Projeto Conte Sua História
Depoimento de Maria Aparecida Cárdenas Kalume
Entrevistada por Carol Margiotte, Monalisa Santos e Fernanda Regina Ferreira
São Paulo, 16 de agosto de 2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV693
Transcrito por Rosana Rocha de Almeida
Revisado e editado por Viviane Aguiar
P/1 – Dona Cida, boa tarde.
R – Boa tarde.
P/1 – Obrigada por ter vindo aqui hoje, é um prazer recebê-la.
R – Eu é que agradeço.
P/1 – E, pra começar, o seu nome completo.
R – Maria Aparecida Cárdenas Kalume
P/1 – E qual é o local e a data de nascimento da senhora?
R – Eu nasci em Tatuí, Estado de São Paulo, 10 de março de 1937.
P/1 – E a senhora ouviu dos seus pais como foi o dia do nascimento da senhora? Tem alguma história do dia do nascimento?
R – Eu não, ou a história do meu nascimento, porque meu pai havia deixado a casa, então, os vizinhos socorreram minha mãe.
P/1 – E a senhora sabe como foi a vinda dos vizinhos?
R – Eram vizinhos, amigos, sabiam o estado dela com três filhos, eu seria a quarta... E, depois, contato com meu pai, fui conhecê-lo, mas não foi um dia feliz, segundo meus irmãos comentaram depois.
P/1 – E a senhora sabe como foi a escolha do nome Maria Aparecida?
R – Não sei.
P/1 – E tudo bem se a gente falar um pouco dos seus pais agora?
R – Pode!
P/1 – Se a senhora puder falar o nome deles...
R – O meu pai se chamava Domingos Cárdenas, origem espanhola, e a minha mãe, Dolores Balmisa, origem espanhola também.
P/1 – E a senhora conhece a história deles, de como vieram pra cá?
R – Eles vieram pra cá muito jovens, uma espécie de imigração espanhola, se conheceram. O amor não foi muito lindo, eu achava bonito quando ela comentava que ela amava um maquinista e ela se comunicava com esse maquinista através do apito do trem: quando ele passava nas imediações da chácara onde ela residia, eles tinham um sinal. Até que chega uma família e diz a ela: “Dolores, esse é o seu futuro marido”. Aí, o mundo desabou, né? Então, não foi um início bonito, amoroso, não houve convívio, contato, nada! Ele ficou até o nascimento do segundo ou terceiro filho, separaram-se, e eu nasci. Eu acho que ela já estava grávida de mim, ele veio, mas não permaneceu, se separaram de novo. E eu tive uma mãe maravilhosa, batalhadora, com quatro filhos, sem profissão. Ela pegava roupa dos meus irmãos mais velhos, desmanchava, passava um molde num jornal e aprendeu roupa masculina. Então, cueca, camisa, calça, era o mês todo na minha casa. Ela se tornou uma grande costureira. Mas antes disso passou muita necessidade.
P/1 – A senhora pode descrever como ela era fisicamente?
R – Ela era clara, magra, sempre. E muito prendada, principalmente na parte de costura. Era uma pessoa triste, tinha essa parte, e o que eu achava muito bonito nela, nunca ela falou mal do meu pai, sabe? Ela se referia a ele não com saudade, mas “coitado”, uma espécie de carinho. E ele tinha contato com meus irmãos mais velhos, dois irmãos e uma irmã e eu, que era a “rapinha”, a pequena. Ele vinha visitar ou me levava passar férias com ele, mas eu não sei... Ele tinha uma parte de alcoolismo que não me agradava. Era... Não é rude, mas machista, e a costura, o trabalho foi que auxiliou muito a minha mãe.
P/1 – A senhora se lembra do primeiro dia que o seu pai foi visitá-la?
R – Não, eu me lembro quando fui à casa dele. E, depois, muitos anos depois, eu já estava casada, e ele estava muito doente, desenganado de um câncer estomacal, ele não sabia. Ele olhou pra mim, com lágrimas nos olhos e disse: “Almôndegas como as que sua mãe fazia nunca mais eu comi na vida”. Então, foi uma parte boa que me veio, eles não tinham ódio, raiva um do outro. Ele morreu, eu não fui visitá-lo porque meu coração não pedia isso, sabe? E em resumo é isso.
P/1 – E sua mãe chegava a comentar, contar pra senhora por que seu pai tinha saído de casa?
R – Ela nunca falou mal dele, e nem ele dela. Ela dizia: “Ah, a vida era dura pra nós, ele era açougueiro, eu ajudava a tocar o açougue”, porque havia muita manufaturação, né? Linguiça, chouriço, o corte daquelas carnes. Foi uma vida sofrida dos dois.
P/1 – E eles contavam história de quando vieram para o Brasil, como foi?
R – Não, vieram num grupo grande de espanhóis.
P/1 – E eles se conheceram...
R – Lá, eu acho.
P/1 – A senhora falou que tem irmãos, né?
R – Tenho.
P/1 – A senhora pode falar os nomes deles por ordem de nascimento?
R – O mais velho, Pedro, aliás, José, é muito parecido com meu marido, então, eu troco. José, depois Domingos, depois Maria Francisca. Os três fizeram apenas o primário, aí, eu, pequena, eu fui realmente criada por ela. Porque os outros não tiveram a presença do pai. Eu consegui estudar, até uma lembrança gostosa da minha vida, duas amigas, vizinhas, passaram e disseram: “Vamos com a gente?”. “Onde vocês vão?” “Ah, nós vamos no externato, pra entrar no ginásio.” “Ah, eu vou!” E fui. Quando contei, minha mãe disse: “Filha, mas no momento nós não estamos podendo”, sabe esses lances assim? E não houve problema, os vizinhos ajudaram, estudava em livros já utilizados, que nunca me machucou isso. Era isso.
P/1 – E, ainda nessa parte de apresentação da família, a senhora conheceu os seus avós?
R – Conheci.
P/1 – Pode falar os nomes deles?
R – A minha avó eu conheci, o meu avô não. Minha avó se chamava Maria Francisca, esse nome foi dado à minha irmã, era uma espanhola decidida, sabe? Mas afastada dos netos e da minha mãe. Eu é que ia visitá-la porque ela queria me ver e a minha irmã também. Havia um carinho entre elas, mas foi uma família separada.
P/1 – Em que momentos a senhora ia visitá-la?
R – Nas férias. Mas eu gostava de ficar na casa de minha avó, porque ele já vivia com outra mulher, não que ela me agredisse, nem nada, mas eu não tinha afeto por ela, e ela tinha uns lances assim: “A sua roupa não está passada como eu passo!”, aquela comparação. Também nunca me afetou muito, acho que eu não tinha alcance para aquilo. “Os pimentões recheados que eu faço para o Domingos, dificilmente ele vai encontrar.” Eu ficava e, à noite, eu voltava pra casa da minha avó. A cidade chamava-se Itapetininga.
P/1 – E que recordações a senhora tem dessa viagem até lá? Como era feita a ida pra casa da sua avó?
R – Ah, eu não sei. Eu era de bem com a vida, eu acho, eu ia numa boa, ela era uma senhora experiente, durona, espanhola, né? Não era desagradável, eu concordava, achava que fazia parte do meu papel de neta, principalmente, quando ela ficou doente. Eu ia nas férias, mas por ele eu não procurava, eu não tinha saudade. Amor, eu acho, né? Aquela coisa de criação não tinha.
P/1 – E as comidas que sua avó fazia? Quais eram?
R – A minha avó? Comida espanhola, né? Gaspacho, fazia muita almôndega, que era o prato que a minha mãe fazia super. E coisas bem cozidas, muita carne, muito legume. Não era muito diferente da nossa.
P/1 – Essa avó era por parte do seu pai.
R – É.
P/1 – E por parte da sua mãe, a senhora conheceu?
R – Não, não conheci. Ficaram na Espanha.
P/1 – Sabe o nome deles, só pra gente deixar registrado? Só se souber.
R – Tem um Ildefonso, deve ser avô. Da minha avó, eu não sei o nome.
P/1 – A senhora se lembra da casa que a senhora passou a infância? Como ela era? Pode contar pra mim?
R – Posso. Era uma casa grande, mas sem luxo, uma construção básica, bem construída, mas sem luxo nenhum. E aos poucos ela foi... Como se diz quando coloca forro? Ela foi forrada, depois num outro ano melhoraram o piso. Ela era ampla, muito plantada porque minha mãe amava as plantas. Horta, flores, rosas, mudas. E foi feliz ali, gostava dali, mas já não tinha amigas porque os meus irmãos estavam supercrescidos, e eu era a rapinha. Numa dessas reconciliações, eu fui feita. E, aí, ele foi embora.
