P/1 – Começando aqui a entrevista, eu vou pedir pra você entrar em contato com as suas lembranças mais remotas, da sua infância. Desde o começo, desde a barriga, desde sempre. Vai voltando. Luciana, qual o seu nome completo?
R – Luciana Chinaglia Quintão.
P/1 – E qual seu local e data de nascimento?
R – Rio de Janeiro, 28 de setembro de 1962.
P/1 – Luciana, que imagens te vieram à cabeça, logo no começo?
R – Me vieram à cabeça que a vida é frágil e muito bonita.
P/1 – Mas veio alguma imagem sua, da sua família?
R – É que, assim, você pediu para eu me reconectar com os meus primeiros momentos de vida, desde a época da barriga da minha mãe, né? E, assim, já sofri um acidente na barriga da minha mãe, antes de nascer. Ela estava dirigindo grávida e ela sofreu acidente de carro, portanto eu estava junto com ela. Então, a vida, sempre, assim, me pareceu frágil e muito bonita. E eu sempre me perguntei como eu me encaixaria nesse processo de vida.
P/1 – Luciana, seus pais são do Rio de Janeiro?
R – Minha mãe é do Rio de Janeiro, nasceu no Rio de Janeiro. Na realidade, minha mãe nasceu aqui em São Paulo, e ela se mudou muito nova para o Rio de Janeiro. O meu pai chegou no Brasil com nove anos de idade.
P/1 – Me fala, então, um pouco, da família do seu pai e da família da sua mãe. Seu pai veio de onde?
R – Meu pai veio da África do Sul. Hoje é Maputo, chamava-se Moçambique, na época que ele veio para o Brasil.
P/1 – Por que ele veio para o Brasil?
R – Ele veio para o Brasil por uma questão econômica. Ele perdeu o pai e a mãe ficou com vários filhos, viúva, e ela tinha várias irmãs que não tinham filhos. Ele, então, veio morar com uma tia no Rio de Janeiro. E foi assim que meus pais se conheceram.
P/1 – Seu pai já tinha uma tia que estava aqui?
R – Sim, tinha uma tia que estava aqui. Estava lá, no Rio de Janeiro.
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Continuar leituraP/1 – Começando aqui a entrevista, eu vou pedir pra você entrar em contato com as suas lembranças mais remotas, da sua infância. Desde o começo, desde a barriga, desde sempre. Vai voltando. Luciana, qual o seu nome completo?
R – Luciana Chinaglia Quintão.
P/1 – E qual seu local e data de nascimento?
R – Rio de Janeiro, 28 de setembro de 1962.
P/1 – Luciana, que imagens te vieram à cabeça, logo no começo?
R – Me vieram à cabeça que a vida é frágil e muito bonita.
P/1 – Mas veio alguma imagem sua, da sua família?
R – É que, assim, você pediu para eu me reconectar com os meus primeiros momentos de vida, desde a época da barriga da minha mãe, né? E, assim, já sofri um acidente na barriga da minha mãe, antes de nascer. Ela estava dirigindo grávida e ela sofreu acidente de carro, portanto eu estava junto com ela. Então, a vida, sempre, assim, me pareceu frágil e muito bonita. E eu sempre me perguntei como eu me encaixaria nesse processo de vida.
P/1 – Luciana, seus pais são do Rio de Janeiro?
R – Minha mãe é do Rio de Janeiro, nasceu no Rio de Janeiro. Na realidade, minha mãe nasceu aqui em São Paulo, e ela se mudou muito nova para o Rio de Janeiro. O meu pai chegou no Brasil com nove anos de idade.
P/1 – Me fala, então, um pouco, da família do seu pai e da família da sua mãe. Seu pai veio de onde?
R – Meu pai veio da África do Sul. Hoje é Maputo, chamava-se Moçambique, na época que ele veio para o Brasil.
P/1 – Por que ele veio para o Brasil?
R – Ele veio para o Brasil por uma questão econômica. Ele perdeu o pai e a mãe ficou com vários filhos, viúva, e ela tinha várias irmãs que não tinham filhos. Ele, então, veio morar com uma tia no Rio de Janeiro. E foi assim que meus pais se conheceram.
P/1 – Seu pai já tinha uma tia que estava aqui?
R – Sim, tinha uma tia que estava aqui. Estava lá, no Rio de Janeiro.
P/1 – Estava lá, no Rio de Janeiro?
R – Isso.
P/1 – E a mãe dele veio junto com ele?
R – Não, a mãe dele ficou lá por muitos anos. Quando ela estava bastante idosa, ela veio pra cá... Pra lá (risos). É que eu estou em São Paulo, mas a minha origem é o Rio de Janeiro. Eu estou aqui há trinta anos, já. Mas aí ela acabou até falecendo no próprio Rio de Janeiro, assim. Os últimos tempos de vida dela foi no Rio de Janeiro.
P/1 – E você chegou a conhecê-la?
R – Sim.
P/1 – Como é que é o nome dela?
R – Ela chamava-se Lucilda.
P/1 – E seu avô? Quer dizer, o pai do seu pai, faleceu do quê? O que ele fazia?
R – Foi um acidente de carro que eles tiveram lá em Moçambique.
P/1 – E você sabe o que ele fazia?
R – Mais ou menos. Ele trabalhava, se não me engano, fazendo mapas, com geografia. Mas a minha família é muito pequena, meu pai faleceu, eu tinha 26 anos de idade, então não era algo que era muito comentado, assim, o histórico da família.
P/1 – Mas seu pai conta como era a relação dele com os pais, como eles eram?
R – Não, não contava.
P/1 – E seu pai fazia o quê?
R – O meu pai trabalhava... No começo ele era representante das canetas Parker no Brasil, e depois ele foi trabalhar com os negócios do meu avô, que chamava-se – por parte de mãe – Fernando Chinaglia, que foi um grande empreendedor brasileiro na área de publicações de revistas, cria toda essa questão de distribuição de revistas em bancas de jornais, pelo Brasil inteiro, antes mesmo da Dinap, que é da Editora Abril. Então, assim, tinha um grupo familiar, que tinha uma editora, uma distribuidora e uma gráfica. Então, meu pai ficava com a parte da gráfica e da editora, e o meu tio – que era o marido da minha tia, né – tocava a distribuidora.
P/1 – Dessa tia que já estava no Rio de Janeiro?
R – Não. Eu estava te contando da história do meu pai. Agora, estou te contando a parte da minha mãe. O meu avô, que é o Fernando Chinaglia, teve duas filhas.
P/1 – Então você está falando, agora, da sua mãe?
R – É, teve duas filhas. É que meu pai trabalhava... Quando o meu avô faleceu, o meu pai, então, veio trabalhar com os negócios da família, porque minha mãe não trabalhava, né, então era comum o homem tomar a frente dos negócios da família, mesmo que fosse da parte da esposa. Então o meu pai trabalhava pela minha mãe, e meu tio, pela irmã da minha mãe. Certo?
P/1 – E você sabe como seu pai e sua mãe se conheceram?
R – Eu acho que eles se conheceram em Poços de Caldas. Eles foram fazer uma viagem, cada um por sua conta e tal, e se encontraram lá.
P/1 – E você conheceu... Como eram seus avós, os pais dela?
R – Então, o meu avô, pai da minha mãe, que é o Fernando Chinaglia, morreu um ano antes de eu nascer. Então, eu fui a única neta que ele não conheceu. E a mãe da minha mãe, essa sim, viveu muitos anos. É a nona, Dona América, faleceu tem uns dezoito anos, mais ou menos, porque eu estava grávida do meu último filho, que tem dezessete anos. Então, ela morreu há dezoito anos, que ela faleceu, mas eu convivi com ela durante muitos anos.
P/1 – Como é que ela era?
R – A nona era uma mulher muito forte, leonina. Acho que essas são as maiores características que eu, meio, assim... Controladora da família, uma matriarca, mesmo. (risos)
P/1 – E seu pai e sua mãe se conheceram em Poços e aí eles logo se casaram? Como é que foi?
R1 – Eu não sei muito bem desses detalhes, porque, assim, como eu te disse, meu pai faleceu eu tinha 26 anos, eu estava casada há dois, já estava morando fora do Brasil. Não era uma coisa, assim, que eles comentavam sempre. Mas eles se casaram apaixonados, isso eu tenho certeza absoluta, eles se casaram muito apaixonados. Enfim, e eu não sei se foram dois ou três anos que eles demoraram pra se casar... Não sei.
P/1 – Quantos filhos eles tiveram?
R – Três.
P/1 – Você é qual?
R – Eu sou a caçula.
P/1 – E quando eles se casaram... Quer dizer, onde era sua casa de infância?
R – Era na Gávea, no alto da Gávea.
P/1 – Como era a casa?
R – Maravilhosa!
P/1 – Descreve-a.
R – Era uma casa muito grande, deve ter uns dez mil metros quadrados, se não tiver mais, e atrás do Morro Dois Irmãos, então, do jardim da minha casa, eu via o Cristo Redentor, eu via as estrelas no céu, escutava os grilinhos cantando, o barulhinho da chuva. Eu sempre fui muito ligada na beleza da natureza, sabe? Tinha muita árvore frutífera, e era praticamente do lado da Rocinha. Inclusive, a Rocinha cresceu tanto, né, que ela encostou, mesmo, nas casas ali. Não na minha casa, propriamente dita, mas muito próxima. Quer dizer: não é mais minha casa, né? Mas assim... Eu me perdi, aqui, um pouco. Minhas memórias, aqui, se confundiram um pouquinho no que eu queria dizer. Mas é isso: a Rocinha acabou encostando nessas casas. Ah, lembrei! O Parque da Cidade, né? É um parque muito bonito, no Rio de Janeiro, pouca gente conhece, e lá, hoje, no Parque da Cidade, tem pessoas com fuzis, porque ele faz margem com um pedaço da Rocinha, que se deslocou e, enfim, fez um ganchinho ali para o Parque da Cidade. Então, é uma coisa que me machuca muito, ver toda essa degradação.
P/1 – Luciana, quando você morava lá, você foi vendo a Rocinha e esse pedaço que você morava chegando perto ou já era [assim]? Como é que foi essa coisa? Como era, nessa época?
