P/1 – A senhora fala o seu nome completo mais uma vez, a sua data e local de nascimento?
R – Carmen Freitas Teixeira, cinco de junho de 1948. Aracaju, Sergipe.
P/1 – Qual que é o nome dos pais da senhora?
R – Francisco Freitas Santos e Leoncia Freitas Medeiros.
P/1 – E a senhora tem irmãos?
R – Sim. Então, eu sou a terceira, mas entre todos os filhos do meu pai, eu sou a 13ª. Ele já tinha dez quando casou com a minha mãe e a minha mãe teve três meninas, eu sou a primeira, aí depois de mim, ainda teve mais duas meninas.
P/1 – E sobre as origens da sua família, assim, você lembra dos seus avós, como que você lembra dos seus avós?
R – Então, pela família do meu pai, tinha bastante negros, então ele mesmo contava ainda da escravidão, que a vó dele já contava para ele, né? Interessante também na figura do meu pai era sobre lampião do cangaço lá em Aracaju, Sergipe. Então, ele trabalhava como agricultor, isso ele novo, ainda e muitas vezes, o bando de lampião passava e eles tinham que largar tudo para se esconder. Interessante essas histórias que ele contava. E dava até nome dos cabras de lampião, então, agora pela parte da minha mãe, não, ela era branca, descendentes de portugueses, né? Mas era muito, assim, festiva, ela gostava de cantar, gostava muito de novena. Eu fui criança ainda para a igreja, fazendo novena, cantando aqueles hinos de procissão, vestida de anjo, foi muito boa a minha infância.
P/1 – E você sabe em que ocasião que eles se conheceram, assim, depois, se casaram?
R – Bem, como no nordeste é assim, o homem tem várias mulheres, né, e ela era uma das, ela era novinha, a família dela era do interior, Aracaju é a cidade de Sergipe e a minha mãe era de Capela, é um município e oi meu pai de Itaporanga, né, quer dizer, uma cidade próxima da outra, né, e sempre nesses lugares tinha feira e eles todos se encontravam na feira. Aí, um belo dia, ele convidou para morar… para ela ir morar com ele e ela foi, quer dizer, naquela época também era tudo normal, né, então ficava… ele tinha a esposa dele e depois, tinha ela também, quer dizer, ele sustentava ela e mais outras mulheres que ele tinha, né? E ninguém brigava, nem nada. Aí um belo dia, ele veio pra Aracaju, que é a cidade, né, onde eu nasci e foi aí que eu nasci. E ele trabalhava já nessa época com alambique, fazendo cachaça, só que ele não tomava um gole de cachaça, ele só fazia revender e fabricar e fazer e revender, né, e disso, nós fomos criados assim, né? Estudando em colégio de freiras nós três, justamente, ele deixava ir para escola que era para não se misturar com os peão de lá, da fazenda, de outros locais, então ele queria que a gente tivesse um futuro melhor. Das outras filhas dele, né, a primeira, muitas saíram de Aracaju para estudar em Salvador, para estudar no Rio e elas vieram a se formar em Enfermagem. Naquela época era muito concorrida a Enfermagem Ana Neri no Rio de Janeiro. E a gente já seguia querendo ir: “Não, que você vai estudar”, mas a gente não queria sair de Aracaju, né? Então, aí eu fiz o… naquela época, era o magistério e depois, fui fazer a escola normal pra ser professora. Fiz concurso na rede estadual lá em Aracaju, mas já tinha um namorado, então “Ou casa ou vai trabalhar”, o pai falava. Aí, tive que deixar os estudos e casei. Era o meu primeiro namorado que era irmão já de uma colega de colégio, também estudante e a gente ficava naquilo, namorava o irmão, era tudo amigo, mas o pai não concordava que ficasse um namoro prolongado, namorou duas, três vezes, andava na festa da igreja, mas tinha que já ter um compromisso. E aí, eu casei com esse primeiro namorado, aí com ele, eu tive quatro filhas. Dois eu tive em Aracaju e ele conseguiu… ele era só Exercito, mas não deu muito certo no Exercito, aquelas coisas de soldado, Cabo, né, quando foi passar para sargento, aí ele desistiu. Aí, entrou numa empresa de cimento que também era muito forte lá em Aracaju, era a Portland. E daí, ele foi mandado lá para Salvador. Foi aí que eu vim conhecer Salvador. Aí nós ficamos lá muito tempo morando em Salvador, foi em Ondina, praia também, igual Aracaju.
P/1 – Com quantos anos você mudou para Salvador?
R – Nessa época, eu tinha 20 anos. Mas aí, fiquei grávida e aí, fui ter os filhos em Aracaju, perto da mãe, que era a primeira neta dela e tal. Aí, depois voltei de novo para Salvador, aí engravidei da segunda, depois de dois anos, engravidei da segunda, aí fui para Aracaju. Aí nesse tempo, ele ficou desempregado, aí eu fiquei na casa de meus pais e aí, ele resolveu… nós achamos melhor ele ir para São Paulo, como todo nordestino gosta de vir para São Paulo, aí ele veio para São Paulo e eu fiquei em Aracaju. Mas eu passei uns dois anos esperando ele dar noticias, né, porque naquela época era carta, né? Ou telefone, a gente ia na telefônica e fica esperando, né, marcava hora e depois, a ligação não se completava. Aí depois de dois anos, eu vim para São Paulo. Eu cheguei aqui tinha 24 anos em São Paulo. Aí logo que cheguei, fiquei grávida, teve mais outra menina, quer dizer, eu já era mãe de duas meninas, tive mais outra menina. Aí dois anos depois, aí eu engravidei de novo, aí o médico disse: “Olha, é melhor a senhora operar, porque tá muito nova” e todo ano era um, não que fosse todo ano filho, né, mas senão… e a gente não tomava anticoncepcional, né, porque era… como é que se diz, a gente usava aquele método tabelinha, né? Às vezes, dava certo, mas uma vez estando grávida e na minha formação religiosa não permitia um abortivo, alguma coisa. Aí, eu marquei a cirurgia de ligação de trompas. Aí, eu tive um menino, foi um menino que hoje deve estar com 32 anos. Tá indo bem?
P/2 – Muito.
R – Quer fazer alguma pergunta nesse interim que eu tô…
P/2 – Tem várias. A gente tem várias, mas a senhora pode continuar.
R – Posso continuar?
P/2 – A senhora pode contar a sua história aí, a gente retoma depois, não tem problema.
R – Então, aí, ele ficou novamente desempregado aqui em São Paulo e fomos para o Rio de Janeiro, que nordestino gosta de estar viajando, né? Aí, ficamos lá no Rio de Janeiro, ele conseguiu um emprego lá, então foi um tempo muito bom, uns dez anos nós moramos no Rio de Janeiro, foi onde eu fiz a minha faculdade de Educação Artística, porque eu morava em frente ao Bennett, ali no Flamengo, né? Então, apesar do negócio de desemprego, a gente tinha um poder aquisitivo, né, quer dizer, os pais ajudavam, os irmãos ajudavam, era família estruturada. E aí, eu consegui, fiz a faculdade de educação Artística e na hora de prestar assim, o vestibular, ele disse: “Vê se você faz Direito”, mas eu não queria fazer Direito, né, aí eu fiz o vestibular ele pensando que eu fosse fazer Direito. Aí, eu entrei em Educação Artística, né, aí teve aquelas confusões, mas passou, né? Aí, eu consegui terminar a Educação Artística. Aí, tive uns problemas, novamente, ele ficou desempregado e nessa época, ele já tava com uns 40 anos, eu acho, né, aí ele resolveu ir para o Mato Grosso. Aí, os meninos já eram crescidos, adolescentes, assim, dez, 12 anos e eu já tava… digo: “Não, já tô com a minha formação, não vou atrás dele”, aí nós: “É melhor você seguir, depois eu vou atrás”, mas aí, a minha irmã dizia: “Melhor você não ir, o que você vai fazer lá? Você acabou de tirar o seu curso, não vai jogar fora”, aí eu parti para… comecei a minha vida profissional trabalhando com arte. Tinha oficina de arte, trabalhei naquela escolinha de Arte do Brasil, ali em frete o Canecão no Rio de Janeiro e fazia… era professora de artes em outros colégios, né, particulares e voltava, né, ia e voltava. Aí, o aluguel começou a ficar muito caro, como eu já tinha casa em São Paulo, aí eu resolvi voltar para São Paulo. Aí, trouxe as crianças e ele lá pro Mato Grosso, né? Aí, nós conseguimos fazer toda a mudança pra cá, minha irmã ajudou e chegando aqui em São Paulo, ela já me encaminhou para ser professora na rede estadual de Educação. Aí, você fazia um projeto, apresentava na Diretoria de Educação, aí era chamada e eu fui ficando. Aí, no outro ano, eu fui chamada, no outro ano, fui chamada e hoje já estou aposentada pela rede estadual de Educação aqui em São Paulo. Mas como eu falei pra você, quando eu me aposentei, aí eu fui para Aracaju. Eu pensava em passar um ano lá, mas com um mês, eu já tava agoniada de saudades de São Paulo, porque… e a minha irmã: “Você não vai ficar?”, digo: “Não, porque aqui não tem Avenida Paulista”, que pra mim, a avenida Paulista é a melhor praia de São Paulo, que tem tudo você encontra ali na Avenida Paulista, né? E é do Paraiso a Consolação, é um rio em nossa vida, né, você olha para m lado, olha para outro, é muito bom, então São Paulo me segurou assim, eu adoro São Paulo. Agora um porém também é que quando aqui cheguei, mas eu morria de frio, até chorava e as vizinhas italianas, aquele… todo mundo, assim, na rua me perguntava: “Mas isso vai passar”, eu digo: “Não”, eu queria voltar imediatamente, né, para lá, para Aracaju, para Salvador, digo: ‘Isso não é vida aqui”, e acordar cedo, levar as crianças na escola, eu achava aquilo uma violência, a gente pegar um frio danado, né? E até hoje, eles crescidos, quando encontra com as vizinhas, elas ainda perguntam: “Tua mãe ainda chora?”, porque quando vem o frio, aí dá uma depressão assim, eu fico triste, porque… mas quando tem sol é toso mundo reclamando e eu adorando, né, São Paulo, calor.
