Programa Conte a sua História
Depoimento de Regina Salles
Entrevistada por Carol Margiotte e Inara Navarro
São Paulo, 16/05/2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV675
Transcrito por Eliane Miraglia
Revisado e editado por Viviane Aguiar
P/1 – Regina, bom dia! Muito obrigada por ter vindo aqui hoje. E, para começar, seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Bom dia! Bom, meu nome é Regina Maria Salles de Andrade. Nasci em São Paulo, no dia 28 de janeiro de 1954.
P/1 – E a senhora conhece a história do seu nascimento? Do dia do seu nascimento? Como foi?
R – Não. Não conheço.
P/1 – E você sabe o porquê da escolha do nome Regina também?
R – Regina porque, minha mãe que contou, que meu pai que escolheu este nome porque eu era a última a nascer, que ele não queria mais filhos. Então, ele definiu como rainha. Mas isso minha mãe contou muitos anos depois. Eu não acreditava. Só a vez que eu vim a pesquisar e sabia que era realmente rainha. Regina. Só isso que eu sei.
P/1 – E, falando de seus pais, qual o nome deles?
R – João Salles de Andrade e Maria Júlia de Andrade. Eles são caiçaras. Nasceram em Ubatuba. Meu pai serviu à guerra em 1932. E conheceu minha mãe, e eles se casaram e vieram para morar em São Paulo. Só isso que também eu sei da história deles.
P/1 – Mas não sabe como eles se conheceram?
R – Não. Não sei. Não sei.
P/1 – E eles contavam histórias da vida deles em Ubatuba? Da infância?
R – Não. Só minha mãe que contou. Eu que ficava assim, querendo saber da história. Que ela contou que inclusive ela era filha, a minha avó, a mãe dela, era escrava. E ela foi assim, tipo um estupro, pode se falar, de um senhor, e ela nasceu desse relacionamento que a minha avó teve, a mãe dela teve. E ela me contava assim, meio restrito, porque naquela época a gente... Só para quem pergunta. E meus irmãos hoje nem sabem disso. Não sei se eles sabem. Mas não sabem. E assim foi a história que ela contava. Que era de Ubatuba, única filha também, e foi crescendo. Mas ela não contou como foi que ela conheceu esse homem. Ela não contou. Ela contou que se casou com ele, aos 24 anos. Ela tinha 24 anos quando se casou. E vieram para São Paulo. E ficou com ele apenas, só dez anos. Porque ele faleceu, ela tinha 34 anos. Tiveram oito filhos. O primeiro filho dela faleceu aos seis meses, que ela também contou essa história. Depois, teve mais sete. Teve gêmeos. O segundo filho dela foi “gêmeos”, meus irmãos, depois foi uma menina, outra menina, um menino e eu, que fui a última.
P/1 – Fale o nome de todo mundo, então, na ordem.
R – Ah, tá! O primeiro se chamava João também. O primeiro, que faleceu aos seis meses. Os gêmeos: Brasilino e Júlio. Aí, veio a Láice, que o nome dela tem um acento: Láice. Mas todo mundo conhece por Laíce. Depois veio a Alaíde. Depois veio o João, que é o filho que é o nome do pai, João Salles de Andrade Filho. Depois veio o Francisco Salles de Andrade, que é Sobrinho, que é irmão dele, do pai. Depois vim eu, que tenho dois nomes, que é Regina Maria. As minhas irmãs só têm um nome. Isso também me deixou muito assim encafifada. Por que só eu recebi dois nomes? Porque todos têm um nome só.
P/1 – E o Maria?
R – Não sabe. Pôs Regina Maria. Colocou como Regina Maria só.
P/1 – E como era, como foi ser caçula da família?
R – Olha, não foi! Não foi porque eu não vivi com eles. Porque eu conheci meus irmãos aos sete anos de idade. Eu, até os sete anos de idade, eu conhecia eles através da janela do hospital. Porque eu fiquei internada, porque eu tenho sequela de poliomielite, na infância, aos 11 meses, que eu tive. Meu pai faleceu, eu tinha três meses. Meu pai era militar. Aí minha mãe que, minha mãe e a mãe dela, minha avó, que ficaram nessa correria de hospital. E eu fui a única que nasci no hospital militar. Também no Cambuci. E aí minha mãe não sabia o que fazer, acho. E de repente me internou na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, e lá eu vivi. Eu fui entender o que era mãe, vó, sei lá, com cinco anos, que eu tinha. Recebia visita, mas só o pessoal do quarto, só aparelhagem, que lá no hospital eu fiz quatro cirurgias. Depois que eu fiz a quinta. Então, eu só conhecia através de ali, visitas que iam no hospital. Minha mãe, que se dizia mãe. E quando, um pouquinho maiorzinha, acho que aos cinco anos, que ela começou a falar: “Você tem irmãos!”. E eu: “O que é isso?”. Eu não sabia o que era. Irmãos? “Não, você tem irmãos. Assim, assado”. Mas nunca trouxe fotos porque a gente era muito pobre, não tinha esses negócios de apresentar. E, em determinado tempo, ela começou a trazer eles para mostrar da janela que podia. “Ah, fulano. Aquele é sicrano.” Então eu via da janela do hospital. Mas lá no hospital que eu comecei a andar, a falar. Eu conhecia as enfermeiras. Nem eram enfermeiras. Na época eram madres. Eram as madres. Então eu, assim, aprendi a ler no hospital. Então, me destaquei muito lá na Santa Casa. Aprendi a ler, ensinava as outras meninas. Porque eu era a única que andava também, porque as outras... Eu tinha aparelho e andava. As outras não. Não andavam. Era muito deprimente naquela época. E fiquei ali durante sete anos.
P/1 – A senhora lembra como era o quarto em que a senhora ficou? Quantas camas tinham? Consegue descrever um pouco como era esse ambiente hospitalar no dia a dia?
R – Eu acho que... Não, lembro! Inclusive eu tenho um pouco de paúra quando eu chego em hospital. Era muita ferragem. Muitas máquinas que tinha. A gente ficava presa porque não sei, acho que o movimento, eu vim a ver isso muitos anos depois, quando trabalhei em hospital, o porquê daquilo. Então, muita ferragem. Eu só tive problema na perna direita. Então, eu não ficava assim muito...
P/1 – Imobilizada?
R – Imobilizada! Porque eu tinha todos os movimentos dos braços, só não tinha das pernas, não conseguia andar. Aí, quando eu comecei a andar, que eles puseram aparelhos, que eu comecei a circular pelo hospital, que eles viram que eu tinha condição. Eu comecei a circular pelo hospital. Então, eu lembro que eram três camas no hospital. Três camas. Era um quadrado. Só que era muita ferragem. Eu não entendia aquilo. O porquê daquilo. Porque era muita ferragem. Por quê? As outras duas outras crianças que estavam lá, elas ficavam só amarradas. Então, à noite, era insuportável. Muito grito, choravam muito. E eu, às vezes, eu nem dormia. Eu ficava andando. Então, eu fiz muita amizade no hospital. Fiz muita amizade. Então, eles gostavam porque eu não andava. E eu ficava ali. E lá que eu aprendi a nadar, a escrever, a ler, ensinava. E era muito bom o hospital. Naquela época, a Santa Casa era um dos melhores hospitais que tinha. Então, ele era muito bom e não era para qualquer um. Não sei por quê. Não sei pelo fato terem me mandado do Hospital da Cruz Azul, que o meu pai era militar, que a gente tinha direito, até me mandarem para lá. Que lá só tinha famílias ricas, que a Santa Casa eram só famílias ricas. Eu não via, então, eu realmente perguntava: “Ah, mas por que não tem criança da minha cor? Só tem criança branca?”. Não tinha crianças negras. Então, eu acho que tive esse privilégio de ter sido enviada através do hospital... Hoje que, hoje não, há muito tempo que eu tive essa noção. Mas nunca me passou pela cabeça que era isso. Que a Santa Casa, na época, era assim.
P/1 – Eu sei que a senhora era muito nova, mas se conseguir ter essas lembranças, Dona Regina, mas tranquilo se não lembrar... Tem algum médico ou alguma madre que foi marcante, por algum cuidado que a senhora recebeu da pessoa?
