito fortes de maus tratos com a minha mãe e que isso não me faz bem como filha, e que eu acho que são falta de respeito muito grande. Então hoje tudo que eu posso fazer para manter uma vida melhor, para minha mãe ter memórias melhores do que ela já teve, eu tento fazer no que eu posso.
00:06:11
P/1 - Bacana. Super filha, viu? Quantos irmãos a sua mãe teve?
R - Vivos, porque alguns morreram logo no parto, né? Eu não sei se pelo tempo muito antigo, os partos eram mais difíceis, mas a minha mãe por exemplo ela é irmã gêmea, mas o irmão dela morreu no nascimento, mas hoje somos, ela tem...deixa eu contar, A Dete, Nilzélia, Deco, Edelson, Nilson, Sônia, que é a irmã que faleceu também agora mais velha, acho que são 7 irmãos, 8 com ela pela minha contagem é isso, se eu esqueci de algum tio, passou despercebido.
00:06:54
P/1 - Você sabe dizer quando eles chegaram aqui na Maré?
R - Não, não sei dizer até onde eu sei eles tão aqui desde sempre. A minha mãe comenta que ela veio, ela morou, casou com meu pai, foi morar em Queimados e meus pais são separados hoje, mas assim que eles casarem eles moraram em Queimados com a minha irmã pequena, e vieram para cá com a minha irmã ainda criança, e ela conta muito da Maré como era, tinha aquelas partes de madeiras, casas de madeiras construídas, eu inclusive moro hoje com meu esposo, com a casa que era dela, ela agora está morando com a minha irmã e quando ela está lá no beco ela fala, “isso daqui era tudo água, Isso daqui era tudo Maré, a gente passava por cima de madeira”, porque até pouco tempo a casa enchia muito ainda de água, né? Então quando a gente, sempre que está passando pelo beco ela lembra essa história, “isso daqui foi tudo construído pela minha mãe, esse beco essas casas aqui era tudo do seu avô”, depois eles foram vendendo, ela vai contando as histórias dela, então eu acredito que eles vieram pra cá muito novos e a minha mãe ela só saiu depois que casou com meu pai e depois voltou para cá para Maré.
00:07:58
P/1 - Quando ela voltou você sabe?
R - Não sei. Gente vocês não tem noção, minha mãe é muito fechada, ela é muito fechada com as histórias, não sei se por muitas lembranças machucarem ela, ela não comenta, ela não gosta de comentar, ela fala que águas passadas são passadas, então a gente não precisa lembrar, a gente tem que viver daqui para frente.
00:08:19
P/1 - É uma filosofia de vida. De quem sofreu muito, né? É uma estratégia.
R - É uma estratégia, eu acho que esse é o ponto, ela usa essa estratégia para continuar vivendo leve.
00:08:30
P/1 - A gente vai voltar um pouquinho dá sobre origem na Maré, mas em relação a religiosidade, qual era a religião? Os avós tinham, a sua avó tinha uma religião, sua mãe, você mantém essa religião, como é que era isso na sua casa? Na casa materna, né? Se a gente pode dizer, antes de você constituir sua casa com seu esposo?
R - Eu cresci na igreja desde que me entendo por gente, minha mãe já era convertida, minha mãe ela era do candomblé, depois ela se converteu no cristianismo e hoje ela faz parte da igreja, quando eu nasci ela já me apresentou na Igreja Evangélica Batista aqui do Parque União, e eu cresci dentro de berço evangélico e hoje eu não tenho frequentado mais tanto a igreja, mesmo depois da pandemia agora que está retornando os cultos também tenho ido aos poucos, assim muito raramente, mas sempre fui muito presente dentro da igreja.
00:09:20
P/1 - E de que forma essa religiosidade você acha que impacta, forma você como indivíduo?
R - Eu acho que me formou muitos pensamentos meus e eu não digo que a religião controla a nossa vida, mas ela querendo ou não forma alguns pensamentos de vida na gente, né? Existe uma diferença muito grande, eu acho que vai de pessoa por pessoa, de caráter para caráter, isso independente da religião. Então crescer na igreja me deu alguns valores e princípios de vida que eu uso hoje como pessoa, como mulher, como cristã, como um ser vivente mesmo. Eu acredito que me ajudou muito com muitas questões até dentro da favela para não me envolver com bandido, para não me envolver com drogas, para saber que eu tinha um futuro melhor, eu acho que o que eu aprendi dentro da igreja me deu uma maturidade de pensamento para olhar um pouco para fora. Eu acho que eu posso dizer assim.
00:10:20
P/1 - Em relação a cura, etnicidade, raça, como você se vê, como é a origem da sua família?
R - Minha família é negra, acho que só a minha avó por parte de mãe...não, por parte de pai que é branca de olho claro. Tirando isso veio só os pretinhos mais lindos da vida na família, por muito tempo eu tive muita confusão do que eu poderia me considerar, já que na minha certidão tô parda né? E aí começa com aquilo: “você é muito clarinha para ser negra, mas você também é muito escura para ser branca”. Então o quê que a gente é? A gente é um pedaço de papel pardo! E por muito tempo eu não sabia o que me considerar então falava parda. Hoje eu me considero preta, talvez pela história da maquiagem que me fez estudar os diferentes tons e tonalidades de pele que existem, inclusive nas tonalidades de pele negra, então eu me considero hoje preta, me considero negra e sou um tom bonitinho de base.
P/1 - Com certeza, é linda!
00:11:19
P/1 - Sobre ele, então um pouco sobre essa origem sua que você falou, se você me permite voltar um pouquinho sobre a inserção da sua mãe no candomblé. Você conhece um pouco essa história e tinha terreiros aqui, sua mãe frequentava a família?
R - Então é uma história que minha mãe nunca se aprofundou tanto na história, ela fala que só conhece muito a fundo esse mundo, ela sempre falou isso para mim e para minha irmã, minha mãe nunca detalhou para gente, nunca, ela nunca detalhou. Ela fala, “eu já conheço muito fundo esse mundo, porque eu já fiz parte dessa ideia”, e é isso que eu sei. Realmente eu não sei mais parte disso porque ela não fala, ela não detalha e fica no superficial, é inclusive uma coisa curiosa porque é minha mãe, faz parte de mim, mas pouco eu sei dessa história, pouco eu sei, eu fui estudar mais sobre o candomblé quando entrei na UFRJ, que a gente acaba estudando um pouco sobre as origens e foi quando eu tive mais a fundo, mas agora da participação da minha mãe não.
00:12:18
P/1 - Movimento em casa. Alguma vestimenta, acendimento de velas, por exemplo. alguma manifestação religiosa?
R - Não conheço. Ela nunca falou. Nunca falou mesmo.
00:12:33
P/1 - Então vamos conversar um pouquinho das suas memórias da sua infância. Exatamente que rua você morava, quem morava em casa, você consegue recuperar um pouquinho como eram os ambientes, como é que é?
R - Acho que estar na casa hoje que eu cresci me ajuda a lembrar um pouco, mas eu moro ainda na rua São Sebastião aqui do Parque União, número 36, fundos, por isso que eu gravei o CEP, sempre morou eu, meu pai, minha irmã e a minha mãe, somos duas irmãs, sempre com a diferença muito grande de idade. Eram dois quartos, bem próximos um do outro, não tinha porta, então a gente tinha uma ligação muito forte com o quarto de casal dos meus pais e com a gente que dormia eu e minha irmã no quarto onde tinha duas camas, e de vez em quando as camas viravam beliches para gente dormir uma em cima da outra. Quando a minha irmã estava com raiva de mim, ela pediu para descer a cama para poder ficar do lado, coisa de irmã mais velha, na sala era construído com uma mesinha no canto muito apertadinha, um sofá e a tevê que ficava bem de frente para o sofá e eu tenho lembranças muito fortes de meu pai toda manhã, acordava, sentava na mesa de frente para minha mãe sentava do lado dele, a gente sentava no sofá para poder tomar café da manhã. Tinha a cozinha, cozinha muito estreita, mais longa do que espaçosa, né? Na largura, então ela é bem longuinha, bem estreitinha, muito apertada com o fogão, a pia bem baixa, para mim era alta na época, hoje ela é mais baixa porque eu cresci um pouquinho, fiquei um pouquinho mais alta, e tinha a geladeira de canto, uma estante, minha mãe sempre gostou muito de estante e o banheiro que é bem pequenininho contando por um azulejo, um azulejo mais ou menos desse tamanho, ele é composto por quatro, quatro azulejos é o tamanho do banheiro.
00:14:26
P/1 - Por acaso, por acaso você se lembra de alguma fotografia, algum enfeite, algum objeto talvez trazido por ela de outro lugar que ela tenha vindo?
R - Tinha muita, eu acho que são conchas que se chamam, que meu pai trazia muito da Bahia, toda vez que minha mãe ia com meu pai para Bahia ela trazia. Então, eu lembro muito de ter na estante aquelas conchinhas que os pescadores pegam no fundo do mar, que a gente coloca no ouvido e dá pra ouvir o som da onda. Isso tinha muito. Inclusive agora que a minha mãe se mudou pra minha irmã, ela estava levando uma dela lá que ela não abre mão de jeito nenhum daquilo, e eu lembro desse enfeitezinho...nossa que engraçado pensar..., acho que eu só lembro disso de enfeite vindo de outro lugar só. Eu lembro muito de um aquário, mas ele foi ganhado, né? Meu pai deu para mim e para minha irmã, então tinha um aquário que morria alguns peixes, mas alguns sobreviviam, a gente cuidava no que podia.
00:15:33
P/1 - E como é que era essa relação dos seus pais, entre os seus pais?
R - Relação com os meus pais tem dois olhares, né? Tem um olhar só de filha e tem um olhar de filha mais velha envolvida na situação, mas muitas cenas que eu lembro dentro de casa quando mais nova, era que os meus pais se respeitavam muito, minha mãe sempre foi muito dona de casa, ela vivia para casa e esse era o sonho dela, para isso que ela nasceu, que ela fala, foi para isso que ela escolheu viver, era algo que ela sempre gostou. Então minha mãe sempre cozinhava, a famosa rotina de dona de casa, né? Acorda cedo para fazer o café para o esposo, fazia almoço, limpava a casa, meu pai chegava da rua, tudo estava pronto, tudo estava limpo, criava a gente, educava a gente, batia na gente sim, corrigia, brincava, mas eu lembro muito da minha mãe sendo dona de casa, o meu pai sempre trabalhou muito fora, meu pai é pedreiro, eletricista e tudo que você possa imaginar dessa área, meu pai sempre estava muito do lado de fora, quando ele chegava, eles sempre se respeitavam muito, meu pai tinha uma relação muito boa com a minha mãe de respeito, ele costumava trazer buquês para ela, porque ela gostava de receber, minha mãe sempre foi muito encantada pela simplicidade até hoje, qualquer cartinha, qualquer coisinha era muito para ela, é tudo muito grande, muito importante, isso me trouxe até uma história de vida, mas eu lembro muito dos meus pais se respeitando muito, depois de um tempo as lembranças que eu tenho são de brigas, de distanciamento, né? Que poucas coisas eu lembro assim porque meus pais separaram quando eu tinha 11 anos de idade, então a partir daí as minhas lembranças foram mais relâmpagos, minha irmã discutindo com meu pai porque tinha descoberto traição. Então, minha mãe sempre chorando muito e o meu pai mais distante, mais ausente dentro de casa, eu acho que são dois lados. Quando eu digo que tem dois olhares, é porque a minha infância realmente foi até os 11 anos com os meus pais juntos, tem duas visões, uma muito boa e uma muito ruim deles dois. São essas as lembranças que eu tenho. Tenho lembranças muito fortes dos meus pais brincando comigo, sempre foram muito presentes independente de qualquer coisa juntos, né? Nas minhas festinhas de aniversário.
00:17:56
P/1 - Você lembra de alguma especialmente?
R - Lembro, teve uma festa de Cinderela, minha mãe é costureira, então ela fez um vestidinho azul para mim, tenho até fotos sobre isso, fez o colar de pérolas para eu poder colocar e a minha tia Nete, que é uma tia muito presente, apesar de não ser parente nem da minha mãe, nem do meu pai, ela foi esposa de um dos irmãos da minha mãe e graças a Deus se separou porque ela era agredida por ele, então ela se aproximou muito da gente por conta disso, porque os meus pais salvaram ela dessas situações, uma segunda mãe para mim, ela fez um bolo da Cinderela, foi o meu aniversário mais marcante gente e sempre tinha aquelas fotos tradicionais de aniversário, que é deitada na cama com todos os presentes ao redor do nosso corpo, assim sorrindo, sempre tinha essas fotos antigamente, hoje em dia não tem mais que se fala tudo é muito brega, mas eu tenho um monte de foto assim, inclusive dessa minha festinha de cinderela que foi muito divertida e só tinha família, só tinha parte da família mesmo.