P/2 – Carmen, você se lembra do seu primeiro dia em São Paulo? Quando chegou aqui, com 24 anos, né, por aí? Você lembra desse dia?
R – Sim. Olha, a viagem era de ônibus que a gente fazia a viagem. Eram dois dias, sabe, ia parando, vinha parando e eu me lembro que quando aqui cheguei, o que mais me chamou atenção foi a cidade toda iluminada na rodoviária. Quer dizer, de tantos carros, né, nas rodovias e muita iluminação, demais, né? E frio. Muito frio e a gente cheia de mala, tudo, aí põe no taxi, né, e a aminha irmã já morava aqui, né, aí nós fomos lá para a casa da minha irmã. Mas no outro dia, assim, que a gente acordava: ‘Mas o quê que eu tô fazendo aqui, né?”, ela morava em Mauá, que era mais frio ainda do que aqui em São Paulo, do que a capital. E fui ficando. E ele saía pra trabalhar, a gente ficava tudo na casa dela, né? Depois é que nós fomos, alugamos uma casa aqui no Bosque da Saúde, que já foi amigo de uma migo, que ele trabalhava numa firma, ficava ali pela Vila Prudente, numa daquelas grandes empresas ali. E eu passei muito tempo no Bosque da Saúde até quando nós compramos a casa que foi onde você foi me pegar, né, Fernando? Que é ali na rua Loreto, fica no Jardim da Saúde.
P/1 – Como que o seu marido havia ficado num outro Estado, como que vocês… houve esse reencontro? Como que…?
R – Aí… que é assim, acontece… o meu pai dizia: “Eu não arranjei casamento pra ninguém”, então nós é que escolhíamos, né, ele apressava o casamento, mas ele não arranjava, então se chegava alguém assim, que tava de olho, ele já falava: “Não, isso não vai dar certo, precisa arranjar outro namorado, porque esse não dá certo”, mas ele não arranjava marido pra gemente, a gente que escolhia entre os amigos, entre os irmãos das colegas de colégio, né? E uma vez tendo briga, meu pai não acolhia a gente em casa, não: “Se brigaram, vocês vão resolver a briga de vocês”, né? E por muitas vezes, a gente discutia lá em Aracaju, né, aí quando eu me vi empoderadas já com o diploma de professora, de Educação artística e tudo, eu falei: “Você vá sozinho que eu posso cuidar da minha vida”, né? E homem nordestino vai e não… então, aí, ligava, tal, isso não vai dar certo. Aí, as crianças também já foram crescendo, já iam pegando outros rumos, né, e eu tinha muito o respaldo da minha irmã, que a minha irmã era assim, a gente tinha a diferença de um ano, né, e ela também era casada, tudo, né? Mas a gente não se encontrava mais assim para dizer: “Vai dar certo isso”, porque mediante eu fui para o Rio, né, depois fui para Salvador, quer dizer que a gente ia ase encontrando, né, e depois que ele foi para o Mato Grosso, eu digo: “Não, eu não vou mais, eu vou ficar”. Então, foi isso que aconteceu. Aí, nunca mais a gente se encontrou. Às vezes, liga pra dizer assim: “Eu tô precisando que você assine o divorcio”, aí eu faço que nem tô ouvindo. Ele já tem filha de 42… não precisa, né, vai passando, né, se já viveu até agora sem o papel, então que continue vivendo, né?
P/1 – Vocês não assinaram o divorcio?
R – Eu não (risos). Mas como dizem os filhos: “Se for mesmo, pela lei, já estamos separados”, mas ainda a casa continua no meu nome, tudo, não tem… e o filho já tem 32 anos, o mais novo, né, e as meninas… a mais velha tem 42. E é isso.
P/1 – Como que foi aquela… você voltar para Aracaju despois de tanto tempo, essa última visita? Aquela cidade que você conhecia…
R – Quando eu morava aqui em São Paulo, com as crianças pequenas, todo ano a gente ia pra Aracaju, né, aí era uma festa, porque a família dele era grande, sabe, ali no bairro, tipo casa fazenda, sabe, então, eram os quatro lados da rua eram casa dele, né? Então, todo mundo visitava a família, porque vinha irmão de lá do Rio Grande do norte, vinha irmão… da parte dele, né? Vinha irmão de lá da Bahia, vinha irmão do Rio de Janeiro, que ele tinha irmão espalhado… então, a agente se encontrava todos lá, com as crianças pequenas e era interessante que quando assim, quem chegava primeiro, ocupava os quartos da frente da casa, né, então a gente sempre chegava primeiro, né, ficava nos quartos da frente e depois, ia ocupando… aquela casa tinha uma meia-dúzia de quartos, né? E aí, era gostoso, mas depois, a mãe foi ficando doente, a mãe dele, né, aí o pai também, aí quando a gente chegava lá tinha que estar arcando com tudo, né, quer dizer, a gente… antes não, porque chegava, já tava preparado para receber todo mundo, né? A gente dividia as tarefas, né, mas não tinha mais a figura dela pra estar controlando: “Vai ser isso, vai ser aquilo,…”, e aí, nós fomos deixando de ir, né? Então, por muitos anos… e quando eu estava aqui trabalhando, eu já tinha outras… não dava mais para estar indo lá e voltando, né, porque a gente tinha outras coisas pra fazer. Mas quando eu cheguei agora lá e eu vi que não tinha nada mais que eu tinha deixado quando eu era criança, né, passei lá na casa deles, passei nos bairros onde a gente frequentava, né, mas era tudo pra mim… eu me senti estrangeira. Nada, não conhecia ninguém, olhava as pessoas, parece que eu tava em outro lugar, né? Não tinha mais assim, alguém: ‘Você lembra?”, não, não tinha com quem falar isso, porque essa minha irmã mesmo que me acompanhava, ela faleceu, né, tem uns dez anos que ela faleceu, então, nós sentimos muito, né, a perda. Toda a família, os meninos, tudo que era uma pessoa que cuidava, era o nosso… quer dizer, o nosso apoio aqui, que ela conhecia tudo em São Paulo. Então, aí a gente chegava assim, na praia, então eu me identificava ainda com caçar siri, né, catar siri, pescar porque ainda tinham as pescadoras de siri, então, eu acordava cedo, ia lá… deixava eles dormindo e ia ainda para o mangue caçar siri, catar caranguejo, aquelas coisas. Um divertimento. E conversar com o povo, né? E eles, quando eu chegava em casa, ainda tava dormindo, quer dizer, eu fui com a minha filha mais velha, o marido dela e os filhos dela, os dois, a menina e o menino. E a minha irmã que tava lá, que era a outra mais nova que tem quatro filhos e lá, ainda se usa todo mundo morar no quintal, né? Então, tem genro, tem criança de toda idade, tem gato, tem cachorro, tem passarinho, tem tudo, né? Então, é uma festa, quando você chega assim, é um almoço, ainda tinha as caranguejadas, os cozidos, né, quer dizer, essa parte era muito bom. Mas a cultura de praia eu já não me encaixava, porque o sol era muito quente, a claridade demais, né, e o sol quando vem, não tem chapéu que die jeito, né? A claridade é demais e muito calor, e não dava pra ficar ao bel prazer na praia, né? Aí, eu voltava pra casa e ia procurar outras coisas pra fazer, visitei muito mercadão, que você ia e encontrava um artesanato, povo para conversar, muita gente de São Paulo, a gente encontrava lá no mercado, né?