P/2 – A mãe da senhora falava em espanhol na sua infância?
R – A minha mãe falava.
P/2 – Foi isso que impulsionou a senhora também...
R – Meus irmãos também falavam.
P/1 – Quais eram os costumes espanhóis em casa?
R – Éramos unidos e talvez no início, pela dificuldade financeira da minha mãe sem o meu pai, ou ela dizia: “Hoje não estou bem, não quero bife”, e nós descobrimos que é porque era pouco. Ou era muito bem dividido. Depois melhorou essa situação. Éramos unidos, a minha irmã deixou Tatuí, veio para a casa de um tio aqui no Ipiranga, residir na casa dele, pra trabalhar aqui e mandar ajuda pra minha mãe.
P/1 – E tinha alguma frase que a sua mãe falava que era aquela frase que todo mundo sabia que significava alguma coisa?
R – Eu achava interessante: “Negra”, para os filhos e para as filhas, mas com muito carinho. “Negrita, negra, dame un abrazo”, e essas coisas ficam.
P/2 – Como era sua relação com seus irmãos?
R – Boa.
P/2 – Você lembra de alguma história marcante com seus irmãos? Alguma história que marcou sua infância com seus irmãos?
R – Ah, eram dois irmãos, né? Dois homens, um era a austeridade personificada e o outro era um doce. E eu apanhava do José, do mais velho, do Pedro! (risos) Então, o que me paparicava dizia: “Quando você for apanhar, passa sabonete no braço, que a mão dele vai escorregar e ele não vai conseguir te beliscar”. Mas não era uma coisa, assim, dramática, sabe? Era um Natal que nunca faltou, os dois se cotizavam pra comprar uma bonequinha, caixinha de bombom, todo ano era o mesmo presente. Fomos uma família relativamente unida, todos tinham que trabalhar. Esse irmão que eu amava, quando ele conseguiu o primeiro emprego, como auxiliar de farmácia, ele ia trabalhar descalço, logo que meu pai foi embora. Aí, o dono da farmácia disse: “Você precisa pedir pra sua mãe ou seu pai dar um calçado pra você, como é que vem trabalhar numa farmácia descalço?”. Então, essas coisas foram se ajeitando, ele aprendeu tirar o rótulo dos vidros, muito inteligente ele. Depois, ele foi para o balcão para atender o público. Depois, ele pediu para o patrão para vir a São Paulo fazer um curso para prática de farmácia, passou maravilhosamente bem e acabou tendo uma farmácia dele, própria, maravilhosa. Sem exagerar pra você, ele era tão querido, parecia médico. Aí, a vida também ia melhorando mais. Foi assim a nossa vida.
P/1 – E, ainda na infância da senhora, eu fiquei curiosa pra saber o que a senhora fazia pra apanhar.
R – Eu era rueira, resposteira. Era. Marota! Um pouco revoltada. Não deixava passar muito aquilo e depois eu fui melhorando, quando a vida em casa foi melhorando, eu fui melhorando, mas não foi fácil. Uma vez, eu vi pipoca, eu morria se não comesse pipoca, porque eu era pequenininha e: “Mês que vem você come pipoca”. Não precisa falar mais nada, né? Eu entregava depois as roupas que a minha mãe fazia pra professores, médicos, e eu ganhava, era uma moeda. É como eu te falei, foi melhorando.
P/1 – E teve alguma vez que a senhora apanhou que tenha sido marcante pela situação? Se a senhora puder contar pra gente.
R – Não. Era um apanhar meio de faz de conta, parece que eles não pesavam o braço, os irmãos, sabe? Mas coisa séria não.
P/1 – E tinha divisão de tarefas em casa?
R – Não. Um deles trabalhava na farmácia, o outro trabalhava numa livraria quando conseguiu, já moço. Minha irmã, como telefonista, e eu, quando cheguei na idade de se preparar para o curso de admissão, eu me preparei com a ajuda dos vizinhos, das amigas da minha mãe.
P/1 – E como vocês se organizavam em casa, pra cuidar da casa?
R – Não tínhamos ajuda, era minha mãe. Cozinhar, lavar, passar e costurar muito. Às vezes, altas horas, o barulhinho da máquina não deixava a gente dormir, sabe? Mas precisava.
P/1 – Tem alguma roupa que sua mãe fez pra senhora que a senhora mais gostou?
R – Tinha, tinha.
P/1 – A senhora pode contar pra gente?
R – Era um casaquinho de flanela xadrez, branco e azul. Eu tive até pouco tempo. E as comidas que ela fazia eram maravilhosas. Eu me enveredei pela culinária. Cheguei a publicar um livro em 1980, não faz tanto... Não era, né? Foi uma família que se organizou devagar.
P/1 – E quais brincadeiras a senhora mais gostava na infância?
R – Ah, não sei se você conhece o nome: pega-pega, bilboquê, bola! Bilboquê na minha terra falava-se “biblioquê”, bem brincadeira antiga. Aquele bate palma!
P/1 – E o que é um bilboquê?
R – É uma bola de madeira, um fio e um... Então, você tinha que emborcar. Era da época. Pular corda! Brincadeira de roda muito. Não havia brinquedo, pelo menos na minha classe social, manufaturado. Durante muitos anos, eu ganhei a mesma bonequinha, que eu amava esperar por ela, e a caixinha de bombom.
P/1 – A boneca tinha nome?
R – Não me lembro.
P/1 – E o que a criança Cida queria ser quando crescesse?
R – Queria ser? Feio, mas eu queria ser rica!
P/1 – (risos)
R – Queria ser rica, queria comer coisas que eu via nas casas dos vizinhos! Eu fui muito ligada a essa parte e fui boa aluna enquanto estudei. Não dei trabalho. Tenho boas recordações do tempo já da escolaridade instalada na minha vida, tenho muito boas.
P/1 – A senhora se lembra do seu primeiro dia de aula? Ou do primeiro ano na escola?
R – Eu lembro que eu era uma boa aluna. Eu era estudiosa, era boa aluna e isso dava muita alegria pra minha família. Com 13 anos, eu era tão boa aluna, é chato falar assim, mas eu era tão boa aluna em latim – que era a cruz da época – que os pais dos alunos de melhor poder aquisitivo me procuravam pra dar aula particular na minha casa. Então, eu já era professorinha. De latim. Eu punha a mão no bolso, saía dinheiro. Até que o latim foi extinto, aí, eu passei a curso de admissão, preparação dos menores para o ginásio. Eu sempre estive ligada a alguma coisa. Que mais eu poderia dizer?
P/1 – E, quando a senhora foi chamada pelos pais pra dar aula de latim, queria que a senhora contasse um pouco como era. A senhora, adolescente, dando aula, como a senhora se organizava?
R – Olha, eram famílias maravilhosas, maravilhosas! Primeiro, porque eu ajudava o filho dela que estava enterradinho, sem média. Eu gostava de ensinar. E eu era muito bem tratada, eu era indicada. Chegou num ponto que eu não podia mais ir nas casas, eu fiz uma escolinha no quintal da minha casa, lotada. Tive que mandar fazer bancos, verdade! E ali eu tinha turmas, eu estudava de manhã, depois do almoço, eu pegava e ia até de noite com aquelas turmas. E isso é bom pra gente. Quando o latim foi extinto, eu não esquentei a cabeça, aulas particulares, admissão ao ginásio, lotado. Acho que eu nasci para o magistério.
P/1 – O que a senhora mais gostava de ensinar do latim?
R – As declinações, os textos, a tradução daqueles textos latinos. É uma língua complicada, você deve saber, e eu fazia com gosto.
P/1 – E o que a senhora fazia com o dinheiro que recebia das suas aulas?
R – Eu ajudava muito minha mãe mesmo, na casa, e procurava me vestir melhorzinha. Porque ela não tinha condições no começo da minha puberdade, adolescência. Fazia pouco tempo que meu pai era ausente, e eu brincava com minha mãe: “Filha, por que você comprou isso?”, comprei um fogão pra ela, porque era fogão de lenha! “Olha, mãe, fácil assim, tem dinheirinho das aulas.” Então, eu fui melhorando também a situação da família.
P/1 – Como foi esse dia que a senhora deu um fogão pra sua mãe?
R – Nossa! “Não gosto disso, essa coisa moderna! Eu gosto do meu de lenha!” Digo: “Mas deixa, mãe”. Ela amava depois esse fogão. Todos melhoraram, né? Porque meus irmãos também ajudavam, minha irmã punha num envelopinho um dinheirinho pra ela.
P/1 – E, ainda nessa época da adolescência, sua mãe conversava sobre essas transformações do corpo?