00:19:06
P/1 - Você falou de brincar com seus pais? O que brincavam? Onde brincavam?
R - Dentro de casa ou no beco que a gente tinha, minha mãe costumava colocar elástico na janela do vizinho que tinha lá, o vizinho deixava, a gente amarrava o elástico e a gente ficava pulando elástico, eu e minha irmã e os vizinhos, então minha mãe sempre ajudava nisso e dentro de casa o meu pai ensinava jogos de tabuleiro para gente, dominó, cartas, eu jogo desde nova, a gente é apaixonada por jogo de tabuleiro em família por conta do meu pai, que dentro de casa e dia de domingo era certo a gente jogar jogo de tabuleiro dentro de casa, desde pequenininha.
00:19:44
P/1 - Interessante isso, e a relação com a vizinhança, quem eram os seus vizinhos, na sua infância. Se você puder contar para gente um pouquinho da origem, se tinha, a sua idade, se eram amigas da sua mãe?
R - Muitas eram amigas da minha mãe, tinham no beco morando 3 crianças que era eu, a Ingrid que era muito presente e uma menina que morava em cima, que eu não lembro o nome dela, que ela aparecia de vez em quando, e de vez em quando vinham os primos dessa menina de cima que brincavam com a gente no beco, uma que está lá até hoje é a Jussara que eu estava comentando que é a que grita, síndica do nosso Deus, que tem um carinho enorme por ela, é louca toda vida, mas amo de coração porque tem um coração muito grande, ela é uma figura presente na minha infância naquele beco e até hoje, e ela é uma das pessoas que eu lembro demais, a Ingrid é filha dela e a gente brincava muito, brincava muito, brincava muito ali no beco e saindo do meu beco bem na rua mesmo Sebastião eu brincava com as outras crianças, a gente brincava de pique calçada, pique gelo, cada macaco no seu galho, pique alto, muito sempre na rua, minha mãe me deixava em um horário muito restringido ali na rua, não passava o dia inteiro, mas sempre tinha o período da tarde para eu brincar com eles, e quando eu não podia ir na rua eu brincava do lado de dentro da minha casa com a porta fechada, e as minhas amigas do lado de fora, e a gente montava duas casinhas e ficava brincando ali pelas grades, eu falo para a minha mãe que é maldade até hoje, mas ela falava “você não pode sair”, então as minhas amigas vinham para minha porta e a gente brincava entre grades ali na vizinhança.
00:21:26
P/1 - E sobre alimentação, você falou que sua mãe cozinhava, quais são as memórias afetivas de alimentação em casa? Comprar o quê, se comprava aqui na região?
R - Sempre comprava aqui, prato favorito meu da minha mãe, franguinho ensopado, com batatinha, arroz e feijão, até hoje um dos meus pratos favoritos, minha mãe sempre gostou de cozinhar. Hoje ela fica revoltada, ela fala que agora ela não sabe mais nada para gente, ela fala “agora vocês que vão ter que fazer pra mim”, mas antes quando ela nos amava na cozinha, ela cozinhava bastante, fazia bolos, empadão, cada lembrança boa, mas um dos pratos favoritos que eu lembro da minha mãe fazendo era frango ensopado com batata, arroz e feijão, era algo muito marcante e quando não tinha o dela, que era de vez em quando que o meu pai fazia, era macarrão do meu pai, são os 2 pratos, meus favoritos que eu lembro da infância, mas a minha mãe sempre teve prazer em cozinhar, então estar na cozinha para ela fazer comida para gente e ter essa recepção de “nossa está muito gostoso! Nossa está muito bom!” fazia ela explodir de felicidade. Então, eu fazia isso para ter mais comida, eu confesso.
00:22:36
P/1 - Em alguma festa assim, alguma comemoração. Você comentou sobre o aniversário, algum outro tipo de festejo religioso, ou um ano novo, um Natal, uma Páscoa, algum momento desses em família, na sua infância que tenha te marcado aqui?
R - Sim, eu sempre participei muito de cantatas dentro da igreja em Natal, né? No Natal eu sempre fiz parte do teatro e da dança na igreja desde criança, e Natal era certo ter cantata, então eu já participava como algum personagem, participava de coral e Ano Novo também a gente passava nos cultos de viradas, meu pai dificilmente, na verdade o meu pai nunca foi para igreja, eu achava até engraçado porque ele não era da igreja, mas ele estava sempre em todos os encontros de casais com a minha mãe na igreja, ele ajudava, conhecia todo mundo, era amigo de todo mundo, mas ele não ia para os cultos. Então, dia de virada de ano novo, eu estava com a minha mãe, com a minha irmã na igreja e a gente depois ia para casa para poder cear com meu pai, e no Natal a mesma coisa, a gente passava o Natal no culto da igreja, cantava e às vezes meu pai ia assistir também quando a gente participava e depois a gente ia cear dentro de casa.
00:23:48
P/1 - E como é que era um pouco essa cantata que você está falando? Como é que era, vocês eram um coralzinho, você aprendeu a cantar? Como é que é?
R - Foi lá que eu desenvolvi toda a minha habilidade Beyoncé. Começou tudo lá, infelizmente não seguiu para frente, mas está tudo certo, mas foi lá na igreja que eu me desenvolvi muito artisticamente.
00:24:12
P/1 - Qual é o nome da igreja, o local?
R - Primeira Igreja Batista no Parque União aqui na Rua Ari Leão, número 42. Não sei se alguém conhece, mas ela é uma das referências ali, inclusive, ponto de referência quando precisa e desde criança eu fiz parte do teatro, eu fazia peças nas cantatas, ou estava na coreografia quando a gente participava dos cultos e eu cantava, era um coral mesmo, eu fazia solo, super me sentia, não peçam para eu cantar porque não vai valer a pena, mas quando criança eu cantava no coral sim, e eu lembro que eram cantatas muito grandes e antigamente gravadas, né? Então a gente tinha que gravar falas certinhas, tinha tempo de pausa, o tempo da fala, do outro personagem falar, da gente interagir e dar aquela deixa para gente começar a cantar e o coral cantava, tinha coreografia, todo mundo de beca colorida, tem uma foto minha que a gente está de macacão colorido e maria chiquinha, um lado amarelo, um lado vermelho, então a gente cantava ali uma longa hora cantando em pé, mas era gostoso, são lembranças gostosas e lá também eu aprendi a tocar, né? Toquei violino, toquei flauta e já participei em cantata também tocando violino.
00:25:31
P/1 - E aprendeu como, tinham aulas, tinha professora que tenha te marcado mais?
R - Tinha um líder da orquestra que ele era professor de músico formado, hoje nem tão presente, fico muito triste por isso, porque era uma aula muito boa e aberta para comunidade, então você não precisava ser membro da igreja para estar fazendo, se você tinha interesse em aprender música, você podia se inscrever e era gratuito.
P/1 - Não necessariamente estar vinculado a igreja.
R - Isso, exatamente, não precisava estar vinculado, e era um professor de música que ensinava para gente, junto com a esposa dele, que também era professora de música, então eles ensinavam para gente a cantar, a tocar o que fosse preciso e muito tecnicamente, sabe?
00:26:10
P/1 - Violino você aprendeu?
R - Aprendi violino, menina.
P/1 - Você tinha quantos anos na época?
R - Foi a partir dos 12 anos que eu comecei a ler, o meu violino era pequenininho porque eu não conseguia segurar o grande, apesar de hoje eu ser alta eu era menorzinha da orquestra. Eu tive que comprar um violino encomendado mesmo de um tamanho menor para eu conseguir tocar ele na orquestra, e aprendi com esse professor que era o Rogério e depois eu comecei a fazer aula com o Júnior, que eram dois professores ao decorrer do tempo lá.
00:26:43
P/1 - Mas isso era um projeto, a gente pode dizer um projeto social também, era totalmente vinculado à igreja, quer dizer, oferecido pela igreja.
R - Ele não era um projeto social. Com o tempo que eu lembro de criança, a ação social ainda não era muito presente com o seu nome na igreja, hoje já é muito presente, inclusive tem várias ações acontecendo, mas eu acho que era só uma oportunidade que eles abriam para quem tivesse de fora querer participar. Eu tocava e ensaiava para tocar na orquestra da igreja em específico, ligada na igreja, eu ensaiava mesmo já com o objetivo de tocar na orquestra.
00:27:21
P/1 - E sua irmã?
R - Minha irmã tocava bateria, ela foi líder de teatro, líder de coreografia, uma das responsáveis por me introduzir nesse lado, minha irmã ela é formada em Teatro, tem diversas especializações fora mesmo, então ela foi uma das pessoas que me levou para esse lado mais da arte e ela participava na igreja, ela que liderava o grupo de teatro que me ensinou muito das coisas técnicas, me levou muito para cursos fora, a gente fez um curso chamado Em Contrarte que acontece em São Paulo, que é um encontro de artes, e ela que me abriu portas para eu poder ir para lá estar conhecendo também, e ela tocava a bateria, na mesma equipe que eu, eu tocava violino e ela bateria. Tudo juntinho.
00:28:06
P/1 - Esse projeto para São Paulo, isso era seus pais que incentivaram?
R - Essa ida para o Contrarte, ela já foi um pouquinho depois, né? Veio mais recente
na minha adolescência, já não é mais na minha infância, veio mais na minha adolescência, mas minha mãe sempre incentivou demais, e nesse período meu pai já estava fora de casa. Então, por mais que a gente tente ter um relacionamento muito próximo, acaba que alguns pontos ficam mais distantes por não estar ali no dia a dia, mas ambos nos incentivaram sempre muito, mas a minha mãe é a maior incentivadora de todos os meus atos, sabe? Inclusive essa ida pra São Paulo sempre incentivou muita gente. Eu lembro que ela tinha medo da gente morrer de frio lá porque era no interior e realmente ficava muito frio, era uma atenção que ela tinha. Ela - "vocês estão bem quentinhos? Vocês já tomaram chazinho?”
00:28:58
P/1 - Esse incentivo da sua mãe para essas atividades, como é que era na sua infância, vocês saiam por exemplo para passear? Para onde vocês iam, que tipo de passeio vocês faziam em família ou faziam com a igreja fora aqui da maré?
R - Passeei muito pelo Rio, tenho cenas muito claras do zoológico antigo, com vários animais antes dele ficar todo acabado, agora tem a reforma e ficou muito bonita, mas eu lembro do zoológico antigo, era um lugar que a gente ia muito, que os meus pais levavam para gente, a gente tem uma foto naquele...tipo um prato de porcelana que a gente tirava e imprimia, eu acho que minha mãe ainda tem guardado esse pratinho, é uma foto que a gente tem de infância lá, principalmente quando meus tios vinham da Bahia, era uma oportunidade que a gente tinha para ir pra vários lugares, porque todo mundo que veio de fora quer ir visitar, então a gente vai, a gente que é carioca não experimenta quase nada dentro do Rio de Janeiro, a gente tem que ir para outro lugar pra ir. Então nesse período era mais ainda, os meus pais saiam mais quando os meus tios vinham para cá, mas a gente passeava, a gente ia para viagens com os amigos do meu tio, para Barra de São João, tem uma casa do meu tio Zé Ventura, ele até hoje é uma pessoa muito querida, ele não é tio de sangue, mas se tornou tio por ser da família, estar tão próxima a família, ser tão amigo dos meus pais que a gente ia direto lá para Barra de São João para ficar na casa dele, correr...tem vídeos que ele fala que me vê: “Ah eu lembro dessa menina correndo com a fralda toda cagada por aqui”. É o lugar que a gente ia muito, era um lugar que a gente mais ia para fora da comunidade. São cenas que eu tenho claras de lá.
00:30:41
P/1 - E em relação à escola onde você estudou, com quantos anos? Se ia para creche, ou para jardim de infância, como é que foi um pouquinho?