R – Não, na realidade, assim, a Rocinha já era muito grande na minha época. Eu sou da época que o Túnel Dois Irmãos estava sendo criado. Tinha uma época que eu escutava dinamite, assim, sabe, em 1970, ‘pá’, para abrir o Túnel Dois Irmãos. Então, assim, era muito para o nosso lado de cá. Depois ela desceu até São Conrado. Ela pega de São Conrado à Gávea, é enorme. Ela já era grande, mas a grande questão é que ela não para de crescer, essa é que a grande questão, porque, na minha opinião, não deveriam ter favelas – ou deveriam ser minimizadas. E não que elas crescessem. Por que eu tenho algum problema com o pessoal carente? Não, não é esse o problema. O problema é que as pessoas não vivem de uma forma adequada: sem saneamento básico... E no Rio de Janeiro você também destrói a natureza, porque as favelas, muitas, crescem em lugares que são morros, montanhas e, na realidade... É que, assim, muita desigualdade social, isso não é bom pra ninguém. Agora, como uma casa custa recursos financeiros, né, muitas pessoas não têm condições de morar numa casa e acabam tendo de morar em lugares menos favorecidos. E nós somos a sétima economia mais desigual do mundo. Existe uma avaliação entre os ganhos das pessoas, incrível, aqui nesse país. Então, assim, a gente acaba criando isso para nós mesmos. Na minha opinião, não teria necessidade de ter favelas se nós fossemos uma sociedade muito mais organizada, como nós deveríamos ser. Inclusive, eu trabalho pra isso, né?
P/1 – Luciana, vamos voltar um pouco para essa casa da Gávea. Suas irmãs têm quantos anos?
R – Minhas irmãs são... A mais velha tem, agora, 62 anos, e a do meio vai fazer 60... Não, 63, a do meio vai fazer 60, e eu vou fazer 58 na próxima semana. (risos)
P/1 – E vocês brincavam juntas? Quais eram as brincadeiras de vocês na infância?
R – Então, talvez porque eu era a caçula, minhas irmãs mais velhas não me davam muito guarita, não. (risos) Elas ficavam mais juntinhas, eu ficava mais separada. Então, assim, não, não brincávamos muito juntas.
P/1 – Mas brincava com outras crianças do bairro, como é que era? Da escola...
R – É, a gente brincava mais com as crianças da escola. A gente morava numa casa muito grande, não tinha muitos vizinhos próximos, então era mais aquela coisa, realmente, de ficar com a amiguinha da escola. Tinha aquela coisa da melhor amiga, dos melhores amigos. Como a minha casa era muito grande, muitos amigos vinham pra nossa casa tomar banho de piscina, passar o dia lá. As pessoas gostavam bastante. Inclusive, é interessante, porque eu moro em São Paulo há trinta anos, e muita gente que eu encontro, assim, depois de alguns anos ou depois de muitos anos, lembra da minha casa, de tão bonita que essa casa era, sabe? Não é nem tanto a arquitetura, porque era uma arquitetura simples, moderna, interessante, meio minimalista, com muito vidro, mas era a casa, assim... O espaço, porque realmente era um lugar muito bonito. E o Rio de Janeiro tem uma natureza muito bonita. O Rio de Janeiro é muito especial. Então, as pessoas lembram da minha casa. Eu também lembro com muito amor daquela casa.
P/1 – Luciana, e vocês iam à praia?
R – Eu ia à praia, mas a gente ficava mais na piscina. Mas também teve a fase da praia. (risos) Adolescência, né, quando você começa... Enfim, era mais praia, pra encontrar os amigos na praia. Mas a gente usava muito a piscina.
P/1 – E como era na sua casa? Quem exercia autoridade, seu pai ou sua mãe?
R – Meu pai. Meu pai era mais... O chefe da casa.
P/1 – Como ele era?
R – Meu pai era um homem muito... Ele era pisciano, então eu acho que ele guardava muito as emoções dele pra ele mesmo. E ele era um homem muito, muito... Eu achava meu pai muito bonito, assim. Não é enigmático, mas tinha uma intensidade no olhar. E ele era um pouco autoritário. Era um pouco machão, até, assim (risos), no cuidado. Três meninas e a esposa, né? Ele era meio superprotetor.
P/1 – E sua mãe?
R – A minha mãe era uma mulher, assim, muito sensível, muito bonita, e ela era mais delicada. Era uma pessoa mais frágil, por assim dizer. Mas, na fragilidade dela, ela tinha muita força também pra seguir com a vida. Mas ela era uma pessoa mais delicada, por assim dizer.
P1 – E ela trabalhava?
R – Não.
P1 – Ah, você contou, no começo. E como era o cotidiano, assim? Ela cozinhava, tinha empregada...
R – Minha mãe não cozinhava, nós tínhamos empregada. Eu realmente nasci numa família... Não vou dizer numa família milionária, não, mas era uma família, assim, classe média alta. Então, assim... O Rio de Janeiro teve muito um glamour, né? Acho que minha mãe é um pouco dessa época, ainda, de Copacabana, das amigas que se encontravam e foram criadas para serem mães. Eu acho que a minha mãe tinha, meio, essa pegada.
P/1 – E você se lembra das comida da sua infância?
R – Lembro, lembro de comidas da minha infância. Tinha uma empregada chamada Laura, que morou na minha casa muitos anos, e eu a amava. O nome dela era Laudicéia. Eu amava a Laudicéia – mas era Laura, né –, e ela cozinhava, era uma baiana que veio da Bahia separada, sozinha, com três filhas. Era engraçado, porque ela era negra, negra, negra, negra, e ela tinha uma filha negra, negra, negra; uma filha branca, e uma filha mulata. (risos) Assim, era o máximo. E quando eu era pequena – enfim, fantasias de criança –, eu achava que a pessoa era preta porque pegava muito sol (risos), então eu ficava levantando a saia dela pra ver se ela tinha marca de biquíni. Mas a Laura fazia, assim, creme de abacate... Na minha casa tinha um abacateiro enorme. Batia sorvete com abacate e limão; eu adorava, assim. Ela era meio... cozinhava com amor pra gente, então eu adorava comer... Hoje eu não como mais carne, mas eu comia muita carne moída com arroz, feijão, e purê de batata. (risos) Ela cozinhava bem gostoso pra gente. Ovo frito eu amava!
P/1 – E as filhas dela ficavam na sua casa?
R – De vez em quando, por algum motivo ou outro. Mas não, não moravam com a gente, não.
P/1 – Na sua casa se comemorava datas, assim, Páscoa, Natal...
R – Ano Novo. Réveillon era sempre na minha casa. Uma grande festa.
P/1 – Quem é que ia?
R – Os amigos dos meus pais, basicamente.
P/1 – Você lembra de algum Ano Novo?
R – Ah, vários.
P/1 – O que você lembra?
R – Lembro que era uma grande celebração. Muita comida, muita champagne. De novo: realmente a casa era muito propícia. Tinha um jardim muito grande, aquelas estrelas no céu. Era um local muito bonito, mesmo.
P/1 – E você teve algum tipo de formação religiosa?
R – Então, eu sempre tive muita vontade de entender tudo. Então, eu lembro que eu sempre pensei em Deus, em um Deus, e eu me lembro que eu queria muito fazer a Primeira Comunhão, porque eu achava que aí eu ia entender o que era Deus. E eu lembro: recebi um livro lá de capa azul, e eu lembro que eu estudei aquilo, aquilo não me respondeu nada. Então, eu sempre tive uma procura espiritual, sempre. O meu pai não falava de religião com a gente, e a minha mãe era muito... Assim, rezava muito, era muito católica. Ela tinha uma grande imagem, sempre teve, do Coração de Jesus, do Coração de Maria. Minha mãe rezava muito. Mas eu sempre tive essa procura espiritual, sempre.
P/1 – Desde pequena?
R – Desde pequena. Fui fazer Antroposofia, li Jung, Freud. (risos) Eu sempre tive interesse em entender as coisas. Eu lembro que, quando eu fui fazer vestibular, eu estava na dúvida entre Economia, Filosofia e Engenharia. Engenharia eu não sei por quê. Porque, sei lá, porque eu acho que eu pensei, também... Porque eu era muito boa aluna. Falei: “Será?” Mas foi uma coisa que eu logo... Mas foram as três que eu tinha imaginado. Psicologia, não. Medicina, jamais, porque eu achava muita responsabilidade cuidar de pessoas, que é o que eu cuido, eu faço. Hoje eu cuido de pessoas, mais, assim, nesse nível... Então, acabei fazendo Economia, que foi um curso muito bom, na PUC [Pontifícia Universidade Católica] do Rio de Janeiro, numa época em que... Ela ainda é muito conceituada, né, mas realmente, eu peguei grandes professores, e sempre fui uma pessoa interessada por conhecimento. Então, eu lembro que, pra mim, aquelas aulas eram, assim, uma abertura de mundo, assim como Antroposofia também foi uma abertura de mundo na minha vida. Inclusive, quando eu estava fazendo o curso, formação antroposófica, a sensação que eu tinha é que eu estava sendo iluminada por um farol, que tinha um farol na minha frente, mostrando, assim, uma grande luz.
P/1 – Luciana, com quantos anos você entrou na escola?
R – (risos) Entrei na escola, eu acho, que com três aninhos.
P/1 – E você lembra de alguma coisa dessa fase?
R – Eu lembro. Eu tinha medo de ir pra escola. Tinha medo de me separar da minha mãe. (risos) Também peguei uma escola de freiras muito traumatizante, sabe? Então, foi uma época desafiadora pra mim, assim, desde pequenininha.
P/1 – Em que escola?
R – Chamava São Marcelo. Ficava, também, lá no alto da Gávea. Depois virou Bahiense. Mas era uma escola de freiras, e elas eram muito rígidas, então eu lembro que foi difícil.
P/1 – Luciana, mas essa escola foi a que você fez o primário? Ou foi fase da pré-escola?
R – Foi pré-escola. Depois fui para outra escola, chamada Rio de Janeiro, e eu fiquei lá até o... Na minha época era científico, que hoje é ensino médio. Aí, quando eu cheguei no científico, eu voltei para o São Marcelo, porque agora era Bahiense. Então eu fiz o primeiro, o segundo e o terceiro colegial, prestei vestibular e entrei na PUC.
P/1 – E no primário, tem alguma professora que tenha te marcado?