R – Não. Com muito... Que termo eu uso? Com muito resguardo, com muita cautela: “Você vai ficar mocinha”. A gente não sabia, né? Eu tenho uma neta de seis anos que outro dia me perguntou: “Vovó, você e o vovô transavam?”, isso agora! Mas não sabia nem o que era transar, nada. E eu me saí até bem: “Sabe, Heloísa, faz tanto tempo que a gente se casou que nós não lembramos”. Ela passou pra outro assunto.
P/1 – (risos) E como a senhora foi percebendo essas transformações? A primeira vez de ficar mocinha, como foi?
R – A primeira transformação foi uma vizinha muito querida, Dona Hortênsia, ela falou: “Precisa falar pra Dolores que essa blusa já está muito justa pra você e já está marcando o seu seio muito”. Ali, foi o primeiro despertar. Quando fiquei mocinha mesmo, já tinha o irmão que se interessava por farmácia, ele foi um bom farmacêutico, então, ele orientava minha mãe e ela... Uma ajuda mútua.
P/1 – Mas a senhora se lembra quando ficou, e sabia o que estava acontecendo, como foi?
R – Eu sabia mais ou menos, né? Não entendia o tipo de proteção pra esses dias, porque o Modess estava surgindo, e eu não usava, usava tecido, que era aquela luta pra minha mãe lavar. Fui entendendo, eu mesma fui trocando, porque eu já podia comprar coisas pra mim. Não foi um drama.
P/1 – Mas, nessa época, tinha alguma orientação pras mulheres quando elas estavam menstruadas? Que podia ou não podia fazer alguma coisa?
R – Eu tive uma professora de trabalhos manuais, ela era muito aberta, mas nessa parte ela não tocava, nunca tocou. Pelo menos na minha faixa etária. Gravidez naquela época era um drama. Bastava uma menina do colégio saber pra cidade inteira saber, como se fosse um crime.
P/1 – E o que a senhora fazia pra se divertir na juventude, Dona Cida?
R – Eu? A diversão era pouca, mas eu gostava de cinema, quando eu podia. Eu gostava de dar volta no jardim, não sei se você já viu esse tipo de juventude, que os rapazes dão volta no jardim num sentido e as moças noutro sentido. Dali, surgiam flertes, namoros. Já mocinha mesmo. Não fui infeliz. Baile! Era, por exemplo, era moda “baile do xadrez”, “baile da bolinha”, “baile do listrado”, e a minha mãe, com muita doçura: “Esse mês eu não posso, mas, no baile do mês que vem, você vai usar um vestido lindo que eu vou fazer”. Ela era muito econômica.
P/1 – E chegava o baile do mês seguinte...
R – Ah, chegava! Fazia!
P/1 – E teve alguma paquera nessas saídas que tenha sido memorável, Dona Cida?
R – Eu era muito bobinha. Eu amava, com 13, 14 anos, um de 28! Imagina, né? Então, depois eu fui entendendo diferença de idade, de tudo, era meio bobona.
P/1 – Mas teve um primeiro romance nessa juventude?
R – Teve.
P/1 – A senhora pode contar?
R – Teve, ele se chamava Luiz, eu gostava imensamente dele, e ele passou a namorar minha melhor amiga. Eu quase morri! E perguntei por quê. Ele falou: “Olha, eu não quero te magoar, primeiro, que eu gosto da Ester e, segundo, que os seus olhos não são bonitos”. Aí, ele acabou comigo, né? Mas eu gostava dele.
P/1 – E com a Ester, a senhora foi conversar?
R – Ela era minha amiga, havia uma diferença muito grande entre nós. Ela vinha de uma família rica, ela era muito bonita! Gostava dele. Hoje, estão separados, velhinhos e separados, mas não tive... Os traumas que eu tive, horrorosos, primeiro trauma: a tentativa de suicídio da minha mãe. Isso acabou comigo. Outro trauma: a tentativa de suicídio do meu irmão, do bravo, do José. E a tentativa dele deu certo, ele morreu. Morreu, eu acudindo, tentando salvar, gritando já com noção da vida, de tudo. E a tentativa de suicídio da minha irmã, com comprimidos. Aí, já não se fala mais em infância. Aí, já é a mocidade. Foi triste.
P/1 – Se a senhora se sentir confortável de contar, Dona Cida...
R – Nossa! Eu sofri muito, muito. Eu amava aqueles irmãos e nunca entendia o porquê daquilo. Depois, você vai reunindo passagens, acontecimentos, e você descobre. A minha mãe, ela foi a primeira e escapou, mas não tocava no assunto. Minha mãe se cortou e, como ela não conseguiu morrer, ela subiu na torre de televisão. Eu já era casada, aí, eu entrei e vi aquele vulto, falei: “O que o senhor está fazendo aí?”. “Sou eu, filha, eu vou me jogar daqui.” Aí, este marido que vocês conheceram foi maravilhoso. Ele e o meu irmão farmacêutico. Procuraram uma clínica, naquela época, era eletrochoque. Ela levou muitos e melhorou. Mas nunca voltou a ser uma pessoa de bem com a vida, feliz. Não é fácil, não.
P/1 – Quer tomar uma água, Dona Cida?
R – Ah, dói, né?
P/1 – Sim, sim.
R – Então, fases muito difíceis eu não sei enfrentar muito bem, eu entro em depressão, não de tentativa, de nada, mas eu afundo. Depressão profunda, de médico, de tratamento mesmo, tanto que estou saindo de uma depressão. Há uns quatro meses, ela apareceu, ela não tem cura. Depressão não tem cura e, com essa depressão, eu achava, eu passei a cair. Se eu te mostrar meu cotovelo, meu ombro, minhas pernas, de curativo, de gente me acudir na rua, no prédio, no banheiro. Em qualquer lugar, eu me desequilibrava e... Agora, eu estou melhor. Estou caindo menos, consigo me levantar e estou em tratamento, me considero quase sã e, junto com essas quedas e a depressão, eu dei uma pifada, mas estou me levantando, mesmo! Então, é uma família problemática.
P/2 – A sua mãe falava com a senhora sobre sentimentos? O que ela sentia?
R – Minha mãe não. As coisas tristes, ela escondia de todos os filhos, não falava. Coisas alegres, né? Pra compensar aquilo, mas coisas tristes não. Ainda eu falei para o meu marido: “Mas por que eu vou nesse tratamento?”. Ele falou: “Não é tratamento, você foi convidada”. Aceitei a resposta e não quis cutucar mais. Depois, eu soube que foi minha filha quem indicou, ela sempre foi boa filha. É isso.
P/1 – Se a senhora se sentir confortável, tá, Dona Cida? Logo depois desse caso da sua mãe, teve o seu irmão, sua irmã. Se a senhora puder contar como foi depois dessa série de acontecimentos.
R – Foi horrível! Foi horrível porque eu tentei uma vez. Eu tentei uma vez, acho que não foi pra valer, mas foi pra testar se eu estava viva. Eu cortei os pulsos, mas novinha, 20, 21 anos.
P/2 – O que a senhora sentia nessa época?
R – Tristeza. Falta de um convívio alegre dentro de casa, todo mundo tinha de trabalhar. E hoje eu não gosto de ficar sozinha em casa, mas hoje eu tenho a iniciativa de procurar coisas pra fazer, tenho os netos que são as coisas mais doces do mundo, os quatro. E bons filhos, isso ajuda.
P/1 – A gente pode continuar falando dessa sua juventude em Tatuí. Como foi se desenvolvendo na escola?