R - Troquei muito de escola na minha vida, era uma peregrina de colégio, mas eu comecei estudando na Escola Turma da Mônica, que nem existe mais aqui do Parque União, ela ficava na Rua da Paz. eu comecei a estudar ali e me formei ali nessa primeira parte da infância. Eu lembro que minha formatura foi na igreja católica que tem ali na Rua da Paz até hoje também a formação foi lá, logo depois eu me mudei para o CEOIS que também é no Parque União, é escola particular, e aí meus pais ficaram apertados, saí do particular, fui para Anapyon / NAPION estudei uma parte lá do meu ensino fundamental, da Anapyon fui para Pedro Lessa em Bonsucesso..., é gente a minha mãe gostava de me trocar de colégio, mas aí foi onde eu terminei, fiz até a oitava série que eu já não sei mais hoje que é quarto ano, nono ano, mas eu fiz até a oitava série no período que mudou de oitava série para nono ano a nomenclatura, eu finalizei no Pedro Lessa, fiz uma inscrição para outras escolas públicas e passei para o Infante Dom Henrique em Copacabana, que foi onde eu fiz o meu Ensino Médio, me inscrevi em três escolas, duas eram aqui próximas, a última foi a que eu caí, foi em Copacabana. Então, eu passei três anos da minha vida indo lá para Copacabana para o Infante Dom Henrique, mas aconteceu.
00:32:12
P/1 - Como é que era então esse período como adolescente em uma escola? Como era estudar em Copacabana, quem eram os seus colegas, como é que você ia, como é que era o uniforme, um pouco desse primeiro começo de vida saindo com amigos e amigas, como é que foi um pouco esse período? Vamos falar, então pode falar da Pedro Lessa, um pouquinho da infância.
R - Eu eu o Pedro Lessa é marcante para mim porque foi quando eu comecei a ir sozinha para escola, e a gente sabe que quando chega esse período é um período que a gente está feliz, que a gente ganha uma autonomia de ir sozinha porque a minha mãe começou a me deixar, eu nunca tive vergonha da minha mãe me levando para escola, eu sempre gostava, mas ela falou que precisava confiar em mim, que eu precisava conquistar essa confiança nela. Então, um dia eu ia sozinha, no outro eu ia sozinha, ia chegando no horário, conseguia confiança, então foi o período que eu mais comecei a ir sozinha para escola e meus irmãos odiavam uniforme, que era aquele uniforme laranja ainda, com branco, eu achava horroroso aquele uniforme, eu fiquei revoltada porque o uniforme mudou depois que eu saí daqui no Ensino Fundamental. Eu falei, não podia mudar um ano antes para eu poder participar? mas era o uniforme que eu não gostava, meus pais não tinham muitas condições de comprar muitos uniformes para mim. Então, o pouco que tinha a gente tentava conservar, meia às vezes ia furada e a gente fingia que era estilo, que a gente não se importava com aquela meia rasgada. O tênis às vezes tinha 3 anos de idade, mas durava mais que isso, se a sola estava colada a gente usava, e quando eu fui para Copacabana eu já não me importava mais com essa questão de (“Ah eu preciso estar com a roupa mais nova, eu preciso estar com a calça mais nova”), eu me adaptei aquilo dali, eu nunca fui uma pessoa que tive muita vergonha, eu sempre me adaptei muito aos novos ambientes, talvez pela história de tanta mudança, e quando eu fui para Copacabana meu único medo era que eu ia estar no lugar de muita gente “padrãozinha” e eu sendo da favela, estou indo para uma escola de Copacabana muita gente cheguei lá era todo mundo dos morros também, a gente ficou assim muito feliz. Então é só nome mesmo, está todo mundo aqui junto e foi um período muito gostoso do meu ensino, porque o ensino médio foi muito gostoso para mim mesmo. Eu sempre tive muita boa relação com as minhas diretoras, as mais bravas sempre eram as que eu me apaixonava. Quanto mais ruim ela fosse, mais eu me apaixonava pelas coroas, elas eram tão rígidas, que eu falava assim, (gente, tem um lado aí que é amor nessa pessoa), então eu tentava conquistar aquele lado amorzinho até conseguir e essas minhas idas para Copacabana eram muito cansativas, foram períodos que eu mais senti medo como mulher, foi quando eu comecei a sentir muito medo como mulher, porque eu me mudei por um período aqui do Parque União e fui morar no Timbau, saí da Maré para morar na Maré, mas fui morar no Timbau.
00:35:09
P/1 - Você mudou porquê?
R - Por causa da separação dos meus pais, assim que os meus pais se separaram a minha mãe falou que ela não queria mais morar ali porque trazia muitas lembranças, e tem as memórias ruins, ela não queria ficar. Então a gente se mudou para uma casa alugada que a gente achou lá no Morro do Timbau e eu morei 8 anos ali, a minha fase que eu saí da infância para adolescência eu passei no Timbau foi esse período, já estava no Pedro Lessa, já ia para lá, então dali para lá o meu tempo foi direto no Timbau e quando eu casei que eu voltei para o Parque União, que foi esse período.
00:35:46
P/1 - Antes da gente continuar a escola, conta um pouquinho, como era o Timbal naquela época, qual é a sua lembrança maior daquele ambiente?
R - A parte mais tranquila da Maré, para mim é a parte mais tranquila da Maré em questão de violência, né? Porque a gente tem alguns pontos. Aqui na Nova Holanda é o ritmo dos ritmos dos bandidos, da violência, da muvuca, de tudo. O Parque União já é um pouco mais elite comparado à Maré, já é um lugarzinho mais...O Timbau já é outro elite, o lugar, porque é um lugar que eu não via muitos bandidos presentes, na parte que a gente morava no quarto centenário, então aquela parte do quarto centenário quase não tem bandido, eles passam da baixa lá para o morro e do morro para a baixa. Então eu amava morar ali porque era muito tranquilo nessa questão. Tinha uma boca que eu lembro que era só mais embaixo na proclamação e só, é a visão que eu tenho mesmo da questão de violência. Eu gostava de morar ali porque eu me sentia tranquila de estar na rua, sabe? De não ter esse contato com outras coisas que eu queria estar mais tranquila, a minha mãe se sentia mais tranquila. Então, eu ficava muito no Quarto Centenário, até altas horas da noite, 23h30, tipo assim já me sentia super badalada nesse horário.
P/1 - Ficava papeando.
R - Papeando com os amigos, fiz amigos e amizades ali, eu sempre andei muito com rapazes, eu tinha uma amiga que era minha melhor amiga e a gente fazia sempre muita amizade com garotos. Eu e minha irmã a gente já tem esse histórico, minha irmã era skatista, então imagina como era a casa da minha mãe na adolescência da minha irmã com skatistas e aí eu cresci e não fui para um lado diferente, também adorava jogo de videogame, adorava todo tipo de esporte, essas coisas, a gente ficava muito ali com os amigos, eu ia para o Quarto Centenário, minha casa era bem do lado do Quarto Centenário, então eu só atravessava assim a ruazinha e a gente ficava conversando ali, brincando na rua.
00:37:42
P/1 - Que jogo de videogame a sua geração jogou?
R - Eita gente, vamos lá, depende dos jogos, né? Resident Evil , residente, era um jogo que eu era obrigado a jogar com a minha irmã porque ela tinha medo, eu tinha medo, então ninguém jogava sozinha a gente jogava junto, era a regra da casa, a gente jogava tem um que era de um cachorrinho no trem eu não vou lembrar o nome, mas era um que ele pegava várias frutinhas em um trenzinho que passava era um animal que a gente jogava e Super Mario, porque a Super Mario é tradição, era o meu jogo favorito.
00:38:16
P/1 - Seu dia da fé. Então vambora voltar a escola, como é que era essa ida para Copacabana? Vou sair de ônibus, esse enfrentamento que você está dizendo, que talvez tenha sido uma das primeiras vezes na sua vida que você como mulher sentiu...você falou em medos, sentiu algum tipo de manifestação?
R - Eu acho que por eu estar mais sozinha foi quando eu fui, quando eu comecei a entender o quanto o mundo era violento com a gente como mulher, e foi quando eu digo que foi os meus primeiros sentimentos de medos é porque eu comecei a passar por situações aonde eu me sentia com medo que os meus amigos não sentiam. Então para ir pra Copacabana eu pegava o 485 ali na passarela da Escola Bahia, eu morava na passarela 8, então eu tinha que andar toda aquela rua de uniforme, 05:50 da manhã porque eu pegava em Copacabana 7h, então 05:50 está tudo muito escuro, e ali na parte da Jerusalém, Proclamação para escola Bahia são fábricas, então é muito vazio, muito vazio, o que tem é um ou outro cara na rua que você já fica escaldada. Então foi aí que eu comecei a sentir, porque eu tinha que fazer esse trajeto todos os dias de manhã, e eu passei por situações de ter um cara parado e eu ficar com medo de passar e ter que voltar e trocar o trajeto, ou ter um cara parado e ter que enfrentar a marra mesmo com 15 anos de idade e ter que passar a marrenta toda magrelinha, mas fazendo cara de marrenta para poder passar medo pra quem tava ali, mas na verdade quem tava sentindo medo era eu pra poder ir pra escola, eu ia e voltava de ônibus, eu ia mais sozinha e voltava com as minhas amigas que moravam aqui para Maré também. Uma morava na Vila e a outra morava no Caju, então a gente voltava junto nessas situações, mas foi aí que eu comecei a me sentir mais mulher no mundo, mais mulher no mundo nessas questões das violências contra a gente, do medo contra a gente e de eu ter um pouco mais de autonomia no que eu precisava ser e no que eu precisava agir no dia a dia.
00:40:20
P/1 - Como o que por exemplo? O que você acha, que você vai criando essas estratégias que você falou para enfrentar situações?
R - Ter coragem, ter coragem para falar, eu tenho uma cena muito forte que é, eu estava indo para escola em Copacabana, meu segundo ano do Ensino Médio e eu dormi no ônibus, eu dormia no ônibus e como a gente pega o ônibus sempre todos os dias, as pessoas sempre são iguais, né? Tem sempre muita gente igual indo todos os dias para o mesmo local. Então, o pessoal já me conhecia e eu sempre tinha o costume de dormir e eles me acordavam quando chegava, o pessoal me acordava quando estava chegando próximo do meu ponto, se eu perdesse o ponto da escola, mas eu lembro de uma vez que eu estava dormindo e eu senti alguma coisa roçando no meu braço e aí você acha que é sonho, quando eu abri tinha um velho roçando no meu braço então eu tive que criar coragem de falar para ele parar de roçar no meu braço, foi o enfrentamento que eu tive que tomar e ver que, peraí eu tenho que começar a ter essas atitudes para ter um pouco de respeito no transporte público como mulher, porque chega uma fase que você começa a entender algumas situações que você vai aprendendo com a vida, então foram essas estratégias que eu fui começando a entender que eu teria que começar a ter para me posicionar no mundo como mulher, o que era ser mulher no mundo. Então hoje eu tenho essa visão do passado, mas quando estava acontecendo eram coisas que eram assustadoras, eu nunca imaginei que um velho ia parar do meu lado e roçar no meu braço tranquilamente no transporte público, indo para escola, uma menina tão magrinha, tão novinha indo pra escola. Então essas situações me fizeram ser um pouco mais forte nas questões, além das situações da vida mesmo na família, no meu crescimento.
00:43:19
P/1 - Você está contando o seu período na escola quer dizer para gente entender hoje um pouco a sua atividade profissional né? A sua prática artística, se a gente pode dizer assim. Vamos rememorar um pouquinho no ambiente da escola tanto no Pedro Lessa, quanto no Infante como é que se dá, assim, essas aulas de dança, teatro, as apresentações de final de ano, você participava, já fazia coreografia, como é que era isso na sua vida escolar?
R - É engraçado perguntar porque na verdade a minha história na dança tem mais fora da escola do que dentro dela. Eu participava poucas vezes de eventos dentro da escola e os eventos que eu lembro, a apresentação no Pedro Lessa de final de ano que eu dancei com a turma, e duas apresentações no Infante Dom Henrique, uma foi porque estava valendo ponto, eu estava em reprovação em português, foi aí que começou, mas eu lembro que eu precisava de meio ponto, a professora de português chegou e falou que quem fizesse um trabalho de inclusão, que fizesse uma apresentação no final do ano para turma, ai eu falei: “Pronto, tenho que usar toda a minha habilidade com teatro, com dança que eu aprendi na igreja, que eu cresci fazendo aqui”, e eu lembro que a gente juntou a galera do fundão, dos reprovados da sala, a gente fez o trabalho de inclusão e eu era cega, eu era lá deficiente visual da equipe, a gente fez uma coreografia, tinha um rap que a gente fez de inclusão, então era uma turma bem grande, porque bastante gente estava precisando e a gente fez uma participação artística na escola. E a segunda foi a que eu estava já no terceiro ano e eu criei coragem de dançar. Eu nunca tinha dançado. Todos sabiam que eu fazia balé. Todo mundo já sabia que eu já dançava porque quando eu estava no Infante Dom Henrique eu já fazia aula de balé há um tempo, no Pedro Lessa também já estava fazendo, comecei a fazer balé com 11 anos numa escola. Então eu já dançava, mas eu nunca tive coragem de dançar gente, eu não tinha vergonha para nada, mas para dançar na escola eu morria de vergonha e é a única vez que eu criei coragem para dançar foi no Infante Dom Henrique na última festa do meu ensino médio e eu dancei ‘My All’, vou usar todo o meu inglês, My All de Mariah Carey na escola de ponta, fiz também valer a pena, botei a sapatilha de ponta, botei uma roupa branca que eu tinha de figurino de apresentação e dancei. Então, essas são as minhas participações de dança na escola, de dança e teatro, porque eu tenho que respeitar o meu trabalho de português, que foi ótimo.
