Projeto Conte Sua História
Entrevistado por Élida Yonamine e Jéssica Miho Sakaguchi
Depoimento de Kennedy da Silva Martins
São Paulo, 23/06/2017.
Depoimento HV_596
Transcrito por Élida Yonamine e Jéssica Miho Sakaguchi
P/1 – Olá, para começar, gostaria de saber seu nome todo, sua idade e a cidade em que você nasceu.
R – Meu nome é Kennedy, eu tenho 16 anos e nasci aqui em São Paulo.
P/1 – E como se desenvolveu sua vida, sua infância; conta um pouco para gente sua história.
R – A minha vida foi boa assim no momento, que tive meus pais, amigos e pessoas que me amam, então para mim foi boa e perfeita, no momento.
P/1 – E quanto aos seus pais e seus irmãos?
R – Minha mãe e meu pai faleceram. E meu padrasto. Meu pai faleceu, eu ainda estava na barriga da minha mãe, ele foi atropelado por um carro quando foi passar na rodovia. E minha mãe morreu de tanto assim, vamos dizer, de tanto usar droga. Aí, eu ficava assim com meus irmãos, isso e aquilo. Meu padrasto morreu porque ele tinha muito catarro no peito; então para mim, a vida foi dura também, como a de qualquer um que passou por aqui, e antes da minha mãe morrer eu fui para o Abrigo Guaranis, que me acolheu e está me acolhendo daí em diante fui seguindo minha vida.
P/1 – E o que você se lembra da sua história, com os seus pais, a sua casa, os seus irmãos, como era a sua vida antes de tudo isso?
R – Era bem animada, no momento que eu ficava com meus irmãos, a gente se divertia, soltava pipa, às vezes buscava pão na padaria, que era bem legal, no momento que tava eu e meu irmão. E a gente fazia muitas aventura no modo de se divertir e ficar um com o outro, porque a união faz a força. Então, pra mim foi bem legal no momento que eu estive com meus irmãos.
P/1 – Então vocês eram três..? Eram quantos irmãos?
R – Sete, no total.
P/1 – Ah sim, e vocês viviam todos juntos..?
R –Sim.
P/1 – E brincavam, faziam todas as coisas..?
R – Sim.
P/1 – E os seus pais, na época, eles tinham alguma profissão..? Sua mãe ficava com vocês..?
R – Minha mãe era faxineira, aí ia de segunda a sexta trabalhar, à tarde. Aí eu e meus irmãos ficava lá em casa, brincando assim um com o outros, às vezes a gente fazia comida e meu padrasto também ia trabalhar porque ele era pedreiro. E aí à tarde eu e meu irmão soltava pipa e talvez jogava bola. Aí fazia algumas arte. Que era bem legal, no momento. E curtia bastante.
P/1 – E vocês iam à escola, nessa época?
R –Sim, ia.
P/1 – Você era o mais velho, mais novo, do meio?
R – Vamo dizer, de menino sim, o mais velho. Aí já das meninas...
P/1 – Quantas meninas e quantos meninos?
R – são quatro meninos e três meninas.
P/1 –Quando seu padrasto faleceu.. foi daí que vocês foram para o Abrigo, ou foi quando sua mãe faleceu?
R – Foi quando meu padrasto faleceu. Aí nisso a gente já não.. Vamo dizer, eu, já não ia pra escola porque eu, eu cabulava. Ia um dia assim na semana e faltava os outros sabe? Eu só fui para o abrigo por causa disso e porque também minha mãe não tinha condição de ficar com a gente.
P/1 – E Vocês foram todos para o abrigo?