P/2 – Essa região foi restaurada, não foi? Essa região central, lá?
R – Foi.
P/2 – Foi toda restaurada, revitalizada?
R – Exatamente, revitalizada…
P/2 – A senhora se lembra de antes?
R – Aí, o colégio onde eu estudava. Era outra coisa, outro departamento, era um departamento de negócio de… acho que da policia, uma coisa assim, que era um grande colégio, colégio de freira, né? deixou assim, se desmoronou. Outra coisa também que eu fiz questão de tirar foi a minha identidade, né, porque eu tirei aqui em São Paulo, né, mas o rapaz disse: ‘Quando a senhora chegar lá, a senhora tira outra”, mas eu não queria, né, ele disse: “não senhora, a senhora tira e chega lá para tirar outra”, foi a que eu apresentei para vocês, que eu faço questão de ter a minha identidade de Aracaju, que é oi mesmo número de quando eu era… quer dizer, quando eu tirei a primeira vez, né? Então, isso é uma coisa que eu não quero me separar, né, da identidade que eu estudei era de Sergipe, né?
P/2 – Podemos voltar, então para algumas origens?
R – Sim.
P/2 – A senhora citou por exemplo que o seu pai contava histórias de lampião. Você lembra disso, o quê que ele contava com mais detalhes, assim? fazia parte do imaginário da turma, ali, era um perigo, via como bandido, via como herói? Conta um pouco pra gente isso.
R – Assim, eu me lembro como hoje, né, que a gente criança sentava tudo e ele era contador de causo, né? E ele falava muito de Lampião, de uma visita que Lampião entrou na fazenda dos pais dele, né, e tinha assim um aguado, assim, um riacho lá pra baixo, né, e eles estavam todos tomando banho de rio. Então, quando ele chegava na casa, o bando de Lampião tava todo lá, todo mundo já descido do cavalo e em volta. E ele ouvia contar que Lampião mandava tirar todas as roupas das mulheres e colocava pra dançar. Aí, ele ficou muito preocupado, quer dizer, com as irmãs dele, tudo ali n fazenda, com as meninas, mas isso não houve, né? Mas ele disse bem assim: “Eu quero que vocês façam comida para todos”, aí todo mundo foi pra cozinha, homens e mulheres. E serviram o bando de Lampião. Era o que ele contava bastante pra gente. Agora de alguma violência, de Lampião ele nunca contou, não. Mas só que ele ficou preocupado em ver a mulherada toda nua dançando para o bando de Lampião, né? E ele era muito respeitador, meu pai, que nós éramos filhas mulheres e ele nunca entrou no quarto da gente, mesmo que estivesse doente, chamava um médico, mas ele nunca entrou no quarto, porque respeitava as filhas mulheres, né?
P/2 – A senhora disse que era um contador de histórias nato. Tem outras dele que ele contava que a senhora lembra?
R – De contar assim… ah sim, ele já como meu pai, né, essa história que ele contava, então eu assim, adolescente, 16 anos, ele veio pra São Paulo fazer uma operação de catarata. Aí, nós colocamos ele num avião lá em Aracaju e um filho dele do primeiro casamento, dos primeiros dez, recebeu ele aqui em São Paulo. Então, ele fez essa cirurgia de catarata e o tempo necessário que ele ficou na casa do filho foi o tempo que o médico disse, dois dias, três dias, tal. Aí, marcaram a viagem dele de volta. Aí quando chegou de volta, chegou no Rio de Janeiro o avião teve problema, então ele ainda não tava enxergando direito, né, então ele ficou nos cuidados da aeromoça, colocaram ele no hotel e depois foram pegar… isso, ele contava como vocês estão sentados, aí, ele contando. E contava para os colegas dele como é que foi. Ele foi conduzido pela aeromoça no avião e foi para o hotel e depois no outro dia foram buscar e colocaram ele no… ele chegou em Aracaju. Mas hoje em dia, quando se vê assim: mutirão da catarata, eu sempre lembro da história dele, que aquela antigamente eram uns dois dias para fazer, né? E hoje em dia é questão de minutos, né?
P/2 – Em relação a sua mãe, que a senhora disse que ela gostava de novena, participava das festas religiosas, você tem memória disso? De participar de…
R – Eu tenho uma memória de festas, de São João, tudo, então, em festa de novena, de São João, a gente cantava os cantos, fazia novena de Santo Antônio, que chama trezena, então eu morava numa rua e lá em cima, Aracaju, Avenida João Ribeiro, lá em cima no mirante tinha a igreja de Santo Antônio e de lá de cima, a gente avistava Aracaju todinha, assim, como a Baia de Guanabara, né, avistava tudo, até os saveiros que passavam a gente via, né? Então, toda noite, tinha essa trezena, era missa, e a novena e as trezenas e no outro dia, dia da festa de Santo Antônio, era treze de junho e distribuía os pãezinhos, tudo isso… e a gente quando chegava em casa não comia, colocava dentro de uma coisa de farinha, um pote de farinha, grande ali. E às vezes, se tivesse uma dor de cabeça, a mãe dava um pedacinho do pão de Santo Antônio porque fazia bem essa fé, né, e curava. E ali, a gente adolescente, aproveitava para ficar de paquera com os meninos depois que terminava a novena, dava umas três voltas na praça e pegar na mão, nem uma vez, né? Esse negócio de amasso, nem uma vez, também, né? Então, a gente ficava só olhando e andar junto, às vezes, encostava, né? Era muito bonito também eu lembro na minha infância de esperar o namorado assim, na esquina. Ele sempre chegava primeiro, né, e a gente quando saía do colégio já tava lá o namorado esperando. Aí, segurava os livros, ia trazendo a gente até em casa, né? Mas despedia no portão, mas sem aperto de mão, sem beijo, sem nada. Aí, entregava os livros, aí no outro dia, a gente esperava de novo. E aí foi indo até que casamos, né? Como diz o outro, na igreja e no civil, né? Agora, o Fernando, né, a Suellen me conhece de dança no SESC, porque eu participo muito de dança e quando eu estava aqui em São Paulo, então, o primeiro SESC que eu frequentei foi SESC Ipiranga e o forte de lá era festa Junina e por eu ser do nordeste, já dançava bastante, tinha o pé de dança, então a gente fazia parte do grupo de dança, aí tinha as quadrilhas e toda noite a gente se apresentava, assim, final de semana, né? E eu fui desenvolvendo a técnica da dança, eu já tinha o pé de dança, né, frevo, maracatu, tudo isso eu já dançava, né? Então, no SESC, eu fui fazendo curso de flamenco, indiano, dança de salão, essas coisas todas. E aí, fui desenvolvendo uma técnica que na hora que eu danço, não é dança como diz as colegas, né, quer dizer, não é dança técnica, então xaxado, então misturo xaxado com a dança do ventre, aí mistura com o flamenco e vai misturando, né? Uma vez eu fui assistir o Show da Fortuna e ela me apresentou a Sandra Rosa Madalena, que é a santa morena do Jacó do bandolim. Eu fiquei apaixonada, né, pela performance da fortuna e aí, disse assim: “Vou estudar um pouco mais essa Santa Rosa, essa santa morena. Então, dos grupos que às vezes a gente se a presenta, sempre que tem a santa morena, alguém diz assim: “Carmen, você vai dançar, não vai?”, porque aí, mistura dança cigana com o chorinho brasileiro e fica uma maravilha, todo mundo gosta. Então, eu adoro dança, né? Dentre as filhas, todas dançam, só que foram para ginastica, esse negócio de fitness, pilates, até o menino também é de Educação Física. Agora a primeira é psicóloga, fez Educação Física, mas depois fechou e foi fazer Psicologia. É isso. Já tenho quatro netos, se o primeiro neto tivesse casado, quer dizer, eles são casados, mas só querem criar gato e cachorro, né, eu já era bisa, né, as netas, a mais nova tem 15 anos. São as meninas. E os primeiros já têm 23, outro já tem 20. Eu não sou bisa, ainda, mas…
P/1 – Você pode falar um pouco da época em que você viveu no Rio de Janeiro? Como que foi a chegada lá, também, o lugar onde você morava…
R – Então, no Rio de Janeiro, a gente sempre ia onde já tinha alguém esperando.
