Programa Conte Sua História – 20 Anos do Museu da Pessoa no Brasil
Depoimento de Ana Maria de Magalhães Corrêa
Entrevistada por Tiago Majolo
São Paulo, 5 de julho de 2012
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PCSH_HV352
Transcrito por Francisco Guilherme Ribeiro Ruiz
Revisado por Teresa de Carvalho Magalhães
P/1 – A gente começa perguntando o nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Está bom.
P/1 – Pode falar.
R – O meu nome completo é Ana Maria de Magalhães Corrêa. Eu nasci no dia 27 de julho de 1947. Às 3h15 da manhã. Quebrou o sete.
P/1 – Em São Paulo?
R – Na cidade de São Paulo, estado de São Paulo, no Brasil. Mas eu fui gestada em Minas Gerais. O meu pai é do sul de Minas, e eu estava em Guaxupé, quer dizer, eu não, meus pais estavam em Guaxupé quando eu fui concebida. Mas no oitavo mês de gravidez a minha mãe veio para São Paulo para eu ser paulistana, paulista.
P/1 – Fala um pouquinho dos seus pais, os nomes deles, o que é que eles faziam?
R – Nessa ocasião, o meu pai era uma pessoa que fez, atuou em muitas atividades durante e ao longo da vida dele. Ele vem de uma família de médicos, e ele fez até o segundo ano de medicina, mas largou e se formou farmacêutico. Teve farmácia aqui em Pinheiros, no bairro de Pinheiros em São Paulo e era tudo manipulado antes da guerra, isso era 1945 ou 1946. Quando eu nasci, a importação de produtos farmacêuticos tinha cessado por causa do pós-guerra, então ele foi à falência. E daí para frente ele fez muitas coisas. Em 1947 quando eu fui gestada, eles estavam em Guaxupé no sul de Minas Gerais, porque meu pai tinha comprado uma fábrica de móveis porque ele adorava fazer móveis. Ele adorava marcenaria. Então ele tinha comprado uma fábrica de móveis lá em Minas Gerais, que também não deu certo porque foi roubado. Quando ele abriu as caixas da mudança dele só tinham pedras dentro. Então a gente acha que os golpes são coisas muito novas,...
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Depoimento de Ana Maria de Magalhães Corrêa
Entrevistada por Tiago Majolo
São Paulo, 5 de julho de 2012
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PCSH_HV352
Transcrito por Francisco Guilherme Ribeiro Ruiz
Revisado por Teresa de Carvalho Magalhães
P/1 – A gente começa perguntando o nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Está bom.
P/1 – Pode falar.
R – O meu nome completo é Ana Maria de Magalhães Corrêa. Eu nasci no dia 27 de julho de 1947. Às 3h15 da manhã. Quebrou o sete.
P/1 – Em São Paulo?
R – Na cidade de São Paulo, estado de São Paulo, no Brasil. Mas eu fui gestada em Minas Gerais. O meu pai é do sul de Minas, e eu estava em Guaxupé, quer dizer, eu não, meus pais estavam em Guaxupé quando eu fui concebida. Mas no oitavo mês de gravidez a minha mãe veio para São Paulo para eu ser paulistana, paulista.
P/1 – Fala um pouquinho dos seus pais, os nomes deles, o que é que eles faziam?
R – Nessa ocasião, o meu pai era uma pessoa que fez, atuou em muitas atividades durante e ao longo da vida dele. Ele vem de uma família de médicos, e ele fez até o segundo ano de medicina, mas largou e se formou farmacêutico. Teve farmácia aqui em Pinheiros, no bairro de Pinheiros em São Paulo e era tudo manipulado antes da guerra, isso era 1945 ou 1946. Quando eu nasci, a importação de produtos farmacêuticos tinha cessado por causa do pós-guerra, então ele foi à falência. E daí para frente ele fez muitas coisas. Em 1947 quando eu fui gestada, eles estavam em Guaxupé no sul de Minas Gerais, porque meu pai tinha comprado uma fábrica de móveis porque ele adorava fazer móveis. Ele adorava marcenaria. Então ele tinha comprado uma fábrica de móveis lá em Minas Gerais, que também não deu certo porque foi roubado. Quando ele abriu as caixas da mudança dele só tinham pedras dentro. Então a gente acha que os golpes são coisas muito novas, dessa época, mas sempre houve. Só que como tinha uma escala menor de população também, e não se divulgava tanto. A mídia não era tão rápida, sabia-se menos dos golpes e das agressões. Mas foi um funcionário dele que foi tirando as coisas de dentro dos baús e pondo pedras. Aí quando eles conseguiram uma casa, porque era difícil arrumar casa e tal, resolveram que eu ia nascer em São Paulo, vieram para cá. Mesmo porque o meu avô, pai do pai era médico, tinha sido parteiro da minha mãe, minha mãe nasceu na mão do sogro dela. Minha mãe se chamava, se chama ainda, porque meu pai já foi, mas mamãe, meu pai já morreu, minha mãe é viva. Minha mãe se chama Ilca, e minha mãe era professora primária na época. Eles foram amigos de família. As famílias eram… A família da minha mãe era de professores e a do meu pai, meu avô era médico e minha avó era sinhazinha. E a família do papai vinha de fazendeiros que acabaram vendendo tudo para vir para São Paulo. Meu avô se formou no Rio de Janeiro como médico e o irmão dele também era médico, se formou no Rio de Janeiro. Vários irmãos da mãe do meu pai eram médicos, todos formados no Rio de Janeiro. Minas Gerais se comunicava mais com o Rio do que com São Paulo. Aí de repente trouxeram o meu pai para fazer faculdade de medicina aqui em São Paulo, aqui na USP. Aí eu vim nascer aqui em São Paulo. Fiquei um pouquinho aqui, voltei para Minas Gerais, para Guaxupé. Ainda fiquei mais um ano em Guaxupé. E por incrível que pareça, eu tenho algumas pequenas memórias desse tempo. Meu trauma com cachorro, por exemplo. Morro de medo de cães. Eu já fiz até tratamento, mas ainda tenho. Agora já tenho uns amigos cães, no começo era mais difícil. Quando criança era um pavor. Aí eu apavorava, o bicho achava que eu ia atacar, me atacava primeiro. Já fui muito mordida por cães. Mas eu lembro de uma pracinha, eu lembro de eu sentada e lembro de um monstro de um cachorro peludo que provavelmente veio brincar comigo porque eu devia ser uma gracinha, o cão também. E aí veio acho que brincar e me derrubou. E o que eu lembro? Tinha umas bolinhas de frutinhos de árvore que o sol batia e era uma coisa que brilhava muito. Parecia dourado. E essa lembrança meu pai me falava que eram árvores da Praça de Guaxupé, que eu nunca mais voltei, não conheço, não sei como é que é, mas disse que era uma árvore que tinha na praça que derrubava esses frutinhos. Então eu lembro disso. A minha primeira memória assim que eu tenho é traumática. É o cão me sufocando em cima de mim, aquele monstro, isso eu lembro, acho que é das primeiras memórias que eu tenho conscientes.
P/1 – E quem te salvou do cão?
R – Eu não sei. Eu não lembro do salvamento. Eu acho que eu fiquei em um estado de choque por alguns momentos. Eu não lembro quem me tirou. Mas eu tinha uma babá que o meu pai disse que provavelmente deva ter sido a babá. Porque eu ia com a babá nessa pracinha.
P/1 – E seus pais vieram para São Paulo, aí tiveram você e voltaram para Guaxupé?
R – Voltamos para Guaxupé e ficamos mais um ano lá. Aí voltamos para São Paulo, e aí meu pai teve muitas atividades. Nunca teve uma coisa muito estável. Era sempre um movimento de subida e descida econômica. Épocas muito bem de vida, épocas de muita restrição. Lembro-me da minha mãe sempre sofrendo muito de ter que me deixar e deixar minha irmã, (eu tenho uma irmã, a Vera, que é quatro anos mais velha do que eu), nas mãos de empregadas domésticas para poderem ir trabalhar, porque a minha mãe foi trabalhar fora aqui em São Paulo para ajudar o meu pai. Porque depois que a gente voltou era assim sempre um sobe e desce, nunca mais teve nada muito fixo.
P/1 – Ela foi dar aula?
R – Não, ela virou funcionária pública do Estado. Ela era escriturária do Estado. E por sinal que era uma coisa assim bem sacrificada, porque naquele tempo não tinham quase máquinas. Ela fazia contabilidade do sistema de saúde psiquiátrico de São Paulo, dos hospitais. Do Juqueri, dos hospitais psiquiátricos. E eu lembro que eu ia lá na repartição pública quando pequenininha e era uma máquina de somar que puxava uma alavanca o tempo inteiro, pá, pá, pá, pá e minha mãe é cega de um olho desde de mocinha. Ela teve toxoplasmose e ficou cega de um olho.
P/1 – Aqui em São Paulo?
R – Interior de São Paulo. A minha mãe nasceu no interior de São Paulo. Minha mãe nasceu em Altinópolis. Mas os professores naquele tempo também faziam carreira mudando de cidade, igual aos médicos. Então morou em vários lugares. Acabou que ela se fixou quando mocinha e se formou professora em Santos. Foi o lugar que eles moraram mais. Quando ela se casou com o meu pai eles, a família da minha mãe morava em Santos.
P/1 – E o seu pai também porque eles eram amigos?
R – Eles eram amigos, mas do interior. Eles moraram juntos, não sei se em Altinópolis, Olímpia. Mas eles se visitavam, passavam férias juntos. Então na família da minha mãe, a minha mãe tinha dois irmãos. Na família do meu pai, o meu pai tinha duas irmãs. Então eram três casais. E eles passavam um tempo das férias em Santos, um tempo das férias em São Paulo, porque o meu avô veio para São Paulo para o meu pai estudar em São Paulo na faculdade. Então era uma troca, um tempo em Santos, um tempo em São Paulo nas férias e as famílias unidíssimas. Minha mãe teve outros namorados, o meu pai teve outras namoradas que eles me contam. Meu pai me contava. O papai já morreu. Mas um dia descobriram que foram feitos um para o outro. E foram um casal muito feliz, porque nunca teve assim uma discórdia deles, embora fossem opostamente na manifestação de gênio e de tudo, eles eram opostos.
P/1 – Como é que eles eram? Conta um pouquinho.
R – O meu pai uma pessoa extremamente extrovertida. Um leonino. Extrovertido de fazer amizades, de conversar com todo mundo, de entrar no botequim e ficar amigo de todo mundo no balcão. E a minha mãe uma pessoa absolutamente retraída, minha mãe viveu para o meu pai. Até eu acho que eu e minha irmã ela fez para o meu pai, não foi para ela. A minha mãe foi trabalhar fora não para satisfação própria, para a realização da pessoa dela, mas porque o meu pai precisava de ajuda. Profissionalmente ela foi se fazendo para ajudar o papai. Então ela foi mulher do meu pai, e o meu pai foi o homem da minha mãe a vida inteira. Eles eram extremamente unidos nesse sentido de companheirismo. E o meu pai era um cigano, o meu pai era um cigano. O meu pai conseguiu, apesar de toda a dificuldade econômica de classe média que nós tivemos, porque a família do meu pai era melhor de vida. Os meus primos estudavam em colégios caros de São Paulo, e eu fui para o estadual, eu estudei em colégio estadual. O primário eu fiz em colégio de freira, mas depois para minha sorte eu escolhi de ajudar na economia e fui para o estadual e fiz ginásio numa escola experimental no bairro de Pinheiros.
P/1 – Os seus avós moravam em São Paulo?
R – Os meus avós paternos vieram primeiro, depois que a minha mãe casou, que teve filhos bá, bá, bá, meus avós maternos também vieram para São Paulo.
P/1 – Ah então tinha contato bastante, assim?
R – Moramos todos perto no bairro de Pinheiros, vida familiar forte.
P/1 – Me conta um pouco dessa casa, conta um pouco como era a rua.
R – Eu morei a maior parte do tempo, nós tivemos uma mudança que passamos alguns anos, poucos anos, dois, três anos em outra casa. Mas a casa da minha infância era na Rua Cônego Eugênio de Leite, em Pinheiros, entre a Rua Arthur de Azevedo e Rua dos Pinheiros. Eram duas casas geminadas, dois sobrados grandes, sobrados de três quartos, que tinham um quintal imenso que tinha sido um loteamento popular ali, e meu avô preservou as casinhas no quintal das nossas casas. Tinham casinhas que tinham sido casas originais do loteamento popular que tinha sido ali. Eu tinha um poço que metade ficava no muro para a minha casa, metade do poço ficava no muro para a casa vizinha que era da minha tia, mas que a minha tia já não morava lá, já alugava. E o poço fechado. Tem uma história muito difícil, com essa história desse poço que depois se der tempo eu vou contar. Mas nesta época que eu tinha o quê, uns seis, sete anos, minha lembrança maior de Pinheiros era esquina da Rua Fradique Coutinho com a Rua Arthur de Azevedo, tinha um riachinho, e a criançada de rua tomava banho ali. Nadavam, pulavam, dali. Vila Madalena ainda não existia. Tinham poucas passagens de Pinheiros para os morros do lado de lá. Tinha que se dar uma volta imensa que eu era criança, nem sei por onde é que se dava a volta para chegar naqueles morros, que era um bairro operário ali atrás. Aí eu fui vendo abrir essas ruas e comunicar. E tinha muitas crianças que vinham de lá daqueles morros e tomavam banho ali. Eu morria de vontade. E o meu avô médico não deixava porque tinha caramujos e já tinha esquistossomose. Então eu ficava ali babando, olhando. Outra lembrança forte dos seis, sete anos nessa mesma região ali na Fradique e tal, era o Faquir. Foi o meu ídolo. Meu ídolo em vez de ser o Batman. Que já tinha Batman, tinha o Fantasma naquele tempo em gibi e tal, o Tintin. Meu ídolo era o Faquir que era ao vivo e a cores. Era um homúnculo. Assim com as perninhas magricelas, os bracinhos magrelos. Usava turbante, a fisionomia dele, lembro muito, eu lembro que ele tinha olheiras, acho que ele parecia um pouco indiano assim, tinha um nariz que me chamava a atenção, mas ele era magérrimo e o meu avô era o médico do Faquir, meu avô paterno médico. Era o médico do Faquir. Então o Faquir se enterrava ali na Fradique Coutinho, na Rua Fradique Coutinho, ele se enterrava num buraco ali na rua, e o meu avô ficava auscultando ali. Ele ficava, não lembro quantos dias, mas eu lembro que era mais de uma noite ele lá dentro do buraco, e o meu avô auscultando pela tampa. Aí tinha o desenterramento do Faquir que era um show, e que eu não perdia por nada. E às vezes era tarde da noite, tinha a dificuldade dos meus pais levar, mas eu ficava desesperada. E tinha uma caminha de pregos que ele saia do buraco e deitava na caminha de pregos. E a minha fantasia era aquela caminha de pregos. Porque não dava, eu tentava sentar na caminha de pregos, mas eu não tinha a leveza que precisava, apesar de ser magrinha, eu fui muito miudinha também, mas era o meu sonho ser faquir. Eu não lembro como foi que o faquir desapareceu da minha vida, eu não lembro. Sou triste de não lembrar, e os meus avós já não vivem mais para eu perguntar do Faquir. Mas é uma lembrança muito forte que Pinheiros tinha um faquir.
P/1 – E o rio?
R – E o riozinho aí não demorou muito, eu já devia ter o quê já uns 12, 13 anos fecharam. E começaram a abrir as ruas, começaram a abrir a Fradique Coutinho lá para cima, para a Vila Madalena e fecharam o rio. Mas nós temos muita água aqui por baixo, passa muita água aí por baixo da Arthur de Azevedo por aí. Por isso que inunda de vez em quando. Que entope bueiro e inunda. Porque tem muita água aí por baixo, porque é bracinho do rio Pinheiros que passa por aí.
P/1 – No rio Pinheiros vocês não iam não?
R – Ah, já era poluidíssimo. O meu pai tem foto no Tietê, que ele remava no rio Tietê e nadava, e era no rio Tiete mesmo. O Clube Tietê era na barranca do rio Tietê. O meu pai tem foto no rio Tietê no tempo em que não era poluído, mas ele era jovem, ele ainda não me tinha.
P/1 – Essa família é bem brasileira, porque seus avós são daqui?
R – É e olha, a minha mãe, a minha avó materna era uma pessoa muito problemática. Ela era muito branca de pele, um dos filhos dela, o meu tio irmão da minha mãe mais novo era bem loiro de olho azul. O tio do meio, que a mamãe é a mais velha, o tio do meio era bem moreno, e a minha mãe média, nem loira nem morena. Mas a minha avó era filha de português mesmo, meu bisavô era português, com índia. Com cabocla. Porque na verdade a mãe da minha bisavó era indígena, e minha avó nasceu em uma aldeia perto de Jundiaí, chamada Rocinha, que foi incorporada em Jundiaí depois. Mas a minha avó tinha um problema sério, porque se a gente a chamasse de portuguesa, quando meu avô estava com raiva e brigava com ela, chamava de portuguesa como se estivesse xingando, porque ela se ofendia. Mas se chamasse de índia, piorava bem. Então era bem complicado, porque ela não era nem índia mais, e nem portuguesa mais. Então tinha um conflito aí que eu nasci um pouco com esse conflito de quem eu sou. Porque não era mais isso nem aquilo. Essa minha avó quando estava para morrer, que eu já era adulta, e já estava começando a ingressar com xamanismo, já estava infiltrada, já fazia umas incursões no meio da mata para meditar, para me purificar em cachoeira. Ela foi tendo derrames e não morria. E aí um dia eu fui lá e resolvi falar sério com ela na cama dela. De falar vó, entrega, pede para Jesus, você é tão religiosa. Pede para Jesus te dar a mão e te dar coragem de ir para um lugar melhor que você possa ser ativa outra vez. Ela começou a chorar e falou para mim que ela tinha muito medo de morrer. Eu falei “Como medo de morrer? E a religião, e a fita roxa que carregava andor na procissão a vida inteira?” E aí ela falou para mim “Ah, quando a gente veio para São Paulo, que a gente veio de Santos, a gente não conhecia ninguém, onde a gente ia para conhecer as pessoas? Na Igreja. Pertencia à irmandade para poder ter vida social.” Aquilo me pegou bem, bem fundo no questionamento meu com a minha religião. Eu obtive um questionamento muito forte nessa época do tipo: e eu, onde está a minha fé? Onde está a minha religião de verdade, que nasci numa Igreja católica e de repente fui excomungada mesmo não tendo uma cerimônia de excomungação, eu fui excomungada porque eu comecei a jogar tarô com 14 anos de idade, eu comecei a me interessar pelas outras religiões, e comecei a ficar curiosa e a entrar nas outras religiões para saber como é que era. E aí fui para o africanismo, fui para o espiritismo, depois com 20 anos eu fui filha de santo de umbanda, e fui né, e hoje eu sou uma pessoa que eu não gosto muito de Igreja, apesar de eu às vezes entrar em Igrejas católicas, apostólica romana, para meditar lá dentro. Porque em geral a construção arquitetônica das Igrejas católicas, quando não tem muita gente lá dentro, elas são muito interessantes para a gente esvaziar um pouco o ritmo do pergunta e responda da cabeça. De entrar em estado alterado de consciência. Lá dentro é bem gostoso. E ainda faço um pouquinho de sacrifício em função de que a minha mãe está com 93 anos e gosta de ir à missa. Vive me pedindo para ir à missa. Então eu quando posso levo a minha mãe a missa, e fico lá meditando, enquanto o padre fica falando na maior parte das vezes qualquer coisa para aquele público tão carente de fé.
P/1 – Mas como é que era na sua infância, vocês frequentavam a Igreja, a procissão, como é que era?
R – Tudo. Ia para a procissão. Seguia a procissão. A Igreja do Calvário era muito ativa. Depois tinha a Nossa Senhora dos Passos, que é mais nova do que a do Calvário ali na Praça Portugal, e a minha avó era congregada de lá. E a gente ia, eu adorava ir na procissão, eu adorava ver a Verônica cantar, eu tinha um pouco de fantasia, mas eu não tinha essa voz de sei lá o que, eu sou contralto, eu sou, tenho uma voz rouca. A Verônica era uma soprano que cantava. Mas eu frequentava muito a Igreja e eu fui da Cruzada Eucarística Nacional. Eu fui presidente da Cruzada Eucarística em São Paulo. Eu estudei em colégio de freira quando criança, aqui no Educandário Santa Maria que existe até hoje, só que agora chama Santa Luzia, e de freiras passionistas, que elas eram missionárias. Eu trabalhei para as missões. Usei aquelas faixas amarelas até não caber mais estrela. Eu sou leonina. Eu fui coroinha. Adorava aquela capinha com aquele frufruzinho assim, carmim e sino balalém, belém, belém, belém, e ajudava na missa. Comia hóstia, porque ajudava a fazer as hóstias. Uma delícia aquilo. Comia hóstia. Às vezes ficavam bravas comigo porque eu comia bastante, e adorava hóstia, e gostava do vinho do padre também. Eu arrumava, eu fazia questão de arrumar a sacristia. Porque aí tinha que pôr o vinho para ele e tal, e dava uns golinhos. Por falar em vinho, tem outra memória muito interessante de vinho. Meu pai tinha um monte de calicezinhos de vários tamanhos. Um era para licor, o outro era para vinho do porto, outro para vinho branco, outro era né, as famílias geralmente tinham conjunto de cristais e tal, vidros lapidados. E desde pequenininha, nós lá em casa tínhamos o nosso calicezinho para o vinho. Na minha casa o meu pai tinha o hábito do vinho nas refeições. Então eu digo, eu hoje em dia eu acho que eu sou meio viciada em vinho, porque eu tomo todo dia até hoje, porque eu fui criada. Então com sete anos de idade era um calicezinho assim que eu ganhei. Aí o calicezinho foi crescendo, de acordo com a idade mudava o calicezinho, e ia ganhando um cálice até ficar adulta e ganhar o cálice de adulto. Então era um ritual para mim aquilo. Era uma coisa bem religiosa também. Eu lembrei disso porque nós estávamos falando de religião e isso para mim era uma coisa religiosa. Era um cerimonial para mim. Esperar a possibilidade de conquistar um calicezinho um pouquinho maior de vinho para aumentar a dose.