R – Tem, a tia Diva e a tia Nazaré. (risos) Olha que coisa! A tia Nazaré foi no meu primeiro ano. E eu lembro que eu tinha tanto carinho por essa professora, que ela ficava sentada lá na mesa dela, eu ia lá e ficava fazendo carinho nela, na cabeça dela. E eu me lembro que um dia ela me levou pra passear, num final de semana. Ela pediu permissão para os meus pais e me pegou pra ir passear no final de semana, eu e mais um menino, chamava Luiz... Paulinho, se não me engano. E depois a tia Diva, não sei por quê. Acho que foi na época que a escola começou a fazer muita excursão, né, então eu lembro da tia Diva, saindo com ela pra conhecer o Museu Nacional – que não existe mais – no Rio de Janeiro. Essas coisas de falta de cuidado. Enfim. E essas duas professoras me marcaram mais. Depois teve uma no colegial. Não, acho que na sétima série, lembrei dela agora. Ela me chamava atenção porque ela era um mulheraço, professora de Matemática. Porque, assim, a tia Diva e tia Nazaré eram professoras de todas as matérias, né, no primário. Depois vai separando. Então, essa professora se chamava Miriam. Era uma mulher altíssima, né, de olhos verdes, cabelos castanhos, e os meninos ficavam loucos por ela. Então, tia Miriam... Não, Miriam... Lembrei agora, agora eu estou lembrando de outros também. (risos) Do professor Dalton, de Redação, já no colegial; professor de Geometria, muito bravo, botava medo em todo mundo. Falando agora, me vieram algumas lembranças.
P/1 – O que você mais gostava, na escola?
R – De aprender. Eu sempre gostei de aprender.
P/1 – Tinha alguma matéria que você gostava mais, já, desde o ginásio, ou do primário?
R – Não sei, porque, na realidade, pensando bem, hoje eu vejo que a minha formação não foi boa. Não foi tão boa quanto poderia ter sido. Então, por exemplo: História, aprendia muito pouco; mesmo Geografia poderia ter sido tão mais bem apresentada... Eu gostava mesmo, gostei mesmo, em relação a aprender, da época da faculdade. Porque antes era assim: eu queria aprender porque eu achava importante conhecer, mas onde eu realmente comecei a babar para o que eu estava ouvindo, foi na faculdade.
P/1 – Como era o seu comportamento na escola? Você era do tipo mais...
R – Quietinha. Tímida, quietinha, observadora. Era mais assim.
P/1 – E como foi a passagem do primário para o ginásio e o colegial, para a adolescência?
R – Ah, então, todas nós temos as nossas questões na adolescência. Na adolescência você entra em um mundo... Já aos nove anos que a Antroposofia fala queda do paraíso. Você não é mais nem criança, nem é adulto, pré-adolescente, e aí você começa a ver o tamanho da vida. E tem muita questão, todo mundo tem questão na adolescência, né? ‘Quem sou eu?’ ‘O que eu faço?’ ‘Qual é a melhor decisão?’ ‘Como devo me portar?’ Eu acho que isso... Eu não sei se todos passam pela mesma coisa, mas eu acho que é um momento de descobertas e de um novo encaixe. Eu acho que a adolescência é um momento bem desafiador, pra muita gente.
P/1 – O que mudou na sua vida, de hábito? Quais eram essas suas questões?
R – ‘Afe’, a minha questão era todo mundo namorando, né? Qual é o limite... E eu, muito tímida, não queria namorar, então era muito criticada pelas amigas, umas coisas assim. Essas foram, um pouco, as minhas dificuldades na adolescência. Um pai muito severo também, aí todo mundo: “Vamos fumar maconha?” E eu: “Não”. (risos) Então toda essa coisa de: “Nossa, quem eu vou ser? O que eu vou fazer?” Eu já me preocupava muito com a minha responsabilidade, numa época que, talvez, eu não tivesse que me preocupar tanto com a minha responsabilidade. Mas eu me perguntava muito assim: “Quem eu vou ser? O que eu vou fazer? Qual é o certo?”
P/1 – Como era a sua relação com a cidade? Você saía de casa?
R – Amava a cidade. Nossa, eu amava aquela cidade! O Rio de Janeiro é muito bonito. Eu lembro que eu morava no alto da Gávea, mas ali perto tinha um ponto de ônibus, o ponto final do Frescão, que é um ônibus com ar-condicionado. Quantas vezes eu peguei o Frescão, ia até o ponto final e voltava! Ou, quando eu fiz dezoito anos, pegava meu carro e ia até a Floresta da Tijuca. Passeava, passeava, passeava e voltava. Porque o Rio de Janeiro é lindo! Na realidade, eu já não vou mais com frequência ao Rio, por uma série de motivos né, mas aquela beleza do Rio de Janeiro... Tanto que, quando eu me mudei pra São Paulo, eu me sentia enterrada. Foi muito difícil me mudar pra São Paulo, eu me sentia mal. É como se fosse, assim, um mar de asfalto, de pedra. Porque o Rio é outra coisa, e eu lembro que, enfim, uma época da minha vida, casada com meu primeiro marido, nós tínhamos uma casa em Campos do Jordão e, quando eu descia à Campos do Jordão, vinha Rio, São Paulo, a gente voltava, chegava na Marginal, eu sempre tinha dor de cabeça, um pouquinho de enjoo. Mas, em relação ao meu trabalho, sempre foi um sol na minha vida, assim. Eu sempre gostei de trabalhar, criar os meus filhos. Então, esse era um outro lado. Mas o Rio de Janeiro, sim, é uma cidade... Tem outras no mundo também, mas o Rio de Janeiro é uma cidade muito especial.
P/1 – E que lugares você frequentava, na adolescência?
R – Ah, então, esses lugares assim: faculdade... Mais Ipanema, Leblon, porque estava ali embaixo, né? Assim, Barra [da Tijuca], também. Eu lembro que, quando eu tinha uns quinze anos de idade, eu adorava também – a casa tinha motorista – pegar o motorista depois do almoço, do sábado – que ele trabalhava no sábado – e a gente ia até Grumari ou (Lima do Meio?) [27:19]. A gente ia até Grumari, caía no mar e voltava. Eu sou da época que a Barra ainda não tinha prédio. Isso não tem muito tempo. Hoje a Barra parece Miami. Então, essa coisa da natureza, eu sempre tive uma conexão com a natureza, a natureza me encanta. Eu vejo uma florzinha, posso ficar olhando ali, aquilo me emociona, entendeu? Eu gosto da natureza. Eu acho a natureza uma coisa, assim, divina. A natureza é divina. Então, eu ia pra esses lugares, assim.
P/1 – Mas você disse que você era mais tímida. E você tinha algum namoro, alguma paixão na adolescência?
R – Não. Eu fugia dos meninos. (risos) É o contrário, né? Eu fugia dos meninos.
P/1 – E você tinha amigas?
R – Tinha, claro, tinha amigas.
P/1 – Quais você lembra, desse período?
R – Eu tenho uma amiga muito... Que eu lembro dela até hoje com muito amor, com muito carinho, chamava-se Denise, e ela parou de falar comigo justamente por uma confusão de meninos: quem gosta de quem. Isso foi uma dor pra mim, na adolescência. Eu acabei perdendo essa amiga, por uma questão, mesmo, de triângulo amoroso. E, no fim, ninguém namorou com ninguém.
P/1 – Como é que foi essa história?
R – Ah, ela amava muito o menino e, no final, o menino achava que gostava de mim. Nós éramos melhores amigas, e aí, enfim, o menino falou pra ela: “Olha, eu não quero ficar com você, porque eu gosto da Luciana”, e foi uma tristeza, porque ninguém ficou com ninguém (risos) e eu perdi a amiga. Espero que ela esteja muito bem, onde ela estiver.
P/1 – Ela faleceu?
R – Não, não faleceu, mas ela era uma menina assim... Ela era muito especial.
P/1 – E os seus pais, eram mais rígidos?
R – Meu pai era. Meu pai era rígido.
P/1 – Em que sentido? Horário pra voltar?
R – É, horário pra voltar, questão de namorados. A gente morava na casa, como eu te falei, em cima eram os quartos, assim. Se algum menino subisse naqueles quartos... Entendeu? Ele era muito rígido.
P/1 – E as suas irmãs, como eram?
R – As minhas irmãs eram diferentes. Cada uma é uma, né? A minha irmã Letícia é mais forte, leonina, mais territorialista, mais crítica, enfim, a mais velha. A do meio muito aventureira, uma graça ela. Meu pai era bravo, mas ela dava as escapadas dela, e ela não tinha nenhum peso na consciência. Eu não. Eu não podia falar uma mentira, que eu ficava mal. Eu era muito... Sabe? Não, não, não, porque é certo. Esse negócio do certo sempre foi... Talvez, também, por ser libriana, essa coisa da justiça. Enfim, então éramos assim.
P/1 – E nesse período de escolha profissional, como se deu a sua escolha?
R – Então, na realidade eu me formei, aí eu fui fazer mestrado...
P/1 – Mas por que você escolheu Economia?
R – Então, porque eu estava... Ninguém me falou nada. O meu pai não fez faculdade, a minha mãe não fez faculdade, as minhas irmãs foram fazer faculdade mais tarde. Era uma coisa minha, mesmo.
P/1 – Mas tinha alguma expectativa para que você seguisse alguma carreira?
R – Olha, era assim: os meus pais sempre me apoiaram na questão dos estudos, mas eu acho que, se eu falasse: “Não quero estudar e quero casar”, se eu tivesse encontrado um marido pra casar, eu acho que eles não se oporiam. Não era uma coisa que era muito incentivada, que eu tinha obrigação de fazer. Eu fiz porque eu quis, eu sempre tive essa coisa de estudar. Até muito num lado negativo, porque eu me cobrava muito. Sempre me cobrei muito, desde pequenininha, sabe? Então era uma coisa que eu que me cobrava, não tinha essa cobrança em casa, pra ser alguém ou fazer alguma coisa.
P/1 – E por que você escolheu Economia?
R – Então, porque eu queria entender as coisas, e eu achava que Economia era uma ferramenta pra entender um pouco como as coisas funcionam. E ela é, mesmo, uma ferramenta interessante.
P/1 – E o que você descobriu na faculdade? Professores...
R – Professores: Pérsio Arida, foi Ministro da Economia por muitos anos, um gênio. O cara chegava na sala de aula, tirava o relógio, botava em cima da mesa, assim, e falava uma hora e meia sem parar, tranquilamente. Eu sempre na primeira carteira, sabe? (risos) Vários professores muito bons. Pedro Malan, André Lara Resende... Os pais do Plano Real. Paulo Guedes, né? Então, era muito interessante, você pegar dois economistas brilhantes: um heterodoxo e o outro ortodoxo, os dois chegam no mesmo objetivo, de duas maneiras completamente diferentes. Economia é muito interessante. Economia é um corpo vivo. Ele é vivo. Qualquer coisa que você faz aqui tem uma consequência em outro lugar. E Economia é uma coisa muito importante. Enfim, não sei se a gente vai chegar nesse ponto, mas por isso que eu escrevi esse livro, no final do ano passado. Existe uma coisa chamada déficit público, que é quando o governo gasta mais do que arrecada. Isso é uma coisa que não deveria mais acontecer, porque, quando tem déficit público, toda a sociedade sofre. E a gente tem mecanismo para não ter déficit público, se trabalharmos com inteligência e com eficiência. Então, déficit público é uma coisa ruim, que muitas vezes não é criada pela própria economia, mas sim por quem governa, e a gente sofre as consequências. Então, assim, está tudo interconectado.