R – Na escola, eu nunca tive problemas, tanto que é uma passagem que marcou muito minha vida. Novinha, uns 13, 14 anos, os professores perceberam que eu tinha muita facilidade pra escrita em português, então, eu fazia poesias. As colegas de classe: “Ah, Cida, faça uma poesia que eu quero mandar pro meu namorado!”. Aí, vinha outra: “Ai, eu quero uma poesia pra minha mãe, pra minha irmã...”. Fiquei a escritorinha dali e passei a participar de muitos eventos no colégio, de orfeão. E num dos eventos o meu professor de música fazia aniversário, e eu estava num jardim, na frente do colégio, toda de pamonha, comendo pamonha e a letrinha da poesia rabiscada já no bolso, caso eu esquecesse alguma coisa. E: “Vem, é a sua vez! Para com essa pamonha”. Eu fui, li a poesia pra ele, até coloquei nos meus papéis, e ele segurou a minha mão e eu tinha pressa de soltar a mão dele: “Espera, espera um minuto”. Depois que todos aplaudiram, ele disse: “Agora, eu vou aproveitar o momento para beijar as mãos dessa artista”. Ah, me fez tão bem! E eu era amiga da esposa dele, dos filhos. Um mês depois, você sabe que num colégio de interior, pequeno, as pessoas se encontram, eu me encontrei com ele no corredor do colégio. Ele disse: “Sabe aquela poesia que você fez para o aniversariante gordo? Vai ser uma música!” – ele era professor de música – “Eu já estou terminando a música e nós vamos cantar aqui no colégio”. E essa música foi longe, foi nas cidades vizinhas, sabe? Mesmo! Ganhei um prêmio com ela e amava esse professor e a família dele também. Foi uma parte boa, que eu fui resgatando do que eu já tinha passado e qualquer coisinha: “Faça uma poesia pra semana de Paulo Setúbal”, um escritor da minha terra. “Faça uma poesia pra Euclides da Cunha, é a semana de Euclides da Cunha em São José do Rio Preto.” Fazia. E sempre segundo lugar, primeiro lugar! “Olha, vem o bispo de não sei onde visitar o colégio, escreva alguma coisa pra ele.” Eu me tornei não um destaque, mas uma peça útil no colégio, dentro do orfeão, e continuei escrevendo, sempre. Ele morreu no Dia do Professor, eu fiz a letra e dei pra uma amiga minha: “Olha, você compõe bem, faz a música...”. Ela disse: “Não, a música quem vai fazer é o professor Bimbo, que é professor de música”. Então, tem um pedacinho bonito na história, né?
P/1 – Lindo! Essa primeira que a senhora fez para o professor e ganhou prêmio, qual é o nome dela?
R – Valsa do Professor.
P/2 – A senhora lembra como canta?
R – Eu? Canto! Não tenho muita voz, eu posso falar?
P/1 – Do jeito que a senhora preferir.
R – “Dos bens que recebemos e gozamos, sentimos a beleza e o esplendor, e nossos pensamentos dedicamos a quem nos oferece grande amor. E o bem que nos alegra e nos encanta é o límpido caminho da instrução, guiado pela mão divina e santa que tem a nossa eterna gratidão. Guiado pela mão do professor, que nos aponta a estrada da verdade, que nos ensina em Deus ter grande amor para podermos ter felicidade. Bendito sejas, professor, bendito. Divina mão que só pratica o bem, és o mestre da vida, do infinito, a esperança de sermos nós alguém.”
P/1 – Que lindo! (aplausos)
R – É, eu adoro! E depois, musicada por ele, ficou maravilhosa!
P/1 – Tem mais alguma que a senhora escreveu e que lembre?
R – Ah, filha, um monte! Pra ele não.
P/1 – No geral?
R – Tem uma que eu escrevi na missa de sétimo dia dele, porque ele foi muito ligado à minha família, ele dava conselhos maravilhosos para o irmão farmacêutico: “Vai pra São Paulo fazer um concurso, você entende de farmácia”. Então, eu gostava dele, da família, do Mário Edson, o filho dele. Quando ele morreu, eu fiz uma poesia muito bonita, referente à morte dele, está nas coisinhas aí. Não sei se interessa... E há pessoas que passam por nossa vida e deixam a presença, né? A postura, a ética. Ele era assim com todos os alunos. E hoje eu já não vejo professores assim. Pelo menos com meus netos... Com os meus filhos, já não eram assim. Pra minha filha foi, foi pra Rita, uma professora disse: “Ah, que nada, vamos curtir a Copa do Mundo, manda a merda!”. Isso pra mim era... Eu sou antiguinha!
P/1 – (risos)
R – Ele era muito ético, eu nunca entendi. Na época, o rapaz que entrasse para o orfeão, para assistir aula, com a mão no bolso, ele: “Componha-se”. E eu não entendi por quê! Depois eu entendi. Ele era duro, querido, amado por todos os alunos. E morreu no Dia do Professor. Todas as flores que iam pra festa foram pra casa dele. Tem um filho que toca numa boate famosa aqui em São Paulo, me esqueci do nome, ali nos Jardins. Tem uma filha muito culta também. E a Dona Francisca já faleceu. Então, são pessoas que não passam em branco pela nossa vida, né?
P/2 – Você falou que em casa era triste, que sua mãe era triste. Então, você considera que no colégio era seu momento feliz?
R – Ah, era! Era mesmo. Uma vez, que eu não era santa, né? Terminou o recreio e nós tínhamos aula de música e, entrando, eu peguei um giz e escrevi: “Nassifquico”, pus o nome dele no diminutivo. Ele entrou, viu aquilo na lousa: “Quem fez isso?”, e eu... “Vamos, não vamos perder tempo! Quero saber quem fez!” Ninguém abria a boca. “Vamos, vamos logo, que eu vou fazer uma chamada oral aqui e vocês vão se danar!” Daí, uma colega chamada Lilian levantou-se e disse: “Professor, foi a Cárdenas”. Aí, ele parou e disse: “Sabe que você me fez um elogio? Eu, gordo desse jeito, idoso, barrigudo, e você me chama de Nassifquico? Isso é um carinho”. Acabou com ela, acabou comigo, né? “O senhor me desculpe, não sei o que deu na minha cabeça, mas eu escrevi, fui eu.” Então, são coisas... Eu gostava da escola, eu acho que era um substituto de alguma coisa que eu não tive, né?
P/1 – E, dessa época que a senhora deu aula, tem algum estudante que a senhora se lembra com carinho ou de alguma história?
R – Ah, tem! Eu trouxe até uma foto de um grupinho, tem...
P/2 – Nesse momento, a senhora já sabia que era seu dom dar aulas, lecionar?
R – Ah, era. Pois, olha, pra você ver, eu fiz vestibular, passei... Eu era professora primária efetiva. E naquela época era um bom salário, a gente não tinha o apelido que tem hoje. E eu falei pra minha mãe... Não, falei para o meu irmão: “Ah, eu não vou querer fazer a faculdade”. “Como? Estudou quatro anos, ganhou bolsa, vai! O salário é melhor!” “Não, eu quero voltar para os meus pequenininhos.” Eu gostava. Eu tive um aluno de nome Everaldo, pretinho, lindo! Aquele olhinho vivo. Você botava um problema na lousa, primeira mãozinha: “Já fiz!”. Podia por certo, sem ler, de tão bom que ele era. Aí, a mãe dele me procurou, disse – eu lecionava no Roosevelt, nessa época: “A senhora está notando alguma coisa no meu menino Everaldo?”. Eu falei: “Olha, eu noto que ele não produz como ele produzia e ele está se tornando uma criança muito triste aqui, porque ele não é assim”. Ela disse: “Eu vou contar pra senhora a história” – que era um pouco da minha – “Meu marido foi embora, me deixou com uma turminha, eu sou faxineira, enquanto eu pude, eu dei café com leite para as crianças, depois eu não pude, eu dei só café e agora não estou podendo dar café. Eu dou água com açúcar e uma hora eu não vou poder dar o açúcar, porque eu não venço trabalhar e cuidar das crianças”. Crianças ótimas, precisava ver que menino. Então, isso faz o quê? Deve fazer uns 28, 30 anos, até hoje eu me pergunto: “Onde andará o Everaldo? Que rumo ele encontrou na vida?”. E fiz uma coisa, que eu achei que eu gostaria que fizessem por um filho meu nessa situação. Eu preparava o meu lanche para levar para o colégio e preparava um lanche pra ele. Então, ele, muito afável, muito... Dizia: “Olha, o dia que a senhora traz pão com manteiga é uma delícia, agora, o dia que a senhora põe carninha é mais delícia!”. Então, esse menino faz parte da minha vida. Não sei, seria um grande engenheiro, um grande médico, pela cuca que tinha ou... Não sei o que a vida fez dele.
P/1 – E tem alguma história da época em que a senhora dava aula de latim na sua casa?
R – Tem!
P/1 – A senhora pode contar a história?
R – Tem, eu tive alunos que entravam, que era de soltar rojão se acontecesse isso, aluno tirar nove em latim. Muitos vinham com nove, mas o pai queria dez. E outros vinham com um, dois, um e meio. Então, era um pedido de ajuda. Tive, sim, muitos casos, gente rica, gente pobre, tive um menino chamado Bonifácio. Ele, quando pequeno, deve ter sofrido aquela doença... Pólio, poliomielite. E eu dava aula pra um menino e uma menina, irmãos, mocinhos, que moravam num hotel melhor da cidade e que cuidavam dele, pagavam os estudos dele. Aí, a dona do hotel, Dona Cizira, ela disse: “Oh, Cida, você é tão boazinha, dá aula para o Bonifácio!”. “Claro!” “Pode pôr com os meus dois netos.” “Pode.” Aí, ele veio comigo. Eu não cobrava, imagina que ia cobrar naquela situação. Então, são pessoas boas, porque ela, no meio da aula, ela mandava um prato de batata frita para os dois netos dela, para mim e para o Bonifácio. Então, você aprende. Não sei também o que é feito dele, mas Erivaldo, eu morro de saudades, queria ver um promotor. Eu falo para o meu marido: “Kalume, deve ser um promotor”. Ele fala: “Você é muito sonhadora, Cida! Um curso, oh! Será que ele tinha?”. É isso.