P/1 – Em que época foi isso, mais ou menos?
R – Eu me formei no Rio de Janeiro, então foi 72… que 89 eu terminei os estudos, é, 75 mais ou menos, eu acho que eu estava no Rio de Janeiro. Então, tinha o irmão dele que já morava no Rio de Janeiro. E aí, nós fomos pra lá e nós fomos morar ali no Aterro do Flamengo, na Marques de Abrantes que é em frente ao Bennett, Instituto Metodista Bennett. Aí, ele trabalhava, sempre trabalhou com negócio do Contabilidade, auditor fiscal, essas coisas. No Rio de Janeiro, ele fez Ciências Contábeis, ali na São Marcos… não, ele fez aqui em São Paulo, no Rio de Janeiro, ele já chegou já formado com Ciências Contábeis, eu que tava terminando… quis entrar na faculdade. Aí, eu fiz e a minha irmã fazia Filosofia, que ela sempre gostou negócio de dizer o quê que ela tava fazendo e o que queria, né? E aí, eu fiz, mas era muito bom o Rio de Janeiro naquela época. Hoje em dia, quando a gente vê essas violências todas, nem acredita, né, porque a gente passeava ali do Leblon até Botafogo, Aterro do Flamengo, atravessava o túnel caminhando e não acontecia nada, às vezes, quando a gente ouve assim, uma coisa, né? E nessas trilhas ali da Floresta da Tijuca, entrava na Lagoa, a gente ia sair no Cosme Velho, nas trilhas, sem ninguém ter roteiro e nem nada, ia seguindo, todo mundo caminhando, né, no Rio de Janeiro. A gente ia num sábado e fazia trilha, acompanhando o povo que gostava de caminhar. Outros passeios também era para Paquetá, a gente tomava a barca e ia até Paquetá, tomava banho lá e depois voltava, né, para o Rio de Janeiro. Então, era muito bom também essas travessias.
P/2 – Carmen, uma coisa, você viveu então o período fazendo formação artística, sua irmã filósofa em plana Ditadura Militar. Como foi esse período? Você teve envolvimento politico?
R – Olha, nem em Aracaju, porque a gente ouvia os casos, né, e às vezes, sumia um e no Rio de Janeiro também, a gente… tinha esse negócio da UNE, ali em Botafogo, tinha os quebra-quebra ali, mas a gente no se misturava, que era outro contexto, eu acho que a repressão não chegou tanto quanto aqui em São Paulo, no Rio de Janeiro, né? Que em São Paulo teve ali o DOPS que a gente passa ali, parece que tá ouvindo, né, os lamentos todos, né? Mas se houve lá no Rio do janeiro era muito assim, abafado, a gente ouvia falar da Zuzu Angel, daquelas coisas, mas a gente não era ativo, não tinha isso.
P/2 – No curso de Artes e Filosofia?
R – Não. E quando a gente fazia assim, essas performances, tinha o pessoal de Direito que ficava afastado e a gente de Artes fazia aquelas performances, tinha muito sobre o negócio da Amazônia, eu me lembro muito disso, né, estava invadindo a Amazônia e a gente se enrolava assim, numa bandeira e as terras, cada um com um punhado de areia ia colocando, porque cada um estava levando as terras do Brasil embora. Era só assim, nas performances, mesmo, mas de perseguição, não. Não chegou até nós, assim. E nem de vizinho, né, que foi levado, não.
P/2 – Mas a formação, pelo jeito foi importante e interessante na sua vida, essa formação artística, né?
R – Ah sim!
P/2 – Conta um pouco da sua experiência nessa formação.
R – Então, eu criança, a gente já fazia arte, né, já fazia aquele negócio de artesanato e fazer brinquedos, né, bonecas, então quando os filhos nasceram, a gente mesmo fazia os brinquedos dos filhos, né? Fazia almofadinha, colocava alguma coisa, já costurava, fazia roupa, né? E quando eu disse: “Não, eu vou fazer Educação Artística”, então tinha um leque de coisas, eu conheci Augusto Rodrigues, que é um pintor ali do Cosme Velho, da escolinha de Artes, já sabia fazer xilogravura, por causa do Cordel, então aí a gente ia bem na oficina de Artes, tudo. Agora na parte teórica é que eu achava bem difícil, né, que a gente tinha que estar discutindo sobre aqueles teóricos, né, sobre esse Andy Warhol que tá na mídia, todo mundo falando, né, porque é arte conceitual, já tinha jovens fazendo as performances e a gente já fazia isso, que a gente já dançava carnaval na praça, era uma performance, né, quer dizer, ninguém ia para um bloco dançar carnaval, a gente dançava na praça. Ficava tocando um trio elétrico e a gente dançava, né? E não tinha que ter um lugar para fazer, né? E também, a gente se misturava também com os meninos da Unirio, que também faziam arte, né, tava começando esse negócio de biodança, que e uma dança com o corpo, que você se abraça, abraça as árvores, abraça a plantinha, essas coisas de natureza naquela época, né? E eu me lembro a gente fazendo essas performances no Museu da Republica, ali no catete, abraçando as arvores, todo mundo de branco, né? E na Escolinha de Artes do Brasil, eu participava, porque eu fazia xilogravura, né? E recebia muitas crianças, né, a gente ensinava e tal, mas quer dizer, dizer assim: “Não, vai expor”, não, nunca tive vontade de expor, sempre fazer, mas nunca para dizer: “Vou expor”, nunca tive, meu negócio era fazer, não de expor, né? Então, eu fiz teatros, também tinha grupos de teatro, mas depois, a gente teve que dar uma parada, e aí, eu vim para São Paulo de novo, né, aí foi quando ele foi para o Mato Grosso e eu vim para São Paulo, aí comecei… aí ficou mais ou menos a minha vida, né, deixei de estar atrás dele, desfazendo a vida e começando em outro lugar, né? Mas não me arrependo de nada, né? Aí em São Paulo, tem uns dez anos que eu perdi a minha irmã, né, então aí ela deu uma dor de cabeça e só vivia no médico, que ela tinha enxaqueca, né, aí quando nós levamos para o médico, ela foi atendida no Hospital São Paulo, aí resolveram… era um aneurisma, aí resolveram fazer a cirurgia, mas aí não teve jeito. Aí assim, foi em dois meses, nós perdemos minha irmã. Aí, foi um vazio, né? E ela agora, falando isso, eu também, assim, de perder pai e mãe, a gente perde, né, hoje em dia eu tenho colegas que dizem: “Carmen, tem alguém que cuide de você?”, eu digo: “Não tem”, porque minha irmã lá em Aracaju tem porque e no quintal, né, mas aqui você não tem porque os filhos todos trabalham, os netos também, quando eram crianças, eu ainda levava pra vários locais, né, inclusive SESC e tudo, mas agora não, cada um tem a sua vida, e se chega na casa deles, é tudo com aqueles celulares, nos computador, nos tablets, eu digo: “Tchau” “Tchau vó”, eles falam, ninguém tem mais aquele… quer dizer, aquele acarinhamento que tá faltando, né? Mas tirando isso, tá tudo bem, né, quer dizer, a gente não tem mais essa ilusão. E às vezes, quando tem uns projetos no SESC: tem música para criança, nós vamos lá para ver os bebês, eu e mais outras colegas, né, porque aí, a gente tem mais contato com bebê, com coisa, né? E na sala de aula, eu como professora de artes, aí dizem assim: “Mas a professora não tem problemas, que ela dá aula de artes, né?”, então, mas é um jogo de cintura, né, que eu sou da época que eles queriam dançar hip-hop e a gente fazendo forró, né, nas festas Juninas. Aí tinha o negócio de Psy, aí apresentava forro: “Vamos dançar o passo que vocês souberem,. mas vamos dançar aqui”, esse Luiz Gonzaga, esse Sivuca, Hermeto Paschoal, então a gente ia apresentando, né? E nessa escola em que eu me aposentei, eu passei dez anos. Aí teve um projeto da secretaria da educação, logo que começou o negócio de consciência negra, aí nós fizemos um projeto de uma feijoada coletiva, aí todo mundo dizia que não ia dar certo. Eu digo: “Dá”. Para cada classe, a gente foi pedindo assim, 100 gramas de orelha, 100 gramas de pé de porco para no dia a gemente poder fazer a feijoada. A escola não podia estar guardando esses mantimentos lá por causa de negócio de fiscalização e tudo, né? Aí, a gente pegava, guardava, levava pra casa. Aí no outro dia, recolhia de novo e foi fazendo. Foi o maior sucesso. Aí, nós fizemos a feijoada coletiva com toda a escola comendo e a escola é grande. Aí, nós tínhamos uns três intervalos. Cada intervalo eram umas quatro classes que desciam para comer a feijoada. E nós fizemos o negócio de capoeira na escola, samba de roda com as professoras, tudo junto, convidamos os pais, foi interessante. Depois, a gente… a influência evangélica era muito forte na escola que muda a diretora, né, ela já vinha com outra pegada, então a gente… sabe, aquelas coisas que falam: coisa de santo, coisa de macumba, é coisa de não sei o que… aí, foi se perdendo isso, né? Até disseram: “Não vai ter mais, nós vamos só fazer assim, um texto, um teatro e tal”, aí deixamos de fazer a… era muito bom, também. E quando a gente encontrava, assim, uma equipe de arte, educação física, né, quer dizer que aí, a coisa deslanchava, né, era muito bom. Todo mundo da gente passar na rua: “Parabéns professora, gostei do trabalho”, mas hoje tá difícil trabalhar. Eu tenho colegas que ainda estão na escola, porque é tudo complicado, porque os projetos que chegam da secretaria, às vezes, os professores não concordam, né? Às vezes, e a diretora, né, então isso dificulta um pouco o trabalho e a criançada chega muito empoderadas, quer dizer que aí, vai tirando o poder do professor, que é muito difícil, mas a gente continua, né? Tem sempre alguém que tem o caderno de arte, tem sempre alguém para dizer: “O quê que nós vamos fazer hoje, professora?”, porque ainda tem essas coisas. Mas é muito bom, ainda.