R – Ah, sim! Tinha na época o médico que cuidou de mim... Então, na época chamava-se Pavilhão Fernandinho, chamava Pavilhão Fernandinho, na Santa Casa. Então, o médico, lembro até hoje, porque ele era lá da Santa Casa e da Cruz Azul, Doutor Athos do Amaral. Não me esqueço porque ele cuidou de mim até os meus, deixa ver, até os meus 28 anos. Ele cuidou de mim. Porque ele era da Santa Casa e da Cruz Azul. Agora, de madre eu não lembro. Não lembro. Lembro do nome da minha primeira professora, do primário, mas não lembro lá do hospital, dela. Só lembro do médico mesmo porque ele que estava ali, que me acompanhou mais mesmo. Ele me acompanhou depois que eu saí do hospital, que a gente também veio rever lá sendo cuidada pelo Hospital da Cruz Azul.
P/1 – E, nessas visitas que sua mãe fazia, como era esse momento? O que que ela falava? O que era essa troca de conversa entre vocês?
R – Então, ela só dizia que eu tinha irmãos, que era para eu não esquecer que tinha irmãos. Que não era aquilo ali. Imagino que seria isso. Que minha vida não ia se resumir aqui. E que um dia ela ia me tirar. Porque eu queria ir embora. Ai, não vou conseguir.
P/1 – Pode no seu tempo, tá, Dona Regina? Não tem pressa.
R – Porque eu queria sair. E ela falava: “Não! Você aguarda que você vai para casa”. Aí tudo bem. Só falava isso, que eu tinha irmãos. Aí foi quando ela trouxe. Começou a trazer eles ali, né? Difícil. Aí, aos sete anos, me destaquei, me lembro que me destaquei no hospital, não por ser inteligente, mas por ter uma facilidade de aprendizagem. Minha mãe, chamaram minha mãe que eles queriam me levar, não sei para que lugar que era, mas eu não ia mais ficar ali. Minha mãe falou: “Não, não! Então, eu vou levar ela de volta para casa”. Foi aos sete anos. Eu não sei por quê, ela também não lembra. Naquela época, ela falou: “Não sei para onde eles queriam te levar”. Aí ela me levou embora para casa. E essa época é a pior época. Ela trabalhava na Nadir Figueiredo, ela era auxiliar de cozinha, da Nadir Figueiredo. Aí, quando eles me levaram para casa, eles chegaram lá em casa e disseram que eu não tinha condições de ficar naquele lugar. Porque era uma casa que não tinha, era terra, não tinha cimento, não tinha nada, era um barrão. E eu precisava de cuidados. Eles falaram que não podia, que não dava. Eu lembro que eu fui numa ambulância, eu fui recebida como se fosse uma festa. Que todo mundo queria me conhecer. E eu lembro que eu cheguei, todo mundo na rua, naquela casa. E realmente foi um choque quando eu cheguei. Mas eu falei: “Mas isso aqui é casa?”. Ela falou: “Aqui é sua casa. Esses aqui são seus irmãos”. E não era. Aí, de repente, ficamos lá. Não sei como que foi. Não lembro. Na época, minha mãe trabalhava na Nadir Figueiredo, e, de repente, a assistente social da Nadir Figueiredo que arrumou, que tinha as casas dos funcionários na Vila Maria, e aí nós mudamos para essa casa, para eu poder ficar nesse local. Ficamos lá. Só que a minha mãe era auxiliar de cozinha, trabalhava nos finais de semana para os donos da Nadir Figueiredo, Seu Nadir, e ela me levava com ela para o trabalho. Eu não ficava muito com ela. Ela me levava para o trabalho. Pro trabalho, do final de semana, me levava junto, para não ficar ali. Só que, três anos depois, eu lembro que eu tinha dez anos, ela foi queimada, minha mãe. Ela se queimou. Queimou a perna. Ela ficou com uma ferida, inclusive, ela faleceu com essa ferida na perna, devido a uma queimadura de soda que, lavando lá, não sei. Eles mandaram ela embora. Eu tinha dez anos, foi quando naquela foto... Minha mãe era uma pessoa analfabeta. Não sabia nada. O que ela fez? Ela, achando que, sendo mandada embora, ela tinha que mudar daquelas casas. Ela achava isso. E foi o que ela fez. Ela era uma pessoa muito correta. O que ela fez? Pegou tudo e voltou lá para lá, no Alto da Vila Maria. Voltamos para lá. Mas aí eu já estava grande, já estava com dez anos, já não usava mais aparelho, já não queria nem saber. E depois a minha mãe não tinha mais tempo de ficar me levando muito para o hospital. Então, aquilo foi indo, eu fui me acostumando, eu fui conseguindo andar sem ajuda de aparelhos. Então, eu fui indo, até hoje. E aí voltamos lá para a Vila Maria. E a indenização que ela recebeu da empresa, ela reformou essa casa. Naquela época, era poço, não tinha água encanada, não tinha luz. Nós não tínhamos nada. Porque nós éramos os mais pobres da rua. Quando nós voltamos para lá, acho que para não perder os filhos de novo, o que que ela fez? Ela pegou e reformou essa casa. Esse cômodo. Era um quarto enorme. Ela fez um quarto grande. Pôs cimento vermelhão. Mas sem ainda aquele tipo de rebocar, porque o dinheiro que ela recebeu, acho que não tinha condições. E um poço. Eu lembro que fez um banheiro assim, nos fundos, e do lado tinha um poço – inclusive, quando ela fundou aquele poço, era considerada a água melhor da rua. E todo mundo ia buscar água lá. Então, era um quintal enorme. E aí a minha avó começou a plantar. A minha avó não saiu de lá. Continuou lá, a plantação ali. E criava porco, galinha. Criava de tudo ali. E foi. E tinha as crianças. Eu acho muito legal, inclusive, as minhas amigas postam isso para mim. Devido ao meu conhecimento, saber mais do que elas, a minha avó fez um tipo de uma escolinha. Minha avó fez. Pintou de preto uma tábua, pintou de preto – isso é história verídica, que minhas colegas contam. Fez um banco, colocou uma mesa, um banco, e eu ensinei, eu é que ensinava elas a escrever, a ler. Hoje elas contam: primeira professora delas. É muito interessante isso. Eu tinha dez, 11 anos. Eu tinha feito a quarta série na Vila Maria. Depois, quando eu subi pra lá, que eu ensinava eles. A meninada lá, as vizinhas. E hoje a gente se encontrou, depois de muitos anos, e elas falam isso: “A minha primeira professora”, que era eu. Sem noção nenhuma, entendeu? Mas eu ensinava aquilo que eu aprendi no hospital. Mas os meus irmãos, eles, sempre minha mãe quis que eles estudassem. Todos eles tinham formação primária, aquelas coisas todas, trabalhavam em fábricas. E aí foi.
P/1 – E como eram esses encontros? Nessa salinha?
R – Era um banco. A minha avó fez uma mesa de madeira, com restos de madeira que ela pegava na rua, fez o banco, e eles sentavam assim. Era impressionante, né? Só que a gente não tinha noção. Muito pobre, de marcar, mas está marcado na vida deles hoje. Eles falam tudo que eu fui a primeira professora deles na escola. E eu sempre gostei. Só que a gente, eu não tive instrução. Minha mãe não tinha instrução de fazer um direcionamento do que você tem que fazer. Ela queria assim... Não queria que nenhum... Porque a gente morava na Vila Maria, que era um bairro superperigoso, tinha muito desvio de conduta dos próprios vizinhos. Então, a minha mãe não queria que os filhos dela fossem nada. Então, era só assim: era estudar e trabalhar. Inclusive, nenhum de meus irmãos se desviaram dos caminhos. E eram três famílias negras que moravam naquela rua. E eram os mais pobres. O resto não: eram tudo casas bonitas, não sei o quê. Então, eram os três vizinhos. E aí a minha avó fez isso aí. Fez com cobertura de zinco, para quando chovia. Porque era direto, ali era direto. Eles vinham da escola, os pequenininhos, vinham, começaram a aprender comigo. Aprenderam a ler e a escrever comigo. E eu só tinha tipo 11 anos, 12 anos. Entendeu? Aí nós mudamos. Aí meus irmãos, já maiores, uma das minhas irmãs arrumou emprego na fábrica de lençóis e fronhas Santista. E, ali, na Vila Maria, era muito perigoso. Ela trabalhava de turma, então, minha mãe que tinha que levar e ir buscar. Aí, ela já ganhando um pouquinho mais, já deu para alugar uma casa em outro bairro.