P/1 – E como foi a vinda pra São Paulo?
R – A vinda pra São Paulo foi boa, porque meu marido era chefe do Ministério do Trabalho lá em Tatuí, e ele veio por uma promoção. Aí, ele disse: “Cida, pra eu melhorar essa promoção, eu preciso da sua ajuda com o latim, eu não sei nada de latim! Eu preciso da tradução de alguns textos em latim pra fazer essa prova em Bauru, onde eu posso ir uma ou duas vezes por mês”. Então, eu ajudei. E, a partir dessas referências, dessa melhorada que ele deu, ele foi promovido pra um cargo mais acima. Então, morava numa vilinha na Mooca, uma viela, e eu morava ali. Era um meio tão... Que eu punha minha filha na porta, isso em sábado e domingo, pra ela tomar sol. Ela é branca como eu, vocês viram. E havia uma senhora que era dona da casa, ela me alugava a casa, alugava para o meu marido, ela disse uma vez pra Rita: “É, seus pais ficam fazendo porcaria lá em cima e largam você aqui no sol?”. Foi nesse ambiente. Desse ambiente e, com a melhora salarial dele, nós fomos procurar casa. E, procura daqui, o dinheiro não dava. Procura de lá, o dinheiro não dava. Aí, passamos pela Nove de Julho, saindo do túnel, naquele barulhão, “aluga-se” ou “vende-se”. Kalume falou para o corretor: “A gente pode olhar essa casa?”. “Mas essa casa? O senhor quer essa casa? Pra começo de conversa, são seis casinhas iguais, antigas e sem conforto, na boca do túnel.” “Não, qual o valor dela?” “Ah, pra venda é tanto.” Ele disse: “Eu acho que eu posso, se o senhor fatiar pra mim”. Então, foi a primeira casa. Quando entramos na casa, pra conhecer, o piso era inteirinho picotado e a parede... Como chama aquele revestimento da parede? De cal? A pintura, vamos dizer, detonada. Daí, Kalume disse: “Qual o problema desta casa? Por que está neste estado? É por isso que o preço dela é bom?”. Disse: “Não, aqui veio um casal com uma criança com problemas mentais, vieram do interior pra cá pra tratamento, ficaram três anos e deixaram a criança detonar a casa, como o senhor está vendo. Mas a criança voltou menor do que veio pra São Paulo, e eles voltaram para o interior, por isso o preço é esse e o senhor vai gastar um dinheiro aí pra...”. Tudo isso eu acho conquista! Daquela casa, a gente pintou, meu irmão ajudou, o farmacêutico já formado. Daquela casa, eu fui pra casa onde eu moro até hoje, que eu amo. Eu amo aquela casa. É um apartamento pequeno, são três dormitórios, sala, cozinha, banheiro. E, naquela época, ainda se construía área de serviço, hoje não tem mais, né? Não tem empregada, pra que a área? Fomos imensamente felizes, criamos dois filhos, o menino tem duas faculdades, a menina é arquiteta e...
P/1 – Tenho um monte de pergunta pra fazer, Dona Cida, porque a gente acabou pulando uma etapa aí, mas não tem problema, é assim mesmo, a gente vai voltando.
R – E às vezes eu falo coisa que não interessa.
P/1 – Superinteressa, está tudo interessando. Tudo! (risos) A senhora está bem aí?
R – Eu estou ótima.
P/1 – Então, tá bom. Eu queria saber, antes, a senhora já veio casada aqui pra São Paulo, né?
R – Vim.
P/1 – Eu queria saber como a senhora conheceu seu esposo.
R – Ele era meu vizinho de frente. A rua, minha casa aqui e a dele ali. Dele não, era do lugar onde ele trabalhava. Era o governo que fornecia, e ele tinha uma namorada trocentos anos. E eu lecionava o dia inteiro e dava alfabetização de adultos à noite, e ele carregava meus livros porque, no caminho, eu passava pela pensão onde ele morava. E, conversa vai, conversa vem, ele falou: “Ah, acho que eu vou terminar meu namoro com a Odila”. Falei: “Por quê? Ela é tão boazinha”. “Ah, não tem a minha cabeça. Minha cabeça está mais pra você.” Falei: “Ah, mas eu tenho namorado”. E assim começou. Ele carregando, chovia, ele levava guarda-chuva pra eu não me molhar. E muito boa pessoa. Ele foi muito bom pra minha mãe, soube compreender minha mãe. E assim eu me casei. Aí, ele veio na frente, a Rita era pequenininha, quatro anos. Passava a semana aqui, ele trabalhava no Ministério do Trabalho e, todo fim de semana, ia pra Tatuí. Até que, um dia, ele chegou, e ela, pequenininha, pôs a mãozinha assim e disse: “Quem é você? Eu não conheço você”. Ele falou: “Ah, Cida, não dá mais”. Falei: “Eu também acho”. E eu tinha dois empregos lá, trabalhava em dois colégios. Falei: “Vamos embora, como vai ficar?”. Filha única e vamos criar assim? E eu me inscrevi para o magistério primário, passei, peguei uma região para lá da Vila Formosa e vim. Daí, ficamos juntos. Mas ela sentia falta, né? “Quem é esse homem?” (risos)
P/1 – Ainda no momento que vocês estavam se conhecendo, o nome do seu esposo é...
R – Pedro de Alcântara.
P/1 – No momento que a senhora conheceu o Pedro, a senhora falou que estava namorando, era verdade?
R – Era.
P/1 – E como foi terminar? Como a senhora percebeu que gostava dele?
R – Ah, ele é muito inteligente, ele tem uma conversa agradável, todo mundo gosta muito dele. Assim, os lugares que ele frequenta, onde ele trabalha. Ele lecionou na PUC [Pontifícia Universidade Católica] e depois se fixou no Ministério do Trabalho, mas ele... Ele é um bom pai, perdemos nosso segundo filho, que foi uma parada. Demos a volta por cima, esse grandão que você viu aí, que é rapa de tacho, né? Só trouxe alegria, é um menino maravilhoso também. Pode perguntar.
P/1 – Ah, vou perguntar mesmo! (risos)
R – Pergunte.
P/1 – Eu queria saber, quando vocês oficializaram esse namoro, como foi esse momento?
R – O nosso? Naquela época, era diferente, né? Pra pegar na mão, levava dois meses. Nós temos o quê? Eu tinha 24 anos quando me casei, agora tenho 82, então, você imagina. E namoramos, tudo devagarinho. Quando o meu ordenado melhorar, que ia melhorar depois, a gente já pode pensar no noivado.
P/1 – E como foi o preparativo para o casamento, Dona Cida?
R – Super simples. Houve uma festa, minha mãe falou comigo e com ele, deixou meus irmãos de fora. O da farmácia foi o que mais ajudou. Então, ela disse: “Olha, eu gostaria de dar pra minha filha uma festa maravilhosa, mas eu prefiro ajudar de outra forma, dando coisas que faltarem pra montar a casa de vocês, de outra forma, não com festa. Mas vou convidar o quarteirão inteiro, da primeira casa até a última, nas duas calçadas”. E assim foi.
P/1 – E o vestido?
R – Lindo, lindo! O vestido, eu já lecionava latim, eu comprei o tecido, mandei fazer numa boa costureira, me casei e depois dei esse vestido pra uma moça. Eu falo muito de mim, tem hora que eu acho... Ela não tinha dinheiro pra fazer o vestido dela, eu dei o meu pra ela.
P/1 – Quem era ela?
R – O nome dela eu não sei, eu me encontro com ela, e ela fala: “Dona Cida, lembra de mim? A do vestido?”. Agora ela melhorou, tá boazinha de vida, mas eu tinha essa parte que eu herdei da minha mãe. E ele vinha de uma família bem mais abastada. Meu sogro era comerciante, minha sogra não apoiou muito o casamento porque eu não era de família síria, árabe. Ele disse: “Ah, não, não tem nada a ver, não”. “Não, volta pra cá, aqui você tem tudo, você faz concurso.” Ele disse: “Não, eu já decidi, vou me casar com a Cida.” E depois eu me entendi com a família, com as cunhadas, ficamos amigos.
P/1 – E como foi esse comecinho de casada, como foi descobrir essa intimidade de casado?