P/1 – Como que tá o seu envolvimento com as artes, hoje? O quê que você tem feito no seu dia a dia?
R – Então, no meu dia a dia, eu procuro as oficinas do SESC, que eu não queria voltar para a faculdade, né, que tenho colegas que voltou com o negócio da terceira idade, aquelas coisas teóricas, eu não quero mais me prender nisso e também o compromisso de estar… aos sábados, você tem que ir, né, tem que fazer isso… aí, eu vou num curso aqui no SESC, na oficina ali, no Centro Cultural São Paulo, né, e vou atrás, vou preenchendo os dias. Aí, vai chegar o carnaval, vai chegar junho, vai chegar… e vai passando, né, quando você vê, já passou o ano e é muito bom.
P/2 – Tem alguma memória de algum curso ou de alguma situação nessas oficinas que tenha marcado? Uma experiência que tenha sido muito interessante ou ruim, enfim…
R – Agora você me falando, lá no meu curso, no Rio de Janeiro, eu participei de barracão de escola de samba, e é uma oficina, né, e assim, uma escola porque assim, você vai fazer isso, vaio fazer aquilo e no final, todo mundo tá fazendo, né? Então, aqui nas aulas de artes, eu pensava assim, em fazer um barracão, tipo barracão, mas as crianças: “Não, isso é meu, isso é meu…”, e não acontecia, né, porque era de todos o material, mas na hora de fazer, eles já se prendiam: “Não, isso é meu”, quer dizer, tinha essa barreira. E assim, no barracão da escola de samba, a gente fazia era para todos, né, não tinha: “Esse e meu, esse é de fulano…”, não, aí quando chegava alguém para pegar a fantasia, era da fulana, né? Isso também foi difícil trabalhar na escola, é muito individual, a gente separava, mas se eu fiz, esse é meu, né, não, não é assim, vamos dividir. E no contexto assim, de teatro mesmo em SESC, eu fui fazer uma oficina e eu digo: “Aí professor, queria tirar o meu sotaque” “Não senhora, o melhor é o sotaque, o melhor do personagem é o sotaque”, e até hoje, eu chegando lá em Aracaju, eu vejo que o meu sotaque e diferente, né, e para eles, a minha irmã dizia: “não abra a boca que todo mundo vai saber que você não é daqui”, e já aqui, não: “Você não perdeu o sotaque”, os paulistas dizem assim. E lá, já me sentia estrangeira, porque ela: ‘não abre a boca que todo mundo vai saber que não é daqui, né?” E nas oficinas mesmo, quando eu faço alguma coisa, não falo nem que eu sou de artes, né, porque às vezes, quando faço alguma coisinha: “Como é que você fez isso, né?”, quer dizer, que aí, você já tem outro olhar, né, pra você trabalhar o material e tal. Tem um q assim, que é diferente, né, uma pegada diferente, assim, de ver o material, né?
P/2 – Você se lembra de algum aluno ou alguma aula que tenha dado que tenha sido diferente, que tenha sido…?
R – Às vezes, a gente encontra muito aluno criativo, muito aluno criativo e esse negócio, eu me deparei com grafite, que a gente na faculdade não tinha aula de grafite, tinha aula de nanquim, né, aquela letrinha certinha, não podia escorrer nada, né, e já no grafite não, eu tive que aprender com os alunos, foi fantástico, eu fui trabalhar numa escola perto daquela casa de hip-hop lá em Diadema. Aí, eu conheci Nelson Triunfo, Taíde, sabe, até às vezes, estão aí: “Professora”, e no grafite eu dava uma que digo: “Vamos fazer” “Como é que é essa letra, né?”, e eles iam… aos poucos, eu fui pegando, né, o grafite por eles, não deixava pichar, claro, porque: ‘Mas é?”, eu digo: “não, não é”, mas as colegas diziam: “Mas é, Carmen, se você disser que é, eles vão querer pichar a escola toda, né?”, mas às vezes que nos fizemos projeto com grafite nos muros da escola, então, fizemos projeto, escrever o nome da escola, nossa, choveu letras diferenciadas, né, e as cores, passava o dia todo… foi muito… os meninos muito bons, tinha assim, se você visse, que tivesse assim impulso, bem assim, quando tem esse negócio de projeto de olimpíadas, aí a gente colocava eles na quadra, nossa, os meninos também, se desse o impulso, virariam atletas, porque você sente a garra, a gana de correr, de saltar, de pular. Mas como dizem os outros, a gente faz, faz e morre na praia, né, o poder público não deslancha, não deixa ultrapassar. Perto de lá tinha um desses centros esportivos, João do Pulo e a gente ia fazer Educação Física lá, com as crianças, então já que era um centro esportivo já da prefeitura, tudo, devia ter alguém ali da prefeitura olhando, olheiro, essas coisas pra… e a gente não, a gente não falava, mas devis ter, né, porque se já é um centro esportivo, né, devia não deixar assim, as crianças órfãs na cultura, né? Em todas as artes, né, em dança, tem muitas meninas que faziam aula de dança na Escola de São Paulo, ali, e no dia que tivesse alguma apresentação, a gente colocava elas pra dançar e ninguém dava um pio, né? Um professor da Educação Física: “Isso não vai dar certo, Carmen”, eu digo: “Vai”, né, a gente colocava uma música e elas dançavam, era emocionante. Muito bom. Aí, eu apresentava a dança flamenco, colocava flamenco, uma sabia o brasileirinho, colocava para dançar o brasileirinho, então foi muito bom esse período na escola. E dizer assim: “teve aluno que encostou em você?”, sim, que eu dei aula no noturno, também e eles chegavam, assim, né, cansados de alguma coisa, não que me… mas me peitar assim, encostar, chegar perto, né, quer dizer, invadir assim, né? E na hora da saída, eu olhei assim para ele: “Vem aqui para eu lhe dar um abraço”, e a inspetora ficou olhando pra ver o que ia acontecer. Aí, ele ficou na dele e eu segui. E é isso, né? Aí, eu tô me lembrando também de quando eu era criança, né, assim, tinha programa de auditório na rádio e eu me lembro que a minha mãe levou a gente para fazer parte do programa, lá para dançar, era concurso de frevo, aí foi ótimo, porque eu tirei primeiro lugar e a gente ganhou, assim, um par de sapatilha, né, dessas alpargatas, e nós chegamos em casa, a gente tinha que falar para o pai, imagina só? Ela levou escondido dele pra ir pegar o prêmio tinha que ser com o pai, não era com a mãe, né? Aí, ela tentando: “Não, mas é porque as meninas foram convidadas” “Mas como convidadas, quem levou?” “Porque a vizinha…”, e foi até chegar que eu tinha ganho o sapatinho para ir pegar no outro dia na sapataria, na segunda-feira, pra nunca mais. Aí, ele proibiu, foi a primeira e a última. Aí, encerrou ali a coisa, tanto é que eu queria fazer Educação Física, né, mas nunca que eu chegava pra fazer. Aí não, aí pronto, terminou o colegial, o magistério, aí já casei.
