Meu nome é Erica Guarda Bentlin, nasci em Cosmópolis, sou filha de Erica e Orlando Guarda. Minha mãe era filha de Guilherme Hasse e Clara Milke. Sou neta de Guilherme Hasse, convivi 18 anos com ele, que guardo na lembrança, o fotógrafo, suas músicas e sua maneira de conduzir a vida. Lembro como ele atendia as pessoas no ateliê, fazia as fotos, tenho isso gravado em mim e posso visualizar até hoje. O ofício de fotografar Ele sempre foi muito exigente, está aí uma palavra que todos ligam a ele. Enquanto não achasse o ângulo correto e que a foto sairia boa, ele não apertava o botão, mudava as pessoas de lugar, inseria coisas; para as crianças darem risada, tinha alguns brinquedinhos; ele cuidava para que a foto realmente fosse uma lembrança, algo bonito que a pessoa tivesse de si. Por isso era tido como muito exigente, mas é queele gostava do trabalho bem feito. E também agia assim com a música e com os alunos de violino. Fotografia de casamento Agora, se já queria perfeição em uma foto 3x4, imagine em uma foto de casamento, um momento especialíssimo na vida do casal. As mulheres da família, minha avó, minha mãe, minhas tias ajudavam-no com isso. Minha avó começava os preparativos para as noivas no sábado, mantinha as flores do estúdio muito limpas, porque havia um cenário com uma cortina e vasos com flores, o que se pode ver pelas mais diversas fotos espalhadas na cidade. Fatalmente, as noivas viriam no sábado, não tinha isso de marcar hora, de contratar o fotógrafo, só tinha ele na cidade. A gente ouvia o sino da Igreja Matriz Santa Gertrudes tocar, já sabia que tinha casamento. Quando terminava a cerimônia, elas desciam a Avenida Ester rumo ao estúdio e lá ficavam esperando o carro, às vezes ficavam dois ou três carros estacionados, com a noiva e a família, e demorava um tempo, porque ele arrumava aqueles vestidos rodados, fazia bolas de jornal para o enchimento do vestido, para que ficasse impecável nas fotos....
Continuar leituraMeu nome é Erica Guarda Bentlin, nasci em Cosmópolis, sou filha de Erica e Orlando Guarda. Minha mãe era filha de Guilherme Hasse e Clara Milke. Sou neta de Guilherme Hasse, convivi 18 anos com ele, que guardo na lembrança, o fotógrafo, suas músicas e sua maneira de conduzir a vida. Lembro como ele atendia as pessoas no ateliê, fazia as fotos, tenho isso gravado em mim e posso visualizar até hoje. O ofício de fotografar Ele sempre foi muito exigente, está aí uma palavra que todos ligam a ele. Enquanto não achasse o ângulo correto e que a foto sairia boa, ele não apertava o botão, mudava as pessoas de lugar, inseria coisas; para as crianças darem risada, tinha alguns brinquedinhos; ele cuidava para que a foto realmente fosse uma lembrança, algo bonito que a pessoa tivesse de si. Por isso era tido como muito exigente, mas é queele gostava do trabalho bem feito. E também agia assim com a música e com os alunos de violino. Fotografia de casamento Agora, se já queria perfeição em uma foto 3x4, imagine em uma foto de casamento, um momento especialíssimo na vida do casal. As mulheres da família, minha avó, minha mãe, minhas tias ajudavam-no com isso. Minha avó começava os preparativos para as noivas no sábado, mantinha as flores do estúdio muito limpas, porque havia um cenário com uma cortina e vasos com flores, o que se pode ver pelas mais diversas fotos espalhadas na cidade. Fatalmente, as noivas viriam no sábado, não tinha isso de marcar hora, de contratar o fotógrafo, só tinha ele na cidade. A gente ouvia o sino da Igreja Matriz Santa Gertrudes tocar, já sabia que tinha casamento. Quando terminava a cerimônia, elas desciam a Avenida Ester rumo ao estúdio e lá ficavam esperando o carro, às vezes ficavam dois ou três carros estacionados, com a noiva e a família, e demorava um tempo, porque ele arrumava aqueles vestidos rodados, fazia bolas de jornal para o enchimento do vestido, para que ficasse