P/1 – Pensando nisso eu lembrei, como é que eram as comidas na sua casa, tinha alguma origem?
R – Não, não. A minha avó por parte de pai era quituteira. Cozinhava muito bem, era uma mineira de mão cheia. Claro que tinha empregada, porque eles eram bem classe média. A família do papai tinha empregados e tudo para ajudar, mas a quituteira, a banqueteira, era a minha avó. E a minha avó tinha uma facilidade muito grande de aprender e tinha uma curiosidade da cozinha brasileira. A minha avó fazia um vatapá que vinha a família inteira babando para comer quando tinha vatapá na casa dela, porque os baianos às vezes falaram que o vatapá dela era melhor do que o vatapá da Bahia. Então na minha casa era assim: café da manhã, café com leite, pão, manteiga, queijo e mais tarde entrou o suco de laranja, o suco de fruta. Mas no começo era café com leite, pão, manteiga, queijo e geleia. A minha avó também fazia muito geleias muito boas. E a primeira refeição, o almoço, tinha sempre uma salada mista, tinha arroz e feijão, carne, ovos, uma massa, que era uma torta, faziam empadões, e cuscuz, cuscuz paulista. Na minha casa tinha muito cuscuz paulista. Minha mãe não era muito boa de cozinha. Ela fazia alguns poucos bons pratos. O cuscuz paulista era um deles. Nós sempre tivemos empregada. Eu até os meus, acho que 15, 16 anos, a empregada lá de casa tinha sido babá do meu pai. Então também era mineira, e também era cozinheira da casa porque foi a minha avó que ensinou. Agora do lado da minha mãe era um desastre a comida. Mas eu gostava também porque o meu avô comia muito queijo, e eu era louca por queijo. Só que eu era alérgica. Eles comiam queijo provolone, parmesão. Eu tinha feridas na boca porque eu tinha alergia da gordura. Desde nenenzinha. Eu precisei de uma vaca especial para mamar. Porque o leite, minha mãe não tinha leite suficiente eles foram buscar leite para mim, tudo me dava urticária. Aí meu pai encontrou uma vaca em um convento das freiras, isso é lá em Guaxupé, que tinha um leite que não me dava. Então o coitado do pai tinha que ir de manhã cedo lá na hora da ordenha da tal da vaca. Que devia ser mais magra, coitada, devia ser mais anêmica, sei lá qual era o problema da vaca que o leite dela não me fazia mal. Então eu tinha uma vaca sagrada. Era só minha aquela vaca. As freiras guardavam a vaca para o meu leitinho. Então eu fui meio problemátiquinha assim com as coisas do planeta Terra desde criancinha. Eu com seis meses de idade tive duas vezes broncopneumonia, quase morri. Com seis anos de idade eu tive pus na pleura do pulmão, quase morri.
P/1 – O que é que é isso?
R – Pus na pleura do pulmão. A pleura do pulmão é aquela membrana que envolve o pulmão. Eu tive pleurite. Eu tive infecção purulenta no pulmão.
P/1 – Mas você lembra que aos seis anos de idade como é que foi?
R – Eu perdi escola, porque eu era precoce. Eu já estava no primário, eu já estava no primeiro ano primário com seis anos, eu perdi quer dizer, na verdade eu perdi mas depois eu peguei de novo, porque eu fiquei um ano em casa e atrasei só seis meses na verdade, porque eu faço aniversário no meio do ano em julho. Mas eu tive que ficar em casa.
P/1 – Como é que eram os sintomas, o que é que você sentia?
R – Os sintomas que eu sentia, eu tinha febre altíssima e não respirava direito. Como eu já tinha tido muito problema de pulmão, o meu avô era o meu médico, mas eu tive muita doencinha quando eu era criança. Depois disso eu tive aftose. Falta de vitamina que dava aftas na língua inteira que eu não podia comer. E aí, você teve? Então, era uma tortura, porque o meu avô ia lá e batia no liquidificador todas as gororobas vitamínicas: couve, rabanete, nabo, cenoura, beterraba. Batia tudo aquilo e enfiava goela abaixo o líquido para poder fortificar. Hoje em dia eu penso que era uma linguagem feroz que eu não tinha como me expressar pelo idioma e que eu tentava mostrar para aquelas pessoinhas que estavam fazendo tudo errado comigo, entende. Tudo errado. Eu queria ficar lá fora, eu não suportava sapato, eles me punham sapato, eu cortava com gilete o sapato. Minha ancestralidade indígena era muito forte provavelmente.
P/1 – E a sua irmã não?
R – Era cigana também, mas...
P/1 – A sua irmã era diferente?
R – A minha irmã completamente diferente. A minha irmã não tem nem cárie até hoje. Ela é mais velha do que eu e não teve nem cárie. Eu perdi os dentes muito cedo. Eu tenho um implante de titânio nos meus dentes. Mas também porque eu caí de uma escada de cima para baixo, eu tinha o quê, 18 anos. Eu caí e quebrei a cara lá embaixo. E aí como não quebrou dente, não examinaram, mas ficaram coágulos. Esses coágulos reabsorveram as minhas raízes. Mas cárie, eu tive. A primeira dentição foi zapt-zupt, eu nem vi nascer já estava perdendo. E eu acho que era uma coisa de linguagem. Porque na verdade eu caía mas eu levantava. Eu estou com 65 anos. Eu tenho saúde boa mesmo toda enguiçada, porque ficam sequelas. Essa história de que cai, quebra, machuca, ficam sequelas. Mas eu até hoje tenho dificuldades de defesa orgânica. Eu preciso me cuidar muito para não pegar nenhuma infecção nem nada, porque eu tenho uma facilidade muito grande para deixar o processo tomar conta. E a ciência até hoje não achou o porquê dessa minha fragilidade.
P/1 – Agora, só para entender então um pouquinho, como é que eram as brincadeiras, as coisa, para entender um pouco mais o cotidiano que você fala, que te aprisionava um pouco?
R – Então, eu por exemplo, eu já tinha uma tendência muito de eremita. Eu já, primeiro porque eu fui muito rejeitada pela irmã quatro anos mais velha do que eu, que não queria carregar a pirralha junto. Então ela me enganava muito, ela me tirava do meu banho para tomar banho primeiro, para sair correndo para rua e sumir com a molecada e eu sobrar. Então eu já tive essa tendência de sair lá fora na rua na hora da brincadeira no final dia depois da escola, das crianças, e não encontrar ninguém. Então eu comecei a desenvolver muito assim: eu sentava na mureta na rua em noite de lua, e tomava banho de lua para ficar mais bonita, por quê? A minha família dizia que eu era muito feia. Que eu magra, eu era esquelética, eu era raquítica, eu não tinha dente. Porque eu perdi muito cedo os dentinhos, então eu não tinha dentinhos. E eu comecei muito a minha imaginação, a ter amigos invisíveis. Eu tive muitos amigos invisíveis. Aí eu tinha loucura por subir no telhado. Meu pai me ensinou a subir no forro da casa e sair no telhado. Do telhado eu observava a vizinhança inteira. Eu com seis anos de idade eu tinha uma fantasia do deserto que era uma coisa que me perseguia. E de egípcios, e de palmeiras. Aí o meu pai mandou vir um caminhão de areia, cercou o mamoeiro, e eu tive uma duna. A minha palmeira era o mamoeiro que uma vez caiu um mamão na minha cabeça e acabou com a minha fantasia. Porque aí eu percebi que não era bem uma palmeira que tinha lá, era um mamoeiro. Mas eu gostava de trepar em árvores, de ficar olhando de cima para baixo. Então eu já tinha uma coisa meio reclusa de mim comigo mesmo. Mas brincava também com a criançada de mãe da rua, no meio da rua. Passava ônibus na Rua Cônego Eugênio Leite no bairro de Pinheiros. Mas ele parava na porta da minha casa, era um ônibus que ia para o Anhangabaú e para o Largo de Pinheiros. E ele parava na porta da minha casa porque ele namorava a empregada lá de casa, e ela fazia café. E quando muito tinha um, dois passageiros, estava cheio o ônibus. Quando tinham dois passageiros. Todo mundo descia na porta da minha casa e tomava café. Aquilo para mim era uma coisa divertidíssima. A hora do cafezinho. No fim do dia o ônibus para, desce o motorista, e descem os passageiros para tomar café. Ela esperava com o cafezinho lá. São coisas assim interessantes que eu lembro, porque não é, eu estou viva ainda, e isso é muito distante na verdade do que é hoje. A máquina, a engrenagem da máquina que é hoje o sistema. O trânsito, imagina. Eu tinhas seis, sete anos. Sessenta anos atrás não é tanto para uma humanidade que já está sei lá com quantos milhões de anos. Mas, então, eu brincava também. A gente brincava de queimada, de estátua, e brincava de roda também. Brinquei bastante de roda. De lenço atrás. Brincava também com outros. Mas o meu universo era muito restrito. Eu não contava para as pessoas dos meus amigos invisíveis, que eu conversava, eu tinha diálogos, até grandinha já. Eu tinha uns dezessete anos eu ainda tinha amigo invisível.
P/1 – E para a escola isso foi um problema ou não?
R – Olha, para a escola não. Porque na escola eu me envolvi com religião. Então esse lado meu leonino, teatral, eu realizava assim, eu era, mas que tinha sempre uma individualidade que eu era o coroinha. Então eu não precisava ficar com as outras crianças porque eu ficava em destaque ali no altar, porque eu era coroinha. E eu tive uma vontade muito grande de cantar no coro da escola. Mas só candidata a freira cantava no coro. Então eu me lembro com sete, oito anos de idade eu rezando no pé da Nossa Senhora, pedindo vocação para ser freira para cantar no coro. Eu era meio burrinha, mas fazer o quê.
P/1 – Esse era o colégio de freira ainda?
R – No colégio de freira. Eu estudei em colégio de freira até o quarto ano primário. Porque no meu tempo tinham quatro anos primários depois eu fiz quinto ano porque eu era doentinha, eu queria ir para o estadual, e prestei, naquele tempo tinha um exame de admissão ao ginásio, que era um vestibularzinho que a gente fazia porque eu vinha do colégio de freira e o estadual era muito mais puxado. Então eu fiz quinto ano no próprio grupo escolar Godofredo Furtado que era do Estado e tinha quinto ano que era um preparatório para você ir para o ginásio. E aí eu fiz o ginásio no prédio do grupo escolar, mas era uma escola experimental que chamava Cerqueira César. Não, chamava professor Antônio Alves Cruz.
P/1 – A mesma Alves Cruz ainda?
R – É o mesmo, só que naquele tempo era experimental, a gente ocupava das três da tarde às sete da noite as salas do Godofredo, porque era uma escola ainda experimental. O que é que era experimental? Os métodos, a pedagogia que nós aí começamos a trabalhar em grupo. Foi o começo do trabalho de grupo. Que a gente juntava quatro, cinco pessoas para fazer os trabalhos, então a gente se reunia, começamos a trabalhar em conjunto. Então eu fiz o ginásio lá, e aí depois eu me enrosquei. Porque eu era muito artista. Com nove anos de idade eu ganhei bolsa de estudos de dança, de balé, porque a mãe não deixava eu estudar balé, porque era profissão de prostituta. E aí a minha mãe quando criança quis tocar violão, o avô não deixou, o pai dela, porque era profissão de pedinte. Era instrumento, era coisa de pedinte. Então o que é que a minha mãe fez? Me pôs no violão, fazia o maior sacrifício para pagar aula de violão. E eu ia lá e fazia a aula de violão. Só que eu me enganava e enganava todo mundo. Porque todo mundo achava que eu estava estudando violão clássico, que eu lia partitura, que eu tocava. Só que quando eu errava, eu tinha que começar tudo de novo. Porque eu não sabia onde eu estava, eu não sabia ler partitura. E todo mundo acreditando e eu também que eu tocava, por música. Mas aí o que é que eu fazia? Eu saía da aula de violão e ficava grudada, era tudo envidraçada a sala de balé. Eu ficava grudada babando no vidro da sala de balé, vendo as menininhas lá: demi plié, estica, relevè e desce. E eu do lado de fora: demi plié, estica, relevè e desce. E aí a dona do estabelecimento, a Joana Jardim, era aqui em Pinheiros também a escola da Joana. A Joaninha me sacou, e foi lá, e conversou, e eu contei para ela que a mãe não deixava porque era coisa de prostituta ser bailarina. Ah é. Me deu bolsa de estudo, eu saía do violão e entrava na sala do balé. E a minha mãe teve que acabar, coitada, bordando fantasia, porque eu não tinha dinheiro para comprar, bordando fantasia com lantejoula, porque eu pagava a minha bolsa dançando nos programas de televisão. O que mais que uma leonina podia esperar desta vida? Ia para o Pingue-Pongue, para a Gincana Kibon, que eram programas infantis que tinham na televisão, que as escolas levavam os seus alunos para se apresentarem lá nos numerozinhos de lá. E eu sempre no destaque, porque eu tenho um problema até hoje. Eu faço Ivaldo Bertazzo até hoje, no tempo que lá tinha dança, que agora é só reeducação do movimento, mas eu não podia ir para o palco.
TROCA DE FITA
P/1 – Você estava falando do balé, você ganhou a bolsa, sua mãe bordava para você.
R – Tinha que bordar de lantejoula as fantasias para eu ir lá na televisão dançar.
P/1 – Que balé artístico você gostava de fazer? Você falou que era meio artista.
R – Eu toquei violão, eu dançava, mas o meu sonho era ser bailarina. Mas era um sonho assim que não era tão forte. Porque na verdade, quando eu fiz nove anos de idade as escolas particulares, porque era uma escola particular da Joana Jardim, mas a prefeitura fiscalizava as escolas particulares de dança. Nós fazíamos exame com um professor da Escola Municipal de São Paulo. Ele ia lá na nossa escola e a gente passava por prova. Então ele falava assim: faz uma sequência disso, daquilo, daquilo. Developè, desce, barabada, e você tinha que fazer. Então ele ia te graduando. Todo ano você passava por uma prova. E quando eu fiz a prova com o professor do Teatro Municipal, ele me convidou para eu fazer carreira de bailarina. Eu era magra, espichada. Eu levava jeito. Eu tinha nove anos. Mas a escola era muito puxada. Era o dia inteiro. Então tinha que estudar, fazer ginásio à noite. Meus pais não deixavam ir para a escola à noite, de jeito nenhum, você é doentinha, você não pode, você não pode fazer esforço demais. E eu cedi, eu cedi. Fiquei muito mal com eles, mas cedi. Aceitei. Porque eu penso assim: se fosse tão forte o dom, se eu tivesse mesmo o dom, eu ia me lixar, porque eu sempre fiz tudo o que eu quis, apesar das repressões, eu sempre fiz tudo o que quis. Então eu acho que se fosse muito forte esse dom de bailarina, eu teria ido. E fora que estragaram o meu pé. O meu pé é meio estragado até hoje. Por que qual é que é o sonho da bailarina clássica? Pôr ponta. E eu não tinha musculatura suficiente ainda quando eu coloquei ponta no meu pé. Então eu destronquei pé muitas vezes desde criancinha. Então até hoje de vez em quando eu destronco o pé. Eu saio do tronco. E foi dessa época. Então eu acho que nem era tão forte. Mas era o meu sonho, a minha fantasia que eu ia ser bailarina.
P/1 – Você tinha nove, dez anos?
R – Eu tinha nove anos quando fui convidada para fazer carreira. Eu não fui e ainda fiz mais um pouco de balé até dez anos, e aí eu fui, parei com a dança, mas sempre fascinada com a dança. E fui voltar adulta a fazer dança, quando eu encontrei de novo, eu fui fazer Klauss Vianna, fui estudar com Klauss Vianna, dança. Aí estudei com J. C. Viola, mas isso já adulta, isso já com vinte e um anos de idade. O Klauss Vianna foi muito interessante na minha vida, porque um dia ele falou para mim “Você não tem mais mãe te reprimindo, por que é que não volta?” Porque eu só fazia dança moderna aí. Estudei com Dolores Fernandes, e aí ele falou para mim: você pode voltar a fazer clássico agora. Aí eu fui fazer com a Gumiel, Reneé Gumiel, mas não me dei bem nem um pouco, detestei fazer clássico. Porque eu já tinha passado por alguns professores que já tinham corrigido postura, e aí na dança clássica você é muito sacrificado fisicamente. As posturas da dança clássica judiam demais do bailarino. Acabam com o corpinho. E aí uma amiga minha que era também professora de danças Dolores Fernandes dava aula no Ivaldo Bertazzo. Aí ela me apresentou para o Ivaldo Bertazzo e eu consegui meia bolsa. Eu sempre tive muito problema financeiro para bancar meus sonhos. Mas também sempre lutei para fazer o que queria. E aí eu comecei a fazer Ivaldo Bertazzo e aí nós temos uma união de 25 anos de Ivaldo Bertazzo. No começo era dança. E eu me quebrei muito ao longo da vida. Me arrebentei muito. Eu tenho lesões grandes no corpo. E o Ivaldo sempre me dando apoio para eu não emperrar. Os médicos querendo operar e tirar pedaço de mim e o Ivaldo dizendo: “Você é que sabe. Você é que sabe.” E eu indo na dele, aceitando, confiando. Até que quatro anos atrás eu resolvi fazer o curso de formação porque eu já tinha bodas de prata quase da escola, e não podia usar o nome do Ivaldo porque eu não tinha feito o curso de formação. Eu só fazia a prática. E aí eu resolvi e me formei. Eu me inscrevi, fui lá oh, para fazer que é puxado. E aí fui fazer, porque tinha que estudar anatomia um monte de coisa, mas me formei. Tenho diplominha de reeducadora do movimento. E há dois anos que eu também incluí no meu currículo, juntei um pouco as coisas. Mas aí nós estávamos lá no balé, então do balé também, eu fiz um pouco de esportes também. Com 15, 16 anos joguei vôlei. Arrebentei-me toda. Caíram em cima do meu pé, nas minhas unhas, as minhas unhas caíram, inflamaram, virou uma coisa horrorosa, fiquei sem andar, na cama com o pé enfaixado tempos e tempos, larguei do vôlei. Porque aí fiquei traumatizada. Cada vez que alguém mandava uma bola, que a bola vinha eu saía correndo com medo de alguém levantar e cair de novo no meu pé. Então a minha carreira de esportes foi terrível. Tentei tênis também. Aí eu já dançava, e comecei a ver que eu ia ficar com um braço muito maior do que o outro. Falei “Não quero. Vou ficar com a dança, tal que é melhor.” Mas nunca fui para o palco na dança. Nem no Ivaldo. Eu era platéia garantida porque era bolsista da escola, tinha que estar lá aplaudindo. Eu falava para ele: “Eu garanto a plateia, mas no palco não dá.” “Por quê?” “Porque eu vou para um lado e todo mundo vai para o outro. Não sei por que as pessoas não vão para o lado que eu vou. Elas não me obedecem.” Eu não tenho uma liderança tão forte. Eu sou leonina, sou líder, mas não sou tão forte. Porque eu ia para um lado, para outro, e quando acordava, não pode né. Não dá para fazer palco desse jeito. Viajo na maionese. E aí com 14 anos, eu sempre gostei de dançar, eu tinha um clubinho. Os meninos do colégio Rio Branco, as meninas do Sion que eram dois anos mais nova do que eu, porque a minha prima era dois anos mais nova do que eu, e eu liderava esse grupo. E cada semana na casa de um bailinho. Eu era a tesoureira, recolhia os dinheiros, comprava as comidas, organizava a festa. Era impecável. Tinha comida, bebida. A gente ainda não podia beber álcool, mas os meninos já começavam tomando uma Cuba Livre ali meio disfarçada, e Coca-Cola, imagina. Coca-Cola, falar em Coca-Cola, a Coca-Cola chegou em Pinheiros tocando a campainha na casa da gente de caminhão, engradado, e dizendo: “Quantas pessoas moram aí?” “Seis.” “Seis garrafas de Coca-Cola” Na semana seguinte tocava a campainha: “Gostaram? Tomaram Coca-Cola? Mais seis garrafas de Coca-Cola.” Aí começou a chegar hóspede na casa. Você dizia que tinha dez, porque o irmão estava lá, a cunhada, não sei quem, porque, eles viciaram a população. Eu nunca vi um marketing tão descarado como o da Coca-Cola, tocando a campainha e viciando a gente, dando de graça a Coca-Cola. Ai junta não sei quantas garrafas vazias, e aí começa a não distribuir, só fazer propaganda. Aí você vai comprar, você está viciado. Você vai comprar. Antes o vinho que também quando fico sem não faz diferença, mas a Coca-Cola fazia. Você ficava irritado se não tomasse Coca-Cola. Porque vinho quando eu faço jejum xamânico, faço restrição alimentar, eu fico sem o vinho vinte e um dias tranquila. Mas a Coca-Cola a gente saía todos correndo para comprar Coca-Cola. Aí junta não sei quantas garrafas, troca por um engradadinho da Coca-Cola de plástico que era uma gracinha que era das miniaturas. Você olha aquilo todo dia, todo dia, olha a Coca-Cola está na hora da Coca-Cola. Foi terrível. Mas aí onde é que eu estava, é que eu lembrei da Coca-Cola?