P/2 – Essa dança vem da onde?
R – Desde criança, que eu fui…
P/2 – Esses vários tipos… como foi isso?
R – Meu pai tocava sanfona e ia para os forrós, eram bem animados os forrós, sanfona de oito baixos, né, a gente ia, se chama caminhão pau-de-arara, a gente saía e ia todo mundo no caminhão, né, e chegava lá, acontecia a família toda, né, e mais os vizinhos que iam chegando, né, e todo mundo dançava, quem sabia e quem não sabia, porque a festa era coletiva, né, era primo, era prima, era tio, todo mundo dançava. Quem não alcançava ainda no ombro, a gente segurava no braço pra entrar no ritmo, e era muito bom. Esse negócio de pífano, aí tinha aquelas bandinhas de pífano também, que a gente tocava, todo mundo já pulava no ritmo do corpo, né? Não tinha de ficar paradinha. Tanto é que nessas minhas andanças, a dança mais difícil que eu achei foi a indiana, porque você tem que ter uma disciplina de parar, respirar, olhar, você olha, mas a cabeça não vai, você olha com o olho, a cabeça fica. O domínio do corpo, né? Não que o frevo não tenha, o frevo também tem o domínio, mas é outra musculatura, né, e na indiana não, você tem que estar no eixo ali, nos triângulos que eles falam, mas toda dança é ótima, eu adoro.
P/1 – E na sua família, você tinha comentado que muitos dos trabalhos manuais que eram feitos ali, que de repente, te levaram a ir para o mundo das artes, você lembra m pouco de como que era essa…?
R – Ah sim, era tapete, a gente fazia muito aquele talagarça, né, um tecido como se fosse o ponto cruz, só que ele já vem furadinho pra você ficar fazendo ali a cruz, o x, né, mas já no buraquinho, a gente não contava. Mas também tem tecidos que você conta os pontos, né, e na talagarça não, já vem certinho. É só indo fazendo a cruz e montando o desenho. Aí, tinha esse negócio do tapete, o negócio de enxoval para casal, você tinha que bordar com todo monograma, monograma é a minha letra com a letra do parceiro, né, e a gente faz aquilo, né? No bastidor, colocava assim e ia bordando, as meninas todas bordavam, né? E todo mundo ia para a escola de corte e costura e o interessante também é que quando a gente casava, ganhava uma máquina de costura, que caso o casamento não desse certo, você ia ser costureira. Aí, você já ia costurando e tal e ia sustentando a vida, né? E também eu fiz datilografia, era eximia datilografa, tanto é que hoje, né, quando eu vejo os netos lá no teclado, eu penso: olha, a gente perdeu foi tempo fazendo aquilo e eles, hoje, numa rapidez, né? Pra fazer a prova, ainda cobria o teclado e a gente ia assim, digitando, era A, era B, era C, para sair o texto certinho, né? Aí depois, veio a máquina elétrica que já dificultou um pouco, né, porque nem fazia barulho, né, a máquina elétrica. É isso das artes, também corte e costura, bordado e criança, a gente ia para aulas de trabalhos manuais. O primeiro trabalho que a bordadeira dava era um cesto cheio de linha pra gente fazer a miada, quer dizer, tirava tosos os nós da linha, passava à tarde toda tirando os nós, separando linha verde, linha azul, para depois juntar tudo e fazer aquela trancinha. Se precisava da linha verde, aí puxava sem nó, sem nada, aí ia fazendo o bordado. Dali, ia aprender a fazer o bordado, todos esses pontos que hoje estão na internet, né, que às vezes, chego assim, na casa da neta: “Vó, vamos procurar no Google”, que tudo eles procuram no Google. Tudo, porque ninguém quer mais ter paciência de estar… E também, dentre essas modernidades que eu acho, assim, a palheta de cores que elas têm de maquiagem, né, porque na minha geração, a gente ganhava aos 15 anos uma sombra, um batom, uma coisa, um esmalte, aquele alicate de unha. Hoje em dia, não, elas abrem assim a palheta de cores, aí uma hora tá verde, uma hora tira, tá vermelho, né, e é assim, a brincadeira hoje, ninguém mais sabe o valor, aquilo tinha que durar o ano todo, senão, a gente só ia ganhar no outro ano, né? Alicate, tesourinha e hoje em dia, não, elas vão e voltam do cabelereiro numa boa, né?
P/2 – A senhora comentou, né, que foi interessante na sua fala que a senhora enaltece a Avenida Paulista que você chamou de nossa praia (risos). Da onde vem esse amor pela Paulista e o quê que você faz na avenida? Qual região?
R – Na avenida, assim, primeiro porque é um point cultural, da Casa das Rosas, depois o Itaú Cultural, quando o SESC Paulista, ainda tinha o instrumental da Paulista, mas tá em reforma. Aí tem a Funart, aí vai tendo a Fiesp, que ali é um palco a céu aberto, agora, né? Aí tem o Conjunto Nacional e termina na Consolação, ali naqueles grafiteiros ali…
P/2 – Você frequenta?
R – Todo domingo eu passo lá. Todo domingo eu passo na Paulista, aí tem aquelas estatuas vivas também, eu acho fantástica. Uma vez, no SESC, nós fizemos uma oficina de estátua viva no SESC Ipiranga, tinha oficina de mimica, e nós fomos apresentar lá no SESC São Carlos, o projeto de mimica da professora, foi muito bom. Aí de lá, nós fomos convidados para ir para o SESC Bertioga nesses encontros de terceira idade, né? Eu não era aposentada, nem era terceira idade, mas as colegas diziam que eu tinha maior vontade de ser da terceira idade. Eu tinha uns 55 anos, né, mas frequentava o SESC Ipiranga. Nós fizemos. Aí teve uma vez, uma inauguração de uma biblioteca lá perto, aí nós fomos fazer estátua viva. Aí a gente ficava paradinha assim, quando alguém chegava, a gente mexia, interessante, né? Mas hoje em dia tá muito elaborado, né, porque tem o personagem e você fica: “Será que é assim mesmo?”, mas é muito bom. Eu adoro a Paulista, porque tinha também a feirinha de arte e a feirinha de antiguidade, quer dizer, no começo, quando não era fechado, né? Aí, eu sempre gostava de ir lá, de participar, de concerto no MASP, frequentar o MASP, a biblioteca, lá, a Pinacoteca. Tem vários, a Mario de Andrade. Muitas vezes, eu levava os alunos, né, tinha um… pra conhecer a Biblioteca Mario de Andrade. A gente tinha que ter autorização dos pais, né, e eu como professora de artes: “Mas que tanto que essa professora vai na biblioteca, né?”, porque você visitava uma coisa que tinha história, né, de como as pessoas passavam dias e dias e noites estudando, porque não tinha negócio de internet, nem nada, era o livro e o livro não saía. Então, você ia lá, estudava um pouquinho, depois…até tem uma música daquele menino Wandi que diz Dostoiévski, né, que viveu lá não sei onde, não se congelou e aqui, a gente no friozinho, ninguém quer sair de casa, porque às vezes, eu levava pra escola os eventos, né, mas poucas pessoas iam, porque tinham outros afazeres. E você tem que gostar de cultura, de estar atrás, de estar vendo: “Ela gosta de tudo”, não é que eu gosto de tudo, mas porque eu não conheço, eu quero conhecer, né, então mas aí: “É replica, não sei o que”, vamos conhecer, né? Que dentre esses meninos, muitos deles estão estudando, batalhando, né? E até que você chega num ponto que às vezes, não, vamos levar o grafite para a galeria? tem os Gêmeos ali na Casa das Rosas, você vê ali no Shopping Paulista, tem a figura do Niemeyer, nossa, fantástico. Eu mando eles todos: “Vão lá passear, levem os amigos lá para conhecer”, não é só visitar os da Consolação, né? Porque e muito bonita, né, de ver. E também no SESC tem essas oficinas de xilogravura e tal, teatro, digo que é muito bom você trabalhar no SESC, porque o publico vai lá porque quer, não é igual na sala de aula que você tá ali: “Nós vamos contar essa historia”, aí já tem um lá: “Ah professora…”, a coisa não anda, né, mas é gostoso de ver o teatro infantil, o SESC, eu adoro ver os pais com as crianças, né? Muito bom.