P/1 – Posso voltar um pouco?
R – Pode.
P/1 – Eu queria saber, Regina, como é que foi nesses primeiros dias de chegada na sua casa, depois do hospital, quais foram as descobertas de família? Da sua cama? Quais foram suas sensações nesses primeiros dias?
R – A única coisa que eu sinto que foi marcante foi pisar em terra, porque era só cimento no hospital. Ver bichos que eu nunca via, galinha, cachorro, isso não se via no hospital. Árvores não, porque a gente via pela janela, essas coisas, piscina. E era um requinte. O hospital era um requinte. Então, aquilo foi um baque para mim, de ver aquilo. Que nem eu te falei: o quarto era terra, as camas eram divididas. Eram sete crianças, e a minha mãe, oito. E a minha avó, que dormia num cômodo de madeira que era a cozinha. Você entendeu? Que era cozinha. Então, também era interessante, era fogão de lenha que fazia as comidas. Não tinha luz. Então, quando chegava de noite era uma tristeza. Meu Deus! Nessa escuridão. Era lamparina ou era vela. Eu fui ver luz depois que nós mudamos para lá. Você vê: a preocupação da minha mãe, quando nós voltamos para a Vila Maria, foi quando colocou luz. Isso em 1964, que ela teve essa preocupação, vamos dizer, essa preocupação. Que ela ia voltar para o reduto dela, que o marido deixou só no alicerce, que não deu tempo de ele construir, e ela só fez aquilo. Então, a preocupação dela era com os filhos. Foi aí que chegou a luz para nós lá na Vila Maria, em 1964. Eu tinha dez anos. Mas, quando nós voltamos, ainda ficamos um bom tempo, um bocadinho de tempo sem luz. Então foi isso. Chegar lá, não ter luz. Não ter o cimento. Ter que pisar na terra. Era novidade você poder pisar na terra. Você poder correr naquele quintal enorme. Poder subir em terra, você ver bichos. Eu lembro que um galo correu atrás de mim. Eu fui bicada por um galo. Precisou minha avó tirar, que o galo veio para cima de mim. Que eu nunca tinha visto aquilo, aí fui brincar, e o galo era bravo. E de repente o galo começou e eu não tinha como me safar daquilo. Então, porco, tinha porco, tinha cachorro. Aquilo para mim que foi marcante, de eu conhecer tudo aquilo naquela época. Mas durou pouco tempo porque depois a gente já mudou. Nós fomos para a Vila Maria. Então, já era outra coisa.
P/1 – E, pensando um pouco nos seus irmãos, como você foi criando essa relação de afeto com os seus irmãos? De entender que são irmãos?
R – Eu acho que, assim, que só no falar “irmãos”... Que nem assim: a minha irmã, a minha irmã mais velha, que chama Laíce, eu chamo ela até hoje por mãe, porque ela que ficou comigo, ficava comigo enquanto a minha mãe ia trabalhar, e com a minha avó. Eu chamo ela de “mainha” até hoje. E a minha mãe eu chamada de “a mãe”, entendeu? Porque aquele fato, desde o hospital eu vinha com isso. E essa minha irmã que foi me criando. Ela conta que me carregava no colo. E ela é a mais velha, e ela é de sete meses. Ela é diferente da gente. Ela é mignonzinha, pequenininha. Então, ela tem um carinho muito grande por mim e eu por ela porque ela que me criou como mãe mesmo. E, de irmão, sei lá, não tinha noção. Não tinha noção do que era isso, “irmão”. O meu irmão, ele é dois anos mais velho do que eu, ele tinha esse cuidado. Ele teve esse cuidado comigo, entendeu? Acho que é por causa da minha deficiência. Então, ele sempre teve esse cuidado. Só que ele faleceu aos 22 anos. Então, ele sempre falava: “Não, você vai estudar, você vai ter que estudar para você ser alguém”. Ele só falava isso. Ele faleceu aos 22 anos. Ele era já estudante de Direito, que ele queria ser polícia. Ele é o único que quis ser polícia. Apesar que os outros dois gêmeos, eles foram, eles pertenceram à Polícia Civil. Mas policial mesmo só esse meu irmão, que ele começou a fazer faculdade, mas ele não chegou a se formar. No ano que ele ia se formar, ele teve um acidente de carro e ele faleceu. Então, ele que cuidou mais de mim, esse meu irmão que era dois anos mais velho do que eu. Mas eu não sei o que é ser irmão. Não sei o que é. Tem essas minhas duas irmãs que hoje, sim, a gente sabe, somos muito apegadas umas às outras. Teve uma irmã que morou fora. Ela casou e precisou mudar de estado, então, não tivemos muitos contatos. A outra que ficou, a do meio, tivemos muito contato até hoje, a gente tem muito essa afinidade. E tem um irmão que eu não tenho afinidade nenhuma com ele, que é esse meu irmão, eu não tenho afinidade. Já tive no passado. Mas eu não sei contar para você o que é ser irmão quando eu cheguei do hospital. Só de falar. Mas aí houve aquela separação. De quem cuidava de quem. Mas não de falar: “Ah, meu irmão! Ah, meu irmão!”. Não tenho, não tenho lembrança disso, não tenho nenhuma.
P/1 – E como a casa funcionava com nove pessoas?
R – Funcionava até bem. Funcionava bem porque minha avó que cuidava durante o dia. Ela que fazia a comida, porque era fogão de lenha, precisava mexer, só ela mexia, e ela tinha aquele controle ali de todos. Sempre comemos na mesa, sempre comemos em mesa, minha mãe, até hoje, tem esse hábito. Agora não, né? Que come, pega e vai na sala. Até há pouco tempo, eu e meu filho, a gente também, eu sempre criei isso. Eu sempre gostei. Então, punha os pratos na mesa... Tenho horror a polenta. Tenho horror a polenta. Porque, de sexta-feira era sagrado: polenta com carne moída. Então, ela fazia aqueles pratos. E eu, Meu Deus, o que é isso? Porque eu estava acostumada a comer outro tipo de comida. Então... Nunca passamos fome. Sempre teve comida. Sempre simples. Mas a preocupação da minha mãe era ter a comida lá na mesa, a fruta, porque tinha no quintal, a banana, a laranja, o limão para fazer a limonada, sempre teve. Eu lembro até hoje que era o limão-cravo. Aquele limão-cravo, vermelhinho, e o galego. Nós tínhamos pé do limão-galego. Aquilo lá era o suco da gente quase todos os dias. E assim: ela tinha controle. Ela sabia o que fazer, sempre teve. Nunca faltou. Depois, quando minha irmã começou a trabalhar na Santista, tinha a tal de cooperativa, e era uma festa no final do mês. E, pra casa, ela trazia aquele monte de coisa comprada. Era muito interessante isso. E a minha mãe, o pagamento também dela, que ela recebia a pensão do meu pai, eu lembro, que levava a gente no Mercado Municipal. Então, a gente sempre teve um trato bem. Minha mãe sempre cuidou dessa parte. Nós nunca passamos necessidade. Porque ela sempre fez questão de ter o alimento. Isso ela sempre fez questão: de ter o alimento dentro de casa e um bom alimento. Então, ela fazia aquela compra, chegava aquele monte de coisa. Porque nós éramos em sete. Você vê: pela manhã, todos os dias, era uma caderneta na venda, eram sete bengalas. Ela já dividia, podia, podia. Minha avó já dividia aquilo, os pedaços. Passava manteiga. O café com leite. Nós fomos criados com leite em pó. Então, o leite Ninho. A gente foi criada com isso. A minha avó fazia o leite em pó de manhã e o café. E já dividido. Sempre foi dividido. Deixava o pão lá. Cada um tinha seu pedaço de pão. Tinha um deles, um dos meus irmãos que gostava de mingau, o café dele não era café com leite. O leite dele era para fazer o mingau de fubá. Que ele não gostava do café com leite, eu lembro. Então era tudo certinho. Tudo bonitinho. A gente sempre teve a comida na mesa. Nunca tivemos falta. Falar assim: “Ah, não passamos necessidade”. Não! Isso aí a minha mãe, a gente sempre fala, a gente comenta isso mesmo. Gozado, né? Ela teve dificuldade, de viúva aos 34 anos, e ela conta também que muitas pessoas queriam os filhos e ela nunca deu. As madrinhas queriam criar e ela não deu para ninguém. Ela criou os filhos dela ali. Ela falou: “Não, eu vou trabalhar, eu, minha mãe vamos criar os filhos”. Nunca casou. Nunca namorou. A gente nunca viu. A minha mãe sempre foi uma senhora muito bonita, simpática. Então, ela saía, ia para os Bailes da Saudade da vida, ela se divertia, mas, de namoro, de outros homens, ela nunca quis. Ela sempre quis ter o respeito porque ela tinha as filhas dentro de casa. Então, era assim, ela era uma pessoa analfabeta, sem cultura, mas hoje eu falo: “Pô, a minha mãe tinha uma preocupação com os filhos”. Ela tinha preocupação com os filhos. Ela teve. Isso ela sempre teve.