P/1 – Os bailinhos.
R – Então, os bailinhos que era uma felicidade. Vitrola, long play, os meninos, as meninas, começando os namoricos tal, ali dançando, e um dia nós chegamos em uma casa, não esqueço, era ali na descida do Pacaembu. No salão, a casa era uma casa que tinha muitos cômodos, e tinha um salão de jogos, tinha snooker, tinha uma mesa quadradinha com quatro cadeirinhas, forrada de feltro verde e dois baralhinhos. Mesa de jogo que a mãe da menina jogava bridge, buraco, canastra. Eu sentei e falei: vou começar a ler sorte. Quem quer? Lembro do meu primeiro cliente, o Tom. Aí ele sentou. Era o menino mais bonito da turma. Disse que tinha um probleminha sério. Ele não crescia. Então naquele tempo foi a primeira vez em que eu ouvi falar num tratamento que tirava radiografia do pulso para ver quanto ainda tinha, e tomava uns remédios, e fazia umas ginásticas, puxava o menino para crescer. E ele cresceu, mas nesse tempo ele ainda era pequenininho. Mas ele era lindo. Eu não lembro o que eu falei para ele com certeza, não tenho a menor ideia do que eu falei para aquele menino com o baralho. Mas lembro que eu peguei e comecei a abrir a sorte. Eu lembro que daí para frente, eu tinha 14 anos, nunca mais eu consegui me separar do meu baralhinho. Eu jogo pela janela, ele entra pela porta. Eu jogo pela porta, e ele entra pela janela. E não tem jeito e virei cartomante na minha vida assim.
P/1 – Mas da onde veio isso assim?
R – Então hoje, hoje tá, eu sei que eu sou descendente geneticamente de ciganos, mas porque uma prima do meu pai, quando eu morei em Brasília, em 1996 eu morei em Brasília. Ela foi visitar uns parentes dela que estavam lá morando em Brasília. Brasília fora um dia de visual que é uma cidade de visual maravilhosa para fotografar, não tem o que fazer em Brasília. Não tem nem quarteirão para você dar a volta no quarteirão. Então vai se visitar todo mundo que você conhece, chegou na minha casa. E quando soube que eu lia tarô, que eu lia cartas, que eu era cartomante, quiromante, que eu passei a ler mão também, ela falou para mim: “você já viu a sua árvore genealógica?” Eu falei “não. Nunca vi porque a gente não pagou a pesquisa, e eu não vou pedir cópia, como é que eu vou pedir cópia da coisa que a gente não participou, nunca vi”. Ela disse: “Ana, pois eu vou te mandar porque eu tenho. Eu vou te mandar. Você é descendente direta de cigana”. Eu falei: “é, e os ciganos como os judeus a dinastia está na mulher. Filho do ventre você prova que é teu filho. O outro pode ser ou não”. Agora tem exame de DNA, mas na época em que eu tinha 14, 15 anos também não existia exame de DNA para saber se é filho, se não é filho. Então era aquela velha premissa. Filhas das filhas meus netos são, filhos dos filhos podem ser ou não. Mas ela me mandou isso, então hoje eu sei que pelo lado do meu pai, a minha bisavó que eu achava que era austríaca, é descendente direta de um barão português que era muito influente em Portugal, mas que, está escrito isso lá na folha da árvore genealógica. Mas, que teve um problema sério com mulheres em Portugal e veio se refugiar no Brasil. E aí, isso acho que é 1900 e pouquinho, começo de 1900 por aí. E aí ele veio se refugiar no Brasil e se apaixonou por uma cigana chamada Brígida. E como ele era muito influente, naquele tempo o registro de casamento era na Igreja, não era no civil, não era na lei. Era na Igreja que valia o casamento. Ele conseguiu com o Papa que ela fosse batizada e conseguiu que tivesse uma licença para eles se casarem. E eles ganharam de presente de casamento uma sesmaria, que eu não lembro quanto media, mas devia dar uns quatro estados, ele ganhou uma sesmaria aqui no sul de Minas Gerais, que devia pegar o sul inteiro de Minas Gerais, que se chamava, onde é que tem aquela faculdade gente...
P/1 – Viçosa?
R – Não.
P/1 – Não?
R – Falhou a minha memória agora, que é ali perto de Muzambinho, de Alfenas.
P/1 – Alfenas.
R – A sesmaria de Alfenas. E como ele não dava conta, ele nem trabalhava, e nem fazia nada, ele foi recortando e distribuindo entre os parentes e os amigos e foi nascendo Muzambinho, Guaxupé, então tudo meio parente deste senhor que herdou o sul de Minas Gerais junto com a cigana. E aí na árvore tem outra cigana também que casou com outro ramo e tal. Mas o meu ramo veio da Brígida. E aí eu já tinha uma noção da genética, mas não tinha prova nenhuma, porque eu fui consultar um psicólogo, porque é muito difícil ser vidente, mediúnica, em família de católico romano, sempre um conflito grande da minha loucura. Um dia com 18 anos eu fiz a minha mãe me por no psiquiatra. Fui para as Clínicas, sou registrada lá na psiquiatria, porque a minha mãe trabalhava no Estado, então consegui um psiquiatra que mandou ir lá nas Clínicas e que me deu alta em três meses. Falou para a minha mãe me soltar, porque eu nunca tinha perdido nem a chave de casa desde dez anos de idade, nunca tinha perdido a chave de casa para voltar para casa com segurança. Eu gostava de andar e de festa, dançar, era isso que eu gostava. Mas então, era difícil, era muito conflito e tal, mas eu perdi outra vez agora. Agora entrei num campo difícil, começou a mexer no psiquismo, já começou a perder a memória.
P/1 – Mas a minha curiosidade, você nunca chegou a ver ninguém, lugar...
R – Não, não, nada, nada, nada. Sentei nessa mesinha e comecei e nunca mais parei. Depois eu comecei a ver que tinha que carregar um baralho, e às vezes não tinha um baralho na oportunidade. E era uma forma de eu fazer o meu teatrinho, do meu leãozinho ficar satisfeito no palco. Porque eu chamava a atenção de todo mundo, era uma coisa inusitada. Então toda festinha. Aí eu comecei a pegar na mão das pessoas e a ler mão. Porque aí não precisava levar nem o baralhinho. Facilitava a vida. Onde estivesse, pega a mão, vamos ler a mão. Só que começa a acontecer fatos reais, tipo: estava no curso normal, então eu devia ter 17 anos. E festinha, bailinho na casa de uma amiga colega de curso normal, cujo irmão trabalhava na Cooperativa Agrícola de Cotia, tinha muitos amigos japoneses, que eu também já era amiguinha dos japoneses, porque a gente fazia piqueniques juntos com eles, eram todos muito divertidos e festeiros. Estamos lá no dança-dança, alguém chega e fala para mim: “tem um Kenjo aí que nós queremos que você leia para o Kenjo, que você jogue cartas para o Kenjo.” Puseram uma mesinha, dois banquinhos, para a festa, todo mundo em volta, acende luz, vamos jogar. Eu jogava com um baralho comum, porque eu comecei com um baralho comum, com dois baralhos, com dois compêndios de baralho comum, embaralha e abre. Deu um pretume louco. Só saia coração preto e trevinho. Só tinha paus e espadas no jogo. Eu muito simplesmente viro e falo: “vai acontecer uma desgraça na sua vida.” O japonesinho tinha 15 anos. O japonesinho cai para trás com as perninhas para frente, desmaiou. Dá aquele reboliço, aquele e eu em estado de choque, que é que eu fiz? O que é que aconteceu? O que é que houve? A família do japonesinho tinha 15 dias que a Kombi virou na estrada e morreu o pai, e eles tinham um monte de irmãos. Eram oito irmãos. Só sobrou vivo ele e o irmão mais velho que não tinha ido. E ele odiava o irmão mais velho. E sobraram os dois para resolver o carma no planeta. O resto morreu na Kombi. Levaram o menininho para se distrair na festinha, para se alegrar, e puseram ele sentadinho ali comigo para se alegrar, para se distrair, para brincar. E eu viro para ele e digo: “vai acontecer uma desgraça”. Já tinha acabado de acontecer a desgraça. E hoje eu sei disso que o tempo é muito relativo, três meses atrás, três meses na frente, está no mesmo espaço. Três anos atrás, três anos na frente, de repente está no mesmo espaço de tempo. O tempo é convencional do ser humano. No espaço não existe o mesmo tempo. A hora nos outros planetas não bate igual a hora no nosso planeta. Então é tudo, o fuso horário do próprio planeta varia. Então é muito relativo essa coisa do ontem e do amanhã. Fui vendo, fui aprendendo que era muito difícil, como fui aprendendo que o pesado entra primeiro. Você capta primeiro o pesado no pensamento. Aí então você tem que se sutilizar, aí que eu comecei a meditar, que naquele tempo eu nem sabia que chamava meditação. Eu comecei a me concentrar. Eu comecei a ficar, eu já tinha esse treino de criança, de ficar lá tomando banho de lua, de subir no telhado. Então não foi tão difícil para eu começar me concentrar e respirar fundo. Às vezes cantava, eu às vezes dançava, para me concentrar, para pegar a leveza do ser também. Porque eu fui percebendo essas coisas, que primeiro vinham as desgraças, só lia desgraça, só lia morte, só lia de acidente. Não é possível, todo ser humano tem os dois lados. Então eu fui me aperfeiçoando através de outras técnicas. Da dança, do canto, da meditação. E eu sempre rezei. Eu sou rezadeira até hoje. Então eu não gosto de Igreja, mas eu não posso dizer que eu não seja religiosa. Porque eu tenho um religare, eu tenho um religio, eu tenho um sistema que eu acredito que me faz um ser humano mais próximo daquela unidade que eu chamo Deus. Eu vejo Deus como uma unidade. Uma unidade de todos os reinos. Então para chegar nesse estado de contato, mais universo, mais cosmos, a concentração é fundamental. Então eu fui buscando tudo isso. Aí eu descobri os budistas, descobri as técnicas de meditação, que existiam outras técnicas. Mas na verdade eu uso até hoje a coisa mais primitiva. Muito no começo da minha incursão pelos caminhos da mediunidade, buscando servir religião, servir ciência, estava começando a parapsicologia no Brasil, me envolvi com o pessoal da parapsicologia. Só que eles queriam me usar, eles queriam que eu ficasse incorporando em grupo o subconsciente, isso é Brasil, isso é São Paulo, e isso é escola de parapsicologia. Eles queriam que eu ficasse incorporando o subconsciente de esquizofrênico. Mas aí eu já tinha uma noção porque eu já tinha um treino interior meu que eu dizia: “eu vou acabar esquizofrênica, eu já tenho umas tendências. Ficar incorporando esquizofrênico não está com nada e ainda pago para o grupo para fazer terapia com eles.” Tem alguma coisa errada, fui saindo fora, foi difícil. Até que eu me encontrei com, eu fui em um congresso de Corpo, Mente e Espírito. Acho que era Unicamp. E que eu estava procurando na época uma psicóloga para fazer um pouco de trabalho psicológico comigo porque eu tinha perdido filhos, eu estava muito sofrida que eu não conseguia, uma filha minha morreu no parto, depois eu tinha aborto espontâneo, não conseguia parir, criar filho. Eu pari mas não criei. Eu estava procurando e me indicaram uma mulher chamada Carminha Levy. E mais, nessa época eu andava com um cara que foi meu, ah como eu me profissionalizei, eu vou voltar um pouquinho,
P/1 – Eu também queria voltar nos 14 anos que você deu um saltão.
R – É, é, eu vou voltar um pouquinho porque eu fui profissionalizando como? Eu nunca mais parei de ler mãos nas festas, era a sensação. Fui lendo, fui lendo. Aonde ia...
P/1 – Mas não caiu nenhuma ficha nessa hora desse japonês, assim de uma coisa de mais responsabilidade?
R – É, eu comecei a ver que a brincadeira era perigosa. Eu comecei a me concentrar mais, comecei a ouvir primeiro o que eu vou falar, para começar a mexer com a linguagem. Porque eu comecei a ver que era séria a brincadeira. Que podia causar danos a minha brincadeira. Então eu fui aperfeiçoando a linguagem, e comecei a ouvir. Então eu sou muito mais audiente do que vidente na verdade. Porque eu comecei a aprender ouvir o primeiro pensamento, pensamento intuitivo, a captação do inconsciente coletivo quando vem, então fui treinando o ouvido, treinando mais a falar. E aí eu fui desenvolvendo mais a quiromancia do que a cartomancia. A cartomancia foi ficando mais em um segundo plano. Até que eu ganhei um tarô, e aí eu fui vendo as figurações, porque o baralho comum tem valete, dama, rei, ás nas figurações. Não tem cavaleiro. E eu sentia falta. Eu achava um pulo muito grande do valete para o rei. Porque o valete é um aprendiz, é um serviçal, ele não tem veículo próprio, e de repente já vai para o rei, para o mando. Quando eu descobri o tarô, o tarô ainda mantém da antiguidade o cavaleiro.
P/1 – Quem te deu esse tarô?
R – Esse tarô foi um ex-namorado meu que me deu na época. Na época ele já era meu ex-namorado. Ele me deu esse tarô de presente. E eu fiquei encantada. Porque eu abri e vi aquelas figurações, vi aquilo tudo, e aí eu comecei a brincar com o tarô. Então voltou o meu interesse pelo baralho, mas eu continuava lendo mão. E como ledora de mão, começou a acontecer o que? Eu fui convidada para trabalhar em uma feira industrial no Ibirapuera para fazer o número da quiromante, da cartomante. Só que eu cheguei lá e o dono do Stand queria que eu falasse de turismo. Era um Stand de turismo. Ele queria que eu falasse para as pessoas que a sorte delas estava na viagem, estava na... Eu falei não. Você não me contratou como garota propaganda, eu também teria vindo, mas eu teria vindo com o meu título de cartomante. Você não me contratou. Eu vou ler para as pessoas o que sair no baralho. Foi um horror, foi um mal estar, uma briga, resultado no final da feira o homem não queria me pagar. Mas aí a minha descendência que eu ainda nem sabia que existia atuou. A cigana foi lá na porta do homem, sentou na porta e falou o que é que você quer. Jornal, revista, tudo aqui no escândalo de assédio, ou você vai me pagar o meu cachê? Pode escolher. Em cinco minutos você tem que decidir, ou você me paga o meu cachê, ou vai ter flagrante de assédio. E comecei já a desabotoar a blusinha, então eu nem sei de onde eu tirava esses expedientes, sobrevivência. Mas recebi o meu cachezinho sem precisar tirar a blusa, fui embora tal, mas isso tudo vai dando um aprendizado também, porque a brincadeira não é mais brincadeira, está virando profissional. Está trabalhando.
P/1 – E a sua família como é que ela ia recebendo isso?
R – Olha a minha família, meu pai me aceitava de qualquer jeito. Meu pai nunca questionou. Meu pai nunca me abandonou. Na hora em que eu virei andarilha, que eu fui morar na casa dos outros, morei com um monte de gente, morei em comunidade. Meu pai sempre deixou o endereço dele fixo, como o meu endereço para correspondência. Correio. Então o meu endereço de correspondência era sempre a casa dos meus pais. Então eu fui andar, fui andarilha, andei pelo Brasil, sai do Brasil, voltei. Eu sempre tive um endereço de correspondência e um telefone dos meus pais de informação. E o meu pai ia onde eu estivesse possível de ele ir, ele ia e me levava a minha correspondência. Nunca questionou, nunca perguntou nem nada. A minha mãe não ia. Minha mãe preferia não saber mais do que eu estou fazendo, quem eu sou. Mas eu comecei a aparecer na televisão. Começaram a me entrevistar em público, eu participei de programa de televisão como cartomante. Eu fiz Palavra de Mulher na TV Cultura com a Ione Cirilo e aparecia. E aí todo mundo começa a buxixar e falar e aí a mãe começou a assistir um pouco, mas não questionava, não perguntava o que fazia, como vivia, como é que pagava o aluguel.
P/1 – Mas isso aí tudo depois dos 18?
R – Isso tudo depois de 18 anos. Não, mais antes, aí com 18 anos eu comecei a trabalhar como modelo fotográfico. Eu trabalhei como modelo fotográfico. Eu desfilei como maneca, mas eu não dava muito para essas coisas. Eu chegava em cima da hora, nunca me atrasei, mas eu chegava em cima da hora, com a cabeça lavada que tinha saído da piscina, do solzinho para bronzear. E eu às vezes fingia que estava com alergia porque tinha que tirar a roupa, tinha que ficar de sutiã, tinha que ficar de biquíni, e eu não segurava muito essa. Tinha uma coisa ainda do colégio de freira bem arraigado. E eu tinha um noivo italiano que dava soco, batia no povo, que era ciumento. Quatorze anos mais velho do que eu, porque eu tinha medo que ele descobrisse. Eu fiz muita calcinha e sutiã para catálogo da Rhodia, mas não aparecia a minha cara. Cortava assim a cara no meio, só aparecia o peitão e as pernas, porque eu morria de medo que me visse e o italiano, e mesmo assim, eu tinha um pouco de respeito também com o meu pai. Porque meu pai me aceitava do jeito que eu era, mas ele ia sofrer como Congregado Mariano que era da Igreja Católica. Ver a filha em outdoor essas coisas. Então também não fiz carreira porque tinha muita restrição.
P/1 – Mas a parte da cartomancia e tal vai entrar muito, mas só para segurar um pouquinho para eu entender. Aos 14 anos você começa os namoros, começa essa parte da adolescência. Conta um pouquinho desse momento.
R – Eu fui apaixonada desde os 12 anos de idade. Me apaixonei com 12 anos de idade. Eu me apaixonei com 12 anos de idade. Eu numa festinha, na casa da minha prima, eu conheci um rapazinho que era pouca coisa mais velho do que eu, devia ter 13, e eu me apaixonei. E a gente se apaixonou. Mas eu era uma criança. Eu era uma criança. Inclusive fisicamente eu custei muito para me desenvolver. Eu criei busto com 18 anos de idade. Levei um susto. Eu era uma tábua e de repente virei peituda. Foi um susto na minha vida. Eu custei muito para desenvolver fisicamente. Então eu era muito miúda. Mas eu já tinha um espírito meio velho. Eu já cuidava da minha prima que era só dois anos mais nova do que eu. Minha tia, por exemplo, não deixava ir ao cinema com amigos. Comigo podia. Eu era só dois anos mais velha que a minha prima. Minha prima tinha dez e eu tinha 12. Mas podia ir à matinê, deixavam a gente na porta do cinema, só as duas sozinhas porque eu tomava conta da minha prima. E eu me apaixonei, mas eu tinha uma noção de que eu era criança. Então todos os bailinhos a gente dançava juntos. Aí uma vez ele me mandou um cartãozinho, que era se dobra em dois, se dobra em três, gosta de mim quer beijar, quer namorar, não sei o que, eu não devolvi. Não tive coragem de devolver porque eu queria tudo. E não podia ter nada. Aí foi essa enrolação, aí ele começou a namorar uma menina. Ele fez 18 anos um ano antes do que eu. Mas, ele com 16 começou a namorar. Eu fiquei sabendo, fiquei meio doída, mas eu entendia. Eu tinha, eu não tinha consciência do quanto eu tinha de complexo de inferioridade. Porque eu me achava feia, porque a família inteira me convenceu de que eu era feia, magra, esquelética, feia, não tinha nem peito, não era mulher, e a minha avó por parte de mãe vivia falando para a minha mãe que tinha que levar no médico porque achava que eu era menino. Vai ver que ela é meio menino porque não tem peito, não menstrua, né, e o meu avô médico dizendo que a família dele inteira as mulheres menstruavam depois dos 17. Mas imagina, ninguém ouvia. Só no meu ouvido isso tudo. Eu tinha muito complexo, físico, e de finanças também porque eu vivia numa instabilidade que um dia podia viajar, noutro dia não podia, num dia tinha carro, noutro dia não tinha nada. Eu vivia muito instável. Mas nessa época eu não tinha muita consciência que isso me retraia também porque ele era o galã da moçada. Era um dos meninos mais paquerado, mais disputado na moçada. Ele estudava no Colégio São Luiz e ele era acho que dois anos mais velho do que eu, porque ele entrou na faculdade eu ainda estava acabando o normal. Bom, quando eu fiz 17 anos, estava para fazer, tinha 16 para 17, não estava de 17 para 18 anos, uma amiga comum da gente que morava em uma fazenda e vinha todo ano nas férias e ficava hospedada no mesmo prédio que esse menino morava e que minha prima morava, e que era na Rua Oscar Freire, ela veio me visitar e falou para mim: “Ana eu acabo de vir da casa do Moa, que era o nome do menino, e ele está muito triste com você porque soube que você está namorando.” Eu digo “namoro que não pega nem na mão, mas estou namorando porque está na hora de namorar. Estou na idade de namorar, arrumei namorado. E ele não namora a tal da Mariza há quanto tempo já, dois anos, três anos.” Ah ela falou: “ele estava fazendo hora te esperando porque você argumentou forte que você era criança ele está esperando você virar moça para namorar. Ele está te esperando desde os seus 12 anos, você vai fazer 18.” Aí caiu a ficha. Aí eu falei: “bom nunca é tarde. Vou ligar para ele”. Então ela disse: “liga logo porque eles estão saindo para o Rio de Janeiro de férias a família inteira de carro.” Está bom. Liguei, a empregada atendeu e disse não, eles já saíram. Eu falei: quanto tempo vai ficar? Uma semana. Falei: pô, quem esperou dos 12 aos 17 para os 18 anos, esperar uma semana está tudo certo. Vou assumir esse namoro, essa paixão, e essa história. Só que voltou só o corpo dele. Ele sofreu um acidente de automóvel nessa viagem e voltou o corpo dele e nunca realizei. Então eu acho assim que é uma história meio difícil. É o lado sombra um pouco da minha vida, porque daí para frente não fez muita diferença para mim o que vai ser quando crescer, entende, em sentido amoroso. Mas eu me apaixonei outras vezes. Eu tive outras paixões. A paixão era fácil para mim. Sou do elemento fogo, sou leonina, apaixonar não foi meu problema. Meu problema era confiar de criar estabilidade emocional afetiva, porque eu fiquei viúva antes de namorar. Porque eu tinha certeza que ele era a pessoa que veio para ficar comigo e eu com ele o resto da vida. Depois eu também não tinha nem pressa. Mas isso se repetiu algumas vezes na minha vida o padrão. Eu namorei algumas pessoas que eu terminava na véspera de eles morrerem. Então isso dentro do africanismo eles dizem que eu sou uma Iansã. Que eu tenho uma força da natureza de encaminhamento dos mortos. Que eu faço a passagem aqui. Então essas pessoinhas vieram para poder ter alguém que encaminhasse. Assim como eles falam que eu sou uma coisa que eu não sei se a palavra é Obicoa, mas acho que é, que eu sou uma mulher que incorporava os espíritos abortados. Porque quando há um aborto segundo o africanismo do candomblé, corta-se o ápice do espiral da energia e essas alminhas não conseguem evoluir para reencarnar. Então algumas mulheres têm esse dom de incorporar e fazer a passagem, então aborta de novo, quer dizer, perde o filho de novo, eles morrem, mas naturalmente então tem o ápice para poder evoluir. Foram coisas que até me consolaram um pouco ouvir, mas tudo isso eu acho que são linguagens que me ajudaram a aceitar, ajudaram psicologicamente a entender melhor o plano, mas que na verdade o fato é o fato para mim. Eu tive muitas perdas e danos, fora os mocinhos na época da repressão militar que foram desaparecendo.