R – Não, fomos só eu e os meninos. Porque no dia quando as menina do conselho tutelar foi em casa, foi num domingo. Foi do nada, foi uma surpresa pra mim, porque eu nem esperava disso, ou o que ia acontecer. Aí nessa que eu fiquei sabendo que essas mulheres ia levar eu e meus irmão pra Fundação Casa, porque eu não imaginava, ainda tava com aquele pensamento de criança. Aí nessa que eu percebi isso, eu peguei e joguei algumas roupa assim que tava em cima da cama, na minhas irmã. Elas ficaram dormindo, dormindo, dormindo, aí quando acordaram, pegou e perguntou pra minha mãe: “Cadê os menino?” aí minha mãe pegou e falou assim, chorando né: “Eles foi para o abrigo” aí minhas irmã pegou e perguntou: “Aonde?”; “Lá na vila Yolanda”. Aí nisso também minha mãe ficou com o coração assim apertado, porque foi duro. Aí no mesmo dia quando a gente estava indo para o abrigo, antes de a gente entrar na perua do CRAS, eu e meus irmão abraçamos a minha irmã. Porque a gente não sabia que seria a última vez que a gente ia ver ela. Aí assim que a gente chegamos no portão do abrigo a gente achamos estranho porque nunca fomos para o abrigo e nem sabia o que era abrigo. Aí nessa que entramos lá, a tia Fernanda, que era a cozinheira, nos acolheram com o maior carinho. E eu e meu irmão falava assim: “Sai de mim” porque a gente nem conhecia as pessoa e a gente era tímido. Aí.. acho que foi a Patrícia, pegou e falou assim: “Vocês sempre serão bem vindos, mesmo que estejam nesses dias”. Aí nessa, a gente tentava ficar mais livre emocionado por dentro, ficava cada vez mais forte e foi lá apresentar a casa pra gente. Aí depois disso a vida foi seguindo, a gente fomos indo para a escola e para a CCAs, e eu fui fazendo alguns cursos também e fui seguindo a vida. Aí elas cuidando dos meus irmão e eu também porque sou um bom cuidador. E fui fazendo o que eu pude fazer até hoje e agradecendo.
P/1 – Voltando na sua infância, no começo, lógico se você achar legal falar, como você descreveria seu pai e sua mãe, você tinha a presença deles, como você enxerga a importância deles pra você?
R – Na verdade eu não tinha pai, eu tinha meu padrasto que eu considerava. Minha mãe era bem presente em casa mas também precisava trabalhar. E a gente também às vezes ia lá no trabalho dela pra dar uma forcinha pra ela, porque também ela gostava de levar a gente. E como a mulher que a minha mãe trabalhava pra ela gostava da gente aí às vezes dava uns trocadinho ali e aqui. Aí a gente: “Opa, então a gente vai todo dia que puder”.
Aí nessa, a mulher gostou da gente até que algum dia, minha mãe se despediu porque era longe assim de casa e não dava pra ela ir todo dia porque não tinha condição, assim de dinheiro, essas coisas.
Mas foi bem legal a infância, porque eu tinha bastante amigos e vamos dizer, a comunidade toda sabia um pouco da minha história, o que eu passei, ou a história das minhas irmã. E isso foi bem legal pra mim porque se alguém perguntasse: “Onde é a casa da tia Adriana? ou do Kennedy?”, alguém ia saber, porque eu era bem famoso, porque tinha bastante amigos e as pessoas me conheciam.
P/1 – Você foi para o abrigo com seus irmãos. As suas irmãs, você chegou a vê-las novamente, depois disso?
R – Sim. Às vezes minha mãe levava elas para o abrigo para eu ter a convivência, no modo que elas iam me visitar, isso e aquilo. as vezes eu telefonava pra ela pra saber que eu tava bem. E pra mim, saber que elas estavam bem, então me sentia mais calmo e saber que tem pessoas que amam a gente e nunca vai esquecer da gente, não importa a distância, mas a pessoa vai estar ali te fortalecendo com as orações e com amor que ela te dá.
P/1 – E no abrigo, como era a sua vida?
R – No momento, pra mim era, sei lá, sinistro. Porque eu nem imaginava o que era ______ (o abrigo?) e as pessoas também, pra mim nem no momento não ligava muito pra elas. Até que chegou uma hora que eu comecei a falar mais com as pessoas. E nessa que eu criei algumas intimidade, fui pra aula de dança, que era axé, uul. Aí eu dançava bastante com as meninas, porque eu era o único menino na aula de dança. Aí eu, tipo: “Nossa, todos os meninos me abandonaram”. Aí as meninas pegaram e falou assim “Faça a diferença, mesmo que você seja o único menino ou homem, em um monte de mulheres. Mas faça a diferença.” Aí nisso, eu dançava, isso e aquilo, até apresentava com as meninas. Mas tinha que _________ (descansar?) porque não dava também né. Aí curtia bastante assim no momento com o abrigo. Aí no dia depois que eu cheguei assim no abrigo, eu fui para o zoológico, que foi muito legal que foi a primeira vez que eu fui para um passeio do abrigo. Aí nessa quando a gente chegamos no zoológico, eu fiquei muito emocionado, porque eu tinha visto animais na vida real assim e porque eu nunca tinha visto tipo elefante, só via essas coisas pela TV. Aí nisso, batia algo assim no coração, de animação. Aí, pãã. Aí vi algumas, vi cobra, vi tartaruga, vi várias coisas, assim aí me senti muito emocionado. Curti bastante com meus irmãos e com as pessoas que eu tinha acabado de conhecer e que eu amei. E foi bem legal no dia que fui para o zoológico.