P/1 – E o que a senhora conhece da história de seu pai?
R – Eu conheço só a partir de quando eu fui pesquisar. Quando eu fui pesquisar na Polícia Militar, porque eu trabalhei lá por um ano. Eu disse: “Ah, eu vou querer saber da história, o que ele fez aqui na Cavalaria?”. Aí eu fui e tenho lá três páginas. Que ele foi soldado da Cavalaria. Ele foi convocado para servir à guerra, a Revolução de 1932, mas só que ele aprontava para não ir. Não sei se era por causa de medo. Sei lá, né? Então, ele foi preso. Isso está tudo relatado. Ele vivia preso. Ele não foi um bom soldado lá na Polícia Militar. E minha mãe também não soube contar muito a passagem dele, porque ele chegou a trabalhar até na Antarctica, ele chegou a trabalhar. Mas ela não soube contar isso. Ela não soube contar. Foi na época em que ela teve os filhos gêmeos, que ele trabalhava lá. Então, na Polícia Militar, o que consta é isso, né? Que eles relataram lá que ele não era um bom soldado. Não queria servir, não cumpria ordens. Então, ele vivia preso. É isso só o que eu sei. E meus irmãos contam que ele foi muito enérgico, que ele era muito enérgico com eles. Também não viveram muito, viveram oito anos com ele. E a pessoa acho que trabalhava também direto. Então, acho que eles não tiveram convivência de pai. Acho que, para contar dele, só meio que eles, somente eles. Mas eu nunca quis me aprofundar na história, porque minha mãe era um pouco, muito reservada, queria contar porque no documento dela não consta nome de pai. Não consta. Só consta que ela é filha de Eulália Paulina Cândida e não consta o nome do pai. E aí eu queria saber o por quê. Que os nossos documentos têm, né? “Ah, porque eu casei, por isso que tem!” E eu falei assim: “E por que no seu não tem?”. E ela também não soube explicar por quê. E, gozado, que no registro de casamento dela está escrito lá o nome do pai dela, Manoel Cândido. Só que no documento dela não está. Mas, quando ela casou com o meu pai, passou a se chamar Maria Júlia de Andrade. Mas não tem documento como Maria Júlia Cândido, não tem. Então, isso eu sempre quis perguntar, inclusive, assim, né? “Ai, como você é chata, por que você quer saber?” Então, eu sempre fui considerada isso na família, uma pessoa chata, muito querer saber. Ela não soube explicar o porquê. E aí, não sei também, eu fui pesquisar uma época, querer pesquisar, o que eu achei só foi isso que eu achei. Assim, dela não teve nada.
P/1 – E você chegou a conhecer os avós paternos? Do lado do pai?
R – Não, não. Só tia. Minha Tia Maria e minha Tia Ana. Só conheci só eles. E aí elas tiveram as filhas, né? As primas. E eu tentei procurar até mexendo nos pertences de família. Esse meu irmão que chama Francisco Salles de Andrade Sobrinho, que ele chama, eu andei pesquisando há muitos anos, que minha mãe falava que ele era da Marinha. Aí eu andei pesquisando e eu encontrei que ele também serviu à Revolução de 1932 e eu tenho o documento dele. Tenho o número do livro, eu tenho tudo dele. Eu tenho. Só que, quando eu cheguei lá em Santos, na Marinha, foi muita burocracia para poder ultrapassar, para você conhecer a família, porque a gente não tem contato dessa família dele. Só tivemos contato das irmãs do meu pai. Desse irmão-tio, não tivemos conhecimento.
P/1 – E, só para deixar registrado, a senhora sabe os nomes dos seus avôs paternos, do lado do pai? O nome dos seus avós, por lado de pai?
R – Sim! É Rosa Nazareno de Andrade e, do avô, esqueci. Só lembro da avó.
P/1 – Tudo bem! A senhora comentou já. Mas só para ficar junto: e do lado da mãe?
R – É Eulália Paulina Cândido e Manoel Cândido. Esse aí eu sei porque eu ficava querendo saber o porquê, né? Agora o dele, nossa, deu um branco agora.
P/1 – Não tem problema. Quando lembrar, se lembrar, pode falar. Não tem problema. E ainda da Regina criança: brincava nesse quintal, brincava com a vizinhança?
R – Sim! Aí eu brincava muito com eles. A minha infância ali com eles foi muito boa. Então, na rua, o nosso quintal, a nossa casa – porque as casas eram todas de alvenaria, era tudo cimentada, pintada, bonita – e a nossa não! A nossa tinha um vão acho que de uns 30 metros para chegar nesse cômodo. E era linha e chão. E a minha mãe e a minha avó sempre gostaram de cozinhar. Sempre gostaram de cozinhar, sempre teve comida, muita fartura. Então, para não ir pra rua, o que minha avó fez? Nessa frente, que a gente brincava, que era cerca de madeira, de arame farpado, então, eles vinham, as crianças da rua vinham brincar com a gente nesse quintal, porque eles gostavam. Era pipoca do milho que se tirava do quintal, pastel... Pastel não, né? Era massinha frita, era massa com açúcar. Minha avó fazia aqueles “bulão” de chá. Era chá. Então, era chá de erva-cidreira, que a gente gostava, tudo do quintal, de erva-doce. A gente ficava brincando ali, e todo mundo vinha brincar ali com a gente, jogar bola com os meninos. Jogava queimada. Tinha uma brincadeira, na nossa rua ninguém tinha carro. O único que tinha carro na época era um japonês e tinha ganhado no Sílvio Santos, em 1969. Eles foram sorteados no Baú da Felicidade, os japoneses, ganharam um fusquinha vermelho. Então, eles eram os únicos que tinham carro na rua. Uma família de japoneses. Na rua era aquela terra. Então, tinha a nossa madrinha, que era da rua, fazia festa junina, levantava mastro de Santo Antônio, São João, São Pedro. Tudo era uma família aquela rua. E se brincava ali. Pulava-se corda. Jogava-se “mãe da lata”. E os japoneses tinham mania... Muito interessante isso que eu vou contar: o papel do banheiro era queimado. Também dá para entender. Então, à noite, quando escurecia, eles moravam num sobradão, a casa era enorme deles, japoneses, que era um monte família lá. Então, juntava tudo, os papéis dos banheiros, e fazia-se a fogueira. À noite. Toda noite era isso. Então, a gente ficava lá no meio. Olha só, hein? No meio daquele fogaréu. Do fogo queimado. Só eles que faziam isso.
P/1 – E vocês participavam desse momento?
R – Sim, a gente participava! Ficava sentada na terra, na grama, na rua sem asfalto. Ficava ali. Aí nós fomos crescendo naquele meio. Então, tinham uns que se destacaram mais, das famílias que se destacaram mais. Outros que se destacaram menos. Minha mãe foi até madrinha de japoneses, porque a gente era uma família mesmo. Era uma família. Mas tinham famílias que não se misturavam. Nesta mesma rua, tinham famílias que não se misturavam. E ali eu fiquei até os meus... O quê? Até os meus 16 anos, quando nós voltamos para lá. Até os meus 16 anos.
P/1 – Antes?
R – De dez, quando eu voltei.
P/1 – Não, antes de você chegar aos 16?
R – Ah, não! Dos sete aos dez fazia isso, ali.
P/1 – E ainda essa Regina criança, o que essa Regina queria ser quando crescesse? Quais eram os sonhos?