R – A intimidade foi a maior parte ele morando aqui, e eu morando lá, e o meu irmão achando, o que sempre ficou no lugar do meu pai: “Não é legal, Cida, nem pra menina, nem pra você e nem pra ele. Faz força”. Digo: “Mas não posso deixar dois colégios pra ir pra São Paulo. Deixa, eu ingresso no magistério, aí, eu tenho um salário fixo”, e foi. Ele era muito trabalhador e trabalha até agora, com 85 anos.
P/1 – E como a senhora foi desenvolvendo esse lado de professora profissionalmente depois do casamento? A senhora continuou estudando?
R – Ah, aí, eu fui pra USP [Universidade de São Paulo]. A USP ganha caminhos, né?
P/1 – Como se deu a sua entrada na USP?
R – Eu fiz vestibular. Fiz vestibular e passei em sétimo lugar e fiquei de braços cruzados, indo pra Vila Formosa e indo pra USP. Fiquei dois anos aqui na Maria Antônia, e o final dela lá na Cidade Universitária. Até que uma amiga disse: “Cida, em que lugar você passou?”. Falei: “Passei em sétimo”. “Pois, então, você está dormindo no ponto, você tem direito à bolsa. Até o décimo lugar, você estuda de graça!” “É? Na PUC, eu passei em segundo.” Falei pra ela, e ela disse: “Não, a PUC deixa pra lá, já passou e não quis. Aqui na USP, entra com os papéis, dá sua classificação, que a secretária faz o resto”. Aí, eu ganhei uma bolsa. Então, facilitou, eu tinha o salário de professora, que veio como bolsa, ele veio e nós alugamos a casinha da Mooca.
P/1 – E como era ser esposa, mãe, estudante e professora?
R – Era puxado, era puxado.
P/1 – Como era sua rotina?
R – A minha rotina era pouco lazer e muito trabalho, mas um marido sempre companheiro. Criando a Rita, ele me ajudou muito na criação dela, eu tinha aula de língua e literatura espanhola no sábado, professor disse: “Pode trazer, se ela é boazinha, quietinha, ela assiste a aula com a senhora no sábado”, que as aulas eram em sábado. Tudo encaixou.
P/1 – E, nesse período da universidade, a senhora participou de algum estágio ou alguma outra experiência?
R – Não. Eu vou falar de mim de novo.
P/1 – Mas a gente está falando da senhora mesmo e está sendo ótimo!
R – Eu recebi um convite pra ficar trabalhando na cadeira de língua portuguesa lá na USP, na Cidade Universitária. Digo: “Imagina, eu moro na Nove de Julho, que horas esse ônibus vai chegar na Cidade Universitária?”, fui franca. “Não posso, tem marido, tem filha, estamos pagando o final da casa que a gente comprou e tal.” Daí, a cadeira de espanhol fez outro convite pra uma bolsa de um ano, com tudo pago. Falei: “Não posso, tenho marido...”. Ele era muito dependente, então... Eu encerrei minha carreira, fiquei com meus pequenininhos, que eu amava e amo.
P/1 – Mas a senhora chegou a se formar na USP?
R – Me formei! Eu sou formada em Letras com pós-graduação, fiz língua, fiz literatura. Mas tem hora que dá, né? O que eu queria com 18 anos não dava e quando deu... Veio esse aborto no meio da história, depois, o médico derrubou a cara no chão, falou pra mim: “Eu acho que a senhora está grávida”. “Não, eu não posso ter mais. Eu já fui em bons médicos aqui e, numa linguagem bem simples, eles me explicaram que tudo que era assim em mim, com o aborto, ficou assim, então, eu não vou engravidar nunca mais. Vou criar minha menina”. Aí, esse pedaço eu acho lindo. Eu fui na casa de uma amiga de Tatuí, que morava aqui, e ela estava retirando a mesa do jantar. Havia maionese e mousse de chocolate. Falei: “Oba, bem, ponha pra mim num pratinho um pouquinho de mousse e misture com a maionese”. Ela: “Você não jantou?”. “Oh, jantei, mas está demais isso daí.” Kalume, um olho deste tamanho! Aí, eu comi. Sabe quando você come o néctar dos deuses? Misturava a maionese com a mousse, e fomos pra casa. “Que é aquilo, Cida, pedir maionese com mousse?” Falei: “Ah, me deu uma vontade, uma delícia”. E comecei, a partir dessa data, a me observar. Um soninho depois do almoço, sabe? Aquele soninho. Kalume disse: “Não, vamos no médico, não é possível! Você foi desenganada por três! Como é quê...? Não, não”. Aí, fui, o médico examinou, e ele disse: “Olha, eu não quero garantir, mas vou lhe indicar o papa no assunto, Domingos Delascio”. Fomos lá, ele examinou e falou: “Nem vou dar os parabéns porque está pra perder, mas este não vai perder porque nós vamos segurar”. Está lá, o meninão veio! Gordo! (risos) Casado, é pai de três. E a menina é pai de um. Menina já foi uma luta também. Então, eu não sou boa parideira, encrenca a coisa.
P/2 – Foram partos normais?
R – O menino foi cesárea. Eu tinha 39 anos. São 12 anos de diferença.
P/1 – Já que a gente entrou nesse assunto de maternidade, eu queria que a senhora contasse como foi descobrir que a senhora seria mãe na primeira gravidez.
R – A primeira? Assustada! Crise! Muito assustada, claro que feliz, quem não quer um filho? Mas assustada. “Vou ficar aqui e ele vai ter que ir pra São Paulo! Estou morando com a minha mãe...” Embora meu irmão ajude nos pedaços apertados, minha mãe estava caminhando pra melhora da vida dela como costureira, mas só trouxe alegria a menina.
P/1 – A primeira se chama...
R – Rita, foi o parto normal, né? E o menino, o Doutor Delascio disse: “Não tem como tentar normal, a senhora não aguenta! O menino é grande”, ele falou. (risos) “A senhora não aguenta.” Está lá.
P/1 – Qual o nome dele?
R – É nome árabe, é Milad, quer dizer Natal. Aí, ele disse: “Mãe, um chama de Miled, outro chama de Mileide. Ah, mãe, eu queria mudar”. Falei: “Muda, ué! Seu nome não é Milad Kalume Neto? Fala Neto, Neto, que as pessoas vão acostumar”. Hoje, ele é Neto. E, pra variar, a família do meu marido tem mágoa de não chamar de Milad. Ok, mas você, podendo evitar um constrangimento, né? Aí, ele se animou quando ele soube que o dono daquele restaurante, o Alex Atala, chama Milad. Aí, ele ficou... “Ah, mãe, então, não é tão assim! Miled, Mileide! Eu tenho cara de mulher, mãe?” “Imagine, com essa altura!” E é um filho abençoado mesmo.
P/2 – Dona Cida, queria fazer uma pergunta. A relação que a senhora teve com seus filhos foi diferente da relação que teve com a sua mãe?
R – Ah, foi. Já foi uma coisa consciente, né? Eu cuidava de certas coisas que eu não amava em minha mãe. Ela era medrosa, medo de chuva, medo de pneumonia, sabe? Eu procurei criar com naturalidade. Participar da vida deles, porque, depois que meu pai foi embora, ela nunca mais saiu de casa, ela só ia pra igreja. Ela diz que poderia ficar mal falada. Naquela época, leva-se em conta isso, então...
P/1 – Eu queria saber do lado da senhora, com relação à língua espanhola, como ficou? A senhora se aproximou da língua?
R – Adoro.
P/1 – Como ficou, principalmente, durante a formação na USP?
R – Então, eu te contei que fui convidada pra ir pra Espanha...
P/1 – Isso a senhora não contou pra gente, não!
R – Não? Fui convidada pra um aperfeiçoamento, porque minha pronúncia era muito boa. Era o professor Morejón, na época. Mas aí eu já estava presa com filho, com casamento, com a mãe que já não tinha muita saúde, já tinha acontecido aquela tentativa. Fiquei por aqui e não me arrependo. Me arrependo do salário que eu tenho hoje, né? Salário de coxinha, vocês sabem disso. Salário de professora é... Se eu fosse depender desse salário que eu tenho como aposentada, eu não pagaria nem um quarto e sala. Verdade. Não façam magistério!
P/1 – E a senhora chegou a visitar a Espanha em algum momento?
R – Não. Ah, fui! (risos) Quando a minha filha se casou, ela... O meu genro é suíço, toca o telefone: “Mãe, eu acho que a senhora vai ter que fazer uma viagem. A senhora e meu pai e o meu irmão”. “O que aconteceu?” “Eu vou me casar.” “O quê? Você encomendou nenê?” “Não, mãe! Vamos nos casar aqui.” Aí, fomos, eu fiz Suíça, Espanha e França, três países. Assim, tudo curtinho, foi muito bom.