P/1 – Até uma curiosidade que eu fiquei para a gente voltar um pouquinho, talvez seja desse período, você disse que tinha história do poço que você ia contar, talvez, é da infância essa história?
R – Porque na verdade, essa história é uma história complicada, porque é uma história de espírito. Que me acompanhou um tempão da minha vida. Então quer que conte essa história?
P/1 – Claro, quero sim?
R – Que acabou, essa, o acidente, a queda da escada que eu me quebrei toda, tem a ver com esse poço.
P/1 – Vamos lá então.
R – É uma história perigosa. Então nós vamos voltar lá no poço?
P/1 – Se você quiser vamos.
R – Vamos lá no poço então. Assim, durante a minha infância até a minha formatura do curso normal, eu tinha um problema. Eu subia a escada do sobrado da Rua Cônego Eugênio Leite, tinha um hall de distribuição dos quartos. Era um banheiro só, casa antiga, um banheiro, uma porta do quarto que dava aqui para frente da casa, um corredor comprido que ia dar no quarto do fundo, e bem aqui perto da grade da escada, no vão da escada o quarto dos meus pais. E eu dormi um tempo nesse quarto da frente, mas depois me deram um quarto quando eu fiquei maiorzinha, me deram um quarto só para mim, ficou o quarto da frente para a minha irmã, e eu tinha o quarto do fundo. Eu estava com 18 anos de idade, e quando aconteceu entre aspas o final dessa história. Eu subia a escada, desde pequena, eu subia essa escada para ir para o meu quarto, tinha uma energia, uma coisa que parecia viva, era uma energia turva que eu via, que tinha olhos. E que me pegava, e que me derrubava, e que não me deixava ir para o meu quarto. Eu gritava, chegava alguém e isso se dissolvia como se alguém dissolvesse isso. Então eu vivia gritando, porque eu chegava lá via a coisa, antes da coisa me pegar eu já gritava para subir alguém para vir alguém para dissolver aquilo. E foi um inferno na minha vida. Eles me davam calmante para dormir, porque eu era nervosa, porque eu era imaginária, tinha visões imaginárias, tal. Eu fui crescendo, eu fui ficando com medo de mim mesma. Como eu vou ser professora primária, como é que eu vou dar aula e cuidar de criança se eu sou visionária? Se eu vejo uma bola preta que tem dois olhos? Bom. Aí quando eu fui mexendo e procurando saber dentro do espiritismo, dentro do, o que poderia ser isso, me falavam: às vezes a alma, e isso o xamanismo também fala, a alma se despedaça. Quando você tem uma emoção muito forte, seja positiva ou negativa, a alma como um mercúrio se despedaça. E às vezes quando você, por exemplo, tem um relacionamento mal resolvido, uma parte da sua alma vai com aquela pessoa, a outra, a parte daquela pessoa fica com você. Então a alma se esfacela, e se faz em pedaços. Então uma das cerimônias xamânicas que eu pratico até hoje, faço inclusive no meu consultório, é juntar os pedaços de alma para unificar a pessoa. Então eu comecei a entender que isso podia ser um pedaço da alma de alguém, sei lá o porquê, que morava no corredor no meu caminho do meu quarto. E por que os outros não viam? Aquilo me implicava. Eu questionava se eu era louca mesmo, visionária mesmo, ou se os outros não queriam ver porque era bem feio. E um dia eu resolvi enfrentar porque eu quase apanhava. A minha mãe chegava a pôr o chinelo. Sobe, não tem nada lá. Já revistamos. Eles iam lá revistavam debaixo da cama, me mostravam que não tinha nada. E eu dizia: “se somos dois não tem, mas se sou eu sozinha tem.” Bom, aí um dia eu subi, eu cheguei de noite, eu tinha saído com o meu namorado. Eu cheguei de noite, e não tinha bebido, tinha tomado suco de laranja e para eu não atrapalhar, porque a minha mãe dormia de porta aberta. Semiaberta. Então ligava a luz do corredor, era claridade, então eu para não ir e voltar no corredor para apagar, eu já conhecia tão de cor o caminho do meu quarto, que eu saía do banheiro, apagava a luz do corredor, e entrava no corredor, e apalpava dos dois lados e chegava até o meu quarto para acender a luz do meu quarto. E nesse dia eu senti que eu desviei. Eu saí do banheiro e desviei. E senti bater na balaústra que tinha do vão da escada. E vi a coisa me pegar. A coisa me pegou e me jogou para baixo. No que me jogou para baixo que eu bati com a cara lá embaixo, e o nariz sangra muito, quando quebrou o nariz todo sangra muito, e o meu corpo entortou todo, mas a dor era muito grande aqui no rosto. Eu senti os tacos me cortarem. Essa coisa falou para mim: “Me perdoa. Você é a única pessoa que tem a percepção, eu não aguento mais esse aprisionamento, eu precisava do sangue para me veicular para mudar de espaço. Me perdoa. Não tem nada a ver com você, nada particular com você, mas eu precisava veicular para sair desse aprisionamento. Eu morri naquele poço do quintal e fiquei aprisionado nesse espaço.” Então essa história foi uma história que me perturbou muito, que eu trabalhei muito dentro depois do xamanismo, dentro da limpeza de mente. E quando eu fui para o psiquiatra, no Hospital das Clínicas, eu contei para o psiquiatra. Porque eu sou louca mesmo, não duvide. Sou visionária, já vi tudo isso. Ele nem se impressionou com isso. Eu fiquei meio assim porque eu falei “porra, ninguém se impressionou com essa história que eu contei.” Eu acho que ele devia já ter ouvido tanta história de alucinação que essa não foi relevante para ele. Mas, eu depois mais tarde quando eu conheci o padre Elísio que era um parapsicólogo que eu fui fazer trabalho. Ele era psicólogo e parapsicólogo. Eu fui fazer trabalho de análise com ele, tudo isso, a gente trabalhou isso e recuperamos o nome, que graças à Deus eu esqueci também, porque me impressionou muito, recuperamos o nome da alma. Mandei rezar missa para a alma, fiz todo o cerimonial da Igreja católica. O padre Elísio me ajudou muito, porque eu dizia para ele: os meus guias interiores, minha intuição, ficam mandando eu rezar missa para ancestral, para evolução espiritual dos meus ancestrais, e eu sou excomungada porque eu jogo tarô, vivo disso, ganho a minha vida jogando tarô, lendo mão, pertenço ao xamanismo, trabalho com toda crença primitiva, e ele falou para mim: “Olha, o seu guia é muito inteligente, porque uma coisa é a Igreja Católica Apostólica Romana da qual eu pertenço e sou padre, mas que aqui sou seu psicólogo, e outra coisa é a liturgia. Se você foi lá, pagou para o padre rezar a missa, é um cerimonial, é um símbolo dentro da tua cultura, dentro da tua criação, é um símbolo que você está usando para fazer a transferência energética da evolução dos seus ancestrais. Ele é muito sábio o seu guia”. Falei, ah está bom então, me acabou com a minha culpa de ficar mandando rezar missa para ancestral, porque eu não pertenço à Igreja.
P/1 – Dentro desse simbolismo, eu não entendo assim, qual é a função do sangue, que tinha?
R – Por que a veiculação da vida. Alguma coisa viva para veicular energia para o espaço. Para fazer, e qual, por exemplo, você não precisa de um veículo para o mineral poder atuar. Você não bebe o mineral, só mineral. Você o põe num veículo para ele poder se transferir para o seu corpo. Então uma coisa semelhante a isso. Precisava de um elemento de veículo para transportar esse coágulo para solver para o espaço outra vez. Para diluir, para poder solver. Hoje em dia eu faço limpeza das pessoas, eu dou passe energético, tiro energia turva das pessoas e despacho para o espaço para que essa energia possa se solver, no tamanho do espaço ela vai se solvendo, se minimaliza, e tem a chance de abrir na pessoa o espaço de receber conscientemente a luz limpa. A luz solar, a luz cósmica, o espectro solar, a luz que eu chamo de divina, que é da unidade dos reinos.
P/1 – Acho bom no momento esta história, porque acompanha esta história anterior a você e até os seus 18 anos que foi onde a gente parou. Então agora você está nos seus 18 anos, na sua conta do mais ou menos.
R – Ah, o amor, a paixão.
P/1 – Fez uma ligação na história
R – Isso que morreu o Moacir e que eu fiquei viúva antes de namorar. E daí para frente eu casei, eu tentei ter filhos, meus filhos morreram, e eu morei com outras pessoas maritalmente. Eu casei na Igreja católica, na umbanda, e no civil com o mesmo homem. Esse foi o grande marido da minha vida. Morar juntos só aguentei dois anos. Mas até que a morte nos separasse nós fomos unidos como seres humanos. Fomos sempre muito unidos. Mas só conseguir viver maritalmente junto, morando junto, tudo, só dois anos. Aliás com cada um dos meus maridos eu só conseguir morar dois anos. Alguns ainda são meus amigos até hoje, irmãozinhos queridos. Mas eu não tenho muita capacidade de viver da maneira como a nossa sociedade vive. É muita hipocrisia, eu não aguento. E os homens também alguns ficaram com muito medo de mim, porque eu sempre sabia o que eles estavam fazendo, mesmo sem querer saber. Isso assustava muito as pessoinhas. Sabe, você pegar o telefone duas horas da manhã, ligar para o estúdio da Gazeta, perguntar fulano de tal está aí gravando? Está. Dá para você falar que a mulher dele quer falar com ele? Dá. Quando ele puder para me ligar. Imediatamente em seguida ele me liga. Bravíssimo. Eu não sabia que eu estaria aqui. Porque deu problema na gravação e eu tive que voltar para gravar o pedaço, como é que você sabe que eu estou aqui? Tipo, botou alguém atrás de mim. Foi aí que eu desconfiei que ele não era muito fiel. Porque ele ficou tão assustado. Mas, então, é muito difícil assim, tinham coisas bem difíceis da minha sensitividade, da minha mediunidade que foram dificultando. Mas eu fui levando porque eu trabalhei com 18 anos eu ainda fiz algumas feiras industriais no Ibirapuera como recepcionista da Willys Overland do Brasil, e trabalhava como recepcionista de stand de feira industrial.
P/1 – Isso é uma pessoa emprestada pela faculdade como é que foi essa passagem de colégio?
R – Não, eu fiquei noiva de aliança para casar com um italiano ciumento, 14 anos mais velho do que eu, com 17 anos de idade. E ele falava para mim: você vai prestar vestibular, você vai tirar o lugar de uma pessoa que precisa, porque nós vamos casar assim que você fizer 18 anos, e nós vamos sair do país porque eu quero fazer um estágio na Itália, ele era descendente de italiano, filho de italianos. Porque ele na época fazia um trabalho que era muito interessante que não existia computador máquina, era tudo na mão, na escultura. Ele fazia os logotipos todos feitos à mão, esculpido, os logos. Ele era especialista nisso. Ele e o irmão mais velho dele tinham uma empresa no Brasil. Ganhava muito bem. E ele queria ir para a Itália, porque a Itália era o lugar em que essa tecnologia era grande. E aí ele disse: “nós vamos para a Itália e você vai tirar o lugar de outro.” Eu já não gostava muito da escola. Eu já era meio, que eu achava que a escola me empatava muito de eu fazer as minhas coisas. Mas eu era boa aluna, eu sempre passei de ano, eu sempre dei conta das obrigações. Mas aí até me animou, eu não ia fazer faculdade porque eu ia para a Itália. Era o que eu queria, passear, viajar. Dar asas a minha cigana. Só que eu me apaixonei de novo, depois do Moacir que tinha morrido, foi a primeira vez que eu me apaixonei para valer. E noiva para casar, com os móveis todos feitos, só estava esperando fazer 18 anos para casar porque eu não queria casar menor de idade. Na verdade era desculpa. Primeiro eu dei desculpa que eu não era menstruada que eu não podia casar. Depois eu dei a desculpa de que era menor de idade, aí ele começou a construir a nossa casa própria, um apartamento, eu falei: “por que nós vamos casar e morar de aluguel para fazer outra mudança, vamos esperar ficar pronto o apartamento, a gente já muda.” Eu tinha sempre uma desculpa para adiar esse casamento na verdade. E aí eu me apaixonei perdidamente por um estudante de agronomia de Piracicaba. E aí foi complicado porque aí eu comecei, eu não acreditava muito que fosse possível, o cara tinha uma namorada da vida inteira esperando ele se formar para casar, que morava no interior, que era filha de ministro em Brasília, e eu falava “não vai dar certo essa história”, mas no fim quem me traiu foi o meu noivo. E eu dei flagrante, e terminei esse noivado com o vestido de noiva pronto, móveis prontos, porque ele não quis ir buscar. Ficou entupindo a garagem do meu pai que me cobrava todo dia que precisava guardar o carro na garagem e a garagem entupida de móveis que eu mandei fazer em Itatiba, móveis coloniais. Que no fim eu mandei entregar na casa do irmão dele que eu também não queria, e eu terminei esse noivado, eu não casei com o italiano. E teve uma cartomante que eu frequentei na época, que era ali a Avenida Brigadeiro Luiz Antônio em São Paulo, perto do Ibirapuera, que se chamava Iracema e que disse para mim que ela mudava de nome se eu não me casasse com o Sérgio Cavicchioli. E eu não me casei, e perdi a cartomante, porque eu falei nessa altura não sei como ela chama para procurar. Porque não chama mais Iracema. Não me casei com ele, e não me casei também com a minha grande paixão nova. Ainda fui, troquei o vestido de noiva por um vestido baile a rigor, fui na formatura dele, dancei a valsa com ele, ele desmanchou o namoro com a outra menina, mas aí o destino interferiu de novo, teve fofoca, teve mentira de amigo, não deu certo. Não me casei com ele também.
P/1 – E aí você foi fazer o que?
R – Aí eu vou fazer o que? Aí eu estava com 18 anos e fui trabalhar, um pouquinho mais 20 anos, já fui trabalhar como relações públicas na Alcântara Machado para o Caio de Alcântara Machado. Um amigo meu que foi meu padrinho no casamento católico, o meu marido casado, que me arrumou esse emprego, eu já falava um pouco de inglês, aí eu fui trabalhar como relações públicas na Alcântara e fiquei até me casar com o meu marido católico, porque aí nós fomos morar em Parati. Aí a Alcântara foi super gentil comigo e me mandou embora para me pagar indenização, para eu começar a minha vida em Parati com algum dinheirinho.
P/1 – Mas você trabalhava como cartomante assim, junto ou não?
R – Eu aí eu não era profissional, eu não cobrava, eu ainda só, eu nunca parei, desde que eu comecei eu nunca parei. Era tudo o que era festa, lendo mão, e lendo carta, mas eu não cobrava. E foi aí quando eu não aguentei mais do que dois anos em Parati, e que o meu marido não queria sair de Parati. Parou um navio, um barco lá no porto de Parati que estava indo para o Caribe e que desceu gente lá e precisava de tripulação. Imagina, anos 1970, isso era em 1973. Época e hippieismo, e eu estava começando a cozinhar bem. Aí eu falei para o meu marido. Ele fazia jóias artesanais na bigorna, martelo e fio, que quando eu o conheci ele só trabalhava com latão, com alpaca. Aí eu leonina já fiz comprar prata, a gente já trefilava prata, já fazia joia em prata, eu falei: “o que mais, você leva a sua bigorna, seu martelo, os fios de prata, você vai trabalhando no navio, eu vou cozinhando, quando parar nos portos eu vendo como eu sempre fiz”. Paguei o meu casamento assim, embrulhava as joias em um feltro preto que eu tropeçava, caía no chão, e chovia anel, pulseira, e eu vendi, paguei o cursinho da Igreja católica, paguei muita coisa assim. Vendendo as jóias dele. Fazendo número. Falei: “imagina nós vamos para o Caribe, para onde a gente quiser.” Ele não quis ir. Aí eu sozinha também não fui para o Caribe. Mas também não quis mais ficar em Parati. Aí eu arrumei outra vez com a Alcântara Machado para fazer um congresso internacional no Rio de Janeiro. Um congresso da ASTA – Associação de Agentes de Viagem Internacional que teve no Rio de Janeiro na época do Geisel. Aí eu morei um ano no Rio de Janeiro, e vi coisas inacreditáveis, vivi coisas inacreditáveis. Foi a entrada de Carlos Imperial nos ministérios, no governo. Eu trabalhava como assessora de uma grande amiga minha, que dois anos mais nova do que eu, mas que era gênia, formada em relações públicas, era diretora do Congresso, ela falava cinco idiomas, eu arrastava o meu inglês, e eu devo muito a ela o que eu falo de inglês hoje. Porque ela falava para mim: “é mediúnica ou não é mediúnica? Incorpora, que eu preciso de alguém que vá lá receber o gringo”. E eu ia. Eu ia. Me virava. E realmente acho que eu incorporava, porque até hoje eu tenho um problema sério com o inglês. Eu falo melhor do que entendo. O povo fala comigo eu fico, falo, como é que eu não entendo, ninguém fala sem entender. Eu falo melhor do que entendo. Ou eu não tenho ouvido, a minha entidade é surda. Aí eu fui para o Rio de Janeiro, fiquei um ano lá trabalhando no Congresso como bilíngue, e o Carlos Imperial botou uns capangas atrás de mim e da Malu Losso que era minha chefa, essa minha amiga que era diretora, e entraram no apartamento da minha amiga no Leblon, entraram lá dentro. Revistaram tudo, ligavam para a gente e diziam: ó, tem um Volkswagen amarelo na porta, a gente olhava, tinha mesmo na porta da casa dela, vocês não tem carro nós estamos sabendo. Nessa altura sabe, a gente não se largava mais, ou eu dormia na casa dela, ou ela dormia na minha, que eu estava morando no Rio também, a gente morava no Leblon. O escritório também era no Leblon. E ele falava assim: esse carro é seu se você fizer a escola de samba, que eu não lembro mais qual é que é, que era dele do Carlos Imperial, ganhar. Por quê? Nós estávamos fazendo um concurso, uma licitação, de três escolas de samba para escolher uma para apresentar para os gringos durante o congresso. Tudo tinha que fazer licitação de três para escolher o mais conveniente, o mais econômico, o mais eficiente para por. E eles queriam que a Malu de qualquer jeito. E a Malu falou: vocês estão falando com a pessoa errada. Tem gestor financeiro no grupo, eu não sou a gestora financeira, não sou eu que distribuo verba e nem que abro envelope de licitação. Eu sou a executiva do programa. E eles descobriram que a gente era junta, então seguiam a gente na rua. Uma vez nós quase apanhamos. Mas a gente foi ficando juntas, a gente foi ficando espertíssimas. E o cara não disfarçava nem a voz. O capanga tinha uma voz rouca. Ele era baixinho atarracado e tinha uma voz rouca. Ele nem disfarçava no telefone. A gente um dia estava indo para a minha casa para jantar, minha rua não tinha saída ali no Leblon, e dava uma escadaria para o Jardim Botânico. Nós vimos três caras descerem do Volkswagen amarelo e virem para cima da gente. Nós viramos as costas e saímos correndo, chegamos num restaurante, entramos no restaurante, sem acreditar nessas coisas que aconteciam. E era uma barbaridade. A roubalheira, a sacanagem, depuseram o cara da EMBRATUR. Aí eu fui começando a entender a política, na prática. Então eu entendi porque que eu passei por tudo isso de Alcântara Machado, e através desse congresso eu viajei o Brasil inteiro fazendo seleção de dança folclórica e de artesanato para trazer, quer dizer, Brasil inteiro não, porque eu fiz centro oeste, nordeste e norte. Eu só não fiz o sul. Mas, selecionando grupos de folclore tudo isso, fizemos um pavilhão brasileiro no Rio de Janeiro para apresentar para os gringos os folclores mas eu vi pintarem morro de verde. Favela. Punham tapume branco, pintavam de verde para os gringos não verem as favelas. Isso é 1975 minha gente. O Brasil já fazia essas coisas. E era repressão militar. A gente vivia sob vigilância total. Não podia contratar nenhum funcionário, nenhuma recepcionista, nem um motorista. Que a gente só contratava estudante de faculdade para dirigir para os gringos, porque tinha que ser bilíngue, trilíngue. E motorista no Rio de Janeiro de praça ser bilíngue, trilíngue, não existia. Não podia contratar sem passar pelo crivo da polícia, para ver se não era subversivo. A polícia federal, tudo isso. Mas eles já.