P/2 – Carmen, então, a gente vai rumando um pouco para ir fechando a nossa conversa. Umas perguntas mais… a senhora tem, enfim, o que a senhora contaria pra gente, por exemplo, uma passagem que tenha sido uma grande vitória pessoal?
R – A grande vitória é ter me aposentado em São Paulo, como professora de educação, na rede estadual de educação. Que eu jamais imaginei de vim para São Paulo, né, porque eu pensava em ficar no Rio, né, mas no Rio de Janeiro eu não tinha casa, então eu tive que vir para São Paulo que a casa é nossa, né? Então, foi uma grande vitória ter me aposentado como professora de educação artística em São Paulo.
P/2 – Trabalhando com arte…
R – Trabalhando com arte, fazendo o que gosta. meu pai, ele é da época… daquele negócio de… daquele trem que vai para Paranapiacaba? Então, ele aos 18 anos, ele esteve aqui em São Paulo para fazer aquela… e não aguentou ficar. Isso ele contava também pra gente, ele foi acometido de malária, até que hoje eu vejo esse negócio de febre amarela, não sei o que lá, né, então, o médico falou pra ele: “Ou você morre ou você vai embora”, aí ele não queria morrer, ele veio embora, porque se ficar, morre, né? Ou então, você vai embora. Então, às vezes, eu lembro assim, mas não ficou. Aí, eu não teria nascido, né, se ele tivesse ficado aqui… e eu ficar aqui em São Paulo, com frio e tudo, acordar cedo, tal, e chegar e ficar como professora de artes aqui em São Paulo, eu andei muito nesse São Paulo para dar aula na rede estadual, né?
P/2 – Algumas dessas foram experiências para contar pra gente, desses anos de aula.
R – Desses anos de aula, teve uma vez que eu fui trabalhar no Campo Limpo, até tem o SESC lá no Campo Limpo, aí eu vi… eu fui o primeiro dia e na volta, eu já achei que aquilo é cansativo demais, porque eu morava aqui na zona sul, como diz, né, ali no Ipiranga. Aí, eu fui no segundo dia, aí no terceiro: “Vou nada”, aí eu liguei para a diretora: “Olha, não dá pra eu ir mais” ‘Então, você vai ter que fazer uma carta de desistência”, aí eu fiz a carta de desistência. Aí, abandonei e pela secretaria de educação, você não podia pegar mais aula, só no outro ano. Aí, eu tive que ir para a escola particular, né, aí eu fui dar aula na escola particular, né? Aí noutro ano, eu voltei de novo para a rede estadual, aí peguei uma escola mais perto, né? Mas eu não era de desistir, né, mas era muito longe, a gente tomava um ônibus e não chegava nunca, né? E pra voltar, ainda tinha mais… mais cansada chegava, né? Foi indo, foi indo, deu certo, né? Eu gostei muito de trabalhar em Diadema, eu gostei mais de trabalhar em Diadema do que em São Paulo, na capital, porque São Paulo… lá em Diadema tinha muito nordestino, então a linguagem que eu falava, eles me entendiam, sabe, acontecia. Nas festas mesmo de junho, a gente fazia procissão, fazia dança dos arcos, quer dizer, os pais vinham agradecer porque eles viram aquilo quando eram criança, né, e viam as crianças fazerem, no final, a gente chamava os pais para participar, né? E já aqui em São Paulo, não, era mais assim, elitizado eu achava. Eu tinha alunos que os pais viajavam, guia de turismo, viajavam não sei pra onde e eles chegavam com outras novidades, quer dizer, aí às vezes, não casava com a nossa proposta. Era muito diferenciado de quem… O quê que você tá fazendo aqui? Ou porque esse tem mais um poder aquisitivo, aquele não, né? E lá para Diadema, não, era todo mundo no mesmo barco, não tinha nada disso, né? E dava certo, né? Tudo o que a gente inventasse, dava.
P/2 – Você já sofreu preconceito por ser do nordeste aqui?
R – Não, nunca. Só assim, nesse curso de teatro que eu inventei de perder o sotaque, né, aí o diretor: “Não”, eu nem me lembro quem foi o diretor, desses aí que andam no SESC. Mas não por ser professora, né, dizia: “Hoje é dia do professor”, e tal “Mas ela é professora?”, porque tem outros subentendem-se “Ah, é professora”. Mas não, nem de como é que dizia assim… que na escola, o povo faz muita pergunta, mas ninguém pergunta assim… pergunta logo qual é o seu carro e eu nunca tive carro, né, nunca. “Qual o seu carro, professora?” “Por que a senhora não vem de carro?”, tem isso. Ou então, você chegava com um tênis: “É de marca, professora esse tênis?”, eles queriam saber, né? Ou então: “Professora, você comprou onde?”, então tinha essas coisas, mas dentre as colegas também não. Elas me recriminavam muito que eu não tinha celular: “Eu não, vivi a vida toda sem celular, por quê que eu quero celular?”, então também não aderi ao celular, então a diretora, às vezes, ficava: ‘Mas nem por um decreto a gente acha essa professora, né?”, porque tem que ser no boca-a-boca para me achar, ou então no telefone fixo, né? Mas de mandar recado, às vezes, né, às vezes, me encontra. Mas negócio de e-mail e tal, às vezes os colegas perguntam: “Mas não tem e-mail?”, não tenho nada disso, nem zap, nada disso, se quiser, às vezes, eu dou o da minha filha, porque daí, eles mandam foto, tudo, né? E-mail e tudo mais e vou vivendo, né? Não só eu como outras colegas também, ninguém nem tá aí. Mas a gente também não toma remédio. Aí, uma vez, eu tive uma crise de… como se diz, de pressão alta, mas não sei o que aconteceu, que o meu olho vazou, sabe? Ficou todo vermelho, na escola, aí a diretora… sempre perto de escola tem posto de saúde, né, aí a diretora mandou logo para o posto de saúde, aí nós ficamos lá e disse que eu tava com a pressão alta e de lá, eu só saía com alguém da família, né? “Mas não é possível uma coisa dessas, onde que eu achei isso? O que aconteceu?”, eu não tinha brigado, todo mundo só queria saber o que aconteceu, se foi com aluno, se foi em casa, nada disso. De uma hora pra outra… aí por conta disso, aí a minha filha me levou no médico, já fez eletro, já fez não sei o que lá, aí já deu remédio pra pressão. Tem uns dois anos que eu tomo remédio pra pressão, aquele bem fraquinho, só pra não dizer… e fiquei controlando a pressão, mas depois não subiu mais, eu deixei de passar… e vou tomando o remédio de manhã e pronto, toda manhã eu tomo um comprimidozinho. Aí não me sinto cansada, nada disso. E como diz o outro… eu digo: ‘Mais um ano de vida, né?”, porque 69 anos eu vou fazer, né? Aí, às vezes, eu vejo assim, uma coisa, uma festividade, eu tenho até pena de morrer, né, porque você deixar isso tudo aqui, não é que eu tenha medo, mas tenho pena, porque nossa, ainda tem… e eu fico feliz assim, porque quando eu estou assim, no meio de dança, se forma um grupo, né, e é uma coreografia, sabe, a gente faz assim, em qualquer show que tenha, se é dança indiana, seja o que for, daí a gente faz naquele espaço e todo mundo acompanha, estava dizendo para ele, teve um encontro de terceira idade no SESC Bertioga, aí meu colega disse: “Mas você não vai, Carmen, quem é que vai dançar? Quem é que vai puxar a dança?”, porque tem baile toda noite “Você tem que ir pra puxar o povo para dançar”, porque a maioria de paulistas fica quietinho. E tendo abertura para dançar, eu danço mesmo, a Suellen sabe disso, né? E às vezes, tem artistas que vão no SESC que têm aquele olhar, ele entende, né, então às vezes, ele desce do palco, vem até a gente, sabe? Faz aquele dueto, então é fantástico isso. Eu acho, eu fico muito satisfeita de estar passando isso, assim, esse dom, esse talento, que não é a dança dos famosos, né? Eu nem vejo, que é justamente para não ter essas influencias, todas, eu nem vejo. “Professora, você viu na novela?, não nem vejo, porque se tiver assim, um figurino, que foi o caso aí do “Caminho das Índias”, aí eu via para ver o figurino, né? Para ver o figurino, aí adorava, né? Mas o enredo, mesmo, não, né? não sei quem é quem. Agora se for assim, de época para ver o figurino, eu dou uma olhadinha. E o SESC É a extensão da minha casa, é o quintal, que o SESC Ipiranga eu frequentei tanto que às vezes, as colegas deixavam recado, assim: “Dia a Carmen que isso não vai acontecer”, de tanto que a gente ia no SESC, né, porque a gente entrava no SESC de manhã, no sábado, fazia dança, fazia capoeira, fazia depois dança… esse negócio de flamenca, ainda ficava de noite pro show do teatro. A gente passava o sábado no SESC, almoçava na padaria, naquela época, o SESC fazia esse negocinho de lanchezinho, né, agora que mudou um pouco o cardápio.