P/2 – Quantos anos ela tinha na época?
R – A minha filha?
P/2 – É, quando ela casou!
R – O meu neto, que é o mais velho, tem 18, ela deve ter 50. Façam a conta pra mim! (risos) Que idade ela deveria ter?
P/1 – 32
R – Então.
P/1 – Pra encerrar essa parte de faculdade, Dona Cida, eu queria saber se a senhora tinha algum envolvimento político nessa época.
R – Tinha.
P/1 – Eu queria que a senhora contasse como era essa sua relação, se a senhora se sente bem pra contar.
R – Não, não tem... Eu te falei que os dois primeiros anos eu fiz na Maria Antônia, né? Depois que eu fui pra Cidade Universitária e eu, já quando entrei na USP, eu já não era a jovenzinha que frequentava lá. Eu tinha 32, se não me engano, e lá eu conheci o Zé Dirceu e eu gostava imensamente dele. Assim, de colega. Ele ia muito lá, ele dizia: “Por que a senhora deixou pra estudar tarde? Perdeu uma etapa boa da vida”. E política, ele nunca forçou nada, até que eu assisti à turma do Mackenzie batendo nos da USP, ali na Maria Antônia, e muito bem protegidos por guardas, dando cobertura pra eles. Não vi o Dirceu envolvido em nada! Só vi ele socorrer uma criança, porque eu não era participativa, mas estava vendo. E ele seguiu, da Maria Antônia, nós fomos pra Universitária. Ele, acho que estudava na PUC, não sei, nunca mais vi. Só vejo pela televisão, mas muito inteligente, muito ciente do papel dele, não sei se era certo ou se era errado, mas eu achava ótima pessoa e agora que ficou essa tristeza (risos).
P/1 – Bom, da colinha da senhora tem mais alguma...
R – Ah, deixa eu ver aqui. Dados pessoais, nome, escolaridade. Aulas de português e latim, Tatuí, aula de música no orfeão, o que acontece com o professor, quando eu conheci o professor Nassif, programas culturais que eu adorava participar. Semana Paulo Setúbal, eu falei. Semana Euclidiana, participava em muitos programas do conservatório musical, foi um dos primeiros criados no interior, Conservatório Dramático e Musical Carlos de Campos. Depois, eu ingresso como bolsista, já falei. Mackenzie, com o confronto, e, em 54, eu participei da Semana de Euclides da Cunha, já falei. Tirei o segundo lugar num concurso de poesia, depois ingressei no magistério primário, no Almerinda Rodrigues de Mello, e na Presidente Roosevelt. Em 68, eu entro na USP, já tinha perdido o nenê aí. Na USP, bacharel em Língua e Literatura Portuguesa. As oportunidades que eu poderia ter tido lá. Casada com Pedro de Alcântara Kalume, tivemos dois filhos, Rita de Cássia e Milad Kalume Neto, que, desde crianças, aprenderam a gostar de estudar, da vida no interior. Tenho cinco netos.
P/1 – Vamos chegar nos netos ainda!
R – Ah, é? Então, parou aí.
P/1 – Ótimo, então eu posso perguntar mais coisa?
R – Pode!
P/1 – Eu queria saber se a senhora chegou a voltar e, se sim, em quais momentos, pra Tatuí?
R – Ah, eu voltava toda semana, quando minha mãe era viva principalmente. Aí, ela faleceu, a casa deixou muitas recordações, e Kalume construiu uma casa num condomínio. Com que finalidade? Com o que eu fiz com a Rita e o Neto. Porque foram nascendo os netos do meu filho, então, lá eles aprenderam a andar de bicicleta, eu levava pra tomar sol! E a minha família lá, esse meu irmão que eu amava lá. Quando chegou uma época, que o mais velho, que amava lá: “Ai, vó, eu não vou! Tem debate na minha escola, não posso faltar”. Aí, na outra semana: “É aniversário de um colega, amigão”. Então, ele deixou de ir. Ele ia, mas não como antes. E, com os pequenos, agora, pequenos... O Téo tem 13, a Sofia tem 11 e a Heloísa tem sete. Já não estão querendo ir. Aniversário, a mãe dela faz doce gostoso, teatrinho na escola! Toda uma motivação dos quatro pra não ir, eu nunca forcei, mas, também, ir eu e meu marido numa casa imensa, onde eu cozinhava, lavava, passava em fim de semana, você não tem ninguém. Ou levava pronto daqui, eu fazia congelar, então, levava, mas foi complicando. Passar o fim de semana sem os seus filhos e seus netos, porque durante a semana eles trabalhavam e os pequenos estudavam. Por isso, eu não vou e porque fica a sete quilômetros da cidade. Se você esquecer um queijinho ralado, você vai buscar. Mas, claro, é minha terra. “Kalume, por que você não fez um negócio menor e lá em Tatuí? Quem sabe seria diferente!” Mas eu não deixei de ir totalmente, eu vou.
P/1 – E como é voltar? Quais as sensações que vêm?
R – Eu não tenho vontade, não vou mentir pra você. Claro, os poucos conhecidos que restaram, a maior parte já foi para o andar de cima. Agora é a minha turma que está indo. Na cidade, eu moraria, numa casa menor. Porque você precisa morar num... Imensa! Ali, você mantém, não sei se eu comentei isso, com um jardineiro, um piscineiro, um caseiro, um só pra tirar mato porque mato cresce e é grande. É uma estrutura... Então, você não vai pra passear, pra tomar sol! Não vai pra se distrair. Parece que tem até o dedinho de Kalume, todo mundo lá pergunta: “Você não tem vindo”. “Ah, a Cida não vem!” Mas não sou culpada, eu adoro ficar com eles, tô certa ou errada? Não pode falar, né? (risos) Então, é isso.
P/1 – Queria saber como ficou sua relação com a escrita depois de adulta. A senhora chegou a escrever mais poesia ou algum outro estilo?
R – Deixei, deixei, pra escrever isso... Que, oh, a Rita, vocês mudaram a data pra ela, oh! Escrevi esta noite. A vida realmente muda. Agora, se ele dissesse: “Cida, vamos comprar lá em Tatuí, vender essa”, que o apelido dela é Mastodonte, de tão grande. Uma menor, onde cabe a gente, os nossos filhos e netos, se quiserem ir, tem sofá, tem mil modos e estamos na cidade. Tatuí tem umas oito praças, o sol não está só onde ele comprou (risos). Então, é isso, filha. E você também é a parte feminina da coisa, cozinhar pra dez, 12 pessoas, sem empregada lá. É dificílimo! Minha caseira foi embora com o caseiro, que carpia, que fazia tudo pra ele. Então, é difícil. Não tenho ninguém mais da minha família lá, a casa é grande e as crianças perderam o encanto. Elas vão! Na festa junina, aí é novidade, mas, como ele quer ir, que ele quer ir toda semana.
P/1 – (risos)
R – Tem que falar a verdade, não é?
P/1 – Sim, sim. Dona Cida, mais alguma coisa de Tatuí?
R – Ah, uma cidade maravilhosa! A cidade da música. Você sabe que é a terra da música. É aconchegante, você quer uma comidinha caipira, gostosa? Tem! Você quer uma comida mais requintadinha? Tem. Isso... O problema é a distância, o tamanho da casa. Eu tenho uma amiga que está à venda a casa dela, ela diz: “Está acabando com meu casamento. Dói as costas, dói as pernas, dói tudo, de tanto trabalhar”.
P/1 – (risos)
R – Falei: “É, cada coisa tem um preço!”. Agora, eu, quando mais moça, eu me levantava, deixava Kalume dormindo, pegava o caseiro e íamos num sítio próximo da minha casa. Comprava dez, 12 litros de leite, eu fervia tudo aquilo. Não era a mulher do caseiro, não era ninguém, era eu! Fervia tudo aquilo, punha pra gelar, tirava a nata, batia manteiga pra trazer pra São Paulo. Mas eu era jovem. Fora as comidas árabes, tudo que você faz pra sua família. Agora, 82, quero ler um livro, um bom filme na televisão. E está difícil isso.
P/1 – Só vou repetir a última pergunta pra senhora, que era em relação à escrita. A senhora chegou, depois de adulta...
R – Depois de casada?
P/1 – Isso.
R – Muito pouco, muito pouco. Você canaliza pra outras coisas, né? Pra filho, pra neto que nasce. Eu tenho a mais novinha, a Heloísa, nossa, tenho paixão por essa menina. E Kalume também, então... Se for pequenininho, menorzinho... É uma casa maravilhosa. Hoje, as pessoas dizem: “Nessa crise, comprar uma casa desse tamanho? Meu marido não está louco”.