impecável nas fotos. Ele exigia paciência de quem estava sendo fotografado, tinha um jeito todo especial de arrumar os noivos, um jeito da cabeça dele, por mais que a própria pessoa achasse que estava perfeito, para ele não estava. Sem contar os holofotes, que eram quentes, ele os virava até chegar ao ângulo certo e aí batia. Às vezes o casal queria tirar foto com a família, os padrinhos e tal, mas o mais comum eram as fotos dos noivos, que viravam um presente, com uma capa especial, de papelão, a maior devia ter uns 40 centímetros, que levava dentro a foto com um papel de seda por cima, que as famílias encomendavam e davam de presente. Daí todo esse cuidado. Eu adorava quando tinha noiva, corria atrás, ele não gostava, mas eu me esgueirava, gostava de carregar o véu da noiva, não canso de contar, para mim era muito divertido, gostava muito. Quando sabia que vinha noiva, eu já dava um jeito de ficar ali por perto, sem ele me ver, porque ele queria que nada fizesse ruído. Eu sabia que ele não gostava de barulho, então ficava bem quietinha, despercebida ali. Assisti muito esse aparato do estúdio, espionando ali quietinha, gostava demais. Photoshop manual Ele retocava as fotos, inclusive as 3x4. Tinha uma lupa e um tipo de lápis com que fazia o contorno do rosto, alguns detalhes do cabelo, quase redesenhava aquilo. Como um photoshop manual. Não sei se outros fotógrafos retocavam as fotos, também não quero ser injusta por dizer que só ele fazia isso, mas ele trabalhava assim. Fazia também a colorização de fotos à mão, fazia uns pincéis com as pontas dos cabelos das minhas tias. Não porque não houvesse pincel, mas em função da maciez dos fios, por isso cortava as pontas dos cabelos da minha tia, as pontinhas! Daqui a pouco vão dizer que ele cortava os cabelos dos filhos, não! Eram apenas as pontinhas, para fazer os pincéis, e isso por conta desse jeito perfeccionista. Na minha época já eram pincéis de mercado, comprados prontos. Molhava os pincéis, e nos papéis coloridos, com lupa, ia fazendo os detalhes, fazia tudo: a roupa, uma estampa, reproduzia tudo, a cor da boca, dos olhos, cílios, retocava a fotografia inteira colorindo. Essa técnica minha mãe aprendeu a fazer também. Inclusive tem foto minha quando menina que foi ela quem coloriu. Ele fazia isso para as encomendas especiais, quando as pessoas queriam alguma coisa para guardar ou às vezes para fazer um quadro.Há um quadro dele e da minha avó, um trabalho que guardo até hoje, e que dá para ver o que era essa técnica, a preocupação com a incidência da luz, tudo isso feitocom a técnica de colorir. Ele passava alguma coisa para secar, mais não me lembro. Ele também trabalhou com outra técnica, de carvão, mais antiga. O Ateliê Havia um quarto escuro, um cubículo onde não entrava luz mesmo, com vários produtos químicos e recipientes de vidro, pipetas com medidores, uns recipientes grandes de vidro, redondos, uma prateleira com uns vinte, de vários tamanhos, nos quais ele media os produtos e bandejas, talvez três, as bandejas eram daquele de ágata branca. Nesse quarto ele não gostava que eu entrasse, lembro-me do cheiro desse lugar, bem característico, forte, não me deixava muito ali e recomendava que não pusesse a mão em nada. Não era simplesmente porque eu era criança e ele não queria que eu mexesse, era proteção também. Ele manuseava tudo isso sem luva. Algumas vezes me chamava, ia fazer revelação de filme e perguntava se eu queria ver, sabia que eu gostava, então, algumas vezes, eu entrei nesse quarto escuro com ele. Nossa! Na minha cabeça de criança, com 10, 11 anos, era uma coisa muito mágica aquilo! Dentro desse quarto escuro havia uma lâmpada, uma luz vermelha que ele acendia, coberta, não sei se era um pano ou algo parecido, um refletor... Mas era uma luz vermelha difusa. Ele punha o filme numa bandeja com líquido, depois ia para outra bandeja... Era isso que me encantava