P/1 – E você foi criando esse pensamento durante a faculdade?
R – Durante a faculdade eu percebi que aquela desigualdade social que eu via no meu bairro não era só no Rio de Janeiro, era no Brasil inteiro. E eu nunca me conformei com tanta pobreza no meio de tanta riqueza, por isso que eu acabei criando o Banco de Alimentos, há 22 anos. Eu percebi que, quando eu estava na faculdade... Entrei na faculdade com dezoito anos e, assim, sempre muito ingênua. Eu acho que eu era uma menina muito ingênua, em vários aspectos. Eu achava que o fato do Brasil ser daquele jeito, assim... Bom, primeiro que eu não vi todas as mazelas de uma vez. Não é isso, né? Mas eu achava que os problemas que nós tínhamos, e tal, era porque o Brasil era muito grande e difícil de ser administrado. Aí eu fui crescendo e fui entendendo que não era nada disso, não. Ele é grande, é um desafio? É, mas está tudo nas nossas mãos. A gente poderia estar em um outro lugar já, há muito tempo. Então, eu sempre tive essa ideia, e já comecei a ter essa ideia logo depois da faculdade. Saí da faculdade, mais um pouquinho e tal...
P/1 – Você fez parte de algum movimento estudantil?
R – Não.
P/1 – Tinha movimento estudantil lá?
R1 – Tinha, mas meu pai, também, muito preocupado com essa questão de repressão, né... Eu lembro que um dia eu fui em uma passeata e ele ficou louco. Na cabeça dele, eu estava correndo perigo, porque teve muita coisa, né, no Rio de Janeiro. Teve muita repressão, durante um tempo. Como eu te falei, meu pai era superprotetor, então ele tentava fazer uma redoma pra gente não entrar em contato com outros tipos de problema.
P/1 – Eles falavam em política na sua casa?
R – Não, nada. Nem de política, nem de economia. Eu via meu pai muito preocupado, muitas vezes. Meu pai viveu hiper inflação, então eu o via muito preocupado. Algumas vezes a gente fazia revista, quando a revista ficava pronta, na hora de vender, já pagava os custos que a revista teve. O Brasil viveu momentos muito difíceis, e estamos vivendo, ainda. Por isso que Economia é um instrumento muito importante, assim como a política também é.
P/1 – E no período da faculdade, você fez estágio?
R – Não, não fiz estágio. Na realidade, eu acabei – era um curso de quatro anos – adiantando umas matérias e, no último período, tinha só quatro matérias pra fazer, aí eu fui ajudar dentro do departamento de Economia da própria faculdade. Mas nunca fiz estágio remunerado.
P/1 – O que você ajudava, na faculdade?
R – Quem me ajudava?
P/1 – Não, o que você ajudava, foi ajudar na faculdade, o departamento?
R – Então, eu ajudava outros estudantes, que tinham um pouco de dificuldade, fazer monitoria. Algumas coisas assim, não era muita coisa.
P/1 – Que matéria você mais gostava?
R – Eu acho que Macroeconomia.
P/1 – E aí, nesse período da faculdade, você tinha alguma coisa assim: “Quando eu sair daqui, eu quero fazer tal coisa”?
R – Tinha. (risos) Inclusive, você me lembrou de uma coisa agora, que me deu vontade de contar.
P/1 – Conta.
R – Quando eu era criança, a coisa que eu achava mais linda eram as chacretes, do Chacrinha. (risos) Mas nunca, com a minha timidez, seria uma chacrete do Chacrinha. Mas eu achava lindo, as achava lindas, sabe? Eu tinha vontade (risos) de ser uma comentadora de Economia na TV Globo. Eu tinha vontade de fazer isso, falar sobre Economia. “Hoje aconteceu isso, por conta daquilo, que vai levar àquilo”. Tinha vontade de fazer isso. De falar, ser jornalista econômica. Falar sobre Economia na televisão. Mas isso também não durou muito, não. Mas eu tinha esse sonho.
P/1 – Você chegou a ir atrás?
R – Não, não cheguei a ir atrás, mas eu comentei isso com meu tio Domenico, que ficava na distribuidora e distribuía todas as revistas da Editora Globo, e ele falava: “Vamos fazer isso, Luciana, vamos”. Mas esse tio também morreu logo depois, meu pai também morreu logo depois, eu vim pra São Paulo, enfim. Quando eu vim pra São Paulo, seis meses depois meu pai morreu, e meu tio tinha morrido um ano e meio antes. Então, eu realmente entrei na editora. Eu editava revistas como Casa & Jardim, Forma Física, Autoesporte, me apaixonei e fiquei lá, fazendo revistas.
P/1 – Revisão? O que você fazia?
R – Eu fazia... A editora era muito pequena, a gente fazia um excelente produto, até porque tinha uma questão de não ter uma editora grande, pra não concorrer com a própria distribuidora, então a ideia sempre era ter uma editora menor. Tudo: pensava na pauta, fazia produção, a parte comercial. Um pouco de tudo, como diretora. Então é uma coisa estranha, eu sou uma pessoa estranha, porque eu tenho múltiplas funções. (risos) Eu consigo fazer algumas coisas, assim, diferentes, mas que se completam. Tem um pouco de liderança, tem um pouco de psicologia, tem um pouco de criatividade...
P/1 – Que revistas você comentou?
R – Casa & Jardim, e tinha vários filhotes, né? Tinha a revista Construção e Reforma, Cozinhas e Banheiros, Salas e Quartos, Quartos de Bebê, Área de Lazer. Então a gente sempre tinha a revista Casa & Jardim, a principal, mais um filhote. Tinha revistas que eram semestrais, anuais. Sempre tinha Casa & Jardim e mais um filhote na banca.
P/1 – E como foi pra você? Você assumiu depois que seu pai morreu?
R – Na realidade, quando meu pai morreu, meu cunhado, marido da minha irmã mais velha, ficou à frente. E, naturalmente, eu cresci dentro da empresa, porque é uma questão... Empresa familiar, né, pequena. Ele era presidente, eu era... Não comecei como diretora, mas depois virei diretora também. Tinha dois diretores já há muitos anos, e depois de um tempo eu virei diretora também. Um deles saiu. E foi assim.
P/1 – Como é que foi, como era a sua convivência desde pequena nessa editora? Como é que era seu pai, seu tio? Como é que foi essa convivência?
R – Então, na realidade, existia isso sim dentro da família, um amor e um respeito pela Chinaglia. A Chinaglia era uma coisa importante dentro da nossa família. Tanto que... É engraçado isso, porque hoje em dia as pessoas falam: “Luciana Quintão”. Eles aboliram o meu Chinaglia e o meu ‘C’. Pelo menos o ‘C’, né? Eu me sinto mal. Inclusive, na minha infância, na minha juventude, meu nome principal era o Chinaglia. Então, Luciana Chinaglia. E agora estão abolindo meu Chinaglia. (risos) Virou Luciana Quintão. Então, quando eu assino, faço questão de escrever Luciana Chinaglia Quintão. Até porque o Chinaglia é da minha mãe, e o Quintão é do meu pai. E eu escrevo Luciana Chinaglia Quintão até hoje. Então, a Chinaglia era uma coisa muito importante para nós, como família, como segurança, até. Era um ponto importante na família, a Chinaglia. Fernando Chinaglia era o nome. Fernando Chinaglia Distribuidora.
P/1 – E qual era a relação com seu pai? Como ele era, profissionalmente?
R – O meu pai se dava muito bem com meu tio. Os dois faziam, assim... Tinham uma aliança, no bom sentido. E, como eu te falei, meu pai ficava com a editora e meu tio ficava com a distribuidora. Cada um tocava a sua área.
P/1 – Quais revistas faziam parte?
R – Então, Casa & Jardim, os filhotes de Casa & Jardim, que eu já citei vários; a revista Autoesporte e uma revista chamada Forma Física. Mas antes eles fizeram outras coisas, antes da minha época. Trouxeram uma revista chamada Mecânica Popular, que foi um sucesso. Teve uma revista chamada Foto Câmera também que, por um tempo, foi bacana. Teve uma revista também, Sexy, mais feminina, para o público masculino. Mas as da minha época eram essas que eu comentei com você.
P/1 – E quando você entrou na empresa, você tinha algum desafio, em transformar, fazer alguma coisa diferente?
R – Ah, eu sempre pensei: “Onde eu posso ajudar?”, e sempre fui colocando a minha criatividade a serviço. Eu tenho essa coisa de organização e de visão, que é natural.
P/1 – Tem alguma coisa que tenha marcado esse período?
R – Tem. Quando eu entrei, os velhos me acharam uma intrusa, os mais antigos. Faz parte, né?
P/1 – Por que eles acharam isso?
R – Pergunta pra eles. (risos) Mas é óbvio, né? As pessoas estão estabilizadas. Na realidade, a matriz ficava no Rio de Janeiro. A filial ficava aqui, mas a filial parecia matriz, com duas pessoas à frente já há muitos anos; de repente chega a filha do dono, né? A maioria das pessoas não gosta.
P/1 – E você implantou alguma mudança?