00:45:57
P/1 - Agora 2 aspectos que eu acho bacana a gente tentar rememorar, um você contar um pouco para gente essa trajetória no balé, onde você fazia, onde você estudava, quem te incentivava, o que te motivou? Em relação a sua juventude, como é que você se vestia, que músicas você ouvia, do que você gostava, dançava em casa, ouvia rádio, que som, vamos rememorar, a juventude e o ensino do balé.
R - Eu vou contar primeiro da juventude, porque o balé já é uma outra história, mas na juventude eu sempre fui muito próxima da minha irmã gente, eu vou falar muito dela porque ela realmente foi presente principalmente nos meus estilos de música, nos estilos de se vestir, adorava blusão, adorava calça, tênis, até hoje sou apaixonada, hoje eu botei uma roupinha melhor porque eu estava sendo entrevistada, mas sempre durante a minha adolescência eu usava muita calça, bermuda e blusão. Quando não, eu estava usando as roupas emprestadas da minha irmã. Vamos para academia, aquela época formada em Educação Física, então eu pegava as roupas dela de educação física para andar pra lá e para cá. Dois cambitinhos com uma calça de ginástica andando para lá e para cá era eu, mas as minhas minhas roupas eram muito assim, eu sempre gostei muito de moda, sempre gostei muito de estilos, me inspirava muito na minha irmã, então variava entre estar de vestido ou de blusão calça e tênis, era as minhas roupas de adolescente.
00:47:22
P/1 - Essa moda naquela época era calça alta, calça baixa?
R - Calça baixa aqui, eu vou pedir a Deus sempre para não voltar nunca mais na vida, mas eu ainda peguei a calça baixa, peguei a meia colorida na adolescência. que a gente vai guardando algumas coisas para poder usar depois, ainda peguei o É o Tchan também porque voltou um pouquinho, e lá em casa a gente ainda usava algumas coisas depois do período apesar do É o Tchan ainda ser muito criança, dançava muito dentro de casa e na adolescência ou na juventude, acabei dançando muito, eu e minha irmã a gente costumava botar DVDs e músicas que a gente gostava e a gente fazia um miniclip dentro de casa. Muita música antiga que era da época da minha irmã, ela trazia para eu ouvir e eu acabei aprendendo, então meus estilos de música são muito dos anos 80 que vieram dela. Alcione, adoro Alcione, mulherão, adoro aquela Marrom, fico cantando e fazendo altas vozes dela. Mariah Carey, porque apesar disso, minha geração não ouvia muito, pelo menos na escola, não era um som que as pessoas escutavam muito, acho que não é ‘Zé do caroço o nome dele, é Zé do caroço’?
00:48:47
P/2 - Canta um trechinho velho, a gente vai lembrar.
R – “Quem avisa é o Zé do caroço, que já chega fazendo alvoroço na favela inteira”.
P/2 - É da Leci Brandão.
R - Escutava muito essa música com a minha irmã, porque a gente dançava. Mamonas Assassinas era muito presente na minha casa, minha irmã tinha um CD então a gente escutava muito Mamonas Assassinas, deixa eu ver mais…
00:49:10
P/1 - A sua mãe ouvia música?
R - A minha mãe subia para costurar porque ela falava que ela não criou filha para isso, ela escutava a Léa Mendonça, Cassiane. Ela gostava dos Corinhos de fogo e a gente colocava Mamonas Assassina para ouvir dentro de casa, mas minha mãe se divertia, a gente sempre brincava, tinha uma proximidade muito grande com a minha mãe de amizade. A gente sempre zoou, até hoje a gente zoa muito a minha mãe, mas é uma zoação gostosa, uma zoação que ela se sente bem, é uma zoação de amizade, de laço, mas na época minha mãe nem ficava na sala, até hoje ela sobe, ela vai costurar, ela vai cuidar do netinho que tem agora, mas na época mesmo minha mãe deixava nós duas, ou ela ficava cozinhando e rindo da gente, principalmente aqui no Timbau que eu e minha irmã a gente fazia os clipes dentro de casa, ela ficava na cozinha e falava “meu Deus, não acredito que eu criei duas filhas para isso” mas é isso que tinha.
00:50:04
P/1 - Vocês iam em festinhas?
R - Festinha a gente fazia, sempre fez muita festa em família. Até hoje a gente faz muita festa, eu gosto muito de estar em família, a gente é muito isso, a gente acabou de fazer uma festa julina, então a gente faz toda uma ornamentação, a gente faz decoração, mesa, caldos, paçoca, doce de leite, canjica, comida é muito presente na minha família que vocês podem ver, mas festinha sempre foi presente em família dentro de casa. Festas fora mais aniversário de amigos, casamentos, eu não participava de festa julina fora, minha mãe não gostava que a gente dançasse em quadrilha, eu ficava muito triste, então hoje eu danço, não em quadrilha, mas dentro de casa porque agora principalmente não poderiam estar tendo.
P/1 - Mas isso pela religiosidade?
R - Eu acredito que sim, ela nunca deixou a gente participar de festas julinas em escolas e eu acredito que pela religiosidade, que fazia ela restringir um pouco, mas eu nunca senti falta, porque minha mãe fazia isso, estar muito presente dentro de casa, exemplo, a gente não recebia doce de São Cosme e Damião e a minha mãe sempre explicou para gente os motivos, mas nunca foi aquela mãe de “não pode porque eu não quero”, ela sempre explicou: “Ó, você não pode fazer isso porque aqui dentro de casa a gente tem isso, e isso e isso e isso significa outra situação para gente”. Minha mãe sempre foi muito do diálogo, isso até para bater eu falo que ela sempre conversou - “está apanhando por causa disso, disso e disso, não estou te batendo à toa”. Mas ela sempre explicou muito. Na época de São Jorge, de São Cosme e Damião, para gente não aceitar doces da rua que ela falava para gente não aceitar, ela comprava doces para gente, então a gente não ficava com aquela vontade de pegar doce de fora e ela ensinou a gente sempre a ter muita educação. Eu lembro de uma vez que uma professora minha de Educação Física que eu gostava muito no Pedro Lessa, ela me deu um doce de São Cosme e Damião e eu aceitei aquele doce porque ela estava me dando com muito carinho, não tinha porque eu tratar mal, não tinha porque eu negar de uma forma ríspida, então eu recebi com muito carinho, eu cheguei em casa e a minha mãe foi muito educada, falou “muito bem filha, agradeceu a ela”, falou, “agora sim a gente vai guardar para gente comer outro doce.” Então a minha mãe sempre foi muito cuidadosa, eu digo que minha mãe sempre foi muito cuidadosa e respeitosa com as situações e religiões até hoje, sabe?
00:52:22
P/1 - Você falou em São Jorge, tinha festejo de São Jorge aqui?
R - Aqui tinha. O que! As crianças correndo tudo na rua atrás de carro de doce é o que mais eu lembro, carros passando com doce e as crianças sempre correndo atrás, hoje nem tem tanto pelo menos eu não vejo muito não sei se tem mais, mas na minha infância tinha muito, eu tinha muito, era o dia para as crianças estarem na rua correndo atrás de doce.
00:52:48
P/1 - E outra comemoração de dia de santo, por exemplo, São Jorge, né? Tinha alguma outra que você lembre na infância, aqui?
R - Não, não tem
00:53:03
P/1 - Então vamos falar um pouco então do balé. Como é que é? Como que se deu? O que que te motivou? No fundo é interessante pela sua narrativa, que a gente vê que o ambiente da igreja já proporcionou para você um espaço de arte. No sentido da música principalmente e do canto. Agora, como a dança que acabou sendo, no fundo hoje é um fio condutor das suas ações, como é que isso surgiu? Você foi levada ao balé, você se interessou? A mãe te incentivou? Como é que foi isso?
R - Meu primeiro contato com a dança foi na igreja, no ministério com 5 anos de idade, e logo depois eu tive o meu primeiro contato com o balé, e o balé ele chegou na minha vida por causa do divórcio dos meus pais. A minha irmã teve que assumir a casa porque a minha mãe teve depressão e eu era muito nova. Então a minha irmã assumiu as pontas da casa, e eu lembro que ela e minha mãe me colocaram, procuraram o balé para eu poder melhorar e crescer tranquilamente porque eu tive dislexia, desenvolvi dislexia, desenvolvi anorexia, então desenvolvi a anemia também por conta de toda situação emocional, a gente criança acaba não lidando com as situações, então foi através das dores que o balé surgiu na minha vida. A dança foi a partir da igreja, e o balé foi a partir de dores, mas foi a melhor coisa que me aconteceu, eu comecei a fazer balé clássico aqui na Vila Olímpica da Maré com a professora Patrícia e não fiquei por muito tempo porque surgiu uma oportunidade de fazer uma prova para bolsista na Slava Goulenko na Ilha do Governador, fiquei eu acho que 3 meses aqui na Vila Olímpica fazendo balé clássico, fiz a prova de bolsista na Slava Goulenko e passei. Então fiquei muito feliz.
00:54:54
P/1 - Que ano é esse que a gente tá falando, só para a gente situar?
R - 11 anos quando eu entrei na Slava, 12 anos mais ou menos, 2006 mais ou menos, porque eu fiz até 2012 depois o balé, foi mais ou menos por esse período, entrei na Slava Goulenko e lá fiquei por 8 anos.
00:55:19
P/1 - O que era essa academia? O que que representava?
R - É até hoje uma escola de dança mesmo, na época tinha aula de jazz, de street, balé clássico e contemporâneo, eu entrei como bolsista de jazz e balé clássico, entrei sem saber nada, eu era toda, como eu falo, toda cagada mesmo no balé, era o pé de faca mais torto, eu era a mais tortinha da sala, mas a mais esforçada e eu avancei, passei para as avançadas em até 2 anos. Dentro do balé clássico a gente tem uma história de estrutura, para você se tornar uma bailarina profissional, você precisa começar nova e você passar por várias etapas dentro do balé clássico, para chegar na turma do avançado. Então, eu já cheguei na metade do tempo aí, com 11 anos de idade na escola, 11 e 12 anos, sem nenhuma base técnica, sabendo só a dança que eu aprendi da vida, dança divertida dentro de casa, a dança dentro da igreja que ainda era muito superficial o ensino técnico, entrei e me joguei, comecei a treinar muito, treinar muito e avancei muito rápido de turmas dentro da escola, e surgiu a oportunidade de entrar para turma das avançadas, tinha um professor, eu digo que os meus professores viram uma luz em mim que nem eu via, eles acreditavam de uma tal forma em mim que eu realmente não acreditava que eu podia ser capaz.
00:56:45
P/1 - Mas ser professor é isso!
R - Hoje eu entendo isso. Hoje, estando do outro lado. Eu só comecei a perceber esse olhar deles quando eu me tornei professora, porque realmente eu lembro que eu chorava dentro de sala porque o meu professor era rígido por conta do balé clássico, é uma modalidade, eu não gosto nem de chamar uma modalidade, mas uma família muito rígida pelo histórico que também muito europeu, muito estratégico.
P/1 - Ele é brasileiro?
R - Ele é Paulo Rodrigues, ele é ensaiador e já foi o primeiro bailarino do Municipal, do Teatro Municipal. Maravilhoso, incrível, mas ele pegava muito no meu pé e eu achava que ele não gostava de mim, eu chorei dentro de sala de aula de tanto que ele voltava, eu lembro que eu estava bem no período de teste dançando com as meninas e as avançadas já dançavam há muito tempo. Então, existe aquilo de, (“aí, ela chegou nova, não dança tão bem, a gente está repetindo por causa dela”), e ele começou a repetir uma coreografia de 11 minutos gente, porque eu estava errando, às vezes chegava em 09 minutos eu errava, ele parava e voltava tudo, e eu fiquei desesperada porque as meninas estavam me olhando muito tortas, e eu lembro que esse dia eu chorei muito dentro de sala de aula no final, e ele me parou e falou, “eu acredito em você, é por isso que eu estou pegando no seu pé, dessa turma tu é uma das mais talentosas e você não consegue enxergar”
P/1 – “Elas vão me matar, 11 minutos de novo...!”