R – Não tinha. Vou ser sincera. Eu só fui ter uma vocação porque minha mãe que pôs na minha cabeça que eu tinha que ser assistente social. Porque essa assistente social do Nadir Figueiredo, ela que ajudou minha mãe, ela fala que foi ela que ajudou. Era material das crianças para a escola. Ela conseguia tudo através dessa empresa, da empresa. Dona Alcina. E quando minha mãe saiu do Nadir Figueiredo, em 1964, ela continuou ajudando. Ela continuou ajudando. Então, acho que minha mãe tinha um pouco de gratidão por essa senhora. E aí eu fui crescendo e fui ficando um pouco debilitada. Aos 14, 15 anos, eu tinha uma dor de cabeça muito grande. Eu ficava muito doente. E, no ginásio, eu comecei a ter dificuldade de aprendizado mesmo. De poder fixar as coisas. Aí, quando meu irmão falou: “Não! Você tem que” – esse meu irmão – “Não! Você tem que se esforçar. Imagina, você sempre soube. Você sempre ensinou. Você tem que se esforçar”. Mas eu era muito doente. Ficava muito doente. Eu tinha uma dor de cabeça muito grande que eu, nossa, parecia que ia ficar louca. Só que assim... Não era remédio que se curava. A minha avó curava era com chá. Tomava chá. Aí eu lembro que até os 18 anos... Eu sei que fui melhorar disso quando eu fiquei menstruada, aos 18 anos. Não sei se tem uma coisa a ver com outra. Mas aí que eu fui melhorar, que eu comecei a estudar de novo, que eu comecei a estudar. Aí eu fui fazer o colegial e meu irmão já tinha entrado na faculdade. Ele já tinha entrado na faculdade. E eu falava assim: “O que é isso?”. E ele falava: “Você tem que escolher. Eu vou ser advogado, que eu quero ser polícia. Eu quero ser delegado. Você vai ter que escolher”. Aí, eu sei que minha mãe perguntou para ele: “Escolher o quê?”. Para uma profissão, porque minhas irmãs eram tudo operárias, elas foram empregadas domésticas, essas coisas todas. “Não, você tem que escolher uma profissão.” Então, minha mãe falou: “Então, ela vai ser assistente social”. “O que é assistente social?” Ela falou assim: “Ah, ajudar os outros. Você vai ajudar, como a Dona Alcina me ajudou”. E essa Dona Alcina, já nessa época, trabalhava no juizado de menores. Então, minha mãe levou eu lá, no juizado de menores, para ver o trabalho da Dona Alcina, e era isso. E ela me explicou o que era e eu achei aquilo maravilhoso. Falei: “Então, eu vou estudar para ser isso. Vou estudar para ser isso”. “É, mas faculdade é caro”, eu lembro que ela falou: “Você tem que estudar muito, porque só existe uma faculdade em São Paulo”. Só que ela falou que era Ciências Sociais. Ela falou que era Ciências Sociais. Não era. Então, só depois que eu vim saber que ela não era Assistente Social. Ela não era de formação. Ela era de vocação. Aí, ela falou: “Você tem que fazer, só tem uma universidade, que é de graça, para você, que vocês não têm dinheiro, vocês não têm como pagar”. E a única faculdade paga na época era a Faculdade Paulista de Serviço Social, que era paga. Então, ela falou assim: “Vocês não têm dinheiro para pagar. Você tem que estudar de graça, que é a Universidade de São Paulo. E você vai ter que estudar muito”. Eu falei: “Como estudar?”. Ela falou: “Você tem que estudar muito. Estudar muito”. Então, ela começou a me dar um monte de livro. Eu comecei a estudar, estudar, estudar Ciências Sociais. Aí, eu fiz o vestibular da Fuvest [Fundação Universitária para o Vestibular] e passei na USP [Universidade de São Paulo]. Eu passei na USP. Quando eu cheguei lá, passei, eu morava no Tatuapé, eu levava três horas para chegar lá na faculdade. Eu tomava vários ônibus, tinha que descer e subir. E, quando eu cheguei lá, eu só via aqueles rapazes barbudos, cabeludos, tudo sujo, umas roupas sujas. E eu falava assim: “Gozado, como que é isso?”. Eu não tinha, hoje, quando eu conto essa história, uma loucura, coisa de louco. Eu falava: “Vocês vão ser assistentes sociais?”. Eles riam: “Não, o que é isso?”. Eu lembro que falavam assim. Gravei na minha mente. Aí, eu chegava em casa chorando. Falei: “Não é aquilo, mãe. Não é nada disso a faculdade lá”. E ela falava: “Como que não? Dona Alcina...”. “Não é! É outra coisa que eles vão ser.” “Mas o que eles vão ser?” “Eles falaram que não é para trabalhar com criança presa.” Porque o juizado de menor, eles trabalhavam com criança presa. A assistente social lá. E eles falavam que não era. Aí eu fui. Eu só sei que fui uma semana e nunca mais apareci. Nunca mais apareci na faculdade. Aí eu peguei e falei para o meu irmão. Meu irmão falou: “Mas como? Você passou nessa faculdade, tão difícil de entrar, você entrou”. Eu falei: “Não, não quero, não é isso que eu quero. Não é. A gente sabe o que que é que vai fazer”. E aí não estudei. Dos meus 18, não estudei mais. Até os 20 anos. Quando foi aos 20 anos, eu entrei no Bradesco para trabalhar, e aí que eu vim saber o que era a faculdade. Descobri a FMU [Faculdades Metropolitanas Unidas], que era a FMU, e a Faculdade Paulista, eram as únicas que... E a PUC [Pontifícia Universidade Católica]. Eram as únicas três faculdades que tinha. Aí eu fui por eliminação: qual que era a mais perto para eu poder ir. E a FMU era a mais perto para mim. Então, vou fazer vestibular na FMU. Aí eu fiz o vestibular na FMU. Passei também. Lá na Lapa. Só que eu falei: “Olha só o que tem que pagar?”. Meu irmão falou: “Não, pode ficar sossegada que eu pago a faculdade”. Ele tinha um bom emprego na época e comecei a estudar lá. Só que a FMU, na época, estava começando o prédio na Liberdade. Então, um dia, eles mandavam ir para Santo Amaro. No outro dia, do outro lado da Liberdade, outro dia descia lá para a Fagundes, era um horror. Aí chegava lá, falava assim: “Olha, era melhor você mudar de curso”. Aí eu falava assim: “Mas por que mudar de curso?”. “Ah, porque você vê, Serviço Social agora está lá em cima, no terceiro andar. Você não vai conseguir subir. Você não vai conseguir subir”. Aí eu falei: “Não, vou, imagina, vamos tentar”. Aí, eu ia lá em cima, no terceiro andar. Eu comecei a estudar. Eu comecei a gostar. Aí eu comecei a entender o que era o Serviço Social. Eu fui atrás dela, fui atrás da Dona Alcina. Falei: “Dona Alcina, quando a senhora me mandou ir lá...”. Aí, já tinham passado muitos anos quando eu fui procurar ela. Quando eu tinha entrado na faculdade, ela falou: “O quê? Você está fazendo faculdade?”. Foi quando eu descobri que acho que ela não fez faculdade. Aí eu falei: “É, eu estou fazendo na FMU”. E ela falou: “Nossa, na FMU. Mas a FMU é muito cara. Como você conseguiu entrar?”. Eu falei: “É, eu consegui. Eu consegui entrar naquela que não era paga e consegui entrar nessa”. Ela falou: “Nossa, beleza. Então, quando você se formar, você vem aqui que eu arrumo emprego aqui para você”. Eu falei: “Ah, está bom. Tudo bem”. Mas aí eu já estava trabalhando no Bradesco. Eu estava trabalhando. E Bradesco foi meu suporte, porque eu aprendi a trabalhar lá no Bradesco. E aí a gente tem os outros conhecimentos, que eu era digitadora. Eu dava 1200 toques por minuto. Eu tinha uma agilidade muito grande. O que eu não tive de agilidade nas pernas, eu tive de agilidade de mãos. E era uma concorrência danada. Bolsa de Valores, Antarctica e Banespa. Era uma concorrência. Eu fazia teste, eu conseguia passar em todos eles. Mas o salário maior foi Antarctica. Fui para a Antarctica, estava no meu último ano de faculdade. Aí eu precisava fazer estágio, eu pedi para eles. Eles falaram: “Você faz faculdade de Serviço Social?”