porque daquele papel branco começa aparecer a imagem da foto, era mágico! Eu olhava aquilo e pensava “como é que numa bandeja com água (porque os líquidos eram transparentes), pode sair isso?” Passava no revelador, depois no fixador e ficava um tempo. Dali ele tirava a ampliação molhada e levava para fora num grande tanque redondo feito de cimento, construído ali, com uma torneira com água corrente onde lavava para tirar os produtos. Ajudei algumas vezes porque isso ele me deixava fazer. Ele passava primeiro na água parada do tanque e depois lavava em água corrente. Depois dissoas fotos eram penduradas como num varal de roupa, tinha vários varais nessa área e as fotos ficavam ali secando ao ar livre só que não no sol, em ambiente coberto. O processo fotográfico demorava, não tinha jeito, por exemplo, de lavar a foto e entregar para a pessoa, porque era molhada e mole, que na medida em que secava, adquiria essa consistência de foto como a gente conhece até hoje. Paixão pela música A música eu acho que foi a grande paixão da vida dele. Ele nunca me disse isso com essas palavras, mas quando me lembro da maneira como ele agia, afirmo isso: que a grande paixão da vida dele era a música. Os momentos de folga eram dedicados ao violino e ele não fazia isso só porque ele vivia disso também, ele ganhava dinheiro com a música, mas não era só isso que movia meu avô. Dedilhava o violino, ensaiava muito, sempre, sempre ouvia o som do violino na casa. Sempre que me lembro da casa da minha avó me vêm o som do violino e o cheiro da comida dela, coisas que ficaram na minha lembrança. Nós jantávamos e depois da janta era o violino, nós já sabíamos e já íamos para a sala porque ou ele ia querer tocar alguma coisa que já sabia, tinha composto ou que interpretava de outros autores. Sempre, sempre o violino! As horas vagas dele eram para o violino. Dedicou algumas músicas a sobrinhos, filhas, netas, dava o nome às músicas que fazia. Por exemplo, tem uma tia minha que mora em Piracicaba, ele adaptou uma música que não era dele, que se chama “Flor de Agosto”, e dedicou a ela. Para a minha mãe ele fez uma canção que se chama “Erica”, também para a minha prima que se chama Denise... Não consigo me lembrar de todas, mas ele tinha isso de compor e dedicar músicas para as pessoas da família. Também se preocupou em registrar momentos familiares. Na mostra fotográfica que está na biblioteca, vemos o crescimento da família que fez com a minha avó, desde o nascimento das primeiras filhas, o crescimento delas, e ele registrava também momentos do cotidiano, tem fotos com a minha avó tratando das galinhas no quintal. Eu morava em Campinas com os meus pais, mas estávamos sempre aqui, principalmente nos finais de semana, e ele me pegava às vezes no quintal brincando e, do jeito que estava, me levava para o estúdio e batia fotos lá. Ele tinha esse olhar artístico. Não fazia fotos só porque trabalhava com isso ou porque as pessoas iam lá e pagavam, era uma paixão. Ele registrou a família em momentos que ele não precisaria ter feito, porque aquilo era o trabalho dele. Temos, por exemplo, o registro das fases de crescimento dos netos mais velhos. Três deles foram fotografados em diferentes fases da vida e na mesma posição. Acho que ele queria estabelecer um comparativo. Essa é uma coisa bonita a família poder acompanhar seu desenvolvimento através do olhar do meu avô. É muito bonito! E não só nossa família, já que ele foi o único aqui por quase cinquenta anos, obrigatoriamente as pessoas passaram por ele, foi uma coincidência da vida, da história. Ele nunca relegou para si nenhum papel de herói, sempre foi muito simples, a história deu condições para ele ter registrado tanta coisa. E ele se preocupou com isso, escrevia nos negativos que na época eram de vidro, encontramos muitas fotos que reveladas saem com a letra dele: carnaval de tal ano, bloco carnavalesco