R – Eu acho que sim. Pensei em novos títulos, fiz bastante coisa interessante. Inclusive, no final acabei comprando a editora da minha família, saí, eles ficaram com a distribuidora e eu saí e fiquei só com a editora. Depois de dois anos vendi pra Editora Globo, porque eu queria fazer um consórcio de assinaturas, porque a minha revista vendia em mais bancas do que a concorrente, que era a Casa Cláudia, que, aliás, copiava muita coisa da gente, até tirava nossos funcionários. Mas eles vendiam muito mais, a circulação deles era muito maior, porque tinham assinaturas. E a gente, não. Então, eles conseguiam vender mais publicidade, por _______ [44:39] melhor do que o meu e tal. Aí eu tive essa grande ideia de fazer um consórcio de assinaturas. Aí todo mundo: “Você é louca” – que é uma coisa que é frequente na minha vida. Não acreditam em coisas e eu vou lá, faço, e dá certo. Só que deu tão certo que... Quer dizer, a Editora Globo ficou tão interessada pelo nosso produto, que ela me ofereceu comprar os títulos. Aí eu acabei vendendo. Foi uma decisão muito difícil, acabei vendendo, mas foi a melhor coisa que eu fiz, porque logo depois o mercado editorial caiu muito. Eu fiquei sozinha levando uma editora, ia ser bem complicado. Mas eu fiz uma coisa que eu me orgulho muito e, quando eu vendi os títulos, eu vendi junto... Vendi, não, né, eu fiz um contrato para que todos os funcionários fossem junto e que eles tivessem estabilidade no emprego por três anos. Isso eu fiquei muito feliz. Então, todo mundo foi com emprego garantido. É claro que ninguém pode fazer uma revista do zero, que uma revista não pode parar, então é importante levar a equipe, mas mesmo assim eu achei importante fazer esse contrato, e ele foi feito e foi muito bom.
P/1 – Luciana, e você falou que, quando você veio pra São Paulo, você já tinha casado com seu primeiro marido.
R – Sim.
P/1 – Como é que você conheceu seu primeiro marido?
R – Meu primeiro marido eu conheci no Rio de Janeiro. Ele é paulista, é por isso que eu estou aqui. (risos) Ele fez uma curva na minha vida. Ele trabalhava no Citibank. A gente se conheceu porque eu fui, justamente, fazer uma entrevista para ser estagiária do Citibank, mas já no último ano de faculdade, e eu acabei trabalhando dentro da faculdade mesmo, em vez de fora. Aí a gente se conheceu e... Na realidade, eu falei uma coisa que está errada, tá? Foi no final do mestrado, não foi no final da faculdade. Quando eu já estava, realmente, tentando procurar emprego ou estágio, no mestrado, mesmo. E aí ele... Enfim, a gente se conheceu, começou a namorar, e aí, o que aconteceu foi que ele foi transferido para os Estados Unidos, aí ele também ficou numa dúvida: ‘vou, não vou’, e ele foi. Eu falei: “Não, você tem que ir, vai”. E lembra que eu falei que meu pai era autoritário? Não tinha aquilo de ‘vai morar com o namorado pra ver’. (risos) Então, eu só podia sair de casa casada. Ele foi para os Estados Unidos, a gente ficou se correspondendo muito, aquelas contas de telefone muito caras, aí a gente resolveu casar assim mesmo, sabe? Conversando, por telefone e tal. A gente queria ficar juntos, então a gente tinha que casar. Ele veio para o Rio de Janeiro, a gente se casou e aí fomos para os Estados Unidos, ficamos nove meses lá só, porque foi uma época que teve uma grande, também... Outra crise financeira no Brasil. Vários Bancos do Rio de Janeiro voltaram para São Paulo. O Citibank foi um, que tinha um prédio inteiro... Acho que tem ainda um prédio, mas acho que ele aluga, na Rua da Assembleia. E de repente transferiu todo mundo para o prédio que tinha construído na Paulista, ficou só com um ou dois andares lá no Rio de Janeiro, para Marketing. E meu primeiro marido não queria trabalhar em Marketing, queria trabalhar na área que ele trabalhava. Então, a gente combinou assim: “Vamos pra São Paulo, mas promete que você vai procurar um trabalho no Rio de Janeiro?”, e ele nunca fez esse movimento. Nunca. Aí eu comecei a trabalhar na editora e comecei a gostar. Então, fui ficando. Esse ‘fui ficando’ tem trinta anos, já. Tentei voltar umas duas, três vezes para o Rio de Janeiro, mas, por motivos diversos, não deu certo. Mas eu tentei voltar para o Rio de Janeiro. Pelo menos ter uma casa lá também, minha. Pelo menos dividir, né? Então eu acabei ficando aqui, uma carioca em São Paulo. (risos)
P/1 – E o que mudou na sua vida, depois que seu pai morreu?
R – Então, sabe quando você tem aquela idade pra começar a tentar resgatar uma série de coisas, ou perguntar uma série de coisas, que você me perguntou no começo da entrevista: “Vocês falavam sobre isso, sobre aquilo?”, eu não tive tempo de fazer isso, sabe. Eu não tive tempo de perguntar coisas profundas pra ele, e isso me deixou muito triste, assim, porque eu não tive esse tempo. Eu tenho amigos com a minha idade que têm pais vivos, e meu pai morreu, eu acho que eu era muito nova. Claro, tem pessoas que perderam mais novos ainda, que nem conheceram os pais, mas no meu caso, específico, falando de mim, eu gostaria que ele tivesse vivido mais tempo, pra gente fazer alguns acertos também, e ter uma compreensão maior sobre alguns aspectos.
P/1 – Como é que foi essa mudança pra São Paulo?
R – Foi muito traumática, porque, assim, a gente foi avisado que ele tinha que vir pra São Paulo... Não é que foi traumática, foi muito, assim, rápido. Tinha que escolher vir, não vir... Enfim, e eu resolvi acompanhar o André, e vim com ele. Mas, assim, não estava nos meus planos. E teve uma coisa, também, que aconteceu, que foi o seguinte: eu tinha uma tia-avó, a única que morava aqui em São Paulo, e eu tinha relacionamento com ela. A minha avó tinha outros irmãos aqui de São Paulo também, a minha avó é paulista. Minha mãe nasceu em São Paulo e foi para o Rio. Meu avô também é de São Paulo, mas eles casaram e foram morar no Rio de Janeiro, minha avó e meu avô. E é engraçado eu voltar pra São Paulo, né, mesmo sem querer. Alguma razão aí. Mas, enfim... Me perdi.
P/1 – Como é que foi a sua chegada em São Paulo?
R – Então, tá vendo? A gente quer apagar as coisas dolorosas. Tinha essa tia-avó que morava aqui, e ela passava todas as férias no Rio de Janeiro. E eu falei: “Bom, pelo menos lá eu vou ter a tia Inis. Quem sabe ela vai me ensinar a cozinhar e tal?” Ela morreu uma semana antes de eu chegar. Aí não tive a tia Inis, né? (risos)
P/1 – E onde você veio morar aqui?
R – Eu vim morar aqui num prédio de três andares, sem elevador, na Rua Batatais, que era próximo ao Citibank, onde o André trabalhava. Depois eu fui morar na Rua Paracuê e, da Rua Paracuê, eu vim pra cá, pra essa casa onde eu estou agora.
P/1 – E como foi? Você teve filhos?
R – Demorei cinco anos pra ter filhos. Tive a minha primeira filha com 29 anos, o segundo com 31, e um com 40.
P/1 – E os três são do primeiro casamento?
R – Não. Eu me casei só uma vez, hoje eu tenho uma união estável, que também não é o pai do meu último filho, que é o Antônio Pedro – porque eu queria Antônio e o pai queria Pedro. Mas me relaciono super bem com o pai dele, não tem problema nenhum em relação a isso. Mas foi um namoro que eu engravidei e ganhei um presente.
P/1 – E as duas primeiras são do seu primeiro casamento?
R – Sim.
P/1 – O que mudou na sua vida, depois da primeira filha?
R – Eu fiquei apaixonada por ela. Nossa, quando ela nasceu, foi uma experiência, assim... Eu só ficava olhando pra ela e falando assim: “Ela é linda, ela é linda, ela é linda”. O cheiro dela eu sentia, a gente tinha uma ligação muito forte, assim. Quando ela entrou na pré-escola, eu chegava para pegá-la, um monte de criança, assim... Sabe quando o olho faz... Era ela, sabe? Uma coisa muito forte, ser mãe.
P/1 – E como era seu casamento?
R – Na realidade nós não tivemos, assim, aquele tempo adequado de namoro, de conhecimento, porque eu casei, a gente tinha o quê? Um ano e pouquinho de... Namoramos seis meses, e depois viajar, não sei o que, casamos. E tinha muitas diferenças, porque na minha casa nós éramos três mulheres superprotegidas; na casa dele eram três homens, totalmente, assim, liberados. Eu não acho que isso seja um problema, pra mim não era um problema. Mas a gente tinha religiões diferentes. Então, tinha algumas questões no sentido de: “Vamos dar uma visão espiritual para as crianças?” “Não, vamos esperar eles crescerem, pra decidirem”. Isso era uma coisa que eu não queria, eu queria mesmo... Aliás, eu me considero cristã, o André é judeu, e eu sempre achei que uma coisa era continuidade da outra – e acho até hoje. Então eu sempre quis dar esse enfoque total para eles, que todos somos um; que a religião, cuidado, que às vezes ela pode separar, tentar entender o que você realmente é dentro de si, mas era uma pegada um pouco diferente, o interesse um pouco diferente. Enfim, a gente acabou achando que a gente tinha que se separar, e a gente se separou.
P/1 – Luciana, e quando você foi adquirindo o pensamento mais holístico?
R – Procura da vida toda. Sempre tive essa procura, sempre. Sempre quis entender, sempre achei tudo muito grande. Menina, você já pensou que você simplesmente está ligada? E qual é a tomada que faz você ter energia pra estar viva aí? São mistérios. O corpo humano é a coisa, na minha opinião, mais linda que existe na natureza. Se as pessoas soubessem, até as pessoas mais simples, ou nós, mesmos, todos nós, valorizar esse corpo que a gente tem, mas não pensando numa forma maniqueísta: “Estou bonita, estou feia”. Não. Como ele funciona! Ele é perfeito! Até a questão das emoções. São realmente emoções mal resolvidas, que trazem bloqueios emocionais, que causam doenças no corpo físico. O corpo físico é um milagre! A vida é um milagre! Então, assim, é tudo tão complexo! Isso, sempre, pra mim, me chamou muito a atenção. Pra mim, não acreditar em nada é mais difícil do que acreditar. Só que, realmente, quem ensina? Onde aprender? Então são buscas mesmo que cada um tem ou não tem.
P/1 – Luciana, e depois que você vendeu a editora pra Globo...
R – Eu resolvi fazer o Banco de Alimentos. Porque, na realidade, antes de vender a editora, eu já queria abrir o Banco de Alimentos, mas quando eu abri a editora, eu consegui me capitalizar pra bancar abrir uma ONG com recursos próprios, então eu abri o Banco de Alimentos e comecei a fazer um outro tipo de trabalho, porque aí, por contrato, eu tinha que ficar fora do mercado editorial também, por cinco anos.
P/1 – O que te inspirou a fazer o Banco?