. Eu falei: “Faço. E eu precisava de um estágio para eu poder...”. Eles falaram: “Infelizmente, não dá. Numa multinacional, você é digitadora, no fundinho de uma sala lá no fim do mundo”. Falei: “Ah, mas eu precisava de um estágio”. “Aqui não tem.” Aí eu fui conhecer a assistente social da empresa. Uma loira bonita, bonitona, sabe? Quando eu cheguei lá, ela falou assim: “Você está fazendo faculdade de Serviço Social?”. Assistência Social, na época, era Assistência Social. Só passou depois. Eu falei: “Tô. Estou no último ano e eu precisava de fazer um estágio”. Aí ela falou assim: “Ah, mas aqui, você não vai conseguir. Aqui você não vai conseguir, não tem condições. Porque você, trabalhando, como você vai conseguir fazer estágio?”. Falei: “Não, mas eu preciso. Eu preciso fazer estágio, senão eu não recebo diploma, né?”. Mal sabia eu que ia ficar de DP [Dependência]. Ela falou: “Não, não dá, não dá”. Aí, um senhor, ouvindo nossa história lá, que ele estava trabalhando, ele foi atrás de mim. Quando eu saí da sala, saí chorando, ele falou assim: “Eu vou arrumar um estágio para você, mas vai ser na Brahma”. Eu falei: “Na Brahma? Como? Eu trabalho aqui na Antarctica, como vou fazer estágio na Brahma?”. Ele falou: “É, na Brahma, agora é mais fácil para ir porque tem o metrô, ali no Paraíso, então é fácil. Vou te arrumar”. E realmente ele me arrumou um estágio lá. E, gozado, porque a Antarctica me dispensou para fazer o estágio na Brahma. Eu fiz o estágio na Brahma de seis meses. E não me deu na empresa. E, depois, analisando, você vê o preconceito, né? O preconceito que era na época. Eu, negra, não podia representar, porque a assistente social de uma empresa representava tudo dentro de uma empresa. Mas isso eu só vim a saber depois. E aí na Brahma eu consegui. Consegui meu estágio lá. Só que, infelizmente, eu fiquei de DP. Mas meu estágio ficou constado, constado na Brahma. Eu fiz o meu estágio lá. Fiz o TCC [Trabalho de Conclusão de Curso] sobre Sindicato, com a turma. A única coisa foi que eu, o único problema foi que eu fiquei de DP em Sociologia. Aí eu fui. Mas eu não exerci a profissão. Aí eu trabalhei na Antarctica durante 25 anos. Trabalhei lá. Criei meu filho lá. Tive um filho. Aos 34, eu tive um filho. Criei meu filho. Ele estudou na escola, e eles nunca me deram um emprego. Passavam de Assistente Social, e eu ficava sabendo. Corria lá para saber. Não! Porque, na digitação, nós éramos três negras somente. Na Antarctica, na digitação, na computação. Na empresa Antarctica, você só via negros na fábrica. Na administração, também não tinha. Foi ter na década de 90, que apareceram negros trabalhando na parte administrativa. Você não via. Você só via negros na cozinha, servindo. Porque era uma empresa, não reclamo, uma empresa que me deu todo o suporte. Se hoje eu sou o que sou, tenho o que tenho, foi trabalhando lá. Eu trabalhei lá, criei o meu filho. A creche da Antarctica era comparada com a da Nestlé. Era uma das melhores creches. Escola até hoje. Meu filho estudou lá. Mas oportunidade de emprego eu não tive. Não tive.
P/1 – E, na época, a senhora tinha essa consciência em relação à raça?
R – Não! A gente não tinha. Eu vim ter depois que eu peguei um cargo nessa área da digitação. Então, éramos eu e a Vânia, que éramos as duas negras da digitação, e a Lúcia. E o resto era tudo branco. Quando eu passei, porque eu tinha uma agilidade, e eu, graças a Deus, fui bem sucedida, eu tinha carro, tinha tudo. Tinha comprado um apartamento. Então, eu tinha agilidade de aprendizado também, dentro da computação, do que você tinha que fazer. Eu era a única que morava mais perto, da digitação, né? Morava ali no Belém, e eu tinha carro. Mas só que eles mandavam o motorista buscar. E dava crepe, você vê, eram 6500 funcionários. Quando dava crepe nos cartões para fazer o pagamento, de um dia pro outro, eles me procuravam, era eu que ia lá fazer os acertos nos cartões que vinham naquelas fitas de computadores. Nós digitávamos em cassete e aquilo era transferido para as fitas de rolo. E eu era a mais próxima dali. Então, eles iam me buscar. Com o tempo, eles me deram um cargo de chefia dessa digitação. Foi aí que eu comecei a ter noção. Por que? Tinham as outras lá, era a japonesa que ficou na parte da manhã e eu que fiquei na parte da tarde, quando o sindicato caiu matando para a gente trabalhar digitação de seis horas. E aí que eu vim a perceber que era. Eu falei: “Gozado, acho que eram as meninas lá, as branquinhas, que queriam ser chefe. E eles escolheram eu”. E aí eu e essa Vânia começamos a falar: “Será que é por que a gente é negro?”. Mas não tinha, não se falava em preconceito. Não sabia o que era preconceito. Não se falava. Eu fiz uma faculdade e nunca ouvi falar. Eu era a única negra da sala. Tinham as misturadas. Mas negra de cor era só eu. Eu era a única. Mas, mesmo na faculdade, na minha época, nunca se falou. Você vê: Erundina, política, meus professores foram os melhores, Maria Lúcia Martinelli, Jair Alves da Silva, o Martinelli, são todos políticos, da minha época, que foram os nossos professores. Teve um outro... Dois professores. A Marieta Guerreiro. São escritoras. São pessoas famosas que foram, e eles, gozado, não se falava. Eles vieram, eu acho, eles vieram a falar de preconceito dentro de uma faculdade na década de 90, ou até 2000. Porque antes disso não se falava.
P/1 – Regina, conta pra gente como que a digitação entrou na sua vida, em que momento que você começou a fazer esse serviço?
R – Ah, foi quando eu fui procurar emprego no Bradesco. Eu comecei no Largo São José, do Belém, perto da minha casa. Tinha essa agência do Bradesco lá. Tem até hoje, aí eu fui lá. Porque eu queria trabalhar em banco. Aí me falaram assim, também, agência: “Ó, aqui na agência não dá. De gerente. Mas nós temos um emprego lá atrás” – você vê: empurrando para trás – “Nós temos uma vaga lá atrás que é do departamento de transporte”. Para você ficar coordenando os lambretas, que entregavam carta de lambreta pro Bradesco. Aí eu peguei e falei: “Ah, tudo bem. Eu quero trabalhar!”. Aí, chamava CDC do Belenzinho. Aí eu fui lá. Era lá no fundo. Só homem de lambreta. Só homem. Era lambreta. Só homem. Eu era a única mulher. Gozado, eu peguei essa foto, também. Eu cheguei lá, tinha que ficar coordenando eles. A entrada e saída. E fazer pagamento. Eu pegava o que eles gastavam de combustível, eu tinha que ir na agência pegar esse dinheiro e cada um o que gastava. Fiquei ali por um bom tempo. Tipo o quê? Um ano mais ou menos. Ficamos ali um ano, e o departamento ia acabar. E, como eu datilografava, porque eu fiz o curso de datilografia...
P/1 – Por causa desse...