tal, havia preocupação com o registro, ou por que ele teria escrito isso nas chapas de negativos? E o trabalho foi tão bem feito que hoje encontramos fotos do começo do século 20 que estão perfeitas. Ninguém veio dançando e comendo apfelstrudel Eles estavam sempre muito juntos tanto nos momentos alegres quanto nos momentos de tristeza. No Núcleo Campos Salles eles se fecharam, não sei se a palavra é essa, enfim, eles se estabeleceram ali, eram alemães, suíços, italianos; dinamarqueses primeiramente, depois vieram espanhóis, libaneses que se estabeleceram aqui. O Campos Salles era basicamente dos europeus. Eles se estabeleceram e logo trataram de organizar uma escola para suas crianças, a escola e também a igreja, se juntaram na igreja luterana. Havia até outras denominações mais calvinistas, mas acabaram se conglomerando na linha de Martin Lutero e formaram a Igreja Luterana. Naquele início, começo do século 20, havia o prédio da escola, que não existe mais, pra gente se localizar, era bem em frente ao prédio da Escola Alemã. E também na mesma casa onde tinha o aprendizado, à noite e nos finais de semana aconteciamos cultos da Igreja Luterana e atividades de lazer. Faziam pequenas festas, bailes, os coros: o feminino, o coro masculino e, mais tarde um pouco, o coro misto. Esse coro masculino de música, meu avô regeu por muito tempo. Eles ensaiavam e cantavam tanto na igreja como nas festas da Escola Alemã. No início estavam sempre juntos, por isso até hoje se faz a confusão da Escola Alemã, escola de aprendizado e igreja, porque era quase que tudo em um terreno só. Mais tarde um pouco, década de 1920, viram a necessidade de separar os prédios, a igreja precisava de um templo e as festas, de um salão. Em 1930 inauguraram a Escola Alemã, o DeutschEiche, o salão amarelo como a gente conhece hoje, e foi dessa época o único prédio que está preservado. A escola de aprendizado mais tarde virou a Escola Teuto Brasileira em função da guerra, um outro capítulo da escola, pois já não se podia se expressar na língua alemã, o que ocorreu em 1938. E a igreja luterana, na década de 1970, foi vendida a um particular e transformada em uma casa, mas se estabeleceu na cidade, na praça Martin Lutero, perto do mercado Dia. Núcleo Campos Salles No Núcleo Campos Salles, todos tiraram o seu sustento da terra. Quando chegaram, aqui era mato puro. Havia o envolvimento da usina Ester, do Governo do Estado, a Província do Estado, como se chamava na época, e a Câmara Municipal de Campinas para a formação desse núcleo colonial. O Governo faria algumas casas e traria para cá a estrada de ferro, mas, grosso modo, não tinha nada. Esses imigrantes vinham de Santos, pararam na Hospedaria do Imigrante, via de regra era assim, e de lá eles eram distribuídos para os núcleos coloniais do Estado. A viagem era feita de carroção, de São Paulo a Campinas no trem e de Campinas para cá no carroção, porque a estrada de ferro veio depois, a Estrada de Ferro Funilense, um quesito básico para se garantir o transporte, e também era a contrapartida para o escoamento dos alimentos que seriam produzidos aqui.O que se conclui é que a instalação do Núcleo Campos Salles aqui na nossa região trouxe o progresso e que esses imigrantes, alguns em melhores condições e outros sem condição nenhuma, vieram para tirar o sustento do chão. Eles recebiam alimento por seis meses e também sementes, era o tempo que tinham para se adaptar. Imagine uma família que veio da Europa, algumas famílias vieram da Suíça, de perto dos Alpes, uma região fria, e, falando de Europa, o clima é completamente diferente, e essa família se estabelece em uma terra bruta para desbravar e o máximo que se poderia ter era uma casa para morar, e tinha que se adaptar, com a barreira da língua, com tudo... Acho muito natural terem se fechado, fizeram para eles um bairro, a gente tem que entender esse contexto histórico.A