R - ...ela precisava de tanto...mas essas pequenas falas fizeram a diferença, talvez para o que eu faço hoje com a dança onde eu vivo. Porque alguém acreditou que eu podia ser capaz. Minhas maiores incentivadoras foram a minha mãe e a minha irmã. Você perguntou se a minha mãe apoiava isso. A minha mãe é uma apoiadora, vocês já viram que eu sou apaixonada por essa mulher, mas é porque ela é, sempre, desde a infância, ela sempre botou a gente para experimentar de tudo, ela falava que o que a gente gostasse de fazer ela estaria apoiando, se eu chegar hoje e falar, mãe eu sou astronauta, ela vai falar, “minha filha tem curso para isso, que que eu posso fazer pra ajudar?” Ou então: “Mãe, eu não quero ser astronauta, eu quero trabalhar na ação social.” “A minha filha, que lindo, mas como é que faz isso?” Ela vai perguntar e vai apoiar. Então, desde criança eu já fiz muitos esportes, a minha irmã também, eu já fiz ginástica olímpica, eu já fiz taekwondo, vim da luta, já fiz Jiu-jitsu, já fiz natação, tudo porque eu não gostava e a minha mãe me trocava, então vamos experimentar outra coisa, até chegar no balé. Então nesse período de balé a minha mãe, minha irmã elas me incentivaram muito, muito, a gente participava de festivais e por ser...quando eu passei para as avançadas, depois desses episódios eu fui aprovada pela turma, começou uma segunda fase difícil, que a gente participa de festivais e competições
que exige um pouco de dinheiro.
00:59:31
P/1 - Faz uma reflexão nesse sentido, o fato de você morar na Maré, isso de alguma forma estigmatizava um pouco a sua situação? Pode fazer uma reflexão, por favor?
R - Posso, claro, isso influenciava muito, porque eu estava em uma escola particular na Ilha do Governador, e eu vim, eu sou da favela, eu já era bolsista em escola paga, pelo menos no período que eu estava dentro da escola existia um certo distanciamento, eu lembro que apresentações, por exemplo, eu já em uma das apresentações a minha mãe e a minha irmã ouviu um dos pais reclamando com a professora de que aquela bolsista ia dançar mais uma coreografia e a filha pagante dela não iria dançar, isso era uma reclamação que ela tinha porque existia muito isso, “poxa ela é bolsista já é para baixo, mora na favela mais baixa ainda, não tem nem carro para levar para os festivais, precisa de carona. Então isso eram coisas que eu ouvi dentro da escola, não dos meus professores, nunca dos meus professores, e eu digo que eu tenho um privilégio com isso porque a gente sabe que muitas escolas não são assim, então eu agradeço por ter tido a oportunidade de crescer com dois professores sábios, que importava mais também a técnica independente da onde ela vinha, mas nem todos os pais da escola tinham esse pensamento, então a gente escutava, eu escutava muitas coisas até das alunas e uma das coisas, e eu vou chegar lá que me fez sair da escola e eu me arrependo hoje, mas faz parte do amadurecimento foi esses embates dentro da escola. Eu comecei a duvidar da minha capacidade, do meu potencial por causa do que eu ouvia, mas isso influenciava cem por cento, eu ser da favela e eu ser bolsista. Eu não tinha dinheiro para pagar minha roupa inteira, não tinha dinheiro para pagar mensalidade inteira, isso influenciava as minhas amizades, não era à toa que eu me tornei muito amiga do pessoal que era bailarina de lá e era da favela da Ilha do Governador, porque eles também se sentiam assim. Então a gente se aproximou um do outro, a gente foi criando esse laço mais forte de bolsistas dentro de uma escola pagante, e a gente aprende a lidar com isso. Das partes que a gente vai aprendendo durante a vida, eu fui aprendendo que eu precisava entender o valor da onde eu estava vindo e onde eu estava, o quanto isso era representativo e do meu valor, acho que entender da onde eu vim e o quanto isso representava, entendia o meu valor e a potência daquilo. Poxa, eu sou uma menina, que eu sou negra, eu sou de uma família só de mulheres, de pais divorciados, mulheres que lutam para caramba e que conseguiram me colocar em uma escola pagante e se eu estou aqui é porque eu mereço, porque eu fiz uma prova para entrar, eu tenho o mesmo talento de uma aluna aqui pagante, e foi assim que eu me mantive na escola, mas questões financeiras ainda começou apertar demais porque festivais e apresentações exigiam muito dinheiro, uma roupa às vezes era R$120,00, uma roupa, eu dançava às vezes 5 coreografias, 6 coreografias no espetáculo, cada coreografia é um valor, sapatilha de ponta era R$70,00, uma, e a sapatilha não durava 1 mês. No balé eu tenho um pé considerado, apesar de não ter uma curvatura muito grande do pé, eu tenho o pé muito forte, quando eu uso sapatilha de ponta eu quebro elas muito rápido e aí acaba que não dura. Minhas sapatilhas duravam duas semanas, três semanas no máximo, então tinha R$70,00 todo mês, duas vezes R$70,00, mais a mensalidade que era papo de oitenta e poucos reais e os figurinos de festivais e apresentações quando eu comecei a participar, e a minha mãe e minha irmã para conseguir dinheiro, porque nesse período meu pai não participava ajudando, foi um período que meu pai esteve muito ausente, então era dinheiro só da minha mãe e da minha irmã, minha irmã ainda estava fazendo faculdade na época e elas para conseguirem dinheiro me mantendo no balé, elas começaram a inventar coisas para vender nos festivais, então elas começarem a fazer guardanapo decorado, havaianas decoradas com guardanapo, a minha mãe viu que tinha um chaveirinho de pingente e começou aprender a fazer aquele chaveirinho para poder vender, então eu sempre participava dos festivais com a minha mãe e minha irmã participando das feiras, vendendo imã, vendendo havaiana, vendendo guardanapo e o dinheiro que entrava era para comprar uma bolsa, porque às vezes elas me viam indo para os festivais e as meninas indo com a bolsa que carrega tutu né? E eu carregava na mão ou em um saco que a gente botava bem grande para poder cobrir, minha mãe fala “não, você não vai andar desse jeito não que você não vai andar diferente delas” aí, ela juntava um dinheirinho, comprava o tecido e costurava, depois que tinha o dinheiro encomendava com outra costureira para poder ficar igual. Eu via isso como um apoio. Elas lutavam, juntavam e apertavam para eu não estar diferente das meninas, não porque eu vinha da comunidade, não porque eu estava de uma família era separada porque a gente ouvia isso também, “ah mas é mãe separada tadinha, ela nem trabalha, costureira”, então a minha mãe falava “com a minha costura eu vou fazer tua bolsa” e aí a mãe costureira fazia, e eu ia lá para os festivais toda linda e bela.
01:04:43
P/1 - Ela fazia o tutu?
R - Ela não fazia o tutu, hoje ela quer muito aprender para ajudar no projeto, ela já me fez desfazer um tutu inteirinho para ela fazer, mas na época ela ajudava, porque tinha uma costureira fixa da escola, que fazia os figurinos, então ela não fazia, mas a capa do tutu ela que fez, ela costurou, sainha que precisasse para usar, ela costurava bolsinha para carregar sapatilha, ela fazia e costurava para eu ter também
01:05:12
P/1 - As sapatilhas você comprava aonde?
R - Comprava em uma loja lá na Ilha do Governador, é a Só dança, acho que é Só dança. Não, Que malhas, que fica ali na Ilha do Governador perto da Portuguesa?
01:06:27
P/1 - Lenice, queria que você contasse um pouco para gente, você comentou que você ficou 8 anos na escola na Ilha do Governador, então quando você saiu de lá você foi para outra escola, e de que forma a ideia do balé transforma, foi sendo concebido na sua cabeça, porque você achou relevante esse projeto, o que te motivou, quem te estimulou? Uma questão que te motivou, por favor?
R - Teve um tempo de pausa até eu ter a iniciativa de iniciar o projeto, eu saí da escola por volta de 2012, e eu só iniciei o projeto do BalleTransforma em 2017, o processo dele começou em 2016, e deu iniciativa em 2017. Eu acho que esse período que me deu a coragem de dar iniciativa em um projeto social. Esse período foi para eu me redescobrir e redescobrir o meu potencial, que saindo da escola eu acabei perdendo um pouco. Saí da escola por duvidar do meu talento, duvidar da minha coragem e nesse meio tempo eu comecei a experimentar outras vertentes dentro da dança, fui para as danças urbanas, apareci na dança a dois, hoje eu tenho muito presente o zouk brasileiro que é uma dança a dois Então esse período me fez desenvolver o lado professora da Lenice Viegas que ainda não estava presente, eu só era bailarina e era dançarina, mas ser professor é algo muito distante para mim. Nesse período foi quando eu comecei a dar aula, comecei a dar aula de balé clássico em um projeto social em uma outra igreja em Olaria porque eu dançava balé, me achavam bonito dançando e me chamaram para dar aula, foi uma experiência horrorosa, mas me serviu de aprendizado e começou a nascer um pontinho de amor por ensinar e eu comecei a perceber que eu gostava daquilo, e que eu podia transformar vidas através da dança, assim como a dança transformou a minha vida. Eu posso dizer que a vontade de ter um projeto social como eu tenho hoje, de ter o BalleTransforma, nasceu pela transformação que a dança fez em mim, e na capacidade que eu vi que podia transformar outras vidas através da dança. Esse período foi o que me encorajou a fazer isso, eu comecei a perceber que eu tinha capacidade para ensinar, eu sempre tive muito forte dentro de mim que assim como pessoas me ensinaram, assim como pessoas se disponibilizaram para me ajudar, eu não podia deixar ensinamentos morrer em mim, eu tinha que passar ensinamentos para outras pessoas. Então, isso começou a ser muito sutil, eu começava a ensinar amigas minhas a dançarem, eu comecei a ensinar no meio de uma aula alguém a dançar, e eu fui percebendo que gostava daquilo, até que foi surgindo esse gostinho por dar aula, eu comecei a dar aula de balé, comecei a trabalhar em escola particular, meu primeiro emprego de carteira assinada foi em uma escola particular para dar aula, foi para uma turma de baby de 5 anos, tem uma foto delas bem pequenininhas. Eu com uma cara de criança também, mas foi aí que eu vi que eu gostava de uma coisa que eu fugia muito, porque eu dizia que eu nunca ia ser professora de dança porque eu queria ser bailarina. Meu sonho era ser bailarina, mas eu me vi por um outro lado, eu vi que eu seria diferencial nesse lado, que eu podia ser referencial por esse lado que é ser professora de dança.
01:09:52
P/1 - Essa escola da Ilha do Governador, você sai com alguma especialização? Você sai como técnica?
R - Saí com uma formação de conclusão. Eu não cheguei a pegar na época a minha conclusão porque eu saí meses antes, mas logo depois eu peguei a minha conclusão de bailarina e a gente sai. Normalmente, a pessoa entra no baby, finaliza todos os anos e saí com uma documentação, não é uma escola técnica, a Escola Slava Goulenko específico não é. A gente tem a Escola Centro de Dança Rio que é realmente uma escola técnica de dança. Então da Escola Slava Goulenko eu saí com muita experiência, muita base de conhecimento porque eu sempre estudei muito, mas eu entrei na UFRJ, que faço licenciatura em dança para ter uma documentação como professora de dança, porque eu queria estudar mais a dança e educação. Depois que eu comecei a gostar disso, o que me interessou em fazer a faculdade de dança, foi estudar a dança e educação, o que eu poderia aprender na educação, e o quanto que a dança poderia influenciar nesse sentido, né? O que eu podia me embasar ali mais.
01:10:54
P/1 - Como foi seu teste para entrar na universidade?
R - Para entrar na faculdade de dança eu tive que fazer o ENEM, e para entrar em bacharel a gente tem 3 cursos, Teoria de dança, Licenciatura e Bacharelado em dança. Para entrar no bacharelado a gente tem que fazer o teste de habilidade específica que é o THE, licenciatura e teoria só precisa do ENEM. Eu fiz tudo, eu fiz o ENEM e fiz o THE porque eu não sabia se queria fazer Bacharelado e Licenciatura, muito puxada para Licenciatura, mas quis testar o Bacharel. Passei em THE, são 3 fases. A gente faz a dança solo livre e espontânea, que é escolhida pelos professores na hora, sorteado uma música, a gente leva uma coreografia, uma música também que a gente escolhe, e a terceira fase é em grupo.
01:11:41
P/1 - Qual música você escolheu?