P/1 – E como foi essa experiência pelo Brasil, como é que foi isso?
R – Ah, eu amei. Foi a coisa, o melhor trabalho que eu já tive na minha vida. Porque era fantástico. Eu chegava, ficava nos melhores hotéis, com carro a minha disposição, e eu ia primeiro visitar o governador, o prefeito, avisar que a EMBRATUR vinha vindo, e que precisava de carro, de guarda costas, disso, daquilo, jantar, selecionava o menu, preparava tudo isso e aí eles me levavam para conhecer os artesãos do lugar, ver o artesanato do lugar, apresentação dos grupos folclóricos, e era tudo o que eu queria ter continuado fazendo na minha vida. E ainda de noite tinha que ler carta. A fila era enorme. Eu dormia muito pouco nesta época. Porque a gente não tinha horário para trabalhar. A gente ia buscar gringo no aeroporto cinco horas da manhã, seis horas da manhã. E de repente tinha que ir já de terno e gravata, entende. Tinha que ir de salto alto, meia de nylon naquele calor do Rio de Janeiro, eu queria morrer. Mas era muito calor, mas era uma época ainda que à noite a gente deitava, olha, isso é 1975, estava passando um cometa. Não lembro qual era. Acho que era o Kohoutek. Que a noite a gente ia para a praia do Leblon, deitava na areia tranquilamente, dez e meia, 11 horas da noite, procurando o Kohoutek, o bolinho de algodão, porque falavam que parecia um bolinho de algodão, no céu, ficava namorando na praia até alta madruga. Era uma tranquilidade 1975 ainda o Rio de Janeiro. Que é uma pena né. Mas eu ligo, eu tenho um link intuitivo, porque eu não tenho prova de nada, como tudo na minha vida eu não comprovo, eu não sou cientista mesmo. Mas tem um link aí dessa entrada do morro no governo, durante o governo militar de Geisel. Então não foi depois que entrou a corrupção. A corrupção entrou muito antes de acabar o militarismo. Foi penetrando, foi se infiltrando muito antes. E tinha uma concessão do próprio governo pela culpa da agressão que era. Agora, foi o tempo mais criativo da minha vida, e foi o tempo em que eu mais via a criação. Foi essa época em que tinha um lado tristíssimo, porque eu tinha amigos que de repente desapareceram. De repente não se sabia mais deles, não se sabia mais, não podia procurar, apesar que eu procurei um e achei graças a Deus estava vivo, escondido lá na Bahia, mas foi uma época muito dual, porque a morte e a vida na maior intenção possível o tempo todo. E foi muito criativa, era muito bom, o teatro era fantástico, época de Augusto Boal, de Guarnieri, e eu vivi em São Paulo. E eu andava a pé nessa época porque eles viravam os ônibus e punham fogo.
P/1 – Você vivia onde em São Paulo?
R – Eu vivia em Pinheiros, mas eu frequentava o centro da cidade, e principalmente ali o Teatro de Arena que tinha um bar também, o Redondo, era ali em frente ao Teatro de Arena, mas eu ia a pé de Pinheiros lá e voltava a pé. Porque eu tinha medo de entrar nos ônibus, porque quando não eram os estudantes que punham fogo nos ônibus, era a repressão para pegar estudante. Então eu passei coisas muito interessantes. Uma vez, porque eu nessa época era apaixonada pelo agrônomo e andava com um bando de agrônomo de Piracicaba que vinham para São Paulo, e no meio tinha gente procurada. E eu só me interessava pelo papo dessas pessoinhas que de repente desapareciam, era impressionante. Eu não entendia nada de política, nada, mas o pensamento, eu nem sabia que o meu pensamento era político. Porque eu concordava com eles em número e gênero das ideias, e era completamente avessa a repressão militar. Mas, uma vez eu estava sentada em um restaurante grande que tinha ali no Metrópole, na Praça ali perto da biblioteca. Eu fui ao banheiro. Nós estávamos numas 15 pessoas. Uma mesa emendada imensa, de dia, almoçamos lá. Eu fui ao banheiro. E nessa época eu saía com esse povo para ouvir samba de noite, em uns lugares de samba, e o que é que eles faziam. O que mais se empolgava, que estava lá na “dançasão” e na “bebeção”, sobrava. Ia todo mundo embora, iam saindo aos poucos e o cara tinha que pagar a conta. Eu fui ao banheiro e quando eu saí não tinha ninguém na mesa. Se eles pensam que eles vão me pegar de trouxa, sou mais viva do que eles. Passei reto na mesa saí e fui embora. Por quê? O que é que eu achei? Que eles largaram a conta para eu pagar enquanto eu fui no banheiro. Já tinha todo mundo acabado de almoçar. Eu passei reto e fui andando e procurando. Eu falei: eles estão por aqui. E fui procurando, disfarçadamente assim, de repente uma mão me puxa para trás num poste e diz: some, baixou federal. Tinha abaixado a polícia federal, e no meio da gente, eu nem sabia quem era, depois fiquei sabendo todo mundo quem é que era, mas eu levei um susto. Como abaixou a federal? Baixou a federal, dispersou todo mundo, cada um vai para um lado, sai todos correndo, entra um no carro, o outro não sei onde, e a brocoió aqui, cadê o namorado? Raptaram o namorado. Eu só pensava nisso. Eu só pensava naquilo.
TROCA DE FITA
R – Nós estávamos lá na repressão militar, mas aí eu me lembrei daquele tempo, primeiro que eu falei do meu leite, que eu tinha dificuldade com leite e que em Pinheiros tinha um homem com uma carrocinha de cabra que parava na porta de casa, tirava o leitinho da cabra e eu tomei leitinho de cabra. Graças a isso eu não morri das infecções, eu acho.
P/1 – A cabra vinha junto?
R – Vinha junto a cabrinha na carrocinha, e o balde. Higiene não era primeira ordem nisso, né, naquele tempo não tinha tinha infectação assim, a gente criava anticorpos, né, mas eu já não tinha muito, mas o leitinho da cabra me fez forte. Tirava o leitinho da cabra na hora e tomava o leitinho da cabra e nessa mesma época o pão vinha da padaria numa carroça de cavalo. Era uma carroça bege, pintadinha de vermelho, que tinha uma cobertinha feito uma carruagem e um homem vestido de branco com um jaleco branco e uma cesta de pães doces, uma cesta de pães salgados, parava de porta em porta para gente comprar o pão. E tinha o homem do litro de leite também que vinha de carroça.
P/1 – Aliás, Ana, esse pessoal que vendia de casa em casa, ambulante, eles tinham normalmente algum sinal, né, músicas, coisas assim, né?
R – O amolador de faca que até hoje outro dia eu vi um aqui por Pinheiros, um amolador de faca com o mesmo apito que se usava quando eu era criança (sonorização), que era um apito que até hoje ainda existe isso. O realejo que passava também pelas ruas, que também eu vi outro dia na feira aqui da Henrique Schaumann, o realejo ainda existe, tava ali tocando na feira da Henrique Schaumann, daquela feira do domingo ou de sábado? Sábado, que tem ali aquela feira geral ali de artesanato, de coisa. E tinha realejo e tinha esse cara que tocava numa campainha daquelas que tem em balcão, que fazia assim. Batia, ela era redonda e batia em cima e ele ela faz “piririm-piririm”. Tinha um que era esse, tinha um que era uma bombinha daquela que era uma corneta “fom-fom”, assim (sonorizações), com ar, de ar. Eu não lembro qual era o padeiro, qual era o leiteiro, mas eu lembro do apito do amolador de faca, é forte na minha memória, porque era uma coisa muito característica e que a empregada lá de casa vivia esperando para amolar faca, que ele amolava as facas, o cara passava e ia amolando faca. Então, esse é um bairro que na verdade a gente já tinha um comércio bem intenso e já tinha muitas facilidades em relação a outros bairros. Eu tive um tio que tinha 14 filhos, então ele era médico também, mas ele tinha muita dificuldade de morar em São Paulo com 14 filhos, além de ser caro, caber todo mundo dentro de casa. Então, por exemplo, quando abriu o que hoje é lá embaixo Faria Lima, era um charco ali, ali era um charco e tinha uns sítios ali quando eu tinha uns 14 anos, 13 anos. Então começou aquele bairro novo ali. Ali era difícil, não tinha nada perto, não tinha padaria, as coisas ainda... Era como se ele morasse na periferia, no sítio, e na verdade hoje, quando eu olho da minha casa, Joaquim Antunes, né, que é paralela com a Cônego Eugênio Leite, onde eu morava quando criança, na Faria Lima, é um pulo, né? Mas gente, era um outro mundo aquilo ali. Era rural ali. Então a gente tinha sorte que eu morava bem no miolo onde tinha um serviço já muito bom, tinha mercearia. Naquele tempo também tinha caderneta. Nós tínhamos caderneta num bar, era bar mercearia. Era bar, vendia cachaça no balcão, mas vinha fruta, vendia fruta, arroz, feijão, e tinha uma caderneta. A gente pegava tudo lá e marcava na caderneta, todo mundo era honesto, os que compravam e os que vendiam, e no fim do mês quando recebia o ordenado, o meu pai, minha mãe pagava.
P/1 – E essa casa de Pinheiros você morou até quando?
R – Então, essa casa Pinheiros, eu saí para casar. Eu me casei com 23 anos de idade ou 24, 23 acho. Eu saí para casa, meus pais ainda moraram mais um tempo lá. Meus pais ainda ficaram lá acho que mais uns dez anos. Aí eles venderam, porque a minha mãe não queria mais subir escada, descer escada, que a casa era enorme só pros dois. Aí eles venderam foram morar em apartamento na Rua Artur de Azevedo.
P/1 – E você quando casou foi para onde?
R – Eu fui para Paraty. Eu fui morar em Paraty.
P/1 – Depois na volta?
R – Na volta eu não quis voltar para São Paulo. Aí eu nessa viagem que eu trabalhei para Alcântara Machado viajando pro Nordeste, eu encanei que eu queria fazer cerâmica com o Miguel dos Santos, que é um grande artista, ele é pintor e é ceramista e Miguel disse que me receberia, que só não podia me dar casa e comida, porque ele tinha seis filhos, mulher, pai, mãe para sustentar. Ele tinha sido discípulo do Mestre Vitalino em Pernambuco. E aí eu fiz amizade com uma geógrafa que trabalhava na Secretaria de Comércio e Indústria da Paraíba e que veio pro congresso da ASTA no Rio de Janeiro e a gente ficou muito amiga e aí eu fui morar na casa dela, que ela morava com a mãe dela. O pai dela tinha morrido, morava ela e a mãe e eu fui morar lá – uma experiência inusitada da minha vida, porque na minha casa eu tive a chave de casa desde dez anos de idade, na Paraíba nessa época, lá em 1976, ninguém tinha a chave da casa, tinha que chegar todo mundo junto, então eu comecei a aprender beber cerveja, que até então eu só tomava vinho, mas eu comecei tomar cerveja no posto de gasolina em frente porque eu chegava mais cedo, tinha que esperar a minha amiga chegar e esperar o primo dela que morava também com a gente, que era do interior da Paraíba e que tava fazendo faculdade chegar. Ele ia namorar primeiro para depois ir para casa e tinha que entrar os três juntos, senão dormia fora de casa e se dormisse fora de casa não precisava voltar porque não tinha mais hospedagem.
P/1 – Mas por que isso?
R – Isso era a mãe dela, bem, isso era a regra da casa da Paraíba para decência e moral. A mulher falou para mim, ela nunca perguntou quem eu era, de onde eu vim, nada. “A minha filha te trouxe, você é bem vinda, só que não pode dormir fora de casa. Se dormir fora de casa não volta nem para vir pegar as coisas. Não pode trazer homem dentro de casa e tem que entrar os três juntos”. Esse era o drama. Eu queria deitar, eu tava doida para dormir, aí eu sentava no posto de gasolina, pedia uma cerveja e ficava tomando cerveja até o último chegar para poder entrar dentro de casa porque tinha que entrar os três juntos, porque se sobrasse um não precisava voltar para casa. E eu morei lá durante um ano, aí eu cansei, aí aluguei uma palhocinha para mim, aí ela foi visitar a palhocinha e chorou, a mãe. Chorou e falou: “Ana, eu entendo que você tá cansada de morar… Que você é uma mulher livre, etc, mas você tem certeza que você vai ficar melhor nessa palhoça sem forro no chão, no meio do centro da cidade, sozinha?”, Aí quando eu a vi chorando não tive coragem, voltei para casa dela e fiz só meu ateliezinho de trabalho a palhocinha, mas aí eu fiquei muito doente e tive reumatismo infeccioso, com crises muito violentas, comecei a ter febre todo dia e minha juntas começaram a inchar. Por quê? Quando eu fui para lá eu não comia carne, eu só comia vegetal. Cheguei lá, não tinha verdura e eu fui obrigada a comer carne. Só carne e farinha praticamente a gente comia, e eu comecei a gostar de carne seca. Carne seca não tinha gosto de carne, né, e aí foi me fazendo muito mal, eu fiquei com reumatismo infeccioso e lá não tinha recurso, foi tudo muito complicado e eu acabei tendo que pedir arrego e voltar para São Paulo, mesmo porque passou um ex-namorado meu lá, foi me visitar e eu recebi no terraço, porque não podia por homem dentro de casa, recebi no terraço. Aí chegou, na hora que eu saí que ele já tava sentado no terraço, que ele olhou para mim ele chorou, ele começou chorar e falou: “O que aconteceu com você?”, aí que eu percebi que eu tava muito mal mesmo, que eu tinha que pedir arrego, porque eu não queria pedir dinheiro para minha família para comprar passagem para voltar. E o orgulho da leonina, né, que fui e venci sozinha, sem aviltar minha moral, minha ética, tava lá morando e fazendo cerâmica com Miguel dos Santos, mas eu fazia bico para sobreviver porque com Miguel ele não me cobrava nada, mas eu também não ganhava nada, então eu fazia muito bico. Eu já tinha passado por escola de dança, por Ivaldo, por um monte de gente aí. Eu montei um show de inauguração do atelier de costura, eu dei aula para polícia de João Pessoa. Na época do cais eu só usava blusa transparente bordada, mexicana, e saia transparente e eu não sei como eu consegui tudo isso. E eu dava aula de relações humanas para polícia de cadeia trabalhar no turismo. Eu tinha feito dois anos de faculdade de turismo em São Paulo na Morumbi, eu não formei, eram três, eu fiz só dois e aí arrumei o emprego na Alcântara Machado para ir embora pro Rio, larguei a Faculdade, e não voltei. E um dos meus professores, o DeJuquite, ele foi fazer um projeto de reforma turística na Paraíba, que era um estado absolutamente funcionários públicos, de empreguismo mesmo e aí eu tava lá quando ele chegou. Então ele me deu emprego, mas ninguém trabalhava, eu ficava desesperada. Eu sou do tipo que se eu tenho um compromisso eu quero cumpri-lo e tirar aquela experiência, vivenciar aquela experiência. E ninguém trabalhava, eu ficava tão desesperada naquela mesa de reunião e ninguém discutindo nada, fazendo nada, que eles me davam dinheiro para ir comprar sorvete para todo mundo para ver se eu saía e arejava e esfriava a cabeça. Mas aí me arrumaram esse trabalho de dar relações humanas. Como que eu fazia? Teatralmente, porque quem eu era? Eu era uma pessoa das imagens, do movimento, da dança, do palco, do teatro. Aí eu estava teatralmente, então eu montava o psicodrama, né, porque eu punha os guardas fazendo o papel de turista e os outros fazendo o papel de guarda e fazer o approach… Aí um dia deu um soco no outro, o turista deu um soco no guarda e mandou o guarda no chão, aí foi aquele auê. E eu era assistida dentro da minha aula pelo superior desses guardas, desses meninos, que quis interferir na hora, eu falei: “Não senhor, eu quero saber porque que o turista bateu no guarda, agora nós vamos saber que imagem é esta que o turista tem do guarda que sentou a mão nele, né, o próprio guarda batendo nele, né?” E aí a coisa foi virando psicodrama e eu me diverti muito, saí em tudo que foi jornal da Paraíba, que eu dava aula para polícia. Aí um dia eu tô no ponto do ônibus, no centro da cidade, esperando o ônibus, porque tinha hora para almoçar, não podia chegar atrasada pro almoço, não podia entrar na cozinha e fazer o que queria, tinha que pedir água para empregada, tinha que sentar na mesa e esperar ser servida. Aí eu tô lá no ponto do ônibus, esperando ônibus para voltar para casa, que eu tava voltando do atelier de cerâmica do Miguel dos Santos onde eu passava a manhã fazendo cerâmica e dava aula de tarde, passa um carro da polícia com um aluninho meu: “Dona Ana!”, eu: “Ai meu Pai! Todo mundo vendo, “para onde a senhora vai?”, eu falei: “para casa”, “Entra aqui que nós damos carona”, eu falei: “Ai meu Deus! Imagina eu chegar em casa num carro da polícia!”, mas se eu disser não para eles também, a situação vai ficar horrorosa. Por que que eu não vou com eles? Por que que eu não confio neles se eu que tô ensinando elas a serem delicados e gentis? Lá entrei eu, queria morrer, chegar em casa no carro da polícia! Com todos os vizinhos com assunto por resto da semana: “Que será que houve que a Ana chegou no carro da policia?”, mas peguei a carona, né? Meus alunos. Então, essa época também de Brasil era muito louca, muito interessante, porque sempre essa ambiguidade, tinha um lado humano muito forte ainda no Brasil quando entrou a ditadura, né, então eu sou muito sentida até hoje com esse status quo de ditadura militar porque eu acho que a ingenuidade brasileira... magina! Chegava em qualquer praia do Nordeste, o povo convidava para dormir na palhoça, para conhecer os filhos, para dividir a comida! Tive que comer tubarão, tem um pouco de preconceito com tubarão para comer, mas tive que comer tubarão porque os pescadores estavam reunidos na praia, numa praia deserta que eu fui visitar e estavam comendo. Quando viram eu e minha amiga que era paraibana, e que sofria muita discriminação porque era crioula – na Paraíba o preconceito, o racismo, o preconceito de cor e o racismo é violento, mesmo ela sendo geógrafa, professora da universidade da Paraíba, sofria uma repressão violenta por ser negra. E estamos nós duas lá na praia, foi aquela festa. Eles abrem a roda na hora, um monte de pescador, nós duas, abriu a roda na hora, para compartilhar a comida. Era tubarão! Assado, muito interessante, assado na folha da bananeira e tal, cortado em cubo, mas aquele gosto de tubarão não sai da minha boca até hoje. Eu acho que tubarão tem o gosto bem típico de tubarão. Mas era um Brasil muito agradável, né, que eu consegui viajar sozinha pro Nordeste, sem ser assediada, né, só beijei quem quis.
P/1 – Ana, eu queria que você fosse trazendo nesse percurso, sua formação mais mística, com toda essa descoberta. Durante o percurso todo, como é que você vai procurando isso?
R – Então, primeiro por causa dessa sombra preta que tinha olho, eu comecei a procurar outras informações, né?
P/1 – Para onde você foi?
R – Então, o espiritismo me ajudou bastante, eu frequentei ainda bem nova, eu ainda tava acho que... eu acho que eu tinha 17, 18 anos no máximo, eu frequentei a Associação Espírita de São Paulo que era num viaduto no centro da cidade, acho que no Viaduto Maria Paula...
P/1 – Ainda é, acho, né?