R – Nunca me conformei com tanta pobreza no meio de tanta riqueza. Já, quando eu fiz o Banco de Alimentos, nós éramos uma das dez maiores economias do mundo, 150 milhões de habitantes, mais de 57 milhões de pessoas vivendo com meio salário mínimo, pra baixo. Além de milhões de indigentes, que não tinham renda nenhuma. E gente jogando comida fora todos os dias, aos montes. Que sentido isso tem? Me senti culpada. Agora eu tenho recursos financeiros e não vou fazer nada? Não, eu não quis ser conivente com essa realidade. E é engraçado, porque hoje... Eu nunca me conformei com esse desequilíbrio, eu nunca entendi. Eu sempre me impactei com o sofrimento humano, e eu não queria ser conivente com isso. Porque eu já trago essa visão há muitos anos. Gente, somos nós que fazemos o mundo à nossa volta. Então, eu criei o Banco de Alimentos, contra tudo e contra todos. Todos os dias eu _______ [57:05] ser presa. Mas eu criei, e agora, depois de 22 anos, na semana passada, saiu um decreto regularizando o Banco de Alimentos no Brasil. E há dois meses uma lei que exime de responsabilidade criminal o doador de boa fé de alimentos, coisa que eu já faço há 22 anos. Porque eu peguei pra mim a responsabilidade do alimento doado.
PAUSA
R – Esses jovens não são aproveitados na educação, entram pro mercado de trabalho sem serem ensinados a serem cidadãos participantes. A gente não precisa disso, por isso que eu quero fazer reflexão sobre inteligência social. E aí, o que isso produz? Produz pessoas que desconhecem a realidade e, mesmo sendo muito boas, por não fazerem nada, compactuam com o que, tudo que não está funcionando bem, continue. Então, assim, vou dar um exemplo: meu diretor geral, que é o meu braço direito; finalmente consegui sozinha _________ [58:10] todas as horas. Ele é espírita ___________ [58:15] enfim, eu fui conhecendo, falei: “O que você faz?” “Eu faço isso, isso, isso, isso” “Nossa, tanta coisa assim ______ [58:26]”. Hoje ele trabalha comigo doze horas por dia. Outro dia eu fiz uma reunião com pessoas ‘bã bã bã’ do agronegócio, mas eles estavam preocupados com a fome agora, pela pandemia, porque, afinal de contas, o Brasil não é a África, e tal. Não tem fome. Nós temos só simplesmente 52 milhões de pessoas que vivem insegurança alimentar, não sabem se vão ter o que comer em quantidade e qualidade na próxima refeição. Esses dados antes da pandemia. Agora já são por volta de oitenta milhões, nas últimas pesquisas que saíram, do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística]. Então, assim, isso não é falado, ou as pessoas não entram em contato. Então, na minha opinião, nós temos que quebrar vários paradigmas: políticos, econômicos, sociais, educacionais. Nós precisamos ensinar as crianças desde cedo a trabalhar para a coletividade, porque isso volta para nós mesmos, enquanto sociedade. De que adianta a gente ver esse passado recente no Brasil... Quantas pessoas bem de vida foram morar em Portugal, por exemplo? Em outros países também, né? Por quê? Porque a gente está com uma violência, aqui, exacerbada. Um bate cabeça político, econômico. Isso faz mal pra todo mundo. Então, quanto mais organizada a sociedade for, em todos os seus aspectos, mais evoluída ela será, e mais humanizada também. Esse tipo de reflexão é que eu trago no livro Inteligência Social, uma Perspectiva de Mundo Sem Fome, para que as pessoas discutam isso: os jovens; pessoas, enfim, ainda estudantes; pessoas que queiram mudar de carreira, que não estão satisfeitas com essa vida, talvez, materialista, só do lucro pelo lucro. E, assim: “Luciana, você é contra o lucro?” De jeito nenhum. Vou aqui fazer uma piada: “Você é comunista?” De jeito nenhum, até porque eu não acredito. O comunismo é o eu sem o nós; o capitalismo selvagem... É o contrário: o capitalismo selvagem é o eu sem o nós, e o comunismo seria o nós sem o eu. Mas sempre com alguém ganhando, ali, em detrimento de muitos. Então eu acredito só na verdade, no bom senso, na organização, no equilíbrio, na boa vontade. Eu costumo dizer que a maior inteligência é fazer o bem em eficiência. Para mim, política é gestão, não é guerra de poder. É trabalhar inteligentemente, resolver alguns problemas. Política é levar a gente pra um lugar melhor, cuidar dos seres humanos e do meio ambiente. Economia é algo que possa incluir a todos. Não é algo que possa enriquecer a poucos, mas a muitos poucos e muito em detrimento da grande maioria. Então, assim, é esse equilíbrio. Sempre vai ter o mais rico e o mais pobre, não tem problema. Você não precisa de tanto pra viver, assim. O problema é a gente pagar tanto imposto, sendo um dos países que mais arrecada impostos do mundo. Mas, pra onde é que está indo esse dinheiro? E ficar vendo esses bate cabeças, que duram décadas, séculos, e com esse potencial enorme que o Brasil é, com essa beleza que o Brasil é. E os brasileiros também. Então, é isso que a gente tem que refletir e mudar.
P/1 – Luciana, voltando um pouco atrás, quando você resolveu criar o Banco de Alimentos: foi uma ideia sua. Mas, tinha um grupo com você?
R – Não, não tinha. Isso é uma característica, assim, da minha biografia, uma coisa muito solitária, em vários aspectos, em vários momentos, assim, de pegar uma bandeira e ir pra frente, sabe? Antes de eu vender a editora e me capitalizar, eu até pensei... Não, até procurei alguns grandes empresários para me apoiarem, porque naquele momento eu não era capitalizada, eu não poderia abrir, mas não tiveram interesse. Então, quando eu fiz o Banco de Alimentos, foi sozinha mesmo, e com recursos próprios. E, como eu te contei, todo mundo: “Você vai ser presa. Você é louca, não faça isso”, ao ponto do meu advogado, que está comigo até hoje, que era o meu advogado da época, falar pra mim: “Luciana, você vai fazer?” Eu falei: “Eu vou fazer” “Então eu vou ficar do seu lado, pra te proteger”. E está comigo até hoje.
P/1 – Qual era a concepção, naquele momento? Como você começou a impulsionar o Banco de Alimentos?
R – Com a colheita urbana: pegar de onde sobra e entregar onde falta. Na realidade, existe um único programa anterior ao nosso, que é o da Mesa São Paulo, que já existia e depois virou Mesa Brasil. Já faziam a colheita urbana, mas eu não os conhecia, e aí, dentro da editora, uma assessora de imprensa que foi fazer uma divulgação pra revista Forma Física me contou, depois de uma nossa conversa, falei: “Poxa, ‘Forma Física’ e muitas pessoas são desnutridas, não têm o que comer”, e ela falou assim: “Nossa, você conhece o Mesa São Paulo?”, eu falei: “Não, por quê? Quem é?” “Um projeto do Sesc do Carmo, eu não sei se eles fazem ainda, mas eu estive presente no lançamento do programa deles, dessa Mesa São Paulo”. Aí eu fui lá, conversar com a Luciana Covelo, que até hoje está, agora é Mesa Brasil. Outra: “Você é louca” (risos) Não falou na minha frente. Depois que eu fiz o Banco, mesmo, porque eu conversei com ela, eles já faziam colheita urbana, mas de uma forma mais... Como é que eu vou te explicar? Menos desbravadora. Foi desbravadora, mas assim, eles já tinham alguns fornecedores, pessoas que forneciam alimentos para o Sesc. O presidente do Sesc comprou essa ideia. Não, eu fui [como] uma cidadã civil, fazer algo grande. Então, nesse sentido é que, pra mim, foi mais difícil. Aí o Mesa era uma salinha pequena com três mesas, uma atrás da outra, como uma escola, e eu lembro que eu falei pra Luciana que eu queria fazer e que eu estava estudando – principalmente por isso que eu fui no advogado – se seria uma fundação, uma ONG ou um instituto, o que eu seria. E eu dizia assim: “Olha, então é o seguinte: eu estou estudando isso, mas quando eu montar o meu Banco de Alimentos, você me dá umas dicas e tal, pra eu não ter que reinventar a roda? Principalmente na questão de pegar a comida e entregar”. Porque tem toda uma questão de contaminação cruzada, tem toda uma forma de manusear esses alimentos, e eu não sabia. Eu sou economista, não sou nutricionista, né? Mas ela falou: “Claro”. E eu ligava pra ela: “Luciana, não esquece de mim, hein? Eu estou aqui”. Demorou exatos nove meses, uma gestação, pra eu ter meu CNPJ [Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica], o Banco de Alimentos constituído. Aí eu telefonei pra ela: “Lu, é agora”. Aí ela me contou: “Nossa, você fez? Nossa, você saiu daqui, eu falei que você era maluca, que você não ia fazer”. E a minha primeira nutricionista, quando eu também fiz uma entrevista e a chamei no meu trabalho e tal, que era um estúdio, naquela época e falei: “Estou entrevistando pessoas pra assumir essa função, babababa”, quando eu a contratei, ela me contou também que a irmã tinha ficado esperando-a no carro e ela falou: “Nossa, que mulher louca! O que ela quer fazer?” Então, assim, eu fui muito desestimulada, não acreditada, pra fazer o Banco de Alimentos.
P/1 – Mas como era a estrutura, no começo?
R – Então, tudo que era do Banco de Alimentos acontecia dentro da minha vida. Então eu tinha esse estúdio, eu montei uma sala grande pra ser o Banco de Alimentos. Eu tentei, na época, conseguir caminhões com a General Motors e tal, não consegui. Peguei a Kombi que eu tinha na editora, virou para o Banco de Alimentos. Meu contador era o contador do Banco de Alimentos. Meu advogado era o advogado do Banco de Alimentos. Enfim, computador, mesa, tudo eu doei para o Banco de Alimentos. E eu comecei assim.
P/1 – E como funciona? Como é que é essa colheita urbana?