P/1 – E você estava com mais dois irmãos no abrigo?
R – Mais três.
P/1 – E vocês conviviam, ficavam juntos? Porque às vezes eles separam pelas idades. Como que era?
R – No dia que a gente chegamos no abrigo a mulher pegou e falou assim que eu ia ficar separado dos meus irmãos, no momento que eles iam ficar num quarto e eu no outro. Você pensou em outra coisa, né? Aí ela pegou e falou “Hoje você vai poder dormir junto com seus irmãos, porque é a primeira vez e nunca dormiu longe dos seus irmãos”. Nisso eu fiquei bem mais aliviado de saber que eu ia estar junto com meus irmãos. Aí nessa, antes de dormir, o tio Ricardo, que é bem legal, ele fez umas oração com a gente, como a do Santo anjo do Senhor e o Pai Nosso. A gente agradecia pelo que aconteceu no dia e o que pelo que vai acontecer no outro dia, pensando no amanhã. A gente sempre agradecia pelo que temos e o que não temos. A gente se animava e curtia com as pessoas. E às vezes a gente ia pra praia. Até que chegou um dia que fui pra praia com o Guaranis aí eles pegaram e falaram assim: “Hoje é o seu aniversário” Aí eu falei: “Não!”. Aí nisso a gente fomos pra praia, eu não sou nada besta, fui lá, bati um “ranguinho” ali forte e aproveitamos e dançamos Morto Muito Louco, que é um axé que é bem louco. Aí nessa que eu tava aprendendo a dançar com os educadores, me senti bem legal porque tinha as pessoas que era bem legais. E também tinha um dia, que a gente estava fazendo uma festa do travesso. Na festa, as meninas se fantasiava de menino e o menino de menina. Aí nessa, as menina lá do abrigo me arrumou um vestido verde, gente. Verde! E me obrigaram a passar batom vermelho. Aí nessa foi bem legal porque as pessoa se sentia mais solta com as outra e não tinha nenhum preconceito sobre isso. Porque também tinha uma educanda que era travesti. Aí nessa o educador pensou: “Ah não, vou me fantasiar da Naty” porque ela é travesti. Aí eu falei: “Nossa, caramba hein. Está maior Naty”. Aí a gente ficava se alegrando, bebia refrigerante, algumas coisas assim e comia bastante e curtia a noite. Aí no dia seguinte a gente ficava cansado porque comia, corria, dançava demais e se animava com as pessoas.
P/1 – Onde você estava, na casa, vocês continuavam frequentando a escola?
R – Sim.
P/1 – E você chegou a ser adotado por uma família.
R – Sim.
P/1 – Como foi essa experiência?
R – No momento, estava bom. Até que chegou algum dia que eu estava brincando com os menino na escola, de pega-pega. Aí nessa que um dos meninos entrou na porta da minha sala de aula. Eu fui tentar abrir a maçaneta e sem querer eu quebrei o vidro da escola. Aí nessa, fiquei com o coração na mão. Aí veio aquela adrenalina e eu pensei: “Puts, eu vou acabar me ferrando”. Aí nessa eu pulei o portão da escola e fui para o abrigo, porque eu estava assustado, porque nunca tinha acontecido algo do tipo comigo. Aí nessa, a primeira coisa que eu fui pensar foi no meu irmão. Porque ele estaria me acalmando e eu estaria me sentindo mais aliviado. Aí eu perguntei pra tia do abrigo “O Ítalo está aí?” aí ela falou: “Não, está na escola”. Aí eu perguntei “Ele estuda na mesma escola?” aí ela falou “Sim, mas à tarde”. Aí nessa fui para a casa das minhas irmãs, olhei no buraquinho do portão, aí minhas irmãs falou “Quem é o filho da tia que está aí no portão?” Aí abri o portão e saí correndo pra me esconder no “bequinho”. Aí nessa que ela saiu de novo, foi entrar lá em casa, olhei assim no buraquinho, fiquei batendo três vezes no portão. Aí ela começou a xingar, xingar. Porque estava sendo um dia muito louco pra elas e elas não sabiam o que ia acontecer. Aí nessa que eu olhei mais uma vez, uma das minhas irmãs falou assim: “É o Kennedy!”