R – Ainda é? Não sei, mas eu frequentei porque eu queria explicações, não só por causa dessa massa negra de olhos que me pegava, mas pela minha própria capacidade, quando eu comecei a ler carta, por exemplo, e ir vendo os acontecimentos da vida das pessoas. Que que é isso? Não sabia o que eu tava falando e de repente as pessoas sabiam do que eu tava falando! Eu não sabia do que eu tava falando e elas sabiam, como assim, né? E as que não sabiam depois me telefonavam para dizer que entenderam o que eu tava falando porque aconteceram fatos e tal e então o espiritismo me ajudou bastante nesse sentido, mas eu sempre tive um problema grande cultural com essas pessoas, das religiões espíritas, por quê? Porque o conhecimento naquele tempo quando eu era mais jovem, tava muito aprisionada às religiões. Hoje já é mais solto, hoje já tem dentro do meio cultural mais liberdade de se falar do conhecimento, né, o Budismo, os próprios indígenas vieram mais pras cidades grandes e abriram mais o jogo cultural da história. E mais no meu começo de incursão dentro da busca do conhecimento, foi difícil porque tava muito aprisionada nas religiões, mas aí eu fui e entrei. Do espiritismo kardecista, de mesa branca que eles chamam, eu fui parar na umbanda, porque eu trabalhei numa imobiliária cujo dono era umbandista e tinha na casa dele, na Granja Viana, sessões de umbanda e um dia eu vi uma coisa acontecer, muito estranha. O office boy que punha a lata do lixo toda manhã na calçada pro lixeiro levar o lixo, veio atrás do patrão, o patrão com a lata do lixo e o patrão pôs a lata do lixo. Eu vi aquilo e questionei, falei: “Uai, hoje é aquele dia do carnaval que o rei vira o servo e o servo vira rei?”, Aí ele riu e falou: “Não, é que o Deosmar” – olha o nome do office boy, “O Deosmar fez uma cirurgia ontem”. Eu falei: “Bom, só se for espiritual, por que como faz uma cirurgia ontem no fim do dia, tava trabalhando até o final do expediente e hoje não pode carregar peso porque fez cirurgia?”, ele riu e falou: “É, espiritual”. Falei: “Como é isso, que eu to doente e você nunca me falou que tem esses conhecimentos”, porque eu já tinha reumatismo por tudo que é osso, aí ele falou para mim: “Ah, você não acredita em nada disso, que eu sei. Você é uma pessoa cética”, falei: “Não, não sou cética, eu não gosto de igreja, mas gostaria de tomar mais conhecimento disso, o que é isso de fazer uma cirurgia espiritual e não poder carregar a lata do lixo?”. Aí ele falou: “Bom, sábado vai ter lá em casa se você quiser.” Deu o endereço, eu fui. Eu não entendia nada, fui de blusa preta e já usava saia comprida, aliás era uma saia de florzinha parecido com esse macacão só que o fundo era roxo com preto, e eu fui para sessão espírita. Cheguei lá, era numa edícula no fundo da casa, que deveria ser um escritório, quarto de empregada, sei lá o que, tudo engradado, grade nas janelas porque eu já tinha ladrão na Granja Viana naquele tempo, já assaltavam as casas, já entravam, já invadiam. Cheio de grade, tal. Entrei lá dentro, tinha uma mulher, agachadinha conversando com uma outra pessoinha. Percebi que a que tava aqui sentadinha assim, encurvadinha aí o meu patrão falou: “Ela tá incorporada num preto velho e a outra tá se consultando”, “Tá bom”, aí: “Senta lá que vai chegar já a sua vez de você vim se consultar”, tá bom, sentei lá. Sentei lá e comecei ver aquelas grades, comecei ver aquele lugar, foi me dando uma coisa, a minha cabeça rachou no meio dentro - lógico que isto é figura de linguagem, eu senti meu cérebro abrir no meio e tinha eu falando: “Sossega, pára que você vai perder o emprego”, mas tinha uma outra eu que não sossegou, foi nas grades, grudou nas grades e disse: “Onde já se viu um trabalho desse de terreiro nessas grades? Arranca essas grades daqui que não pode ficar com essa...”, bom foi um... Aí meu patrão veio dando risada em vez de achar ruim, e me segurou, falou: “Calma Ana, calma. Nós não temos condição ainda de ter um terreiro, mas a gente tá providenciando, calma”, e ria. Eu joguei ele no chão e pus o pesinho em cima assim. Ele tinha só dois metros e dez de altura e pesava 120 quilos, e pus o pesinho em cima assim. Isso tudo eu via fazendo e eu dizia para mim: “Vai perder o emprego” Que que é isso? Que loucura é essa? O que que tá acontecendo?” Aí essa pessoa que tava incorporada de um preto velho levanta, vem, me pega aqui pelo pescoço, me dá um assoprinho nas orelhas e eu voltei ao normal, quase morrendo de vergonha. Fui sentar de novo e ela falou: “Se acalma meu bem, se acalma que não aconteceu nada. Tá tudo certo”, “Como não aconteceu nada? Eu joguei meu patrão no chão e mostrei poder ali, força. O que é aquilo com o dedão do pé segurando e o cara tentava levantar e morria de rir, que era pior para mim. Por que que ele tá rindo? Eu to fazendo barbárie aqui dentro”. Bom, passado mais um pouquinho, tô lá sentada esperando minha vez, dá de novo aquela coisa no meu cérebro, eu levanto, vou num quartinho anexo, tem um monte de risco no chão, de desenho no chão, e uma bola branca, de giz, que hoje eu sei que se chama pemba. Peguei o giz e fiz um desenho, que a mãe de santo foi chamada, foi lá de novo atrás de mim e falou: “Meu Deus, é ponto de caboclo. Você é mediúnica e você esta recebendo entidade”. Soprou minhas orelhas, botou a mãozinha aqui, voltou tudo ao normal. Eu fui ficando muito louca, mas ao mesmo tempo muito interessada naquilo tudo que tava acontecendo. Não ia sair dali por nada, nem que eu quebrasse todo mundo e tudo, eu não ia sair dali. Aí eu fiz esse desenho que é um desenho que eu sei até hoje porque é um ponto de umbanda, agora eu nunca tinha visto nada disso. O máximo que eu tinha visto era mesa branca. Mesmo assim uma vez eu entrei numa mesa branca em Campinas, que uma amiga minha me fez ir com ela porque eu entendia mais que ela porque eu já tinha frequentado a Associação Espírita. Eu cheguei lá e era uma coisa muito masoquista, eles batiam nos médiuns para chamar os mortos. Eu arranquei ela de lá a tapa. A tapa levei para rodoviária e viemos embora, e falei “Que falar com irmão morto, você tá é louca? Esse povo é masoquista. Deus me livre, magina! Bater de chicote nos mediúnicos para poder incorporar morto? Você tá louca, não é assim.” E então a noção que eu tinha era de mesa branca e dessa coisa horrorosa que eu tinha visto. Mas aí chegou a minha vez de falar com a mãe de santo. Aí a mãe de santo falou para mim: “Faz tempo que nós estamos esperando. Faz tempo que a minha, uma das minhas entidades, um caboclo que eu recebo, fala que vai vir um mediúnico para trabalhar com a gente e eu acho que essa pessoa é você, porque você já tá pronta, você não precisa fazer nada. Você só precisa se entregar, deixar vir e trabalhar”. Eu fiquei muito curiosa com aquilo tudo porque realmente foi muito forte, eu saí do meu controle. Eu, para operar amígdala precisaram me dar dose cavalar de anestesia porque eu não abria a boca nem a pau para operar minha amígdala. Para operar o apêndice também, para pegar anestesia era uma dificuldade, que eu tenho medo de sair do meu controle e tal. Então eu fiquei, eu entrei, só que eu falei para mãe de santo desde o primeiro dia: “Eu não sei se é meu destino e enquanto eu aqui dentro estiver eu vou respeitar as leis de vocês, tudo isso, mas não sei quanto tempo eu vou ficar. E aí eu fiquei e de três mediúnicos que trabalhavam lá, nós acabamos arrumando um galpão de uma fábrica abandonada no meio do mato da Granja Viana e quando eu saí de lá nós éramos 32 mediúnicos, porque, né, eu gosto de palco. E aí, na linha que eles chamavam de esquerda, à meia noite, quando virava a gira para esquerda, isto é, hoje em dia eu entendo como vir para as energias condensadas do planeta, da Terra mesmo e eu inventei um banquete. Então começou vim muita gente da periferia toda ali de Cotia para comer porque eu levava toda vez, minha mãe fazia muito bem cuscuz paulista, eu pedia para ela fazer um cuscuz paulista para mim e eu pedia o carro emprestado pro meu pai para ir para festa. Eu não contava que festa era porque ele era congregado mariano, eu tinha medo dele não me emprestar o carro. Ele não ia me proibir de ir, mas não ia me emprestar o carro, era lá na Granja Viana, de noite, eu ainda fazia carreto para umas mediúnicas. E tinha uma que era destrambelhada, que era empregada de uma amiga da gente, que ela não saía do transe, era uma entidade atrás da outra, ela era louca, ela não tinha controle nenhum e eu vinha com esta entidade buzinando no meu ouvido e tinha que entregar de novo na casa da amiga, mas ela era uma ótima operária do trabalho dentro do centro. Mas eu comecei a ter problemas de ética dentro do centro. Por quê? Primeiro se fazia muita fofoca, eu não admitia. Eu contei coisas em confessionário para mãe de santo que se espalhou na comunidade, eu fiquei louca. Aí um dia a mãe de santo me chama para eu amarrar um marido, de uma frequentadora do centro que foi lá e disse que o marido estava enfeitiçado, que tinha arrumado uma amante, que tinha feito feitiço para ele, e que não conseguia largar da amante e que a vida dela, o casamento dela tinha ido pro buraco. E a mãe me ensinando a técnica de amarrar sete fitas, sete nós, sete velas, para amarrar o marido da mulher e aí eu falei para mãe: “Eu não posso fazer isso. Eu vim nesse planeta para libertar e não para amarrar nada. Eu não posso fazer isso, eu posso sugerir o seguinte: Chama esse marido aqui, vamos fazer uma careação. Se o marido disser que ele quer muito ficar com essa senhora, mas que não consegue, então aí de repente eu faço um trabalho para harmonizar esse casamento. Agora eu não vou amarrar esse marido de jeito nenhum. Mesmo porque eu nem sei se essa visão dessa mulher, porque eu leio carta desde 14 anos de idade, tem gente que precisa resolver relações de outras vidas e que precisa passar por muitas pessoas nessa época agora de final de tempo. Então eu já tinha noção, até pelo apocalipse do final dos tempos e aí depois alguém me falou em Veden, em Vedanta, que também tem as escrituras que falam do final dos tempos, aí depois eu tinha uma entidade inca, aí eu fui me interessar pelo Peru, aí eu comecei a entrar em contato com inca, maia, asteca e também os maias falam no final dos tempos, 2012 é o final do calendário maia, né, isso tudo eu já vinha me preparando. Mas aí eu fiquei de castigo porque eu não amarrei o marido, porque eu desobedeci a mãe de santo e tinha que obedecer cegamente. Falei: “Não, isso não existe, nem dentro da minha casa com minha família, isso não existe na minha vida, essa obrigação de obedecer a mãe, esse guia interior, essa minha intuição, esse meu conhecimento me diz que não é certo amarrar o marido. E aí começou acontecer uma coisa assim chata. Eu olhava pro altar, pro congá, caía vela e pegava fogo. Foi uma, foi duas, foi três, falei: “Não é mais coincidência”. A minha mãe de santo era itinerante e eu tive experiência de visitar muitos centros de umbanda que a gente e o grupo ia trabalhar, ir dar força nos outros centros de umbanda e nessa eu conheci até um centro de quimbanda, que é magia negra e vi coisas muito interessantes. Eu vi um negão com uma galinha preta que ele não punha a mão na galinha, ele só tinha os olhos vidrados e ele hipnotizava a galinha, a galinha ia torcendo o pescocinho até dar volta em si mesma e cair dura, se matar. Então eu fui conhecendo tudo isso, em cada lugar eu fui tirando, né, eu fui percebendo que eu tinha capacidade. Por exemplo, a mãe de santo punha a mão na minha cabeça e punha a outra mão no cliente dela, e ela mandava a pessoa pensar na casa, eu via a casa da pessoa. Eu ia dando a descrição e a mulher ia fazendo assim para mim, que eu tinha uma escadinha que eu subia. Eu levei um susto que a minha imagem se distorceu, era um espelho que tinha no fim da escada, aí vira à esquerda, tem uma baloastra, tem três portas, tem no quarto do meio, eu vou entrar, tem uma camiseira com cinco gavetas, ela disse que tem quatro gavetas, tudo bem, errei uma gaveta, mas tem uma camiseira lá, camiseira mesmo, com gaveta? Tem. Abro a gaveta, tem um pijama de listinha lá dentro? Tem. Eu disse: “É lá que tá a macumba feita”. Então eu fui percebendo a responsabilidade de usar a mediunidade nesse tipo de trabalho de vidência e não fui gostando. Quando eu deixei minha mãe de santo porque a moral e a ética não dava mais mesmo, eu fiquei sem nada, mas eu tinha meus buris, meus trabalhos feitos e minhas dedicações aos santos, né, eu já tinha feito cabeça nas águas do mar, nas águas da cachoeira. Eu não sabia o que fazer daquilo tudo, não sabia para onde levar. Depois de algum tempo eu arrumei um padrasto de santo. Era um advogado na Lapa que tinha um centro que uma mulher que trabalhava comigo na Alcântara Machado - isso durante a Brazil Export 71, foi antes do congresso da Asta isso, bem antes isso, foi em 1971, e me levou lá e no que eu cheguei também, já queria todo mundo, deixa descer tua pomba gira, deixa vim, deixa vim, eu disse: “Vamos conversar uma coisa?”, falei para ele, “Eu vim aqui pro senhor me ajudar, mas eu não quero trabalhar mais com incorporação de jeito nenhum, eu quero que o meu espírito se engrandeça, se enriqueça, e se tiver que comunicar com outros espíritos, com outras mentes, com outras entidade, que eu faça dentro da minha consciência corporal. Eu não quero mais incorporação.” Ele disse: “Tudo bem”, “E o que eu faço dos meus buris?”, ele foi muito gentil, me levou lá na casa do exu dele, eu pus tudo lá no centro dele, firmei meu ponto lá e foi nessa umbanda que eu me casei também com meu marido e que o discurso do meu pai padrasto de santo foi: “Que seja eterno enquanto dure”. Ele era um sábio, citou o poetinha! E aí eu fui passando, né, aí eu fui para Paraty, eu casei e fui para Paraty, fui deixando a umbanda. Lá em Paraty tinha centro, mas era de uma pobreza de espírito, de uma ignorância, todo lugar que eu ia eu via essas misturas, o povo dizendo que só trabalha pro bem, mas faz quimbanda, mata, faz matança, veiculando sangue. Porque quando eu te falo que agora eu tenho uma ideia do porquê do sangue também, porque eu vi muito na umbanda veicular no sangue a energia. Sabe, eles cortam o animal para aqueles espíritos do mal se veicularem no sangue e irem embora, então uma coisa semelhante que aconteceu comigo, né, que eu identifiquei como uma coisa semelhante que tinha acontecido comigo, que esse espírito não sabia o que fazer, ninguém notava ele, ninguém ajudava, não tinha ninguém rezando por ele. Porque nessa época nem eu rezava por essa coisa, eu só tinha medo da coisa, né? Então eu fui fazendo esse caminho, fui conhecendo pessoas, até que eu inventei um trabalho no SESC Pompéia, onde eu peguei a direção na estreia do SESC Pompéia em São Paulo, eu peguei a direção de cerâmica, e comecei fazer trabalhos abertos nos fins de semana, para quem viesse. E era uma bagunça, tinha muita gente neurótica, tinha pai que punha o filho no colo e não deixava a criança mexer na argila, tirava a mão da criança e ele que mexia. Fui ficando meio assustada.
P/1 – Quando que era isso, mais ou menos?
R – Isto foi mil novecentos e... Puxa, quando que foi inaugurado o SESC Pompéia, meu Deus?
P/1 – Mas pode ser mais ou menos também.
R – Pois é, mas o mais ou menos eu não to conseguindo nem lembrar o mais ou menos que ano era isso.
P/1 – Na sua vida era depois do que, assim?
R – Pois é, eu tava chegando da onde? Dos Estados Unidos, eu acho. Foi na inauguração do SESC Pompéia. Acho que eu vou pegar um computadorzinho e procurar “Inauguração do SESC Pompéia”, para ver que ano que foi, porque eu não lembro mais.
P/1 – Não, fica tranquila. Não precisa saber.
R – Eu peguei o atelier, para dirigir o atelier de cerâmica e aí eu dava workshop aberto e aí eu comecei inventar uma coisa, que era fazer o mascarado antes. Eu pedi pro SESC tinta de teatro, de rosto e a gente se mascarava, todo mundo se igualava, mascarava, se pintava para depois trabalhar, e comecei fazer em argila a máscara da serenidade. Aí saía em procissão cantando coisa de criança, de trenzinho, chic-chic, choc-choc e (cantando): “Marcha soldado, cabeça de papel” e ia lá fora que os jardins tavam começando a ser formados, era tudo de terra, e punha as máscaras lá para no dia de chuva as máscaras serem dissolvidas. Aí alguém me trouxe um livro escrito As Tradições Ocultas dos Ciganos, e tem um capítulo na As Tradições Ocultas dos Ciganos, que, aliás, eu to atrás desse livro outra vez nos brechós, preciso achar, porque levaram o meu livro e não me devolveram, e onde tem um capítulo escrito “A Máscara da Serenidade”, onde os ciganos faziam isso para aliviar a alma das pessoas, faziam a máscara em argila e só que assim, eu mandava as pessoas porem as digitais na máscara, e os ciganos punham pedaço de cabelo, pedaço de unha onde tem o DNA que é a mesma coisa, na verdade, e que depois que eu ganhei esse livro, quando eu faço até hoje essa máscara da serenidade, porque foi para congresso quando eu conheci Carminha Levy que foi apresentado em congresso essa máscara, tem livro editado, como uma terapia ingênua xamânica. E aí eu fiquei muito chocada, como é que eu tinha captado essa história dos ciganos? Onde eu tinha tirado isso? De novo. Primeiro a cleptomancia, a quiromancia, as artes mânticas, né, que hoje nem se usa muito falar em arte mântica. Eu falo isso o povo fala: “O quê?”, eu falo: “Eu atuo nas artes mânticas, quiromancia, cartomancia e mântica quer dizer divinatória, que vem pelo dom, né, pelo dom divino. É o conhecimento vindo pelo dom divino. E aí eu fiquei um pouco assustada com aquilo, mas aproveitei e incrementei, aí comecei a fazer performance na porta do teatro. Tava a Denise Stoklosdentro do teatro fazendo mímica, eu na porta do teatro lambuzando as pessoas. As pessoas entravam no teatro já mascaradas, quando saíam, vinham fazer a máscara da serenidade e então o atelier de cerâmica já tinha virado performances e já tinha de novo entrado a história da sensitividade, do xamanismo de novo ali. Só que eu não tinha ouvido ainda falar em xamanismo. Quem falou para mim a primeira vez em xamanismo, foi Carminha Levy que é uma psicóloga, que tinha ido para os Estados Unidos, pro norte da Califórnia, em Esalen, fazer um curso com Michael Harner sobre xamanismo. Então era o começo do xamanismo urbano, digamos assim. E ela trouxe para cá pro Brasil, mas ela era ainda só psicóloga e falava dessas coisas e praticava essas coisas e aí eu tava atrás de uma psicóloga para me tratar por causa da perda de filho, e tinham me dado o nome de Carminha Levy, mas eu não tinha tido ainda tempo ainda de ver isso. De repente eu chego com Juan Alfredo Müller, que foi o cara que me deu uma esquizofrênica na mão, para eu fazer a máscara da serenidade da esquizofrênica, com um grupo multidisciplinar de médico, psicólogo, engenheiro, que estudavam com ele – ele era astrólogo e filósofo. E ele foi parar no meu consultório para ler carta comigo, ler tarô, e falou para mim que eu era uma astróloga, que eu tinha que fazer curso de astrologia. Falei: “Não tenho dinheiro para pagar, não tenho tempo para fazer mais nada disso”, ele falou: “Te dou uma bolsa, você vai que eu tenho um curso”. Fui fazer esse curso de astrologia. Só me interessei pela parte psicológica da astrologia, a parte matemática não teve jeito de eu fazer conta, ver ascendente, ler aquela bíblia deles lá, as efemérides, nada disso. Mas conheci esse povo todo, maluco beleza, que na época tinha uma máquina de fotografia kirlian, que a gente estudava a aura pelo kirlian, uma coisa foi levando para outra e eu fui chegando em outras ciências que não religiosas do conhecimento através do kirlian, do Juan Alfredo Müller, da Carminha Levy, né, fui entrando por outras searas. Já tinha me acontecido de fazer um curso com um argentino que veio ao Brasil, que dava um curso de biopsicoenergética, que era o Livio Vinardi, eu já tinha feito curso com ele, já tava entendendo a receptividade, a emissão, sul eletromagnético. Aí um dia, quando eu lia mão no Restaurante Vegetariano Ma Non Troppo e o povo às vezes bebia e comprava iogurte na esquina, porque bebia a noite inteira e depois não dava tempo de fazer o iogurte, comprava industrializado, os amigos de teatro. Mas eu já tinha conhecido um cara nos anos 80 isso, que foi riquíssimo também, começo dos anos 80, riquíssimo de informação em São Paulo. No meio do restaurante tinha um cara da USP que ele era - acho que ele chama Laerte, físico nuclear acho, ele trouxe as fotos da NASA e deu explicações para gente sobre os paralelos, a física quântica, o não sei o que, e aí eu já comecei me interessar pela ciência também, comecei a ouvir falar em física quântica e aí eu comecei ir em congresso de psicofísico que tinha, de USP, de Unicamp, ligado a universidades estrangeiras… Mas a Carminha Levy foi fundamental com a história do xamanismo, porque ela foi, foi até fundar uma escola de xamanismo em São Paulo, a Paz Géia. Eu participei no paralelo, eu até hoje recebo as benesses de ter estado com ela, sempre com ela, mas aquela minha dificuldade de pertencer, de me comprometer com uma facção onde a política não é a minha, aonde, né, enfim, essa minha tendência eremita, né, que agora eu conheço melhor e sei dela melhor - com a idade, né, a gente vai se conhecendo melhor, mas que eu automaticamente não entrei na engrenagem da Paz Géia, mas dei curso na Paz Géia, frequentei, fiz muitos workshops na Paz Géia e conheci todos os xamãs que iam chegando no Brasil e que passavam no começo sempre pela Paz Géia.
P/1 – Era a maior parte americanos ainda, né, o Sthan?