R – Nós passamos todos os dias recolhendo sobras de comercialização, produtos que não foram vendidos, mas que estão perfeitos para o consumo humano. A gente pega esses alimentos e transporta até as entidades assistidas pelo nosso programa, que elas, sim, recebem esse alimento, cozinham e servem. Só que aí tem uma questão... Servem para os assistidos... Porque eu já nasci diferente. Então, o Mesa São Paulo realmente é o pioneiro na colheita urbana, muito lindo, mas eu já nasci com essa visão de que a gente só acaba com a fome quando a gente acabar a forma como a gente está no mundo. Então, o nosso Banco de Alimentos, da associação civil... Até porque hoje tem outros também, a história é longa. Mas o nosso é da sociedade civil, não é de nenhum município. Eu já nasci com três formas de trabalho, só que, primeiro, implementei a primeira, que é a colheita urbana; mas tem a segunda, pioneira total, que é o seguinte: fiz um convênio com uma faculdade de Nutrição. Então, por ano, passam pela ONG mais de trinta estagiários do último ano de Nutrição, fazendo seu trabalho de conclusão de curso em saúde pública. Porque eu acredito em pontes. Então a primeira forma de trabalho é uma ponte. A segunda também. Quantos alunos de faculdade conhecem os reais problemas do Brasil? Quantos médicos conhecem a questão da fome e da desnutrição? Quantos arquitetos, o déficit habitacional? E aí por diante. Então, eu sempre quis fazer essa ponte. E, realmente, é uma ponte que faz sentido, porque eles chegam mesmo sem saber nada sobre esse assunto, eles aprendem o que é trabalhar pra coletividade, eles conhecem um outro pedaço do Brasil, e muitos ficam tocados para o resto da vida. E a gente consegue fazer o quê? Um trabalho em todas as entidades assistidas, para que elas cuidem melhor dos seus próprios assistidos. E fazemos também workshops com as cuidadoras de todas as entidades, para que elas aprendam técnicas de armazenamento, aproveitamento integral dos alimentos, uso de cascas, talos e sementes, que é importantíssimo, por vários motivos. Enfim, foi nesse momento que eu voltei ao Sesc e falei: “Lu, agora é o seguinte: eu quero fazer isso, mas não tenho uma cozinha. Você me empresta a sua?” Então ela me emprestou a cozinha dela... Quer dizer, ela até brinca, quando eu falo isso ela não gosta: “Não fui eu, foi o Sesc que emprestou”. (risos) Mas, enfim, ela levou o assunto pra dentro, veio com a devolutiva, e a gente começou a fazer oficinas culinárias dentro do Sesc. Nós fazíamos para as nossas entidades assistidas e, naquela época, as que o Mesa atendia também. E a terceira ação é isso que a gente está fazendo aqui, agora: ser um farol – uma metáfora bonita, como a Antroposofia foi para mim – para a sociedade e dizer: “Olha, a realidade é essa e você pode fazer a diferença. Vamos fazer?” Então, é uma questão mais educativa. Realmente, é levar consciência para a sociedade como um todo, porque, às vezes, só por não fazer nada – como eu comentei com você –, já está fazendo mal, porque a cura é o bem, é fazer o bem, é fazer o que é correto. Mais pessoas precisam fazer esse bem, mesmo, porque o mal destrói muito rápido, e o bem tem que ser construído continuamente, todos os dias, pra poder [fazer] a gente ter a sociedade que a gente quer ter. Mas está nas nossas mãos. Se nós não fizermos, a gente não vai ter. E aí, se alguém estiver trabalhando para o outro lado, o que vai prevalecer é o outro lado. É isso. É consciência, é escolha, e é uma dinâmica da vida, que funciona assim: você colhe o que você planta.
P/1 – E aí, nesse começo do Banco, que você foi pedir emprestado a cozinha, já tinha mais pessoas junto com você?
R – Não.
P/1 – Continuava nessa estrutura?
R – Tinha a estrutura do meu trabalho. Nessa época, quando eu vendi a editora, eu montei um estúdio. Então, tinha as pessoas que trabalhavam comigo, como eu contei pra você, né, que foram cooptadas para trabalhar no Banco de Alimentos. (risos)
P/1 – Como é que você selecionava as entidades?
R – Aí, quando eu contratei essa nutricionista, Suzete Raimund e enfim a gente começou a procurar – e não é difícil – entidades carentes. Já existia internet naquela época. Não é nada difícil. Aí elas tinham que ter uma série de condições para poder receber o alimento. O mais difícil foi conseguir o alimento. Imagina eu, uma desconhecida... Mandei quatrocentas cartas pra indústrias e só recebi cinco ‘boa sorte’, e aí, o que eu consegui? Ia nos mercados municipais, falar com os donos de barraquinhas, que eram microempresários: “Eu sou a Luciana, eu fiz essa ONG, eu gostaria que você confiasse em mim e me doasse o seu alimento, que vai chegar lá onde tem que chegar. Eu trabalho assim, quem recebe também tem contrato de parceria, que é obrigada a participar dos nossos cursos, a gente tem recibo do que você me doa. Aqui, fica o recibo pra você. Quando a entidade receber, ela vai ter um outro recibo, que recebeu XYZ no final do dia e tudo tem que bater”. Porque assim: se alguém me doasse cem quilos de batata e eu deixasse dez quilos de batata em dez entidades diferentes, cada uma assinava o recibo que recebeu dez quilos de batata e que estava perfeito para o consumo”. Aí é a pegadinha, de eu já fazer organizado desde o começo e não ter nenhum tipo de problema quando as pessoas diziam: “Você é maluca”. Não. É só fazer de uma forma organizada, que você não vai ter problema. E assim eu fiz. Então, só depois de muitos anos, porque eu não desisti, eu tive uma primeira indústria que me doava pão, e eu tinha que tirar da embalagem dela, com todo cuidado, com luvas, colocar numa embalagem que não tivesse reconhecimento da empresa, fazer um sticker da data de validade, o que continha aquilo lá, porque ela tinha medo de ser processada. E se alguma coisa desse errado? Ela queria doar, mas estava receosa. Depois eu conseguia dar nome, que eu falo com maior orgulho. O Banco de Alimentos associação civil foi a primeira organização no Brasil a receber lácteos da Danone, e aí sim eles deixaram eu divulgar o nome. Porque é muito importante a gente divulgar, se assumir, porque a sociedade civil tem uma força... Só que ela tem que atuar. E a gente consegue mudar a realidade. Então, assim foi.
P/1 – Luciana, e a sustentabilidade? Você começou com capital seu...
R – Então, eu comecei com capital meu e que era um valor, assim, que até conseguia doar, depois foi ficando impossível, que o valor foi ficando muito alto. Todos os meus funcionários são CLT [Consolidação das Leis de Trabalho], todos têm carteira assinada, férias, décimo terceiro. São vários custos para manter o carro, comprar carro, gasolina, seguro. É uma empresa, só que não tem lucro. A gente tem que ter doações, as pessoas têm que doar recursos para nós, assim como para qualquer outra organização não governamental. E eu também, na terceira forma de ação, aquela que eu falei, de divulgar consciência, pensei em vários projetos que podiam ser vendidos em escolas, alguma coisa assim, e esse dinheiro voltaria e retroalimentaria toda a operação, mas muitas vezes faltou dinheiro e eu tive que recorrer. Muitas vezes. Muitas vezes eu tive momentos muito difíceis, de drama pessoal mesmo, tipo: como eu vou pagar a folha esse mês? Então, tinha que doar.
P/1 – E hoje?
R – Hoje a ONG está... A gente está numa situação bem boa. Não assim, garantidos por dez anos, mas a gente tem mais ou menos um ano e meio de operação no caixa, e estamos crescendo em meio a pandemia e, por sinal, fizemos um trabalho espetacular nessa pandemia. Então, em 22 anos de trabalho, eu tinha chegado na marca de oito milhões e duzentos mil quilos de alimentos doados, e só do final de março a começo de setembro, foram quatro milhões de quilos de alimentos doados, impactando quase um milhão de pessoas. A gente parece... Até brinquei na ONG: “Parece que fiz tudo para chegar nesse momento, pra aproveitar agora essa abertura que foi dada, para as pessoas começarem a entender que realmente tem fome, e tem várias fomes”. E até quando a gente vai conviver com essas coisas? E a própria pandemia: que loucura isso que a gente está vivendo! Que falta de inteligência social! Começou lá na China e pegou o mundo inteiro. Então, assim, vivemos em rede.
P/1 – O Sesc foi um parceiro ________ [01:15:40]?
R – O Sesc é assim: somos reconhecidos pelo Sesc, Danilo Miranda, todo o pessoal do Mesa Brasil tem bastante respeito pelo nosso trabalho. Temos uma convivência de amizade, mas o Sesc, quando divulga o trabalho, divulga o trabalho deles. Isso é comum, normal. Mas temos uma parceria, sim, e assim, várias vezes nós recebemos mais alimentos do que daríamos vazão naquele momento e nós repassamos pro Mesa, e algumas vezes a Luciana também repassa coisas que eles recebem pra gente, dividem com a gente. Então, tem uma parceria até a esse nível. É uma parceria. Realmente, é uma amizade que existe entre o Banco de Alimentos, associação civil e o Mesa, principalmente São Paulo, pelo Danilo Miranda, que esteve à frente dessa execução do Mesa dentro do Sesc. Mesa São Paulo e depois Mesa Brasil.
P/1 – E você recebeu o primeiro prêmio _________ [01:16:52]? Como foi isso?
R – Foi. Foi uma emoção muito grande, porque, logo na primeira edição, o prêmio já disse a que veio. É uma coisa muito profissional, uma edição muito linda, e o propósito muito maravilhoso também, que é de divulgar o bem, estimular as pessoas a fazerem o bem. Então, quando eles divulgam pessoas e projetos que estão fazendo isso, eles inspiram outras pessoas a fazerem o mesmo. Sempre que eu vou a uma edição, eu vejo aquele teatro lotado, eu penso no meu coração: espero que a maioria daqui não fique só com a beleza que viu hoje, mas que eles saiam e realmente empreendam alguma coisa ou, pelo menos, doem recursos financeiros pra alguém que faça e que seja auditado. Sério. Porque, gente, olha o Brasil, olha o que está acontecendo no Pantanal agora, olha a Amazônia, olha tudo. Então, assim, o dinheiro também é importante. O voluntariado é importantíssimo, mas o dinheiro é importante. Porque, se alguém doa pra uma entidade séria, ele está fazendo junto com aquela entidade, de alguma forma. Já está trabalhando lá aos montes, dando voz na comunicação, enfim, tudo. Mas tem que ter dinheiro para pagar suas contas. Então, a doação financeira é muito importante também.
P/1 – O prêmio você foi convidada? Como é que foi? Como é que você ganhou?