P/2 – Hoje você não continua mais indo assim, com essa frequência?
R – Continuo indo…
P/2 – De sábado?
R – Já vejo… quando pego a revistinha, não é nada de site, nada, pegar a revistinha, “Não vai sair essa revista, não?”, aí a gente já marca, faz o roteiro: dia tal, dia tal, dia tal e pronto e vai indo. Esse encontro, a gente tem um grupo que ninguém vai na casa do outro, ninguém liga, mas a gente sabe que naquele programa, a gente se encontra todos lá. De tiazinhas que gostam também da folia, né, de estar no show e dali, a gente já vai para outro evento, então é muito bom São Paulo, eu adoro São Paulo.
P/1 – O que mais eu posso perguntar?
P/2 – Qual foi o dia mais triste da sua vida?
R – Eu não queria falar, Danilo, é Danilo, né? Você sabe que eu perdi uma filha em São Paulo, de leucemia. Naquela época, tinha esse negócio de mandar buscar os remédios nos Estados Unidos. Nós tivemos assistência do gerente da fábrica em que o meu marido trabalhava. E ela ia tomar a transfusão de sangue e voltava para casa, aí no outro dia, começava tudo de novo, né? E eu me lembro que já perto dela morrer, ela dizia assim: “Dá uma Novalgina pra mamãe”, ela tinha seis aninhos, era. Agora, o médico não sabe onde ela adquiriu isso, se foi lá de Aracaju, da água, né, tem essas pesquisas todas, né? Começou a tratar como uma coisa e no final, foi leucemia, esses negócios de parasita que dá na água, aquelas coisas. Foi o dia mais triste da minha vida, mas paralelo a isso, aí o médico disse assim: “Olha…”, com a sabedoria, assim: “Por que a senhora não tem outra filha? Outro filho?”, aí quando ela se foi, eu estava grávida de outra. Então, dizer assim, a psicologia assim, se ela teve… a gente tem muitas contradições, eu e essa minha filha, né, mas eu não sei se foi devido à doença, o que foi no feto, no parto, aquelas coisas, na concepção. Mas algum dia, a gente se encontra, né, assim, mas não de chegar: “Hoje eu vou na casa dela”, não tem isso, nem dela ir na minha casa, não tem isso. Então, essas coisas, essas aparas é que a gente tem que ir… e aí, eu ponho a gavetinha e vou andando, por que a vida continua. Quando encontro na rua: “Oi, tudo bem?”, dá um abraço, mas não é aquele abraço, sabe? Mas é… quando ela precisa, dá uma ligadinha, né?
P/2 – E um dia muito feliz?
R – Olhe, todos os meus dias são felizes. Todos, eu tenho que estar celebrando, sempre, que é mais um dia, né? Eu tinha uma colega da minha idade, eu dizia: “Vamos que é mais um dia”, ela: “É mais um dia ou menos um dia?” “Tem que celebrar”, quer dizer, eu me aposentei primeiro, ela ainda tá lá na escola. Agora vai esperar 70 anos, ela, né, pra se aposentar. Eu me aposentei e desde os 60 anos que eu dei entrada na minha aposentadoria, mas só vim me aposentar aos 65 e ia fazer 66, já tem dois anos. Quase que o governo me pega (risos).
P/2 – Mas tem algum dia que chega assim… quando eu falei isso, veio algum na cabeça de um dia feliz?
R – Um dia feliz?
P/2 – Marcante.
R – Ah sim, eu costumo dizer para as colegas que a melhor coisa na vida é você ser avó, que ser mãe, você sabe que vai ser, tá ali, casada pra isso, mas agora, ser avó, você não pede para ser avó e quando eu peguei assim, o primeiro neto, nossa, aquilo foi uma felicidade demais. Você tá preparada para ser mãe, mas para ser avó, não. Então, você pega aquilo… não sei, é um filme, né, porque você lembra de você, que você já passou por aquilo, é bebezinho e vai e vai, até na filha, agora para você ver, é outra geração, né? E você tá ali construindo, né? Então, isso é interessante, também, uma coisinha de nada, né, e hoje já tá com 20 e tantos anos, quase que eu sou bisa, mas ainda não.
P/2 – Tem alguma história que a gente não perguntou que você gostaria de contar, que no fim, a gente vai e volta, vai… tem alguma que a gente não perguntou, que você gostaria de contar pra gente?
R – Não. A não ser que você queira perguntar aí, Fernando.
P/1 – Não, não, isso aqui tá uma aula pra mim.
P/2 – Tem alguma questão?
P/1 – Não, acho que as coisas que eu tinha em mente já foram sendo respondidas no discurso.
P/2 – O que você achou de contar a sua história?
R – Achei interessante, né? Eu ainda perguntei para a Suellen se eu tinha que fazer algum texto, ela disse: “Não, nem se preocupe”, agora, é como se fosse assim, um filme, né? Porque aí, eu lembro da praia, dos coqueiros, né, de quando eu era criança. Ah, tem uma coisa também que eu tenho que falar é quando morreu aquele Domingo, o cara da Globo, aí da novela, lá no Rio São Francisco, aí eu dizia para as colegas: “Só quem não conhece rio, porque nós aprendíamos a nadar se o pai amarrava na cintura e vinha puxando a gente no rio para atravessar o rio”, e aí, a gente ia tomando aquele pé no rio, uma hora batia as pernas, outra hora… até atravessar para a outra margem do rio, do que você chegar e ver águia e cair na água, né? Então foi uma infância muito feliz a minha, porque a gente andava de tudo, né, subia em arvore, corria atrás de… outra coisa também, a gente falando, é de galinheiro, né, que às vezes, só quem já pegou uma galinha que sabe, né, o quanto ela dá trabalho para pegar. Minha mãe dizia: “Eu quero aquela de pena preta com amarela”, a criançada da rua toda vinha pra gente pegar essa galinha, a danada se escondia nas moitas e a gente catava, era uma brincadeira e tanto, corria atrás das galinhas pra pegar. E outro sofrimento era ver matar a galinha, porque negócio de molho pardo, né, a mãe pegava assim, botava os pés nas asas e cortava o pescoço, ficava uma xícara assim, esperando o sangue todo e a bichinha morrer. Às vezes, a danada nem morria, quando a gente colocava dentro da água quente, que é para soltar as penas, a bichinha se mexia assim, olha. Interessante se falar isso também, porque agora, eu voltando para Aracaju, ainda se mata caranguejo do mesmo jeito, porque caranguejo é aquele bicho cheio de lama, né, e a gente põe dentro do tanque e lava com a escova, aí o caldeirão de água quente tá fervendo, né? A gente coloca corda, a gente chama corda, né, aí vem seis caranguejos, uma corda, duas cordas e põe uma pedra em cima bem pesada para os bichos não sair da panela, isso a gente via quando era criança e ainda continua, né? Outra coisa também que eu me lembro de infância que hoje ainda reproduz aí, é no carnaval, a criançada nem vai para brincar, vai para catar os confetes e as serpentinas, né, isso eu também fazia. Catava, catava e todo mundo tinha um saquinho, chamava de filó, que é aquele tule bem fininho e colocava tudo ali, a gente catava, catava e colocava ali. Na hora da folia, a gente jogava pra cima de novo, depois catava, catava. E hoje em dia, as crianças… eu me lembro muito, todas de fantasia e catando ainda confete. É uma festa.
P/2 – Ok.
R – Eu espero que tenha sido proveitosa.
P/2 – Muito obrigado em nome do SESC, do Museu da Pessoa.
P/1 – Muito obrigado.
P/2 – Muito obrigado pela sua história.
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