R – No começo era. Eu fui discípula de Foster Perry, que era um norte americano, mas que gozado, eu conheci o Foster não pela Paz Géia, mas depois frequentei muito o Foster na Paz Géia. Mas eu conheci o Foster porque ele ficou hospedado na casa de uma amiga minha, que ele era muito amigo do marido dela, que era um músico – o Foster é músico também, esse casal tinha morado nos Estados Unidos, tinha conhecido o Foster em Nova Iorque, tinha hospedado, quando o Foster veio, com Zuma Reyo, que era uma mulher dissidentes do Rajneesh. Nessa altura eu já estudei Rajneesh, eu já entrei em contato também com Rajneesh, e Zuma abriu um núcleo em São Paulo chamado Alquimia... era Alquimia do que?... Alquimia... Bom, o tal núcleo de Alquimia, que ficava lá em Santo Amaro, era um baita de um salão imenso e que tinham muitas pessoas que vinham trazendo novidades sobre corpo-mente-espírito e que frequentavam lá e o Foster Perry - o primeiro workshop dele que eu fui, foi nesse lugar, e da Zuma Reyo que eu conheci Foster. Nós éramos 72 pessoas dentro desse salão e eu fiquei muito impressionada com ele logo de cara, fez uma conexão no meu cérebro outra vez, falei: ”Nossa, desde a umbanda...” Só que dessa vez não dividiu, uniu. E ele pegou uma pessoa do lado de lá da roda, uma pessoa do lado de cá da roda e pôs aqui na frente, ele não conhecia ninguém da roda, ele tava chegando dos Estados Unidos. Aí era mãe e filha, e a filha ficou separada da mãe e elas não tavam se bicando e ele começou falar carmicamente, dos espíritos, que essas duas pessoas podiam ser que fisicamente nem se conhecessem – que ele não sabia do conhecimento delas, mas que era mãe e filha, cosmicamente falando e que vieram para trabalhar e tal. Eu fui ficando impressionada, que eu conhecia esse caso, eu sabia que eram mãe e filha, que não se bicavam e foi falando da doença familiar e de repente ele pára tudo, vira, vem para minha direção, que eu tava aqui nessa ala de cá, ele veio e falou para mim: “Meu Deus, tua cabeça grita alto. Eu não to conseguindo trabalhar de tão alto que fala sua cabeça. Teu cérebro fala muito alto, vamo acalmar um pouco teu cérebro porque depois nós vamos conversar, nós temos muito para conversar, mas ele precisa parar de gritar, porque ele tá gritando muito alto, eu não to conseguindo trabalhar”, eu queria morrer de vergonha, né, porque eu falei: “Como que eu vou saber que meu cérebro tá gritando? Eu não to escutando nada. Eu to tão aqui presente nessa história que tá acontecendo”. Mas foi muito forte meu encontro com Foster Perry e a partir daí eu trabalhava o ano inteiro para juntar dólar para pagar os workshop do Foster Perry. Durante 13 anos eu, toda economia parei de poder fazer coisas maiores, nessa época eu ganhava bem, trabalhava muito, tinha muito cliente, três meses de espera na minha fila de cartomante.
P/1 – Quando que você abriu o consultório?
R – Olha, eu abri consultório quando eu fiquei desempregada, tendo que pagar aluguel, desesperada porque eu nunca fiquei inadimplente na minha vida, sempre trabalhei em qualquer coisa, fiz doce para vender na rua, o que fosse, mas tinha horror de ficar inadimplente. E chegou uma hora que não me deram emprego, eu fiz uma entrevista de uma semana no Maclean, lá, no... O filho dele atua até hoje aí e até envolvido no... Daqui a pouco eu lembro o nome da empresa. Mas enfim, não me deram emprego porque eu tava em paz e precisava ser mais... Porque era para cuidar de dez vendedoras de produto, Sharp do Brasil. Aí eu falei: “Bom, para perder a minha paz? Que eu pago tanto dinheiro para fazer os exercícios, porque eu sou agitadíssima, meu cérebro grita alto, eu faço meditação, xamanismo, um monte de coisa para ficar tranquila e vocês querem que eu seja agressiva?” “Não precisa de ser agressiva, precisa ter liderança, precisa ter autoridade e não...”, “Não, mas na venda tem que ser agressivo, tem que ser... ” Bom, fiquei desesperada porque eu não ia ter mais emprego, como é que eu ia pagar minhas contas daí para frente? Aí todo mundo começou: “Toda cartomante cobra, dinheiro, toda cartomante cobra”. Morria de vergonha, comecei cobrando em espécie, uma camisa, uma calça, vela para minha casa, porque eu iluminava minha casa com vela, mas o aluguel não tem jeito, o aluguel tinha que pagar em espécie financeira, dinheiro. Aí eu comecei a cobrar. Foi muito doído para mim o começo de cobrar e a partir de que eu comecei a cobrar, foi aumentando minha clientela, foi aumentando minha clientela, eu precisei ter um outro lugar. Eu precisei começar alugar consultório para trabalhar porque não dava conta, que eu morava num apartamento muito pequenininho e ainda morava com uma outra amiga que ajudava a dividir o apartamento. Então um dia uma senhora chamada Chantal, que era uma médica ortopedista que tinha uma clínica fisioclínica, ali na Rebouças, ela entrou para ler e falou: “Ana não tem nada de ruim aqui dentro não, mas é tanta energia que eu não consigo botar o pé no chão. Você precisa de um espaço para trabalhar. Eu tenho um lugar” tal. Fui lá ver, era um salão imenso, com palquinho no meio, que eu não tinha nem o que por no palquinho. Falei: “Eu não vou poder pagar isso!”, ela falou: “Vamos fazer um trato? Você vai pagar por porcentagem de quando você trabalhar. Cada cliente você paga dez por cento do cliente para mim”. Eu fui e no fim o que pagou mais aluguel porque trabalhei nessa época como nunca na minha vida, de manhã, de tarde, de noite, todos os dias, foi o auge da minha carreira de cartomante. Aí o dono pediu, o aluguel mudaram as leis, houve um reajuste insuportável, eles foram pro Alto de Pinheiros, eu ainda fui. Aí perdi meu salão, tinha um cubículo, mas aí eu fui achando melhor trabalhar em casa e também tava querendo viajar, eu fui para Estados Unidos. Eu fiquei um tempo nos Estados Unidos, mas nunca parei também de ser profissional. E aí com o xamanismo, que eu fiz 13 anos, todo ano três meses com o Foster Perry, mas no Brasil, mas a gente ia pras fazendas, para hotel fazenda, ia para a mata, dormir, fiz iniciação de dormir no meio do mato e eu sempre espertinha, sempre achando que eu ia dar o golpezinho da esperta, porque eu sou medrosa apesar de tudo, de me enfiar em tudo, eu sou medrosa. Eu não queria dormir no meio da mata sozinha, esperar de manhã o xamã ir me achar na florestinha - lá no sertão do Una. Aí, já fazem muitos anos também, né, mas aí chegou na hora eu não consegui escapar, eu não tinha levado sleep bag. Eu comprei ali numa loja de construção um plástico preto, me abracei no plástico preto para passar a noite em jejum, passaram um unguento na minha cabeça, eu sempre alérgica com cheiro, fecha nariz, fecha garganta, uma dor de cabeça que eu só falava: “Eu tenho que ter um Engov na bolsa, eu não ando sem um Engov, tem que ter! Não, não tinha Engov na bolsa. Eu só tinha uma garrafinha de água, com uns fios de mel dentro e um limãozinho para chupar, só. E tinha... aí eu falei: “Eu vou ficar aqui mais para baixo onde eu ainda vejo a fogueira do xamã, porque aí de manhã quando ele vier libertar, aí ele primeiro me liberta, né, porque vai ser um inferno isso aqui, que eu já sei. Aí eu me amarrava assim, cochilava, a mão soltava, ventava para burro, o plástico fazia assim: (sonorização), feito trovão no rádio, aquele efeito de trovão! Putz, eu juntava de novo. Aí começou chover, aí me encharcou, aí a cabeça piorou, eu só pensava em voltar pro hotel naquele meu lençolzinho branco. “Por que que eu me meto? Não sou xamã. Por que que eu me meto nessas coisas, né?” Bom, amanheceu o dia, passou a chuva, e aconteceu um fenômeno, que depois a gente reunido no outro dia, a gente viu que foi coletivo. O céu estrelou completamente durante uma tempestade que não daria para ver o céu de jeito nenhum, porque chovia a cântaros e o céu completamente estrelado e todo mundo viu o céu estrelado debaixo da chuva. E foi uma visão coletiva mesmo, né? Aí de manhã eu tava exausta, acabada, sem conseguir dormir, podre, molhada, infernada que eu tava de ter inventado isso, mas não saí do meu círculo de poder por nada. Porque essas coisas é tal história: enquanto eu tô eu respeito, eu faço. Se eu me meti eu vou até o fim. Ele foi por lá, ele subiu para floresta, o sol foi ficando quente na minha cabeça, eu com vontade de fazer xixi, não podia sair do círculo, o povo começou a descer e nada dele passar no meu círculo para me soltar. Eu tive que fazer xixi na frente de todo mundo que tava voltando e vendo. Eu não aguentava mais, agachei e tive que fazer xixi, mas eu tava de calça comprida, eu tive que abaixar as calça, ficou na cara que eu tava fazendo xixi. Nem tava nem aí, tava todo mundo numa viagem já da noite inteira no mato, com medo dos bichos, né? E gozado, sou muito medrosa de bicho, mas não pensei em nenhum bicho, a única coisa, o meu desespero, é que a lama começou a descer e eu para não ficar no mato por causa dos bichos, fiquei numa pedra. A lama entrou debaixo do plástico e o plástico caía igual um tobogã e eu tinha que me segurar com as pernas, eu fiz força a noite inteira, me segurando para não cair do círculo de poder, porque também eu confiava. Eu tinha certeza que dentro daquele círculo nada ia me pegar, que não ia ter nada que me pegasse. E assim foram indo minhas vivências xamânicas, que foram muitas. Eu fiz sauna, não com o Foster, já com um outro xamã descendente de índio brasileiro, eu fiz sauna sagrada.
P/1 – O que que é?
R – A tenda do suor?
P/1 – É. É com o Sthan que você fez?
R – Eu fiz com o Sthan Xanniã, mas eu fiz com o Tidio, você conheceu o Tidio? O Tidio é um cacique dos Kariri-Xocó, de Alagoas, que vinha para trabalhar com o Sthan e trouxe uma turma grande de índios e eu fui por causa do Tidio. Porque inclusive ia ter beberagem e não é minha medicina, eu sei que não é minha medicina beberagem, né, ficar tomando beberagens. A minha linha é outra, por exemplo, fumar o cachimbo da paz foi o máximo. O primeiro que eu fumei foi com o Foster Perry, o cachimbo da tribo Hopi dos Estados Unidos, mas fumar o cachimbo para mim é o máximo. Cheirar rapé, delícia, agora beberagem não é minha medicina. Mas eu fui muito convidada, eu fui muito honrada pelo cacique, aí eu fui, fui fazer. Gente, de novo! A espertinha fica perto da porta da tenda do suor. A tenda não tem janela, é feito como se fosse a esfera da Terra, com os meridianos, os raios horizontais e verticais do planeta, tal. Tem só uma entrada, um buraco dentro, eles cozinham as pedras o dia inteiro até a pedra ficar em estado de lava outra vez, e aí vem trazendo. Tem um que vai com a pá lá, que foi meu filho que fez isso na época, que não é meu filho de verdade, mas o filho que a vida me deu. Aí ele pegava com a pá, punha as pedras lá dentro e aí o xamã fica lá cantando e pondo erva e tudo isso para purificação e vai acontecendo. Bom, eu fiquei perto da porta. Bom, cada um que entrava lá dentro, passava aqui do meu lado, foi entrando gente, ficou lotado aquilo, de não poder nem se mexer. Você não pode sair mais, mas um passou muito mal e teve que sair. Nós estávamos acho que já uns sessenta e poucos graus, 68 graus, sei lá, 70 graus dentro da tenda, que é feita toda de cobertor dessa grossura, não tem nada de metal é tudo de uma madeira que tem na floresta, aí tem que abrir pro cara sair. Aí o cara sai, entra o guardião que tá lá fora que era um dos índios, para purificar todo mundo outra vez e tal. Começou entrar um vento gelado em mim que eu queria morrer, ficando com torcicolo porque a espertinha foi ficar bem perto da porta para não ter sufoco. Bom, passei o resto da noite na tenda com o nariz enfiado na terra, que era mais úmida, para respirar, porque aquela história daquela tenda de xamã, de purificação, foi um terror para mim. O calor que fazia lá dentro, a secura, meu nariz querendo sangrar e eu igual avestruz, com o bumbum para cima e a cara enfiada dentro da terra para respirar. Então o meu percurso de xamanismo foi muito bom, muito bom mesmo, mas eu cheguei à conclusão que eu não sou um xamã. Que eu uso de técnicas xamânicas dentro do meu trabalho, porque sempre usei, sempre dei passe, sempre limpei as pessoas, sempre fiz faxina ambiental e com defumadores, com cultura brasileira, com cultura indígena, com cultura cigana, sempre trabalhei com tudo isso, então eu sou autorizada por todos os xamãs pelos quais eu já passei a fazer limpeza. Eu sou faxineira para eles, para eles eu sou uma excelente faxineira e hoje em dia eu aceito e trabalho com isso, ganho dinheiro com isso hoje em dia também, porque é a minha vida. Eu não tenho tempo para outros trabalhos que não os do meu conhecimento, do meu dom, né? Mas foi assim que eu fui entrando pelo xamanismo, mas eu uso. Hoje em dia eu juntei, eu tenho uma mesa de operação hoje em dia, porque eu não posso mais agachar, que eu tenho lesão na coluna, eu faço massagem nas pessoas por mil técnicas. Eu fiz curso com o filho do mestre Liu de tui-na, de massagem chinesa, Ivaldo Bertazzo da vida inteira, né, e eu junto hoje técnica de massagem com a técnica do passe energético. Eu vou enfiando a mão nas pessoas e vou tirando a energia turva e despachando, mas isso eu faço ludicamente com cantos que me vêm, alguns vieram e ficaram, que são fixos, que eu recebi, são fixos, cantos e cantos chamando as forças da natureza através da cultura. Então eu canto às vezes para Iemanjá, às vezes eu canto para Iansã, eu canto para essas figurações representantes de forças da natureza, para puxar a força da natureza ali para eu fazer o trabalho com a técnica de massagem, eu vou dando passe. Então hoje em dia eu chamo isso de profilaxia corporal, mas na verdade é tridimensional, é corpo-mente-espírito, né? Então hoje eu uso de técnicas xamânicas, eu faço resgate de alma, mas não dentro dos conformes aonde eu aprendi, eu vivenciei, com outro cenário, com outro figurino, com outro lúdico, mas respeitando a tradição, né? Trabalho muito com a radiestesia.
P/1 – Radiestesia? O que é?
R – É o pêndulo, que vai abrindo e entrando energeticamente nos espirais energéticos do meio ambiente, eu limpo escritórios. Eu sou chamada para limpar casas, escritórios, sou faxineira astral (risos), entre outras coisas.
P/1 – Eu queria saber que história de filho é esse que a vida te deu?
R – Então, eu tenho uma pessoinha que eu fui muito amiga de uma... quando eu tava muito doente... Eu vou começar de novo. Eu quando tava com reumatismo infeccioso, que eu vim para São Paulo, tudo isso, eu passei na mão de muita gente, de muito médico. Eu conheço todos os velhinhos homeopatas de São Paulo que quase todos já morreram, porque eu tive uma experiência... eu primeiro não vim direto, eu saí da Paraíba e fui para Paraty, porque eu não queria voltar para São Paulo de jeito nenhum. Em Paraty, imagina, a Santa Casa de lá era um caos, né, o médico de Paraty falou para mim: “Ana é seríssimo, você tá com reumatismo infeccioso, você precisa procurar ajuda. Eu nem liguei. Mas aí o que que eu tomava? Penicilina, Benzetacil todo dia, que entupia as agulhas. Eu já tinha trauma de criança, porque penicilina quando eu era nenezinha que eu tive pus na pleura do pulmão, antes, quando eu tive pneumonia, eu já tomava Benzetacil e aquilo entope a agulha, faz caroço no bumbum, era um horror, né? Eu de novo na penicilina, tomando penicilina porque o processo infeccioso generalizou, e toca fazer exame de AIDS, de tudo, por quê? Eu tive síndrome imunológica nessa época. Caiu minha imunidade, foi para zero. Aí tinha que ir no Rio de Janeiro fazer os exames que era mais perto de Paraty e voltar. Até que um dia um hóspede... aí eu arrumei emprego de gerente de um hotel, do meu amigo, do Vilaboim de Carvalho junto com o Paulo Autran, que eles tinham um hotel lá em Paraty e me contrataram de gerente, porque aí eu morava no hotel e eles me cuidavam, porque eu tava doentíssima. Aí um hóspede chegou para mim um dia e disse: “Pensei que você fosse meio lesa, meio tonta, mas não, você é doente. Você tá com alguma coisa. Eu sou homeopata, mas não sou médico, eu fiz curso de homeopatia, mas não sou médico. Mas o meu companheiro lá no Rio de Janeiro é médico homeopata e você vai lá, porque eu vou ligar para ele e você vai se consultar com ele, porque você tem alguma coisa grave aí que eu vejo, que é naquela horinha da febre que você cochila, que você não fica bem. Eu falei: “É verdade, eu tenho febre reumática. Eu tenho febre todo dia, na mesma hora, sete horas da noite eu tenho febre”. E aí eu fui lá pro Rio de Janeiro, comecei a me tratar lá, depois que eu vim para São Paulo. Mas eu caí na mão, um dia, do velho Almeida Prado. Que tinha uma casa aqui em Pinheiros, aqui em baixo em Pinheiros, ele tinha uma casa aonde ele tinha um monte de aparelhos que ele foi desenvolvendo cientificamente, que tiravam dor, que vibravam e tiravam dor. Era um laboratório de experiências do velho Almeida Prado, de uma coisa de caixa de ozônio, sei lá o que que eram aqueles aparelhos que vibravam, faziam barulhos sonoros e eu fui aceita lá e ele tinha uma vacina para criar imunidade. Ele desenvolveu uma vacina que os laboratórios no Brasil não deixaram publicar, então ele vendeu para Alemanha. Então eu tomava com ele porque ele fazia e aplicava nos pacientes dele ou tinha que comprar importada da Alemanha, que era um absurdo total. Então eu ia lá todos os dias no velho Almeida Prado para tomar essa vacininha que tinha, tinha que me pesar todo dia porque de acordo com o peso e com a medida, era a dose que tomava. E doía muito essa vacina, até que um dia tinha fila de gente, e eu tinha cliente, eu tinha que ir embora, falei: ”Mas não tem ninguém para dar essa injeçãozinha? Só o médico?”, “Ah, tem o Paulinho”, “Quem que é o Paulinho?”, “Ah, o Paulinho é acupunturista, é medico descalço, da coisa chinesa”, pensei que fosse um chinesinho. Não, era um mulato mais para crioulo do que para mulato. E o Paulinho foi me dar vacina e não doeu. Falei: “Esse menino tem algum dom”, e aí nunca mais quis fazer com outra pessoa. Aí um dia eu fui lei mão dele e aí a gente ficou muito amigo. Ele me levou para Santos conhecer a família imensa dele, de muitos filhos, e quando lá cheguei fiquei fascinada, porque eu sou de família pequena e era uma casa relativamente pequena, e 14 filhos e uma mãe que era um índia, embora a pele branca, era uma índia de traços, de cabelo, de jeito; e um pai bem crioulo, bem cafuzo, índio com preto. E o mais novinho, nove anos de idade, grudou em mim, o Beto, e eu nunca mais fui nessa casa, mas o Beto nunca mais me perdeu de vista. E o Beto me ligava, o Beto me telefonava. Aí o irmão dele, o Paulinho, morou um tempo na minha casa que ficou sem residência aqui em São Paulo, trabalhava aqui em São Paulo, fazia acupuntura aqui em São Paulo, medicina chinesa, tinha mestre chinês, mas não tinha nem descendência de chinês e eu muito amiga dele, mas tinha umas coisas de ética que foi separando a gente, que não foi dando mais para ficar tão perto. E o Beto me ligava, o Beto foi ficando mocinho, o Beto era muito bonito, um crioulinho lindo e aí o Beto começou ficar meio vaidoso, o Beto começou fazer teatro, em Santos. Aí eu ia para Santos para assistir as peças de teatro do Beto, até que o Beto começou também, dos 14 irmãos, era o Paulinho curandeiro e o Beto começou a seguir o caminho do irmão, mas eles não se bicavam muito. O Beto tinha um caráter mais parecido com o meu do que o Paulo. Então o Beto foi chegando perto até que chegou uma hora que o Beto queria vir para São Paulo, não tinha recurso, eu tava morando num bom apartamento que tinha quarto de hóspede, tava podendo, aí eu trouxe o Beto para morar na minha casa, para se ajeitar, para ver o que vai ser quando crescer, o que vai estudar, o que vai fazer… Porque tinha essa vertente da cura, mas tinha uma vertente nele também do artista, músico nato, tocava qualquer instrumento que pegasse, dançava muito bem. Aí passou pelo Ivaldo Bertazzo também, dançou pro Ivaldo e tal, mas um gênio! Um leão difícil, orgulhoso, difícil! Mas a gente foi ficando numa relação muito mãe e filho. Aí um dia a mãe dele me liga e muito emocionada no telefone e eu fiquei muito emocionada, e ela dizendo para mim: “Olha Ana, eu quero muito te agradecer porque o Beto é o mais novo dos meus filhos, é o mais ingênuo, é o mais gentil, é o mais puro de todos eles. Eu tenho muito medo do Beto aí em São Paulo, e esse meio que ele frequenta de artista, de tudo isso, eu to muito contente de saber que ele tá na sua casa porque embora a gente só tenha se visto uma vez, eu tenho certeza absoluta que ele tá bem e que você cuida dele.” Eu falei: “Isso é meu defeito. A senhora fique sossegada que disso eu não me livro. Eu sou cuidadora, eu cuido mesmo, eu sou mãe frustrada, é fácil eu adotar o outro.” E fui criando essa relação com o Beto, fui criando, aí um dia na Paz Géia, na escola de xamanismo, tinha um encontro com Foster Perry - eu já me encontrava com ele há dois anos e ia ter um encontro com o Foster Perry e eu tinha um amigo mais velho que eu, que era o diretor da Alcântara Machado, tudo isso, que era muito atrapalhado com essa coisa de espiritualidade também e eu fiz comprar um programa para ir para se tratar com o Foster e chegou na véspera, ele tirou o corpo fora, e falou para mim: “Mas como já está pago, dê para uma pessoa que você acha que vai aproveitar”. Eu chamei o Beto, falei: “Beto, caiu no teu colo”, porque ele nunca tinha e eu nessa época já tava mais dura, já não tava podendo bancar para ele, já o Foster já tava cobrando em dólar, não tava mais traduzindo em cruzeiro ou real, né, em real, aí eu falei: “Vamo?”, “Vamo”, e o Beto se deu muito bem no meio, já tinha muita cultura de raiz negra, que ele sempre se interessou, então já cantava, já tocava tambor, já entrou no tambor com o Foster, já foi pros Estados Unidos, que eu não quis ir, ele foi pros Estados Unidos com o Foster. Eu quando fui pros Estados Unidos, eu fui pro lugar mais sem religião que eu já conheci, fui pro sul da Califórnia, em Irvine, fiquei lá um ano no meio de ortodoxos. Aí o Beto foi, ficou lá, um pouco lá com o Foster, e foi seguindo, depois eu rezei muito, eu pedi muito que arrumasse uma pessoa no Brasil, aí apareceu o Sthan Xanniã, e o Beto foi de cabeça nos treinamentos e eu me desentendi um pouco com Sthan Xanniã sempre pelo mesmo motivo, de todas as vezes que eu me desentendi com os religiosos, que é a coisa da ética, mas isso é uma coisa da cultura brasileira, da educação brasileira que não respeita moral e ética. Então é difícil que as pessoas possam se exercer dentro se não conhecem, se não tem conhecimento disso também, então tenho uma relação boa com o Sthan e tudo, mas uma coisa que foi ficando impossível para mim, mas nunca interferi e o Beto tinha muito bom proveito, até o dia que o Beto sentiu que tava maduro e que era hora dele criar a própria linha de trabalho dele, e a gente foi estreitando nossa relação e hoje ele tem um filho que mora na Alemanha, que tá com um ano e três meses. Ele mora aqui o Beto, agora tá voltando hoje de lá, que foi ver o filho dele na Inglaterra e ele é um excelente, o Beto é um excelente terapeuta corporal, então ele trabalha muito para bailarinos. E a mãe do filho dele é bailarinha da Pina Bausch, então ele consegue ir trabalhando, atendendo e coisa, ele vai ver o filho e fica nessa vidinha e eu não convivo com meu netinho também, só quase no Skype. Só que ele é muito vivo, ele já nasceu no Skype. Bom, ele veio pro Brasil com um mês, eu carreguei ele no colo com um mês de idade. Ele fala, eu falo para ele: “É a vovó Ana, você tá bom?”, ele fala: “Ana, Ana”, eu digo: “Ai que papagaio lindo”. Aí eu fico fazendo micagem para ele que ele gosta, depois que desliga, o meu filho fala que ele fica tentando fazer. Eu faço cachorrinho para ele e tal, que ele fica tentando. Mas aí então estreitou mais ainda o meu laço com o Beto no sentido de que eu sou avó agora do filho dele, e a gente se considera muito como mãe e filho.