R - A música que eu escolhi foi Rosas de Ana Carolina, dancei ela, e a terceira fase foi em grupo, um dos professores da escola da UFRJ faz uma coreografia para gente, a gente faz e faz o teste. Passei em THE, mas escolhi entrar em Licenciatura e ingressei em licenciatura e é até bom porque lá dentro a gente acaba tendo aulas com os outros períodos, então isso ajuda bastante. Chega mais na fase final que fica mais estreito para licenciatura e bacharelado, estou tentando me formar, se a pandemia deixar a gente vai conseguir essa formação, mas já tô na fase do TCC que é a lágrima e choro para poder chegar lá.
01:12:21
P/1 - Já tem um tema?
R - O tema que eu quero falar eu estou em dúvida entre 2, que é a importância da maquiagem no mundo da dança, porque eu vejo que ainda a maquiagem artística é muito presente na história da dança, mas isso é pouco estudado dentro da faculdade, e eu tenho muita vontade de trazer uma documentação para ficar registrada sobre isso, ou falar sobre a importância da dança na trajetória de uma bailarina, que é como o corpo do bailarino se modifica ao longo do tempo com a dança. Então eu estou na dúvida entre esses 2 temas que me quebram, mas eu vou conseguir decidir entre eles.
Eu comecei a tomar coragem para isso, comecei a me encorajar para poder chegar, só que eu não sabia por onde começar. Meu principal contato com organização de projeto social foi no Balé Manguinhos, não sei se alguma de vocês conhecem, trabalhei por 5 anos no projeto do Balé Manguinhos, a Daiana Ferreira é uma pessoa que eu respeito muito, que eu aprendi muito com ela com questão de projeto social, ela faleceu esse ano, foi uma perda muito grande para o projeto, mas eu tive a oportunidade de aprender muito com ela. Ela teve seus erros, teve suas qualidades como qualquer pessoa, mas eu digo que o que eu suguei de aprendizado, no tempo que eu passei com o balé Manguinhos foi o que me ajudou a ter certeza do que eu queria fazer, do que eu podia fazer de transformação aqui no Complexo da Maré, porque se ela conseguiu, eu também poderia conseguir com toda a minha bagagem, e eu lembro de uma conversa que eu tive com a Daiana, e eu falo porque a minha mãe, a minha irmã sempre me motivaram, falavam que eu tinha capacidade, mas eu precisava conversar com alguém que estava com o peito aberto para os tiroteios que o projeto social traz para gente, que não é fácil, a gente não pode romantizar que trabalhar com projeto social é fácil, é difícil lidar com o público, é difícil lidar com algumas questões e eu queria ver esse lado apesar de já estar ali dentro e aí ela conversou comigo, ela falou, “Nice, é tiro porrada e bomba”. Ela falou bem assim. Quem já teve contato com Daiana sabe que ela era desse jeito - “é tiro porrada e bomba, mas se está no teu coração, não deixa isso passar, porque você pode já transformar um monte de vidas assim como eu”. Fiquei com aquilo na cabeça e falei, eu não posso deixar isso passar, e eu aproveitei todo o tempo que eu estava ali, para poder me amadurecer como profissional, como professora, em uma estrutura onde muitas pessoas jogam de lado. Eu lembro que lá a gente dava aula em chão, eu já fugi com crianças de tiroteio, estava tendo aula no chão e de repente a polícia passou com o bandido, deu tiroteio, e vamos todo mundo para o banheiro com as crianças, e eu falei - é isso que eu quero? Porque a gente mora na Maré, vai passar também...e algo, não sei explicar, mas algo sempre me disse que eu podia estar ali e que aquelas crianças confiavam em mim. Eu não consigo estruturar para você o que que eu sinto quando eu estou dando aula para as pessoas, ensinando para as pessoas. Eu sinto que eu preciso estar ali, eu preciso formar elas, eu preciso passar o meu conhecimento para elas, porque um dia alguém me ensinou e eu quero que elas tenham essa capacidade e coragem de ir além igual eu fui.
01:15:30
P/1 - Fizemos quando você fala, você fala dos moradores?
R - Os moradores, o projeto Vale Manguinhos, ele foi estruturado pelos moradores, e aqui também a mesma coisa, eu falo de Manguinhos porque foi a estrutura para chegar no BalleTransforma, e depois que eu tive esse aprendizado aqui na Maré, teve o ‘Caminho Melhor Jovem’, que estava tendo umas procuras de jovens para dar iniciativas a projetos. Eu fui ter um encontro de psicólogos com o Marcelo que foi o rapaz que me atendia, e em uma das conversas ele perguntou se eu tinha vontade e tudo, eu falei que tinha, mas não sabia por onde começar, e ele me apresentou o ‘Caminho Melhor Jovem’, que era uma oportunidade que estava sendo aberta para jovens da comunidade, que tinham desejo de algum projeto dentro da comunidade. Eu peguei a minha barra, peguei a minha bola só que eu fiquei com muito medo. Eu comecei um projeto social com 21 anos para 22 anos. Eu comecei com 21 e abri ele com 22 anos, eu era um baby, eu ainda não sou muito velha, mas existia uma criança que tinha acabado de sair de uma adolescência, de um monte de coisa, para poder pegar uma responsabilidade como essa, e ser referência dentro da favela para outras crianças, para outras mulheres, mas eu fui para casa e descansei meu coração, eu creio muito em Deus e pedi para Deus me dar uma certeza de que eu precisava fazer isso, e ele falou que precisava de alguém que eu não podia começar sozinha, eu tenho uma amiga que é chamada Eline, é do Maranhão, ela está comigo para tudo, falei assim: “Amiga tu me ama?” Ela: “Amo.” Aí eu: “Ama mesmo?” Ela: “Amo.” “Não amiga só porque eu estou precisando de alguém para começar um trabalho”, foi assim, “começar um trabalho comigo aqui rapidinho de dança. Vamos amiga, eu estou precisando de alguém. Vamos!” Quando chegou lá era para estruturar o projeto, a gente estava na primeira reunião do projeto, ela olhou para minha cara assim…”Você não é minha amiga? Então vamos embora, eu só preciso do seu nome”, e assim ela entrou no projeto, eu tive que começar com o nome dela, então eu sou a fundadora do projeto BalleTransforma, foi assim que ele começou na cara e coragem, com muito medo e muito receio, e a gente começou a fazer os encontros com o projeto do ‘Caminho Melhor Jovem’, junto com a Secretaria de Estado de Esporte e Cultura e Lazer do Rio de Janeiro, e a gente precisava estruturar o projeto no papel, nome, objetivo, público alvo, é como que aconteceriam as aulas, foi a primeira vez que eu estive com tanta documentação na minha vida, o tanto que eu tinha que digitar, o tanto que eu tive que escrever, o tanto que eu tinha que estrutural. Eu falei: “Gente, mas é muita coisa, né? Eu achei que era só dar aula em uma salinha.” E aí, a gente começou a estruturar o projeto, passamos fase por fase, escreve...
01:18:10
P/1 - Tinha o nome BalleTransforma?
R - Fomos chegando, eu queria um nome que tivesse significado, eu não gosto de nomes vagos e nem nome só para ser bonito e eu vim pela minha história de vida, o balé me transformou, então eu queria que o balé e a dança transformassem outras pessoas e foi aí que surgiu o Balé Transforma. A gente sentou, eu, minha mãe e minha irmã e a gente ficou tentando juntar, juntar até que chegou o BalleTransforma onde o T do Ballet é o T do Transforma já onde eles se unem, né? E a gente foi contemplada, teve toda a estrutura do projeto, levamos todas as documentações que precisavam, e esperamos o sorteio, teve o evento e o nosso projeto foi contemplado, chorei a beça, nem acreditei, depois eu chorei em casa com medo e tinha um limite, né? Tinha um período restrito para poder acontecer de 60 dias, a gente tinha R$15.000,00 na mão, foi o período que eu tive mais rica na minha vida. Eu nunca tive tanto dinheiro no meu nome, mas a gente tinha tinha 15.000,00, fizemos, buscamos tudo e aí tinha que acontecer. Teve um pequeno atraso por causa do governo e em 2016, o que era pra acontecer em 2016, aconteceu só no início de 2017 e com menos tempo, de 60 dias a gente tinha que fazer tudo em 30, e a gente começou a correr peguei esse primeiro investimento tinha que ser gasto diante de 30 dias, então a gente comprou uniformes, comprei collant, comprei meia, comprei sapatilha, redinha para coque, comprei lanches porque a gente fez um evento de apresentação nos primeiros dias para as alunas estarem junto com os responsáveis, então a gente fez pequenos mini quites, fiz o banner tudo do dinheiro do projeto a gente investiu, a gente investiu em notebook para gente ter estrutura para organização do projeto, documentações de pastas, fichas de impressões para poder ter as documentações, tenho tudo até hoje, todas as documentações delas, a assinatura dos responsáveis, termos de autorização, de imagem, a gente fez tudo muito bem documentado.
01:20:15
P/1 - Ia só meninas, ou meninos também?
R – Não, era aberto; não tinha restrição só para meninas ou só para meninos, era para alunos ali que quisessem ter a estrutura, e que quisessem ter acesso à dança. Eu não acredito que a dança é só para meninas, eu acredito que a dança é para seres humanos que querem aprender a dançar. Então, se você estiver disposto a dançar, você vai dançar se você quiser, independentemente da idade. Projeto social do BalleTransforma, ele é de 06 a 30 anos, eu restrinjo até 30 anos, mas sempre tenho alunas de 35, 34, porque eu acho que não existe idade para gente dançar, inclusive balé clássico, a gente tem uma história, como eu contei aqui no início que o balé é clássico, ele tem uma estrutura que você tem que começar de pequeno, e isso às vezes acaba com o sonho de muita gente que quer dançar e deixa de dançar, deixa de fazer balé porque está muito velho e eu não acredito nisso, eu acredito que a dança não tem idade. Se você está vivo, se você está respirando, você pode dançar independente da sua idade, independente do seu gênero, então o BalleTransforma nunca teve restrição. Desde o início era para alunos, sejam mulheres, sejam homens, sejam homossexuais, independente. Se eles querem dançar, o BalleTransforma está aberto para isso e a faixa etária também é bem longa, de 06 a 30 anos. Eu lembro que na apresentação que eu tive que fazer...
01:21:35
P/1 - Foi aonde, aqui?
R - Aqui exatamente na Maré no Parque União, o espaço da igreja que eu cresci, o pastor de lá ele é como um paizão para mim, muito pessoal além da igreja, como um paizão mesmo e ele sabia que eu estava com o projeto e eu conversando com ele, falei que precisava de um espaço que a gente não tinha, e ele falou que tem um espaço, tem uma sala de dança na primeira igreja, ele falou que podia ceder, só que o meu projeto ele não é ligado a religião nenhuma, e eu fiquei muito feliz porque a sala tem espelho, ela já é toda com ar-condicionado, então as minhas alunas teriam uma boa estrutura desde o início que muitos projetos não têm. Eu dava aula no chão com as minhas crianças onde a gente tinha que limpar, então quando eu tive essa oportunidade falei “eu vou agarrar ela”, então até hoje o projeto acontece lá, só que eu preciso de um espaço maior porque o projeto cresceu, a gente começou em 2017 com 60, 57 fichas. A gente fechou, eu nem acreditei quando aconteceu, e hoje a gente já atendeu mais de 150 alunos da Maré, desde Ramos até a Vila do Pinheiro, e tem gente também que já veio de Manguinhos, tem gente que veio de Bonsucesso, tem outros pingadinhos que vem de outros lados e o projeto cresceu demais, nessa pandemia a gente parou, mas a gente abriu com outro espaço e acontece lá. Nesse início do projeto eu aprendi e conheci uma nova Lenice, uma mulher mais corajosa e uma mulher que podia ir além. Eu tenho o lado da maquiagem, mas eu falo que a dança ela formou quem eu sou, a maquiagem ela me amadureceu e me transformou, mas a dança ela me formou de uma forma que se eu não tivesse passado por ela, se eu não tivesse passado pelo projeto eu não teria coragem de fazer outras coisas, não teria coragem de ir além, sabe? E estar no projeto BalleTransforma, ele me mostra isso diariamente, ele me mostra o porquê que eu escolhi ser professora, ele...
01:23:47
P/1 - Ele é emocionante, realmente é uma trajetória muito bonita, tem que se orgulhar mesmo!