. Aí nessa abri o portão e comecei a abraçar elas. Na verdade, elas que me abraçaram. Elas se sentiram mais aliviadas por eu estar ali do lado delas. Passei alguns dias, não, algumas semanas com elas. Depois, uma semana depois, eu fui na escola do meu irmão pra ver que ele estava lá. E ele estava. A primeira coisa que eu ia fazer é abraçar o meu irmão. Ele perguntou por que eu saí da família, da pessoa. Eu expliquei direitinho pra ele, isso e aquilo. Aí ele perguntou: “Vai algum dia lá no abrigo pra tomar café?” Aí fui lá aproveitei no dia seguinte e fui lá no abrigo Guaranis. Aí as tia lá do abrigo pegou e falou assim: “Por que você fugiu da escola?” Aí respondi, fiz algumas perguntas, aí elas também me atacaram com algumas perguntas. Mas eu tomei um café bem reforçado, me acalmei e comecei a conversar com elas. Aí depois, eu fui pra casa das minhas irmãs e no dia seguinte a tia do abrigo falou: “Por que não volta lá para o abrigo?”. Aí falei: “Até estou pensando, tia, de voltar para o abrigo. Mas estou me sentindo muito arrependido pelo que eu fiz”. Ela disse: “Mas, se a pessoa não conseguir te perdoar, mas peça perdão mesmo assim. Porque a pessoa que não consegue perdoar o próximo, como ela quer que Deus a perdoa?” Aí nessa, me senti muito triste de saber porque a pessoa não pôde me perdoar no momento, porque ela também estava passando pelo momento difícil. Aí nessa eu disse: “Desculpa” mas ela falou: “Eu estou cuidando do seu irmão por você”. Aí nisso, sabe, bateu aquele rancor no coração. Aí tentei conversar com ela, mas ela só foi me responder depois de três anos. Aí fiquei mais (pequena pausa) no coração. Deu aquela, tipo uma raiva no coração. Um aperto. De saber que eu tentei amar a pessoa, mas a pessoa nem quis mais saber assim de mim. Aí fiquei mais angustiado de saber disso. Porque eu tento ajudar a pessoa mas a pessoa não tenta ajudar o próximo, então me senti muito triste de saber disso.
P/1 – Então, voltando... Você estava na casa de acolhimento, uma família adotou você e seu irmão, você foi para a casa dessa família, e aconteceram algumas coisas que você resolveu sair da casa dela. Foi isso?
R – No momento, eu tinha ido para a escola. Aí aconteceu isso.
P/1 – Aí você aproveitou, foi ver suas irmãs, foi ver seu irmão. E você retornou para o abrigo?
R – Sim
P/1 – Aí você voltou para o abrigo, e como foi? Você se interou novamente? O seu irmão ficou nessa casa? Como foi pra ele? Vocês chegaram a conversar sobre isso?
R – Na verdade não. Eu tentei conversar com a pessoa. Se eu conversasse com a pessoa, eu poderia ter o diálogo com a pessoa. Mas na vida real, ver ela pessoalmente. Mas a pessoa não deu bola, então.. Mas sabendo que meu irmão está bem, eu me senti muito mais aliviado. Porque o filho dela, vamos dizer, me ama. Porque eu era uma chata assim, e curtia com ele. Às vezes brincava e isso fazia ele se animar. Às vezes a gente troca uns papos pelo Facebook, e fica dialogando. Pergunto sobre o Vitor, que é meu irmão mais novo, que está com 6 anos no momento. E pergunto se a família dele, em geral, está bem, e ele fala que está bem. Então me sinto mais calmo, de saber.
P/1 – E quanto tempo você ficou junto com ele na casa?
R – Na casa, acho que uns 2 a 3 meses. Aí foi passando um tempo até que aconteceu isso na escola. Algo me fez ter essa reação, de pular o portão da escola e ir para o abrigo. Fui de Guaianazes até a Vila Yolanda, a pé. Nossa, é uma caminhadinha boa. Aí nessa eu nem quis saber de cansar de andar, eu só queria saber de... que meus irmãos estão bem, de saber que algum deles sabe que eu amo eles.. e ah sei lá, o porque eu tinha feito isso, eu dizendo comigo mesmo. Até hoje eu não me entendo.
P/1 – E você acha que isso foi a causa de você sair de lá mesmo, ou você não se adaptou de ficar na casa adotiva?