R – O prêmio, ‘puts’, eu não lembro como chegaram a mim, mas aquele prêmio... A primeira edição foi diferente, porque tinham duas pessoas concorrendo para cada área, então eu lembro que eu concorri com o Alex Atala, que é um fofo, um amigo querido – inclusive, ele fez a abertura do livro –, e eu ganhei. E eu fiquei muito feliz de ter ganho. Porque assim, na realidade, é muito importante o que o Alex faz, a pessoa dele é muito importante, mas quantos Bancos de Alimentos tinham que existir no Brasil, e naquela época? Hoje também. Então, acho que ter essa visão e apoiar, realmente, quem faz, quem está desbravando ali uma coisa muito difícil, eu acho que é muito importante, porque traz divulgação, reconhecimento. Então é muito importante, foi muito bacana ganhar aquele prêmio.
P/1 – Luciana, e como você entrou para a Folha empreendedora, rede Folha?
R – Porque alguns anos depois também fui convidada a concorrer ao prêmio Folha, não lembro o ano, se foi 2007, alguma coisa assim, e eu não ganhei. Achei que fosse ganhar. Foi até engraçado, eu fiquei assim... Eram cinco, né, concorrendo. Porque a gente não sabia também, mas a (Roche?) [01:19:44], do evento, falou assim: “Ela nunca se conformou com a fome”. Eu falei, pensei: “Sou eu”. Foi um segundo, né? E não foi. Foi a Gisela Solymos, que estava lá, participou da abertura do CREN [Centro de Recuperação e Educação Nutricional] , que é um hospital-dia que ajuda a resgatar crianças desnutridas. Foi ela que ganhou. Mas aí o prêmio Folha é muito legal, porque todos os indicados, os cinco de cada ano, passam a fazer parte da rede Folha de empreendedores sociais. Isso é muito legal, porque os trabalhos são maravilhosos. Às vezes, contemplar um é uma judiação, e aí você, contemplando vários, divulga vários trabalhos muito importantes. Então foi assim que eu entrei pra rede Folha.
P/1 – Luciana, e como é que foi essa iniciativa de publicar o livro e o processo de escrever?
R – Então, o livro foi o seguinte: eu resolvi escrever o livro em 2018, quando a ONG estava fazendo, mais ou menos, vinte anos de vida, porque, por motivos emocionais, eu continuo assinando O Globo até hoje. E, assim, na realidade, eu sempre fui aflita com várias situações. Então eu lembro que teve uma época que meus filhos eram pequenos, que vinha muito no jornal, todo dia... Um dia assim: um dia uma mãe palestina com um filho morto nos braços, o outo dia uma mãe judia com o filho nos braços e era uma época de uma guerra entre Israel e Palestina, então eu falei: ”Meu Deus, são mães! É a mesma coisa, a mesma dor. Parem de fazer guerra”. Sempre tive essa coisa, assim, esses conflitos internos. E aí, por assinar O Globo... Eu não aguento mais ver notícia de criança morta com bala perdida no Rio de Janeiro, mas é todo dia. E é um jornal surreal: uma parte é isso e a outra parte é o glamour do Rio, porque o Rio é lindo. A gente já falou isso várias vezes aqui. Do tipo: ‘pô, eu não aguento mais’. Gente, mas por que a gente – eu, que trabalho para combater a fome e várias fomes, sempre falei das várias fomes, não só de comida – tem tudo pra acabar com a fome e continua abrindo novas fomes? O que falta? Falta inteligência social. Eu vou escrever um livro pra fazer uma reflexão sobre inteligência social e a perspectiva de um mundo sem fomes, as várias fomes. Se a gente usar a nossa inteligência social a favor de nós mesmos, vai diminuir as fomes. Eu não sei se a gente vai acabar. Vamos diminuir bastante essas várias fomes e vamos beneficiar a nós mesmos, enquanto sociedade. Então esse livro foi um ato de amor, porque não é o melhor livro do mundo, nem é a primeira pessoa a falar sobre isso, mas eu quis trazer uma reflexão sobre esse assunto no momento atual, e foi muito interessante, que foi logo anterior à pandemia. Eu acabei escrevendo o livro durante 2019 e lancei no final de 2019, mas também foi um processo heroico e individual, porque foi sem muito apoio. Eu fiz até a revisão do livro, assim, a capa. E aquilo lá realmente sou eu. Eu não sou do mundo acadêmico, mas acredito que as coisas que eu tenho escrito lá façam muito sentido, e tenho tido feedbacks interessantes de algumas pessoas – porque o livro ainda não vendeu muitas cópias, tomara que venda mais. Quer dizer: ficar mais divulgado. Mas, assim, até pela pandemia, enfim. Mas eu tenho recebido feedbacks bem interessantes e que têm acalentado meu coração, inclusive de jovens vereadores agora, que estão concorrendo, porque querem mudar. E entenderam que eles podem fazer a mudança. E professores. Enfim, espero que ele tenha aí uma vida mais ativa. (risos)
P/1 – Luciana, você teve algum contato com o Betinho?
R – Não tive contato com o Betinho, mas você falou a palavra dele, é como se ele estivesse aqui, do meu lado. Pelo amor e pelo respeito que eu tenho a ele, como ser humano. Ganhei um prêmio Betinho, (risos) uma época. Ganhei um prêmio chamado Betinho. Mas eu tenho muita admiração por aquele ser humano.
P/1 – Que prêmio que é esse?
R – É um prêmio que chama Betinho, que é dado pela Câmara Municipal de São Paulo. Tem edital, você se inscreve e, em um ano, eu ganhei o prêmio Betinho.
P/1 – Luciana, quais são os desafios, hoje, do Banco de Alimentos?
R – Olha, o desafio do Banco de Alimentos hoje, na minha opinião, é a gente abrir essa outra frente, que agora eu quero abrir, que é combater as várias fomes. Eu sempre quis ensinar outras pessoas a abrirem os seus próprios Bancos de Alimentos. Isso é uma coisa que eu também gostaria de fazer, porque uma pessoa sozinha não faz verão. Tem que ter, realmente, várias pessoas, em várias áreas da cidade, até, fazendo esse tipo de trabalho. Mas eu acho que é a gente promover consciência. Eu acho que a gente já fez muito trabalho de promoção de consciência, até quebrando um paradigma de que pode e deve se doar alimentos, chamar atenção pra isso, que é algo que muita gente fala hoje, que talvez alguém não saiba, mas se fosse pra trás, a sementinha tenha sido nós também, e o Mesa, enfim, os precursores dessas ideias e outras pessoas também. Mas eu acho, assim, que o nosso grande desafio, hoje, é realmente conseguir expandir consciência. Mais consciência, né, porque é o que vai mudar, mesmo, a nossa realidade.
P/1 – Luciana, como é seu cotidiano?
R – Ai, meu cotidiano é bem, assim, doado. Eu tenho uma agenda física, não gosto de agenda de celular, e os compromissos vão chegando e eu vou tentando cumprir todos. E isso é bem extenuante. Porque eu tenho essa responsabilidade que eu me dei, de tentar colaborar pra ter um mundo melhor. Então, ela bem é extenuante, e eu tenho três filhos, uma casa; não sou casada e eu tenho que cuidar de uma série de coisas, então não é fácil.
P/1 – E lazer, algum hobby?
R – Então, isso acaba ficando em segundo plano, e não deveria, né. Eu estou chegando em uma idade que eu tenho que olhar pra mim mesma de uma vez por todas. Eu gosto muito de natureza. Eu adoro ir para a natureza. Eu me sinto bem na natureza, e adoro ler também. E faço yoga, mas menos do que eu gostaria. Tem semanas que eu pulo todas as aulas, por conta do trabalho. Isso não é bom.
P/1 – Olhando para trás, na sua vida, tem alguma que você se arrepende ou faria diferente?
R – É difícil falar isso, né? É, realmente, difícil falar. Porque, assim, por um lado, você tem aquela visão também, que tudo que aconteceu foi por um propósito, mesmo que não tenha sido o ideal ou que você tenha sofrido. No caso, eu, né? Mas como é que eu vou saber?
P/1 – Luciana, você gostaria de deixar registrado alguma coisa? Como eu te disse, são narrativas, né? Então, tem algum episódio, alguma coisa que você acha importante também deixar registrado hoje _______? [01:27:57]
R – Eu acho importante a gente ter a ideia de que toda sociedade deveria, realmente, fazer o que fosse bom para o ser humano. E eu acho que a gente precisa entender mais o que é ser humano, entender mais a complexidade do ser humano e tentar fornecer o necessário para que esse ser humano seja bem desenvolvido, pacífico, de preferência. Entender que violência só gera violência; ignorância gera ignorância. A gente procurar se auto educar pra termos uma realidade diferente. E cuidar muito da primeira infância. De todo ser humano, rico ou pobre. Cuidar da primeira infância. Inclusive, da gestação, também, é fundamental. E eu sempre digo que o Homem muda o meio e o meio muda o Homem. Então, olha o que o Homem pode fazer pela sua sociedade! Mas se o meio também fosse mais desenvolvido, ele formaria homens com menos dores, mais ajustados. Não sei se a palavra é essa, mas mais encaixados, um com o outro. Um equilíbrio maior. Então, assim: imagina as pessoas que nascem, realmente, na favela; uma mulher, às vezes, de cor, que tem muito preconceito ainda; homossexual sofre muito preconceito ainda; e pobre. É realmente muito difícil você galgar outras posições, já nascendo numa realidade desvantajosa, por isso que também é muito importante esse aparato social: escola, saúde. Gente, é gerenciamento. Cuidar do dinheiro público pra gente ter uma melhora infraestrutural, manter, pensar no desenvolvimento, cuidar do meio ambiente, dos seres humanos. É isso, gente. É a verdade, né? É a simplicidade da verdade. Fazer o bom, fazer o bem.
P/1 – Lucina, o que você achou da experiência de contar sua história de vida para o Museu da Pessoa?
R – Eu achei muito interessante, porque todas as pessoas deveriam ser valorizadas e todas as pessoas trazem, em si, uma biografia única. Eu acho que o maior desafio de cada um é viver a sua própria vida. Isso é muito bonito e valoriza a vida humana, que é uma coisa que eu também procuro fazer sempre. Mas foi interessante, porque assim: você se expõe muito. É uma coisa que, às vezes, pode ser difícil. Mas é bacana.
P/1 – Queria agradecer a sua história, excelente narradora!
R – Eu que agradeço. (risos) Obrigada!
P/1 – Um privilégio!
R – Obrigada, mesmo, pela oportunidade, e também eu ter conseguido honrar meus pais, de onde eu vim, a minha vida, com todas as facilidades e as dificuldades.
P/1 – Obrigada!
R – Obrigada! Então é isso, gente.
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