gente tem que se debruçar nisso, pensar como essas pessoas vieram para cá, como foi essa viagem, gente que deixou família lá, muitos nunca mais reencontraram os parentes. Sabe-se que foi feita uma propaganda enganosa na Europa: “olha, tem uma terra maravilhosa te esperando” e de maravilhosa não tinha nada. Dá para imaginar que desceu todo mundo no porto vestindo saiote vermelho de rendinha, sapatinho, meia branca, chapeuzinho verde e calça de suspensório, que veio todo mundo dançando e comendo apfelstrudel. Não é isso! Essa história da imigração é muito sofrida. No início da cidade, no Núcleo Campos Salles, as pessoas que vieram com um sonho, em busca de melhores condições de vida, de se estabelecer aqui e constituir família. Muitos não aguentaram, morreram, foram embora para o Rio Grande do Sul, porque não se adaptaram ao clima. Sei de uma família em que os mais jovens ficaram aqui, mas os mais velhos voltaram para a Suíça, não conseguiram ficar. Outros que se estabeleceram aqui não vieram necessariamente nessa rota da imigração de Santos, como foi o caso do meu avô, vieram de outra cidade. Por exemplo, a família da minha avó,Milke, também os Bentlin, foram gente que se estabeleceu aqui, mas vindos de Santa Rita do Passa Quatro, já é outro ramo da imigração. Isso sei por relatos, não só de meus avós, mas de outras pessoas com quem conversei. Houveram outras dificuldades, culturais. Como disse antes, durante a guerra foi proibido, por uma ordem do Governo Getúlio Vargas, se expressar na língua alemã. Como é que isso impactou, veja só, na Escola Alemã, as aulas, as festas, os bailes, as músicas eram basicamente em alemão, e tiveram que reaprender a viver, porque nessa época o Núcleo Campos Salles e a cidade já tinham se expandido, já havia a vila de Cosmópolis, não somente alemães ou outros imigrantes, brasileiros e filhos das famílias que tinham nascido aqui, mas que foram educados nessa cultura que trouxeram e preservaram.Na própria igreja, até a igreja de confissão luterana, os cultos, seus pastores e as pessoas ali envolvidas tiveram que aprender a falar o português, foram obrigados. A escola, como disse, precisou mudar de nomee passou a se chamar Escola Teuto Brasileira, o ensino até era em português e alemão, mas tinha que ser só em português. Isso foi pela força da guerra, mas se pensarmos bem, nós estamos no Brasil, as pessoas que nasciam eram brasileiras, se continuasse como estava iria se formar um gueto, uma comunidade separada só aprendendo e falando em alemão. Esse impacto da guerra foi enorme, além dessa imposição, as pessoas tinham muito medo, porque, paralelamente, começou uma perseguição aos imigrantes. Talvez a situação do imigrante europeu não tenha sido pior porque a comunicação não tinha a velocidade que tem hoje. Houve a perseguição ao alemão porque a Alemanha estava promovendo tudo aquilo e começou a ser mal vista, o próprio Getúlio Vargas, quero dizer o governo federal, tem histórias de deportação. No caso da Intentona Comunista, de 1935, ele simplesmente deportou a Olga Benário para se aproveitar politicamente da história. As atividades na Escola Alemã foram paralisadas porque tinham que reaprender e, imagine, se reunir num recinto só com toda aquela “alemoada”, para dizer grosseiramente, porque era a maneira como eles eram vistos, para falar português. O medo era muito grande, tinham medo de falar a própria língua, muitas famílias deixaram de falar o alemão mesmo dentro de suas casas. Quando a guerra acabou a situação ficou ainda pior, começou um antagonismo de vizinho com vizinho, “ah, você é alemão ou filho de alemão?!” Desentendimentos, rajadas de rojões pra cima da casa de alemães, eu sei que isso aconteceu. Em Artur Nogueira uma família sofreu muita represália por ser descendente de alemães, o avô dessa família me contou isso pessoalmente, hoje ele não vive mais, mas ele me contou coisas