P/1 – Dona Cida, queria que a senhora contasse quais coisas a senhora faz hoje?
R – Hoje?
P/1 – Sim, como é sua rotina?
R – Eu vou contar até três meses, até antes da depressão, que essa pegou pra valer. E, se eu te mostrar o meu corpo, você não acredita. É todo de cair, que as quedas estão parando, graças a Deus. Hoje eu faço supermercado, tenho uma menina que me ajuda, sempre estou ao lado dela, dirigindo, ensinando, como ele gosta. Não estou falando mal dele, mas ele é um marido que sai pra trabalhar, dez e meia, dez horas, e chega pra jantar na mesma faixa. Está até virando briga, ele tem uns probleminhas de estômago e digo: “Não, senhor, feijão a essa hora? Não”. “Mas tem!” Digo: “Não, não tem”. “Eu vou ver na geladeira!”
P/1 – (risos)
R – Está virando criança!
P/1 – (risos)
R – Gosto de ver, com ele, um bom filme na TV! Nós evitamos sair muito tarde da noite porque a moda agora é assaltar dois, né? Um derruba, e o outro pega tua bolsa, fora a violência. Eu acho assim: uma vida normal. Ele não vai a cinema. Quando namorávamos e éramos noivos, não perdia um dia! Porque no interior passava todo dia, cada dia um filme. Não vai mais. Teatro não gosta mais. Agora ele só trabalha, come e dorme. É isso.
P/1 – E como foi ser avó, Dona Cida?
R – Delícia. Delícia. Não tenho restrição nenhuma, eu até dei para o meu filho levar pra minha nora – eu sou muito xereta na cozinha. Sabe aquele macarrãozinho fininho? Então, eu faço ao alho e óleo e ponho manjericão picadinho e faço uns bifinhos. Então, mostrei para o meu filho: “Vó, estou com muita saudade do seu macarrão com ‘mijiricão’”. Olha se aguenta? “Estou aguada, por favor, vó, faça!” Aí, a pequena, vendo a do meio escrever, escreveu também. Encheu de coraçãozinho e escreveu: “Vovó, te amo. Brigada, macarrão”.
P/1 – (risos)
R – É isso que faz a vida de uma pessoa idosa. Adoro ler! Adoro. Minhas coisas da faculdade, poesia, um bom autor eu gosto! E, vamos dizer, sair? Não saio! Ele chega morto.
P/1 – (risos)
R – Tem hora que eu digo: “Kalume, até parece que você tem um amor aí por fora, uma mulher”. Ele fala: “Não, eu tenho três!”. O livro Confiteor, eu citei, é um autor da minha terra, Paulo Setúbal. Família dele de lá, é um romance, muito bonito, e eu transformei o livro inteirinho em poesia. Esse é o Confiteor, quer dizer, eu confesso, eu me abro com você. E a outra pergunta?
P/2 – Era sobre poesia e pedir pra falar sobre o livro, era isso.
R – É isso! (risos)
P/2 – Mas que lindo esse projeto! Quando a senhor terminou?
R – Ah, eu era normalista, estava terminando o curso normal.
P/1 – E o livro Do freezer para a mesa?
R – Eu já falei pra você, não? Quando eu me aposentei, eu queria preencher a minha vida.
P/1 – (risos)
R – Achei que ia ser lindo! “Ah, não vou mais no primário, naquela lonjura! Vou assistir um curso de congelamento pra facilitar a minha vida.” Fui, um curso excelente, oferecido pela Prosdócimo. E, aí, eu falei: “Ah, eu gosto tanto de escrever”, e eu tinha o primeiro livro lançado no Brasil por uma autora, Maria Tereza Cintra, Aprenda a congelar. Eu gostei do livro dela, mas achei que poderia acrescentar alguma coisa. Uma belezinha o livro. Aí, eu passei a fazer em primeiro lugar a técnica de congelamento e, em segundo lugar, o que dá bom resultado pra você congelar, durabilidade do alimento congelado. E o final do livro, receitas, por exemplo, você faz um frango à baiana gostoso e me dá a receita. Eu ponho “frango à baiana de fulana”! Eu ponho o autor e, se é minha, eu deixo. Aí, começaram a encomendar, eu vendi muito! Comida pronta congelada, ensinei como congelava, as vasilhas apropriadas, eu preenchi, né? E hoje eu ainda congelo, as pequenas perguntam: “Beterraba pode congelar, vovó?”. Não me arrependo de nada que eu fiz e eu tenho, até eu trouxe, dois livrinhos pra vocês.
P/1 – Como se chama o livro?
R – Do freezer para a mesa.
P/1 – E como a senhora teve esse interesse por congelamento? De onde surgiu?
R – Eu sempre gostei, minha mãe, eu sempre gostei, marido guloso.
P/1 – (risos)
R – Barbaridade! Um dia, meu filho falou: “Pai!”, mas ele ficou bravo! “Como quanto quiser, estou na minha casa!”
P/1 – (risos)
R – É isso.
P/1 – E, ainda quanto ao congelamento, tem alguma comida que a técnica surpreendeu a senhora pra ser congelada?
R – Não, porque eu lia, eu perguntava. Tinha feito um curso curto. Depois, eu fui convidada pra ir lá na Prosdócimo, onde funcionava tudo. Lá, eu aprendi muita coisa. Problema do ovo, da gema, dá péssimo resultado no congelamento. Uma série de coisinhas assim, que você ajuda quem lê, quem... “Será que isso dá resultado?” Clara de ovo, você não pode congelar, a não ser que ela esteja misturada num bolo, numa torta, num pudim. É a vida.
P/1 – E teve um dia de lançamento desse livro, Dona Cida?
R – Não, eu fui vender nas livrarias. Inclusive a livraria Saraiva. Não, não é a Saraiva. Não sei se é a Siciliano ou a Saraiva, e Kalume tinha me dado um Fusquinha. Eu enchi o banco de traz de livro. Falei: “Olha, está na última moda congelamento, eu fiz um curso e escrevi um livro”. “Oh, interessantíssimo! Quanto um livro?” Eu falei... Vou dar um exemplo porque faz muito tempo! “Olha, o livro saiu pra mim por 100 reais, eu ofereço para o senhor vender por 45.” “Ah, não, capaz! Muito caro!” “Tudo bem, Seu Laércio, tudo bem.” Mas fui revendendo em outros lugares, vendendo em outros lugares. Até que o telefone toca, Seu Laércio: “Dona Cida, quero seu livrinho, dá pra vir aqui de Fusquinha e fazer um precinho mais baixo?”. Falei: “Ah, mais baixo não dá, não dá porque toda livraria, a Livraria Cultura, aquelas livrarias do Conjunto Nacional, ele se tornou um grande cliente meu”. Então, tudo que eu fiz não deu uma Brastemp, mas deu certo. Deus é muito bom pra mim.
P/1 – Eu tenho mais duas perguntas, mais alguém quer perguntar alguma coisa? Então, vamos lá.
R – É pergunta difícil?
P/1 – As duas últimas são as mais fáceis!
R – Ahã.
P/1 – A primeira: como foi pra senhora contar a sua história hoje pra gente?
R – Ah, gostoso! Vocês não constrangem a gente, são agradáveis mesmo. Foi uma novidade, eu não sabia desse livro, vou já começar a falar sobre ele. Ele está à venda? O de vocês?
P/1 – O nosso?
R – Não, ele não foi feito pra venda!
P/1 – Qual?
R – O curso que vocês dão.
P/1 – Isso eu posso explicar pra senhora depois.
R – Ah, tá bom, vou ficar quieta!
P/1 – (risos) Não precisa! Eu explico pra senhora depois como funciona, mas se a senhora quiser falar mais alguma coisa, como foi contar hoje a história...
R – Não.
P/1 – Última pergunta, Dona Cida: quais são os seus sonhos?
R – O meu sonho? Meu sonho é saúde para o meu marido, que não está muito legal. Será que ele está escutando?
P/1 – Acho que não.
R – Para os meus netos, nem se fala, e para os dois casamentos que eu tenho lá, a filha e o filho, que continuem bem, como eles vivem. Que Kalume melhore a saúde e o gênio, né? Um pouquinho.
P/1 – Mais alguma coisa, Dona Cida?
R – Acho que não.
P/1 – Então, eu quero agradecer a senhora por ter vindo aqui hoje, por ter contado essa história, que é uma linda história!
R – Imagina, bondade sua, pra mim, foi uma angústia porque eu estava afastada de... “Ah, meu Deus, como serão as moças? O que elas vão perguntar?” Mas vocês são uns amores.
P/1 – A gente está muito feliz por ter ouvido a história da senhora. Muito obrigada, Dona Cida.
R – Muito obrigada pelo convite.
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