R – Não, não. Eu aprendi. Meu irmão! Tudo ele. Eu tinha um monte de curso. E eu tinha datilografia. Então, tinha que datilografar todos os nomes e os valores, era tudo datilografado. E aí o chefe falou assim: “Nossa, você tem uma agilidade na datilografia, né?”. Eu falei assim: “Sei lá, é porque eu gosto, né?”. Eu adorava! Os nomes, eu digitava com a maior agilidade. E ele ficava besta. “Sabe que tem umas moças que trabalhavam aqui que ficavam tecla por tecla?”. Tá bom! E nisso a gente teve essa notícia de que ia acabar esse departamento porque ia ser entregue para os Correios. E ia acabar aquele departamento. Aí eles ofereceram: ou trabalhar em Osasco, porque lá ainda ia continuar, na Cidade de Deus. Eu tinha que trabalhar ou em Osasco, e tinha uma vaga no Largo do Café, do Bradesco Largo do Café. Lá era para fazer compensação de cheques. Aí eu falei assim: “Ah, então eu prefiro trabalhar nessa compensação de cheques, do que ir lá em...”. “Não, mas você tem prática já nesse departamento.” Eu acho que foi a maior burrada que eu fiz, de ter escolhido o Largo do Café, ao invés de ter ido para Osasco. Mas tudo bem! Eu peguei e fui pro Largo do Café. Fui lá fazer a compensação dos cheques. Então, eram as maquininhas, a gente fazia as compensações dos cheques. Os cheques vinham errado, sem assinatura, sem data. Aquele departamento ali é que cuidava. E também ali o Largo do Café inovou com essas máquinas. Essas máquinas de disquete. Foi aí que eu tive o conhecimento de disquete, que era numa sala na frente. Só trabalhava japonês lá. Era só japonês. E aí o japonês, chefe, viu também como eu tinha agilidade, falou assim: “Ô, Regina, vou fazer um teste com você, para você trabalhar lá nas máquinas da frente”. Eu falei: “Ah! Melhor, porque aqui eu já não estou gostando muito de trabalhar mesmo aqui”. Eu já ia até sair, pedir para sair. Então, ele falou: “Não! Vamos lá conhecer”. Essas máquinas novas estavam chegando no Bradesco, de cassete, de digitação, digitava cheques. Ele só me chamou porque eu tinha agilidade em datilografar os cheques. Então, quando eu cheguei lá, eu bati o recorde nessa sala, de digitar os cheques. Aí começou, eu comecei. A gente tem conhecimento. Sai um, sai outro. E eu continuei trabalhando no Bradesco. Entrava uma, saía outra. E cada uma que entrava falava: “Ó, o Banespa, só que é lá em Pirituba”. Eu achava: “Pirituba? É muito longe. Não, não quero! Eu não quero ir pra lá, não quero”. “Na Bolsa de Valores está pegando.” Aí, eu: “Bolsa de Valores, onde que é?”. “Aí na Álvares Penteado!” “Então, vou lá fazer o teste.” Fui lá, fiz teste, passei. Aí eu pedi a conta no Bradesco. E no Bradesco: “Não, não vai sair!”. Eu disse: “Vou, mas eu vou pôr uma pessoa aqui no meu lugar”. Uma colega que fez Serviço Social comigo, eu coloquei ela no meu lugar lá no Bradesco e fui para a Bolsa de Valores. Lá eu trabalhava das três às 11 da noite. Digitar lá o pregão. E foi lá que eu conheci, comecei a trabalhar... Lá eu ganhava um salário enorme, beleza. Foi aí que eu comecei a juntar dinheiro. Foi aí que eu pensei: “Agora aqui vai dar para eu comprar meu primeiro apartamento”. Eu ia de manhã, fazer hora extra, que nem louca.
Só que a chefe, foi aí que eu comecei a ver o lado sexual. Aí ela começou, vinha com presente, vinha com presentinho, querendo me conquistar. Até que um dia ela me chamou para ir na casa dela. Morava na Lapa. E ela tinha um filho, menininho pequeno. Eu fui na casa dela, um almoço. Ela convidou todo mundo. Não fui só eu. Quando chegou lá, eu percebi um clima terrível para cima de mim. Eu falei: “Vixe! Meu Deus, nada disso, né?”. Aí eu cheguei e falei para minha mãe: “Ó, a chefe da Bolsa veio com uma conversa assim, né?”. A minha mãe: “Pelo amor de Deus! Você tem namorado. Para!”. Falei assim: “Pois é, então!”. Mas eu não falei pro namorado isso. Falei para minha mãe. Aí ela ficou preocupada: “Não, sai de lá, pede a conta”. Aí eu comecei a ficar ruim para ela. Comecei a ficar ruim para ela. Eu maltratava ela, não queria mais saber dela perto de mim. Aí ela me mandou embora. Eu tinha 11 meses de Bolsa de Valores. Eu tinha 11 meses, eu estava com uma viagem. Meu sonho era conhecer a Bahia. Estava com uma viagem. Eu e uma japonesinha, a gente ia viajar. Tinha comprado passagem. Era a primeira vez que eu ia viajar de avião. Ela me mandou embora. Onze meses, tenho registro na carteira. “Pô, Cinira, por que é que você vai me mandar embora”. “Não quero mais você aqui, não quero mais você aqui.” Aí ela me mandou embora. Outra decepção na vida. Mas eu sabia que eu tinha muita agilidade. Eu fui mandada embora em fevereiro da Bolsa de Valores. Aí, a colega da Bolsa de Valores me ligou. Ligou lá em casa. Minha mãe falou assim: “Ó, tem uma moça que ligou aqui para você”. Eu retornei a ligação. E ela falou: “Regina, a Antarctica está precisando de digitadora”. Eu peguei e falei assim: “Mas onde é que fica a Antarctica?”. “Fica lá na Mooca.” Bairro da Mooca. Eu morava no Centro. Não conhecia a Mooca. Passava na Celso Garcia direto, não conhecia os bairros laterais. Minha mãe falou: “Não! Eu sei onde é. Vou te levar”. Então, minha mãe foi comigo. Para entrar lá, foi um sacrifício para entrar na Antarctica. Porque eu queria fazer teste para digitação. E, quando chegamos lá no local para fazer teste, foi outro baque. Você vê: eu fui mandada embora da Bolsa de Valores dia 1º de fevereiro. No dia 15 de fevereiro, fui fazer o teste na Antarctica. E a minha irmã nessa época morava em Brasília. E eu fiz o teste lá. “Ah! A menina é boa, tal”. Me deram um bolo de cartão justamente no dia 15. Porque a Antarctica trabalha... Dia 14 eu fiz o teste. A Antarctica paga em duas quinzenas, no dia 15 e no dia 30. E no dia 14, que eu fui fazer o teste, aquele bolo de cartão. Eu fiz tudo. Aí todo mundo ficou pasmo com aquilo. “Nossa, a menina digita tudo”. E parece que eu tive poucos erros, que eu tive. E fui embora. “Ah, a gente vai entrar em contato. Vai entrar em contato.” Passou fevereiro, passou março, não me chamavam. Não me chamavam. Aí minha irmã ligou e falou assim: “Ah, Rê, vem pra cá”. Essa irmã mais velha me chamou: “Vem, vem pra cá para Brasília. Aqui também tem muito emprego. Vem pra cá”. Aí eu fiquei lá, mas era muito longe. Meu cunhado não dava, não tinha condição na época, 1979. Eu já estava formada na faculdade. E muito difícil lá em Brasília na época. E aí, meu sobrinho, ficando só com ele. Minha irmã teve outro bebê. Não! Ela perdeu o bebê. Ela tinha um menino que nasceu em 77. Aí eu fiquei lá março, abril, maio, junho. Quando foi julho, três meses depois, minha mãe recebeu um telefonema, ligou pro meu cunhado que eu tinha que estar lá na segunda-feira para trabalhar na Antarctica. 15 de julho. Eu não fiz exame médico, não fiz nada. Aí, meu cunhado falou: “Não, Regina, não se preocupa, não, que eu vou conseguir a passagem para você. Você vai de avião, você nem precisa ir de ônibus. Você vai de avião mesmo”. Eu falei: “Bom, legal, né? Ótimo!”. Em plena sexta-feira, quando minha mãe ligou. Aí meu cunhado conseguiu a passagem, eu vim embora, e na segunda-feira eu me apresentei lá na Antarctica. E eles falaram: “Não! Você já vai trabalhar”. E como a Antarctica era uma empresa que tinha de tudo, então, eu fiz tudo lá dentro. Eu comecei a trabalhar na Antarctica dia 15 de julho. Eu era digitadora. Tinha nota fiscal que eu digitava. Eu fui praticando. Foi assim que entrou. Mas o meu conhecimento foi no Bradesco como digitação de cheque. Aí eu fui pra Bolsa e Antarctica, que eu fiquei até eu me aposentar. Aos 25 anos que eu trabalhei, eu me aposentei. Como eu não consegui emprego lá na minha área...