R - Mas eu choro de felicidade porque eu nunca acreditei que eu poderia fazer isso, e eu sei que eu ainda não sou nada nesse mundo, mas quando eu vejo uma criança brilhar os olhos por ter acesso a algo que eu lutei tanto para ter, isso me alegra, acho que eu nunca falei isso tão aberto, mas quando eu fui, a gente foi estruturando o BalleTransforma, eu queria muito que as minhas alunas, e quem tivesse contato com o BalleTransforma, tivesse acesso a um ensino de qualidade, que eu tive fora da favela, que eu precisei pagar por isso. A gente na nossa sociedade ainda enfrenta muita coisa em si, de que quem mora na favela merece menos, merece pouco, ou não tem tanta capacidade, e eu vi na minha vida que eu tinha, vindo de uma estrutura que muita gente menosprezava, e eu queria que o meu projeto pudesse dar esse acesso mesmo com poucas condições, mesmo com pouca coisa, então a cada dia, cada mês que foi se passando, porque o projeto era para durar só 30 dias, e quando acabou, eu lembro que eu conversei com os responsáveis e falei “a gente não tem mais dinheiro, e eu não sou rica”, porque eu queria ter muito dinheiro para investir, eu estou disposta a continuar, mas eu vou precisar de vocês, a gente vai precisar botar uma taxa de ajuda de custo porque a Eline que é a minha amiga, ela também precisa de ajuda, eu também preciso de ajuda, às minhas alunas vão precisar, e todos os responsáveis toparam ficar, todos. Então o que era para acabar em 1 mês a gente já está aí em 2021, e a gente está parado desde que começou a pandemia, no início eu ainda consegui, continuei dando aula online, mas existe muita dificuldade de internet, nem todos os meus responsáveis têm celulares, as crianças têm muita dificuldade para fazer aula de dança online, e eu não julgo porque eu faço faculdade é horrível, horrível fazer aula de dança online, e a gente viu que isso foi parando, foi parando, mas a gente tem o grupo no Zap até hoje e as mães não saem do grupo, elas estão lá esperando o retorno, eu passo na rua e elas me param para poder voltar, algo que era para durar 30 dias está até hoje, e eu vejo que o meu objetivo está sendo concluído. A gente tem o costume de fazer apresentações de final do ano, quando eu falo que eu quero entregar algo de qualidade, todo início do ano eu faço uma reunião de responsáveis, e eu converso com as minhas responsáveis que o que elas têm ali, elas não estão tendo em lugar nenhum, elas não vão ter em lugar nenhum, que eu precisei pagar uma bolsa, meus pais precisaram se esforçar um pouco mais para poder ter um acesso e que elas estão tendo ali. Então, as minhas aulas são técnicas. Se uma bailarina do meu projeto for fazer um teste fora, ela não vai ter diferencial, ela aprende a aula técnica do balé.
01:27:10
P/1 - É sobre isso que eu vou te perguntar. Quer dizer, é uma aula sua de ensinamento técnico do balé, do balé clássico?
R - Ela é técnica, ela é clássica sim. O BalleTransforma ensina o clássico. Hoje, a partir do ano que eu entrei na faculdade de dança em 2016, foi quando eu ingressei e isso me ajudou um pouco a pensar a dança/educação, que é o que eu podia levar além do que eu já tinha tecnicamente de estrutura, então as minhas aulas elas são técnicas porque eu prezo pela técnica, eu quero que as minhas alunas aprendam a disciplina, eu quero que elas aprendam a se desenvolver, mas eu também trabalho a base técnica que a gente aprende da Helenita Sá Earp, que é o estudo de desenvolvimento da dança do ser humano, dentro das histórias, dentro dos estudos, então hoje eu dou aula de balé clássico sim, e eu também trabalho as bases da dança em cima dos estudos de Helenita Sá Earp da faculdade de dança, e as minhas aulas, principalmente dos adultos, eu trabalho o viés técnico para poder estruturar o corporal, mas eu exploro o desenvolvimento da dança de uma forma mais livre que a gente estuda essas bases.
01:28:25
P/1 - É uma forma de se relacionar com o corpo?
R - Sim, uma forma de se relacionar. Com a postura, com o relacionamento com o outro, com o desenvolvimento, com a capacidade de desenvolvimento de cada indivíduo, a autonomia de ser autônomo na dança e na vida, eu não consigo separar que a dança é uma coisa no palco e é outra coisa na nossa vida. Eu acho que o que a gente aprende na dança a gente leva para vida, a gente leva. Então nas minhas aulas eu prezo por isso, para que cada aluno que entrar ali, ele se desenvolva tecnicamente e também com a autonomia de ser o indivíduo.
01:29:21
P/1 - Lenice, conta para a gente uma apresentação de você. Você falou que ia em grupo fazer uma apresentação no final do ano é isso? Aonde?
R - Isso. No projeto a gente faz todo ano, porque isso é uma prática que tem em escola de dança, e como disse eu gosto de trazer para o projeto, é uma prática que a gente tem de todo final do ano. A nossa primeira apresentação foi na própria igreja, a gente não tinha outro lugar para dançar, eu falei que as meninas iam dançar até se fosse na rua, mas aí o pastor liberou a parte do templo e eu conversei com os responsáveis, estaria tudo bem para todo mundo, e a gente fez a apresentação no templo da igreja, teve uma apresentação com elas, minha mãe fez as sainhas das bailarinas com o tutuzinho, com o filózinho, e no outro ano eu consegui a Arena Cultural Renato Russo da Ilha do Governador, porque era o lugar que a minha irmã e eu dávamos aula, e a gente acabou conversando com um rapaz que ficava lá trabalhando na secretaria, e a gente escreveu uma documentação e conseguiu a data. Então os 02 anos seguintes, o nosso primeiro ano de 2017 foi lá, mas 2018 e 2019 foi na Ilha do Governador, elas tiveram acesso a palco, a luzes, eu fiz ensaio geral com elas, elas tiveram camarim, elas tiveram figurino porque minha mãe fez figurino para todas elas, as mães pagaram pelo figurino por um valor muito mais simbólico, mas elas pagaram, foram delas, tiveram maquiagem e a apresentação mais marcante foi a última, todas elas são marcantes e como vocês já viram, eu choro em toda apresentação, mas a última apresentação foi muito marcante porque eu assisti de fora, eu fiquei junto com o DJ que ficava de frente para o palco, e eu vi um espetáculo de dança com a mesma qualidade de uma escola de dança, das minhas bailarinas e dos meus alunos ali do projeto e foi a coisa mais linda, linda...eu tenho filmagens, eu tenho fotos e foram 100 crianças no palco.
01:32:07
P/1 - Lenice, você falou dessa apresentação que você viu pela primeira vez de fora, e que as tuas crianças, meninas e meninos estavam a par e passo com outras crianças que tiveram formações em outros lugares. Então o que significa isso né? Serem crianças nascidas na favela, que a família comprou esse sonho, valorizou a dança como uma possibilidade de transformação da vida dessas crianças. O que isso significa pra você?
R - Acho que significa muito. É uma transformação que a gente começa a fazer dentro da nossa comunidade. Quando eu digo que vi essa primeira apresentação delas com uma qualidade de escola, foi no geral, foi numa técnica, foi na roupa, foi na entrada, foi na saída de palco, foi em tudo, isso representa muito para gente, muito, porque a gente é sempre colocado para um lado mais baixo por ter poucas condições financeiras, por não comprar uma roupa, hoje eu vejo um movimento crescendo cada vez mais, e eu fico muito feliz por isso, de valorização pelo que vem de dentro da comunidade, porque a gente é rico em muita coisa e principalmente na arte, mas a gente ainda tem muitas pessoas de fora que menosprezam isso, menosprezam quem vem da favela, menosprezam se a pessoa fazer aula na Vila Olímpica, menosprezam se a pessoa fez pré-vestibular dentro da favela e não fez em uma escola mais cara, mas paga, a gente vê isso nos pequenos detalhes. Então ver uma apresentação de somente alunas do Complexo da Maré em uma arena fora da favela de balé clássico, que é uma história totalmente europeia e com a mesma qualidade! Isso é de um imenso valor que a gente não tem como mensurar, pelo menos para mim olhando, e essa apresentação eu falei que foi marcante porque eu busco sempre melhorar para as crianças, e a gente conseguiu alugar roupas para elas na loja que eu comprava sapatilhas de ponta, que inclusive a mulher é a mesma lá e ela lembrou de mim da escola de dança e eu estava indo lá para poder alugar tutu para as minhas bailarinas, e a gente pegou alguns tutu que estavam mais guardados, que já não eram mais usados e que estavam impecáveis e lindos, a gente alugou para elas, a minha mãe fez outras roupas mais evoluídas, a gente comprou collants, aquela cena ali era uma cena que há muito tempo atrás a gente só viria se fosse uma escola de dança paga, e a gente estava vendo de um projeto social.
P/1 - Uma ação maravilhosa, porque eu acho que é isso, é para além da questão só da dança, da técnica, mas eu acho que ela valoriza os indivíduos na sua na sua origem, na origem familiar, eu acho a beleza do projeto.
R - E eu acho que traz uma possibilidade de sonhar maior. Eu tinha muitas mães que nunca foram para uma apresentação, e a primeira vez que ela tiveram, muitas mães no meu projeto nunca foram no teatro municipal, inclusive são um dos projetos que eu quero trazer para dentro do BalleTransforma, que é abrir possibilidade de conseguir ingressos de alguma forma para elas conseguirem ir, porque eu tenho pais, eu tenho responsáveis que nunca foram no teatro, e que é a primeira vez que eles foram no teatro, teve uma responsável que falou, “nossa é a primeira vez que eu vou em um teatro”, mas olhando assim ela estava indo para uma arena que era pública também, não era um teatro que a gente está acostumado a ver, mas para ela foi “minha filha está dançando em um teatro de balé clássico” que ela dançou e aquilo foi muito significativo. As minhas alunas se sentiam bailarinas profissionais, porque elas tiveram que chegar antes, ensaiar em um palco, marcar palco, jogos de luzes e a minha professora estava falando no microfone e brigou com a gente, teve aluna que falou, “ela brigou com a gente para gente voltar porque é reverência final não ficou boa, a gente só vê isso em televisão”, eu falo assim, é porque eu sou rude, algumas me chamam de gavião, aquelas coisas de aluna, mas eu sou rude porque eu quero que ela tire o melhor, eu quero tirar o melhor delas, assim como o meu professor fez isso comigo e eu quero tirar isso de uma forma boa, muita coisa que eu também não quero que elas vivam, eu tento fazer com que elas não passem, mas isso tem um valor muito grande, eu percebo de perto hoje como indivíduo, nos pais e nos meus alunos.
01:36:51
P/1 - Obrigada pela reflexão, bacana o projeto sem dúvida nenhuma. A gente está finalizando. Eu queria que você contasse um pouco da sua experiência com maquiagem. Eu sei que você escreveu um E-book que você valoriza, vi na internet, que você começa o seu E-book dizendo: “a maquiagem me transformou”. Por que pode ser transformadora? Gostaria que você comentasse, e o porquê você se debruçou sobre a maquiagem. É uma maquiagem inclusiva para tons de pele branca, negra? Como é isso, reflete um pouco sobre isso. Por que você curte tanto e se aprofundou a ponto de escrever um livro?