P/1 – Eu queria perguntar Ana, quando que seu pai faleceu.
R – Meu pai faleceu há nove anos. Fazem nove anos que meu pai faleceu. Fazem nove anos que eu resolvo minha história cármica com a minha mãe. Numa imagem assim de expressão eu diria, minha mãe era de Lemúria e eu de Atlântida. Meu pai era de Atlântida, a minha mãe de Lemúria e sobrou eu e ela, eu cuido dela há nove anos. O ano passado eu me esgotei muito, minha irmã mora em Brasília, eu mandei para Brasília para minha irmã cuidar, minha irmã não deu conta. Ficou cinco meses com ela e não deu conta e aí não dá para abandonar, aí eu trouxe ela de volta, to cuidando dela.
P/1 – Do que que seu pai faleceu, Ana?
R – O meu pai? Meu pai era diabético, de família toda diabética que somos e então qualquer coisa acaba caindo no estado da diabete prejudicar, mas meu pai teve um câncer no intestino, operou, durou quatro anos, no quinto ano teve metástase, e aí espalhou pelos ossos e cérebro. Então acho que morreu de câncer. Mas na verdade, a morte, o problema mesmo de ter chegado à morte, foi porque já não conseguia mais reagir, a diabete tomou conta e não tinha mais jeito porque a quimioterapia altera completamente. Então foi ficando muito complicado o quadro dele, não deu pra... Mas ele morreu muito em paz, ele foi uma pessoa muito interessante na minha vida. Ele era muito otimista, e para ele não tinha dificuldade que o ser humano não pudesse vencer, embora quando jovem fosse muito nervoso, ele me bateu uma vez só na vida também, porque eu reagi também e ele não bateu por minha causa, ele bateu de raiva porque ele queria fazer alguma coisa e largaram ele tomando conta de mim. Saiu todo mundo e ele me bateu porque eu não quis tomar um suco de fruta porque tinha pelinho. Eu era enjoadinha. Esse barão na minha vida aí, nessa descendência, só não me deixou a herança, né, mas as frescuras todas. O suco não foi coado, tinha pelinho, fiapinho, não conseguia tomar, aí ele me bateu, mas foi uma vez só porque eu reagi forte com ele, né? E a gente foi muito amigo, a gente foi sócio a vida inteira e ele foi uma pessoa que fez muita magia nessa vida. Ele concentrava e realizava, mesmo aparentemente não tendo estabilidade, porque tinha essa dificuldade de negócio, né, mas quando eu tinha dezoito anos que ele abriu, ele tinha uma cordoaria que deu certo. Aí deu lucro ele arrumou um sócio que comprou a junta do Nordeste inteirinho no nome do meu pai, fugiu pro Paraguai, sumiu e todas as dívidas ficaram pro meu pai. E meu pai tinha aberto duas adegas porque tava indo bem, tinha dinheiro para isso e aí perdeu tudo, eu já tinha 18 anos, vendi meu carro para ajudar, tinha comprado meu primeiro carro, vendi para ajudar. A gente sempre foi muito sócio, muito respeitoso, e ele nunca desanimou. Ele acampou pelo Brasil inteiro num tempo que as barracas, ele arrumava no exército, costurava em baixo uma rede, porque a minha mãe tinha medo de bicho, e ele carregava minha mãe junto. E eles viajaram a America Latina inteira, de carro, acampando no tempo do nada. Quando não tinha onde acampar, não dava, ele batia... Na Bahia, por exemplo, eu já era grandinha quando eles foram e não arrumaram onde acampar, tava tudo lotado, os campings não eram muito bons, ele batia nos colégios de freira, se apresentava como congregado mariano, “Minha esposa, e a gente tá passeando, não tinha onde dormir. O que eu ia pagar no hotel eu pago para vocês. Me arruma um quarto”, e as freiras ficavam encantadas e recebiam o casalzinho de velhos, que não eram tão velhos ainda, mas foi logo depois que eles aposentaram. Depois que aposentaram eles só faziam isso. Ele comprou uma carreta e pôs tudo dentro da carreta e andavam por aí de carreta, e arrastando a mãe junto. E nessa meu pai visitou o mundo inteiro. Meu pai deu a volta no mundo e com pouco dinheiro, muita sabedoria, muita coragem, e uma capacidade de concentrar, de fazer o mago mesmo, de concentrar e materializar o que precisa ali na hora. Mas ele era um cigano, o negócio dele, ele abria mãe de tudo de qualquer vida cultural. Só empregava o dinheiro dele nas viagens, o negócio dele era viajar.
P/1 – E a sua...Vera, né, sua irmã?
R – Minha irmã chama-se Vera.
P/1 – E sua relação com ela durante...
R – Olha, a gente é irmã assim, tem uma relação de irmã, mas a gente se dá muito bem porque a gente mora longe uma da outra desde muito tempo. É muito fácil se dar bem. Porque ela saiu para casar, ela casou, foi criar filho, ela foi morar no Rio de Janeiro, que o marido era bancário e foi transferido pro Rio de Janeiro, então ela foi pro Rio de Janeiro. Eu sempre visitei meus sobrinhos, cuidei, tudo isso, mas as afinidades e as intenções de vida, nada a ver uma com a outra.
P/1 – O que ela faz?
R – A minha irmã hoje em dia, faz muito artesanato, é uma excelente artesã, mas não tem muito espírito profissional, então pasta muito, porque não organizou a vida dela para ser profissional, mas é excelente artesã, mas por muitos anos foi dona de casa, mulher traída e dona de casa, isso que ela era. Mãe de filhos, de dois filhos, mas a visão de mundo da minha irmã é muito pequenininha. Hoje em dia ela mora em Brasília, eu fui para Brasília em 1996, de mala e cuia, desmanchei minha casa, fui embora porque eu previ, senti que eu ia passar tudo isso sozinha, de enterrar meu pai, de cuidar da minha mãe, tudo sozinha e eu não tenho essa estabilidade familiar porque meus maridos morreram, meus filhos morreram, eu sou viúva, eremita e do mundo, né? Aí eu falei: “Vou para lá porque aí meus pais vão, porque tá a minha irmã, tô eu, não tem mais porque, eles são aposentados, ficarem aqui”. Com a carreta podem ficar lá em Brasília em vez de ficar aqui. Sair de lá, eles adoravam Caldas Novas para acampar e tudo, e fui. Bom, foi um desastre total na minha vida, perdi todo o dinheiro que levei. A minha clientela lá, todo mundo dizia que aquele lugar é esotérico, nem disco voador eu vi lá, só vi disco voador em Paraty quando era casada e depois meu marido diz que viu sim, naquele tempo, mas que depois não viu mais, não acreditou mais que viu. Eu falei: “Bom, eu ainda acredito que eu vi porque eu vi”, eu vi mesmo. O que era não tenho a menor ideia, mas dizer que não acredito, mas que vi foi muito forte para mim. Mas minha irmã mora lá em Brasília e hoje em dia faz artesanato e guenta a vidinha.
P/1 – Eu tenho duas perguntas para fazer antes de acabar, mas se você quiser contar mais alguma coisa que eu não perguntei...
R – Eu não lembro mais de nada, porque eu to tontinha dessa viagem e ainda faltou tantos lugares pelos quais eu passei.
P/2 – Mas seus pais foram para Brasília?
R – Não, nada, magina! Eu fui para lá, eles foram visitar e voltaram correndo e eu descobri que meu pai era muito malandro também na oratória. É porque ele ficava dizendo que era minha mãe que não queria ir porque ele tinha certeza que minha mãe não ia querer mesmo, mas na verdade meu pai também não queria. Porque se ele quisesse ir mesmo, ele mandava nela, ele mudava. Era desculpa porque também não saiu daqui, eu que tive que voltar, bem. Com a metade do patrimônio. Que eu vendi a minha casa de Paraty, magina, e comprei Brasília! Como eu não conhecia quase Brasília, porque eu só ia no Natal na casa da minha irmã no lago Sul e no Lago Sul eu tinha certeza que eu não tinha poder aquisitivo para morar, e vejo o que a minha irmã passa na Lago Sul por não ser do mesmo poder aquisitivo dos vizinhos… Aí eu peguei e comprei no núcleo Bandeirante, que é onde a cidade começou, né? É o começo de Brasília, e era um horror! Foi um horror. Graças a esse menino que foi virando meu filho que eu não morri de tédio lá, porque ele foi até lá para me apresentar uma grande amiga dele que morava lá que tinha feito _____01:26:37____ e que era uma pessoa muito interessante que tava trabalhando no Itamaraty na época para sustentar um filho cego, para poder sair do Brasil depois com o menino, foi tudo que ela fez, que hoje esse menino tá na faculdade, tá de novo em Brasília. Mas ela me ajudou bastante, formou um grupo de quiromancia para eu dar aula, um grupo de tarô, e sobrevivi um ano. Mas Deus me livre, foi um caos na minha vida Brasília.
P/1 – Então eu vou fechando já aqui. Quero perguntar qual o seu sonho hoje?
R – Olha, eu tenho sonhado pouco. Mas mesmo assim eu sei que eu sonho, porque a verdade eu to tendo pouca consciência dos meus sonhos, porque eu to numa luta muito Terra a Terra com a minha mãe que é a representação da morte, né, e da vida, e eu to numa luta muito Terra a Terra atualmente de sobrevivência, de dinheiro, para poder não faltar nada para ela, para poder resolver que eu quero dar o melhor possível para velhice dela, né? Ela tá com 93.
P/1 – Ela mora com você?
R – Agora não... Bom, já não morava, porque eu moro num quarto, sala, cozinha e banheiro, mas ela morava pertinho da minha casa e eu que tinha que administrar a casa dela. Aí foi ficando impossível e agora eu coloquei ela numa casa de idosos, mas é uma tarefa grande porque a eficiência profissional em todas as áreas é muito precária. Se não melhorar a educação no Brasil, o caos vai ser grande porque as pessoas não se formam de verdade para atuarem dentro do seu conhecimento e então não tem conhecimento e vai que vai. Então hoje as empregadas domésticas fazem um cursinho de três meses, que na verdade é para os parentes dos velhos se situarem sobre a velhice, né, para alertar sobre Alzheimer, etc, e se empregam ganhando o dobro do que empregada doméstica, como cuidadora de velho e não tem o menor conhecimento, não tem a menor noção de higiene, de nada disso. Muito complicado. E essas pessoinhas tão se empregando nas casas que se multiplicam. Porque eu fui a juventude do boom, né, no Brasil, de tanta gente. E agora eu já tô ficando velha, então meus pais já são muito velhos, entendeu? Meu pai tá morto, mas minha mãe tá viva e como ela eu to vendo, porque a medicina dá um monte. Por exemplo, minha tia já morreu três vezes. Vai pro hospital, ressuscita dos mortos, porque eles dão umas droga que entra na veia que a bichinha volta, quer dizer, mas não anda mais, não tem qualidade de vida, sabe? Que política é essa? Não tem uma assistência social real para velhos, não tem entretenimento para velhos, não têm ocupação para velhos, né? E então eu acho que a gente tem que voltar. Eu como professora primária, eu sempre sonhei em ver a educação, né? Eu quase fui presa, eu não contei esse pedaço meu também, que eu fiz exame no Fernão Dias Paes com metralhadora em cima de mim, para tirar diploma de professora primária, porque nós fizemos um trabalho que nós tínhamos uma colega que era mãe e filha, duas colegas. Nós fizemos um trabalho de ordem de tese, sobre a reforma, a possibilidade de fazer uma reforma de ensino, sem dinheiro. E aí o nosso trabalho foi preso. A nossa professora de pedagogia entregou para Secretaria de Educação, dizendo que tinha ficado surpresa com a qualidade do trabalho que nós fizemos e nós fomos pro Rio Grande do Sul e documentamos toda uma escola de periferia lá, sensacional, fantástica, e no fim essa escola fechou também. Os militares fecharam essa escola, e aí a gente nunca soube se essa mulher era dedo duro e precisava mostrar serviço, porque nós sabíamos que ele tinha um tio coronel, do exército, ou se ela era mais ingênua que nós, né? Que pegou o trabalho e foi mostrar na secretaria, prenderam o trabalho, deram falta pelos dias que a gente ficou no Sul, deixaram de segunda chamada, fizemos nós cinco a prova. Mas nós tínhamos notas muitos boas, eles não podiam reprovar a gente, porque a gente já tinha média e fizemos o exame final com polícia armada dentro da secretaria do Fernão Dias. Isso não tem registro de fotografia de nada para provar.
P/1 – Desde quando você dá aula? Você dá aula para criança?
R – Não dou, nunca exerci. Imagina que eu ia pegar aquela repressão! Os nego queriam que eu massacrasse as crianças e fizesse virar tudo soldadinho. Não dei aula, larguei, fui ser cartomante. Eu dou aula hoje sabe do que? Outro dia eu falei para tirar visto pro Estados Unidos a última vez, eles perguntaram aula do que que eu dava porque eu me registrei, sou aposentada como professora autônoma. Eu dou aula de eloquência, ensino as pessoas a se expressarem, mas eu não exerci nunca minha função com criança. Tentei entrar pela educação física, porque eu já adorava os jogos, as brincadeiras, né, não adianta porque para prestar concurso pro Estado você tinha que passar pelo crivo da Polícia Federal na minha época. Eu vi os tanques entrando aqui no Largo de Pinheiros, né, eu me formei em 1969 como professora primária. Então em 1969 eu fui posta na metralhadora, eu falei: “O que é isso? Eu não sei nem o que tão falando, que eu sou subversiva. Eu to falando em reforma de ensino, em criança comendo, em criança construindo com mutirão de família, a família fazendo mutirão. Eles tinham aquecimento, porque era frio, foi num inverno. Fui em agosto lá pro Sul. Eles tinham aquecimento. Eles pegavam aqueles baús de óleo grandes, cortavam no meio, pegavam os bujões de óleo menor, faziam a chaminé e chegava naquelas fábrica de móveis todas, pegava aqueles restinhos, cortinho de madeira de lei, punham fogo. Tinha lareira dentro da sala com aquele perfume de madeira de lei e as salas aquecidas e a gente naquele tempo não tinha nada para gravar ou filmar, mas a gente foi fazendo slides, documentou tudo com slides. Era um calhamaço assim, a gente traz uma tese inteira mostrando que era muito simples, todo o material construído dentro da própria escola. Todo o material didático, flanelógrafos e histórias que a gente colhia do próprio coletivo. Aí eu queria ser professora, nessa tese eu queria fazer uma escola dessa e ser professora. Porque implicava inclusive em tirar aluno de dentro da escola e andar olhando as casas, o urbanismo. Magina, no terceiro ano primário nessa escola, ensinava a fazer planta de quarto, sala, cozinha, e fossa, e ensinava a fazer adobe e ensinava a fazer horta. Porque dizia: “Se o homem souber construir sua casa e fazer sua comida, sua subsistência alimentar, ele não tem do que ter medo, ele não tem porque ter medo da vida.” Então eles ensinavam a medir, fazer planta, calcular a altura, quanto que aguentava e peso, fazer amarração do telhado, era tudo amarrado com cipó, aquelas madeiras amarradas com cipó. Eu fiquei fascinada na época, mas nunca exerci, cheguei aqui era outro papo.
P/1 – Tem alguma coisa que voltou para a memória agora, Ana, para contar? Que eu tenho uma última pergunta para fazer, que é mais de praxe, mas se tiver uma outra coisa para contar.
R – Então, eu lembrei porque que eu não continuei no SESC Pompéia também. Porque eu não era registrada, eu era autônoma, alguns amigos eram registrados e eu quis ser registrada como orientadora do atelier de cerâmica, aí eu fui no SESC lá no departamento que me mandaram, preencher um questionário, formatar para poder assinar a minha carteira e eu virar funcionária. Eu ganhava mais como autônoma, mas eu queria estabilidade, né? E aí era época de eleição, e aí eu tenho um trauma que eu não lembro o nome do cara do SESC nessa época, mas eu tinha que declarar que eu ia fazer propaganda política pro Paulo Maluf que aí eles me dispensariam quantas horas necessárias do meu emprego, para eu contribuir, porque o cara do SESC nessa época era malufista e eu não assinei. E aí eu não pude ter emprego fixo no SESC. E assim mesmo, minha memória é muito traumática, porque eu não podia esquecer o nome de quem que era o cara que era associado com o Maluf, né, mas eu esqueci, talvez pro meu bem.
P/1 – Quero perguntar Ana...
R – Nada mais...
P/1 – A última pergunta. O que você achou de contar um pouco da história hoje?
R – Olha, eu adoro falar, eu sou uma contadora de história. Nisso eu sou um xamã, porque adoro uma roda, uma fogueira. Isso para mim é a fogueira, porque vocês acreditem ou não, nem fico olhando muito porque eu quando olho dentro assim de uma lente, eu vejo o público, e eu quando trabalhei na televisão descobri isso, que a lente é público e isso é fascinante para uma leonina como eu e para uma contadora de história, ter a oportunidade que vocês me deram, né, tão me dando, de falar sobre a minha pessoinha e ao mesmo tempo contar a história de São Paulo, de Pinheiros, né, a história de vocês também que eram tudo criancinha, quando eu tava lá na cama do... Olha, você não era nem nascido, nem você, nem você. Você, de meses no bercinho talvez, talvez hein! Eu acho que também não. Você lembra do faquir?
P/2 – Não.
R – Você não era nascida no tempo do faquir, que eu ficava lá tentando sentar na caminha de pregos, não é, porque isso tem mais, quer ver? Olha, eu tenho 65 anos, eu tinha no máximo dez anos. São 55 anos, até você não era nascida de jeito nenhum, nem com plástica não dava para você ter essa carinha.
P/2 – Setenta e cinco.
R – É, né, então! Então vocês me deram essa oportunidade e tinha um chavão assim popular desse tempo onde era, quando eu era mais jovem, que falava que recordar é viver. Aí era uma musiquinha: “Eu ontem sonhei com você” (cantando), então você me perguntou dos sonhos? Assim, não to muito consciente, sabe, dos sonhos, tô muito preocupada inclusive em viver hoje, aqui, agora, o melhor que eu posso, o mais intenso, o mais presente possível, porque eu tenho certeza que com toda essa minha bagagem, se eu conseguir viver o presente de verdade, com todo o meu coração, com toda a minha cabeça e toda a minha alma, eu vou me dar bem, mesmo não lembrando muito dos sonhos.
FINAL DA ENTREVISTA
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