R – No momento eu não me adaptei. Porque eu não gosto de ser adotado. Jamais que aconteceu as coisas na minha vida, com.. no momento que eu passei com meus pais e eles faleceram. Pra mim foi um momento muito difícil de tentar me adaptar com a família. Já não conseguia direito. Mas eu tento, tento, tento, mas às vezes não dá.
P/1 – E a gente soube que você tem uma madrinha, a dona Perpétua. Como é a relação? Fala pra gente.
R – É bem legal. Às vezes a gente vai para o passeio, às vezes vai pra igreja. E a igreja que eu frequentava foi que eu conheci ela, através de um amigo. Ela falou: “Aceita passar um final de semana na minha chácara? Mas sabendo que sou brava. E sou difícil”. Aí falei: “Não tem problema, difícil ou não, vou estar ali tentando caminhar com você”. Aí ela chegou na Patrícia e perguntou: “O Kennedy pode passar um final de semana na minha casa?” Ela disse que sim, eu também aceitei. Ela falou que eu ia passar o final de semana na casa dela, quando fui ver, “Nossa, passei o dia. Uuuh”. Quando cheguei lá: “Nossa, caramba hein”. Aí, foi bem legal. Ela foi me apresentar a casa. E ela falou: “Pode ficar livre.. pode fazer o que quiser”. Aí ela falou na cozinha: “Sinta-se em casa”. Então.. Isso na cozinha.. Então me senti em casa. Ela falou: “Aceita passar mais um final de semana na minha casa?” Falei: “Lógico”. Ela perguntou: “Quer fazer apadrinhamento afetivo comigo?” Eu disse “Quero”. “Mesmo que as pessoas digam que você é difícil, você não é difícil. A pessoa que é difícil de não entender você”. Fiquei mais aliviado, de saber que ela é uma outra pessoa do que as pessoas falavam dela, à respeito dela. Pra mim, ela é uma pessoa bem legal e não é chata. Só é chata nos momentos bons, que é pra educar as pessoas, dizendo o que é certo e o que é errado. Ela falava isso pra mim, me orientava às vezes. Me chamava pra fazer lição, porque é bom também no momento. E às vezes ficava tão cansado, acordava cedo pra fazer a lição pra ficar com a tarde toda livre. Ela me chamava lá pelas 8 ou 9 horas pra fazer a lição. E se eu não terminasse, ia continuar lá. Se eu fizesse uma palavra errada, ia ter que fazer o texto de novo. Fui batalhando assim com ela até hoje. Ela me passava umas contas também, de matemática. Como eu amo matemática, ela falava “se você errar essa conta, você vai fazê-la dez vezes”. Eu falava: “Nossa, que super legal!”. Ela e o André me disseram: “Se você não conseguir, você tenta de novo. Se não conseguir, tenta de novo... tenta de novo”. Sentia alívio de poder falar com ela sobre qualquer coisa que tivesse acontecido comigo ou que podia acontecer. Ela me perguntava o que eu quero ser quando crescer, e eu respondia: “Bombeiro, porque desde criança eu tinha esse sonho. E ainda tenho”. E nossa, era tão bom quando ela sentava comigo e tinha a maior atenção e um carinho comigo.. Eu já sabia que ia me dar bem com essa família. E saber que ela me ama. No mesmo dia que a conheci, já sabia que ela me amava. Só conversando com ela, no modo de interagir com ela. De conversar, falar.. Às vezes brincar, sendo sarcástico.. Até que hoje tá bem bom de estar com ela, em todos os momentos. Mesmo ruins ou bons, mas a gente está ali batalhando. Ela me disse: “Eu não vou te abandoar, mesmo que seja para onde você for”, no momento que o abrigo seria fechado, as crianças iriam pra cada canto. Pensei: “Diz a Perpétua que nunca vai me abandonar, porque quando ela diz uma coisa, ela cumpre” Então me senti mais calmo de saber que ela me ama e que ela tem um carinho grande comigo ou com qualquer pessoa que apareça na frente dela.
P/1 – E vocês se veem com que frequência? Vocês se veem sempre, de fim de semana?
R – De quinze em quinze dias.
P/1 – E você vai pra casa dela?
R – Sim
P/1 – Eu vi nas fotos que você foi na chácara.. Ela te leva pra chácara dela?