bárbaras feitas por vizinhos brasileiros e que o perseguiam. Já na década de 1970, que foi a época de que tenho mais lembrança das coisas e que eu convivia muito com os meus avós, houve um movimento contrário, o que se via muito eram pessoas na rua conversando em alemão. Eu saía com meu avô, eu era menina, pré-adolescente, e tinha que andar com ele na calçada, mas do lado da parede, ele nunca me conduzia do lado da rua. Nós saíamos para comprar alguma coisa ou ir ao banco, coisas do cotidiano, andar na avenida Ester, ele morava no número 797, perto do Asilo Irmã Rosália, subíamos a Avenida, que começava depois do jardim, tinha a Rua João Aranha, a Praça Major Artur Nogueira, a Rua Campinas e daí para cima era o comércio que ia até o Cinema, ali na Rua Max Hergert, após essa rua já era pasto da Usina Ester. Nesse nosso caminhar encontrávamos as pessoas e me lembro muito do meu avô falando em alemão com elas. Lembro também de duas ou três senhoras, não sei quem elas eram, mas tenho uma lembrança dos cabelos delas em trança amarrados em volta da cabeça... Por que eu estou contando isso? De algum modo, mesmo com a proibição, a perseguição, os traços da cultura se preservaram por aqui durante certo tempo. Guardo boas lembranças do meu avô, uma pessoa muito séria, fechada, de poucas palavras, os homens naquela época eram assim, eram dados a pouco riso e a mulher também era relegada ao segundo plano, era a mãe da família, minha avó não teve muita participação, mas tenho também excelentes recordações dela e da casa deles. Ele me deixava ficar ao seu lado, vi muita coisa que ele fez. E minha avó também, estava sempre junto dela acompanhando seu cotidiano. Tinha um lugar na casa que me fascinava muito, que era o porão da casa deles, onde guardavam as coisas, fotografias que ele revelava, não gostava e fazia de novo até que ficassem, na concepção dele, boas. Eu gostava muito de remexer ali, ia para a minha avó mas ficava ali, vendo tudo, tinha uma tralha de pesca pendurada, eu gostava muito dessas coisas. Se eu visse alguma coisa pedia se podia pegar. E tinha uma frase que ela sempre dizia em alemão “se você quer, você pode”, ou “se você gostou, você leva”, e fui juntando pequenas coisas. Era um jeito que eu tinha de ter os meus avós por perto. Acho que meu avô também percebeu isso, porque algumas coisas da casa ele me deu quando estava vivo, avisou a minha avó “isso um dia será dela”. Quando faleceu, não estava doente, caiu e fraturou o fêmur e dali quarenta dias faleceu, tinha 82 anos, mas foi uma coisa repentina. Daí começaram a ter algumas coisas sobrando na casa e no ateliê, algumas coisas foram destinadas, o violino foi doado... Guardei coisas dele como lembrança afetiva, nunca pensei na importância dele por ter registrado a história, isso veio muito depois. Acho bonita essa iniciativa de resgatar o trabalho dele, de contar uma história da cidade e do papel que ele teve, só isso, e por conta também do meu afeto por ele e pela minha avó, isso é o que me move. Quando foi feita aquela a primeira edição da exposição com as fotos da família, ali me debrucei e se apresentou um panorama, todos os membros da família quando crianças, aí que percebi a preocupação dele em registrar, arquivar e contar uma história, e juntando os cacos da minha memória, eu digo que, por conta do meu afeto, ele foi uma pessoa extraordinária. Um homem que viveu amplamente o seu tempo, ele era severo em algumas coisas, de poucas palavras. Era machista, queria muito ter um filho homem e a maior alegria dele foi quando meu tio nasceu, foram oito filhas e um filho. A gente tem que entender o contexto social e cultural da época. Eu só tenho boas lembranças dele e muito carinho. Lembrar dele e da minha avó é a lembrança do carinho deles para comigo, muito carinho e muita atenção. Edição de texto por Heyk Pimenta
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