R - A maquiagem é outro ponto de coragem, o primeiro ponto de coragem foi o projeto, depois que eu já passei, depois que eu enfrentei o que enfrentei com o BalleTransforma, eu acho que eu sou capaz de um monte de coisa. A maquiagem ela já estava presente na dança, eu comecei a maquiar dentro dos meus espetáculos, não tinha dinheiro para pagar maquiadora profissional, eu tinha que aprender a me maquiar sozinha, então me maquiava sozinha nas apresentações, foi daí que já começou e eu só não dediquei mais o meu tempo na maquiagem antes, porque eu entrei na faculdade e comecei o projeto BalleTransforma junto, eu não conseguia ser muita coisa ao mesmo tempo, ele apesar de tentar até hoje, e eu precisei estacionar, eu me formei em maquiagem antes de entrar na faculdade, me formei em maquiagem em 2016, eu já estava formada como maquiadora profissional, mas só voltei a atuar mesmo firme em 2019. Eu já estava atendendo, já trabalhava atendendo, já trabalhava maquiando com maquiagem artística do que social, maquiagem artística, são maquiagens que transformam, que trazem efeito, que a gente normalmente traz efeito de caveira, essas coisas todas, efeitos de cinema, eu gosto, é um prazer que eu tinha de maquiar, não me via profissionalmente como maquiadora, nunca me vi, incrivelmente eu nunca me vi como profissão, então eu via como hobby e alguém queria atender comigo, eu ia para atender. Na pandemia foi quando eu vi a minha capacidade de maquiadora porque parou tudo o presencial, meu projeto parou, minha faculdade parou, meus atendimentos, minhas aulas presenciais pararam, e eu só tinha a maquiagem e a dança dentro de casa. A maquiagem me manteve, a dança me manteve viva no que eu podia fazer, dançava sozinha, dava aula para as minhas alunas, e eu comecei a praticar mais a maquiagem e entrar no mundo da internet profissionalmente, que eu ainda não usava, já que eu era cem por cento presencial. Comecei a gravar vídeos porque eu sou um pouquinho descarada, minha mãe diz que eu não tenho vergonha, aproveitei isso para tirar um ponto positivo. Eu comecei a gravar vídeos, praticar muito mais, e começou gente procurar para poder aprender. No ano passado, na pandemia, eu formei mais de 90 alunas em automaquiagem, mulheres entre idades de 11 anos até 40 e poucos anos, que estavam em casa também com ansiedade a mil, e que queriam algo para poder trabalhar, e eu desenvolvi o meu primeiro curso de automaquiagem para poder fortalecer a autoestima e redescobrir o potencial da mulher dentro de casa, da mulher em si. E aí eu comecei a fazer um curso primeiro com a minha irmã, com a minha amiga Eline, que ela está presente em tudo, ela se jogou lá também, e comecei a formar as mulheres tecnicamente e comecei a relembrar tudo que eu aprendi na minha formação e estudar mais sobre a maquiagem. Fiz a minha primeira turma com 7 meninas, na outra turma tinha 17 meninas, na outra turma tinha mais 17, e as meninas pediram o módulo 2, e as meninas pediram o módulo 3, e eu fui criando e aquilo foi me desenvolvendo, foi me fazendo estudar mais a maquiagem, foi me fazendo praticar mais a maquiagem, e eu entrei no mundo do empreendedorismo digital, porque querendo ou não o projeto BalleTransforma é um empreendimento, só que de uma forma muito mais social, e todo o aprendizado que eu tive de documentação e de estrutura, eu usei para estruturar meus cursos e meu trabalho digital. Eu falo que nada na nossa vida é à toa. Tudo que a gente passa nos ensina alguma coisa e se eu não tivesse aprendido a estruturar o projeto, hoje eu não saberia estruturar o meu E-book. Eu não saberia o que fazer no meu E-book, e começou daí a minha maquiagem profissionalmente, eu decidi cair muito mais a fundo, hoje eu tenho 3 pontos de trabalho, que é a minha maquiagem pelo meio digital e também com atendimentos, o BalleTransforma que é um trabalho que eu nunca quero parar, e o zouk brasileiro que é uma aula presencial que eu ainda dou. Na maquiagem, depois dessa formação eu fiz o meu primeiro curso completo, depois que eu formei as meninas, que foi o “Do zero ao degradê perfeito'' que eu botei na plataforma da Hotmart, meu primeiro investimento digital.
P/1 - São meninas de idade diferente? São meninas brancas, negras?
R - A minha ideia é abranger todas as idades e todas as cores de pele. Uma das coisas que eu ensino e que já dei aula na internet por meio de live, foi sobre tons e subtons, a importância que a gente tem de estudar colorimetria na maquiagem, porque dentro do mundo da maquiagem tem diversas tonalidades, diversas sub tonalidades, uma pele negra ela tem um subtom frio, e ela também tem um subtom quente, dentro da maquiagem a gente estuda e a gente divide em três pontos, pele clara, pele média e pele escura para gente diferenciar as tonalidades de base. Em todas essas tonalidades elas vão ter subtons, que são fundos mais acinzentados e fundos mais amarelados. Isso tudo modifica nas tonalidades e a maioria das minhas alunas nesses cursos de automaquiagem são mulheres negras, e uma das dificuldades é que a base fica acinzentada na pele. Então, a gente começou a estudar, eu comecei a trazer para elas o porquê era importante a gente estudar a colorimetria dentro da maquiagem que pouco era falado, que é para entender porque as bases brasileiras elas são mais quentes do que as bases americanas, por exemplo, a gente às vezes compra uma base internacional e não entende porque na nossa tonalidade de pele fica muito cinza, mas é um país muito mais frio, é um país onde sub tonalidades são muito mais frias, então as bases não são feitas, específicas para gente, com tonalidades de tons brasileiros de peles negras. A Bruna Tavares é uma marca de maquiagem, não sei se alguém aqui falou, uma das referências hoje sobre tonalidades base, ela desenvolveu mais de 70 tons de uma base, é uma das bases mais completas nacionais. onde ela pegou todos os tons de inclusão da pele negra, é a única marca que tem uma tonalidade tão completa e que abrangeu tanto.
01:43:37
P/1 - Como você pode imaginar que em 2021 você só tenha...
R - Exatamente, exatamente. A gente tem muitas referências na maquiagem, mas completo, dentro dos meus estudos, a Bruna Tavares é uma das referências nessa questão, porque a gente ainda tem muita dificuldade em tudo, até em pó, produto de pó mesmo de rosto, de iluminador, isso tudo influencia e pouco é desenvolvido para gente que tem a pele negra, para gente que tem tonalidades mais escuras, isso influencia demais, a gente tem muitos produtos que ainda são desenvolvidos para peles brancas, para peles claras, essa dificuldade que encontra, em uma das aulas eu sempre falo, a pele negra ela pode ser estruturada em até 3 tons em um único rosto, uma única mulher, a gente pode encontrar 3 tons na pele dela. Então se uma maquiadora não se profissionalizar para poder estudar de fato e maquiar aquela mulher para valorizar os traços delas e a tonalidade dela, então ela não é uma maquiadora profissional completa. A gente dentro da maquiagem tem especializações. Me especializo em pele negra, noiva, artística, mas a gente tem uma base que a gente precisa conhecer. Eu me formei naquilo, então eu preciso pelo menos ter um estudo do que eu vou atender, e um dos estudos é estudar as tonalidades de pele negra.
01:44:51
P/1 - Bacana e o sucesso é incrível, e como é importante esse trabalho. É um trabalho social de conscientização e acho que é uma percepção de como o mercado ainda está atrasado nesse sentido. Infelizmente. Você falou do Zouk é uma dança adaptada para o Brasil? Brevemente só para gente ir finalizando.
R - O zouk brasileiro ele é uma dança que se originou da lambada. Ele veio surgindo quando a lambada estava morrendo, lambada é a coisa mais gostosa do mundo, e o zouk brasileiro é mais gostoso ainda, só que o zouk brasileiro resumidamente ele tem a contagem, as movimentações um pouco mais lentas comparadas a lambada, porque a lambada é muito mais agitada, as marcações são muito mais rápidas e os movimentos são muito mais chicoteados, e o zouk brasileiro ele veio com uma pegada mais ondulante, de movimentações de cabeças mais longas. movimentação corporal também muito mais longas e ondulantes. Então a gente precisou fazer uma contagem mais lenta.
P/1 - Ele é uma dança de casal.
R - Ele é uma dança a dois, e a gente trabalha com condutores e conduzidos, e a gente quebra um pouco o nome dama e cavalheiro para poder abranger um pouco mais, em alguns lugares a gente nem fala conduzidas e condutores, a gente chama apenas de follow e não follow. Follow é quem está dançando como conduzido, e não follow é quem está dançando como condutor, e é uma dança que abrange, a dança mais gostosa, inclusive se todo mundo quiser fazer aula comum eu dou aula hoje de zouk brasileiro no Pinheiro em uma academia que têm, a New Corpore, tenho alunos que são todos adultos. Eu saí agora do projeto da UFRJ, eu era professora lá, de zouk brasileiro, no Comunidança, que é o maior projeto que tem dentro da UFRJ de dança. Eu era a professora lá desde 2019.
01:46:53
P/1 - Muito bacana. Queria que você fizesse uma reflexão para a gente ir finalizando. Como é que você se vê hoje? Como uma jovem, mulher, nascida aqui na região da Maré, com uma formação acadêmica, e com uma possibilidade de inserção, de modificação aqui no seu ambiente de vida através da arte. Como é que você pode fazer uma reflexão para gente nesse sentido?
R - Eu me vejo hoje como uma mulher capacitada para ir muito além dos limites que nos colocam, e eu vi isso através da minha vida, a cada barreira que eu fui enfrentando, olhando hoje, a Lenice de hoje, porque se fosse uma Lenice de antes não falaria isso, mas hoje eu vejo uma Lenice corajosa, eu vejo uma Lenice capaz de enfrentar qualquer barreira, eu vejo uma Lenice capaz de levantar outras mulheres se for preciso, eu vejo uma Lenice capaz de vir aqui em uma entrevista e falar de uma história de potencial dentro da comunidade, e dizer que é possível sim a minoria ir além dos limites que nos colocam. Eu como mulher moradora, criada, como eu falo criatura da gema aqui do Complexo da Maré eu posso conquistar o mundo lá fora se eu quiser porque eu sou capaz e aonde eu moro, dá onde eu venho não diminui o meu potencial, e ser mulher também não diminui o meu potencial porque nessa vida profissional e nessa vida pessoal eu vi que entrar em alguns meios profissionais como mulher também exige um pouco mais de voz, para mostrar que a gente tem a capacidade, eu tenho capacidade de ser empreendedora hoje, eu tenho capacidade hoje de ser professora de dança universitária ponto a pegar o diploma, eu sou fundadora de um projeto social dentro da Maré, sou mulher e tenho a mesma capacidade de um homem de fazer um trabalho incrível, porque é independente do nosso gênero, mas da nossa capacidade e vontade de querer ir além. Então, hoje eu vejo uma Lenice brabona que eu nunca imaginei que seria. Eu digo que eu estou no início de tudo que eu sonho ainda em fazer através de tudo que eu já aprendi, mas que o que for preciso eu estou com o peito aberto para poder tomar umas porradas e sair enfrentando.
01:49:26
P/1 - Eu ia te perguntar sobre sonhos e agora a gente já sabe. É o de continuar enfrentando barreiras.
R - Meu sonho é ter uma escola de dança, meu sonho...eu passo por alguns espaços vazios, eu falo “Deus, me dá só um dinheirinho para eu poder comprar esse espaço aqui que eu faço uma escola” e o meu outro sonho é poder ser referência no mundo da maquiagem como uma mulher brasileira negra.
01:49:52
P/1 - Você gostaria de comentar mais alguma coisa? O que achou de dar esse depoimento?
R - Quero agradecer por essa oportunidade, é sempre bom a gente poder falar dos nossos sonhos, mas é sempre bom espaços como esse para poder estar falando de tudo que a vida nos proporciona e de tudo que a gente pode alcançar. Eu estou aqui no meio de um monte de mulheres, isso para mim já é sensacional, já é fenomenal, eu sou uma pessoa que falo muito, de perguntar, apesar de estar me controlando muito desde que entrei, mas é muito lindo estar aqui no meio de vocês, e eu vou chorar de novo, não é possível, mas é bom ver mulheres representando áreas tão incríveis e fazendo um trabalho tão incrível como esse. Eu espero que mais mulheres possam alcançar o mundo através da história da gente, não só a minha, porque se eu sentar para ouvir eu vou aprender com vocês muito mais do que eu estou falando. Quando alguém fala para mim que a minha história é bonita, eu fico surpresa porque eu não sou ninguém ainda, e eu tenho certeza que se eu ouvir você que está me entrevistando, se eu ouvir as meninas da câmera, se ouvir vocês duas eu vou aprender muito mais. Então, eu quero agradecer por essa oportunidade, o meu desejo é que esse trabalho vá muito além, o meu desejo é que esse trabalho alcance outras mulheres. Um dia falaram para mim assim: “Você é feminista”? Eu falei: “Eu sou.” Porque a partir do momento que eu tomo a frente de um projeto, a partir do momento que eu venho de uma família de 3 mulheres que tiveram que lutar depois de um divórcio, a partir do momento que eu tenho que lutar no mundão como mulher, então eu sou feminista pelos meus direitos de ser mulher e alcançar lugares, e estar aqui no meio de outras mulheres, me sentindo à vontade, me sentindo feliz e de estar falando da minha trajetória, muito obrigada, muito obrigada mesmo por esse espaço.
01:51:56
P/1 - Nós é que agradecemos muito por você compartilhar um pouco da sua história e trajetória. Muito obrigada Lenice. Obrigada por estar conosco, e dividir conosco um pouco das suas experiências de vida. Obrigada!
R - Ai gente, só vocês para me fazer chorar!
01:52:46
P/1 - Esse banner é o primeiro da apresentação?
R - É o primeiro do projeto.
P/1 - Vou botar aqui no chão para fotografar.
R - Pode. Ele está inclusive com os primeiros patrocínios, é a primeira igreja, o da secretaria.
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