R – Sim, ela me leva pra bastante lugares. Na chácara onde fui pescar, também fui para a cachoeira, e também para o zoológico. No mesmo zoológico que eu tinha ido com o abrigo Guaranis. Nisso me senti mais livre de saber que tem pessoas que amam a pessoa mesmo sabendo a história dela, que não foi boa ou ruim mas a pessoa tenta ajudar a pessoa a mudar. E Isso é o que vejo nela. Uma pessoa que gosta da outra pessoa, mesmo que ela esteja ali no chão ou na maior miséria, mas a Perpétua está ali pra tentar fortalecer a pessoa.
P/1 – E ela tem família?
R – Tem
P/1 – Ela tem filhos?
R – Tem
P/1 – Você conhece?
R – Conheço. Conheço a família dela toda. Tem o André, que é o esposo dela; o Jonatan que é o filho adotivo dela, e o Junior, que é o filho dela.. E também... Ah, se eu contar a família toda dela aí não vai dar muito certo.. Traduzindo, eles são pessoas muito boas de se estar conversando, de curtir com eles. E aproveitar o máximo possível enquanto você tem a pessoa que você ama.
P/1 – E como ficou essa história do abrigo ser fechado? Isso não aconteceu?
R – Não. Eles deram prazo até agosto. Se o abrigo Guaranis tiver a verba até agosto, as crianças não precisariam se mudar. Só mudaria de casa, no momento, que eu a Patrícia e as meninas estamos procurando às vezes. Procurando na verdade, o dia inteiro. Procurar alguma casa com dois a três cômodos, um banheiro, ou dois ou três, e tenha uns quatro quartos, por aí. Um lugar ótimo pra pessoa morar. E até achamos, mas o lugar não é muito bom pra morar. A gente tenta alugar uma casa ou comprar mesmo, mas a gente tenta realmente alugar.
P/1 – E vai todo o pessoal do abrigo ou só vão algumas pessoas?
R – Para a outra casa, estaria todo mundo que está nessa casa agora. Estaríamos aproveitando bastante a outra casa, que a gente ia conseguir, a gente estaria fazendo a mesma coisa do ano passado. Todo mundo estaria fazendo suas tarefas, as pessoas que estão estudando, estariam voltando a estudar; as pessoas que estão fazendo cursos, continuariam mesmo; e as pessoas que, como eu, está procurando emprego, iria continuar lutando. E ainda vou estar, né. E estaríamos fazendo as mesmas tarefas de sempre. Estaríamos batalhando as mesmas batalhas
P/1 – Você está com 16 anos. Você vai fazer 17...
R – Sim, vou fazer 17 em setembro.
P/1 – E como é, você pode ficar no abrigo até...?
R – Até os 18 anos.
P/1 – E você pensa em fazer alguma coisa? Você tem alguma expectativa do que você vai poder fazer? Vai estudar, tem uma profissão em mente?
R – Na verdade estou pretendendo terminar os estudos e também trabalhar. Em área de beleza, em corte, em salão. Ou qualquer vaga de emprego, pra mim está ótimo. Que desse pra ir todos os dias e que esteja perto de onde eu for morar e de onde eu for estudar.
P/1 – A dona Perpétua continua com você, independente de você.. Ela sabe dos seus planos, ela te dá algum conselho, te ajuda em alguma coisa em relação a quando você for maior de idade...Vocês falam sobre isso?
R – Sim, a gente fala. Ela fala às vezes: “Se de repente você não conseguir alugar uma casa, você pode contar comigo que eu vou te ajudar. Você pode morar de aluguel ou pode morar com a gente.” Me senti bem contente de saber disso porque... Ela é um amor de pessoa. E de saber que ela ama.. me ama. De saber que eu posso contar com ela em cada momento da vida e que ela pode contar comigo em cada momento que eu puder ajudar.
P/1 – Você quer falar mais alguma coisa pra gente, que você acha que é legal?
R – Não. No momento, não.
P/2 – Você ainda quer ser bombeiro?
R – Ah sim, quero!
P/1 – Então é isso, Kennedy. Muito legal. Muito obrigada por você ter vindo. Pra nós foi uma experiência muito boa. Depois você vai receber o DVD
com a sua história. Vai ficar a sua história com você e vai ficar uma história sua aqui. Vai ser uma parte do museu, é uma história importante e vai ficar aqui guardada. Então foi muito bom você ter vindo, está registrada a sua história de vida
R – Obrigado.
P/1 – Sucesso pra você, que você tenha muita saúde, muita força, que é disso que você precisa. E você tem.
R – Sim.
FINAL DA ENTREVISTA.
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