Aí chegou 98, 1998, que teve a nova lei que podia se aposentar nova, com 25 anos trabalhados. Aí, a Antarctica fez a fusão com a Brahma e virou AmBev [Companhia de Bebidas das Américas]. E o departamento já estava se acabando porque já estavam entrando os computadores, nova era. Aquele boom de 2000. Aí eu falei assim: “Ah, não, vou aproveitar, vou sair”. Eu fui lá no departamento pessoal e falei assim: “Ó, vocês me mandam embora? Vocês me mandam embora”. Só que eles também não foram legais comigo. Faltavam seis meses para eu completar 25 anos. Eles não me falaram nada para eu ter todos os direitos. Porque só quem tinha 25 anos que tinha todos os direitos, até hoje, nos benefícios da Antarctica. Só que não me falaram nada. Eu cheguei lá e eles aceitaram. Vinte e cinco anos é uma a menos para eles. Só que eu vim saber disso depois. Já tinham passado cinco anos e nem podia mais entrar com processo. Então, aí eles me mandaram embora, com 24 anos e seis meses. Mas como eu já tinha trabalhado em outras empresas, então deu para fazer os 25. Por isso, eu não estava tão preocupada em fazer os 25 anos lá. Mas eu não sabia dessa história. Se eu soubesse, tinha ficado. E aí eu me aposentei aos 25 anos, na Antarctica. Consegui super-rápido. Eu saí em dezembro da Antarctica. Quando foi em fevereiro, eu recebi meu primeiro salário do INSS [Instituto Nacional do Seguro Social]. Foi muito rápido. Não perdi quase nada, desempregada. Aí eu comecei a prestar concurso. Prestei concurso em um monte de lugares. Minha mãe falou assim: “Por que você não vai trabalhar na União das Pensionistas, que é associação?”. Eu falei: “É, a senhora tem razão. Eu acho que vou ver emprego lá”. Aí, eu fui ver lá, não tinha assistente social. Disseram: “Ah, não temos, mas eles estão exigindo mesmo que a gente tenha assistente social. A gente tem advogado, mas não temos assistente social. Só que você vai ter que fazer tudo”. Eu falei: “Tudo o quê?”. “Ah, vai ter que montar.” Eu, besta, aceitei, com um salariozinho. Montei o departamento de Serviço Social, das idosas. Fiz fichas, um monte de coisas. Fiquei lá dois anos, de 99 a 2001. Fiquei dois anos, montei tudo. Beleza, deixei, fiz jornalzinho. Até hoje eles usam o nome do jornal, tudo!
P/1 – Como chama o jornal?
R – Clique da União. O que acontece? Me mandaram embora! Eu não tinha registro. Eu não tinha nada. Mas também eu não sabia que podia processar a empresa. Eu trabalhei lá. Mas também eu estava prestando concurso nos lugares, né? Aí eu cheguei nela, tinha passado lá em Cubatão, eu cheguei nela e falei: “Olha, Dona Hortência, eu prestei concurso como assistente social lá na prefeitura de Cubatão, e o salário é tanto. E a senhora está me pagando tão pouco. A senhora não podia me pagar esse salário?”. “Ah, não. Não dá!”. Uma associação super-rica. “Não, não, imagina, não dá. E você vai sair daqui para trabalhar lá? Você não tem casa, não tem nada. Não é melhor você ficar com esse aqui?” Eu falei: “Ah, não! Pelo menos lá eu vou ser registrada, vou ser estatutária, né? A senhora não me registra, não quer aumentar o meu salário, então não dá. Se a senhora me pagar o que eles vão me pagar lá, eu fico aqui”. “Ah, não!” Então, me mandou embora. Aí eu assinei, né? Ela me pagou realmente, me pagou o décimo terceiro, disse que me pagou férias, me deu um papel e aceitei numa boa. Minha mãe, como é sócia do negócio, minha mãe falou: “Ah, não vai mexer com isso porque eu adoro a Dona Hortência”. Minha mãe sempre teve uns problemas, né? Eu falei: “Está bom”. Aí eu fui embora. Fui trabalhar lá. Eu ia todo dia para Cubatão. Como assistente social.
Assim, nesse ínterim, de 88, de 80, que eu fiz aquela outra faculdade. Aí eu fiquei lá. Eu cheguei em Cubatão com a ideia de trabalhar com idoso. Quando fizeram lá a roda, para saber em que departamento você ia, eu fiz o Departamento do Idoso, e aí caí na besteira de ter falado que eu tinha uma outra faculdade. “Ah, mas nós estamos precisando, estamos precisando.” Aí eu falei: “Ah, não, não, não. Só quero mesmo, quero seguir minha carreira de assistente social. Mas eu quero trabalhar com idoso”. “Ah, não! Com idoso não pode porque é tudo política, sabe, né? Cidadezinha deste tamanho, não podia que já tinha lá assistente social que trabalhava com idoso”. Você vê: ela estava de licença, por doença, pois ela voltou. Porque eu era a única pessoa preparada para trabalhar nesse departamento. Pois ela voltou, rescindiu da licença dela para ela não perder a vaga. Aí eles me puseram para trabalhar com criança. Abrigadas. Eu falei: “Mas não tenho experiência nenhuma com criança abrigada. Só com idoso, porque eu trabalhava lá na associação e era idoso, e eu montei o departamento”. “Não, mas aí você também aprende. Da mesma forma que você montou lá, você pode montar aqui para nós. E você vai trabalhar em abrigo.” Aí eu falei: “Como que é trabalhar em abrigo? Como que é isso? O que é abrigo?”. Eu não sabia. “É de menores?” “Não, é diferente. Aqui é diferente. São crianças acolhidas.” Me explicou mais ou menos e toma que o filho é seu. Entendeu? Aí eu fui, me puseram lá, eu trabalhei com adolescentes, mulheres, com as meninas. E eu fiquei assim horrorizada. Tinham 70 meninas, 70 meninas, de nove, de oito, porque elas saíam das pequenininhas de zero a seis, mas sempre iam lá para baixo com sete, oito. As que eram mais perigosas vinham para essa casa, 70 crianças. Cheguei lá e fiquei apavorada. Meu Deus, o que é isso? E tinha de tudo. Tinha de tudo. O primeiro impacto que eu tive ali, tinham duas meninas brigando com faca. Aí eu falei: “Meu Deus, o que é isso?”. Aí fui tentar tirar. “Não, tia, não, tia. Não faz isso porque senão elas vão te ferir.” Aí eu dei um grito só, e as meninas ficaram assim, porque elas não sabiam que eu era a assistente social. Eu dei um grito, e elas pararam. “Quem é você?” Eu falei: “Você não, senhora! Porque, a partir de hoje, eu serei a assistente social daqui”. Então, a partir daquele momento que elas começaram a me respeitar. Você entendeu? Acho que elas deram um passo para trás. “Ai, que eu vou falar para o tio.” E nisso o diretor chegou. Só que ele já estava lá fora, ouvindo isso. Porque elas já estavam acostumadas a fazer essa briga e ninguém apartar. E o Doutor Jamil falou: “Não, é realmente. Ela é a nova assistente social de vocês”. Aí elas ficaram mansas. Eu falei: “Doutor, como é que eu vou conseguir isso?”. E ele falou: “Não, você já conseguiu. Porque ninguém conseguia. Você já conseguiu. Então você não pode abaixar. Você tem que continuar nesse nível”. Eu falei: “Ah, é?”. Qual foi minha salvação? Entrei na minha sala, tranquei a porta. Que eu fiz? Liguei para a Dona Alcina. Liguei para ela e falei: “Dona Alcina, meu primeiro dia de trabalho aqui, tem duas meninas brigando com faca!”. Ela falou: “Ah, elas merecem vir para cá, que eu vou dar um jeito nelas”. Aí eu falei: “Como que é?”. Aí ela falou: “Como você começou hoje, tudo bem. Mas vê como que elas se comportam dentro de uma semana. Dentro de uma semana, você volta a ligar para mim e fala. Que eu mando buscar para cá!”. Eu: “Sério?”. Ela falou: “É. Pode ficar tranquila, me passa o número do diretor”. Eu nem sabia. Primeiro dia que eu estava ali, né? Eu falei: “Tá legal!”. Aí eu peguei e liguei lá no outro departamento e falei assim: “Ah, eu queria saber como que fala com o Doutor Jamil”. Falaram: “Não, não, você pode falar com a gente mesmo!”. Mas eu falei: “Mas eu preciso falar com ele direto mesmo. Da sala dele”. Elas falaram: “Ah, está bom, então você liga para este número”. Aí, ela me passou, eu já passei para ela. Ela conversando com ele. Ele passou tudo o que estava acontecendo ali. Só que eu não estava sabendo. No dia seguinte, mais briga, no quarto dia, ela falou para mim: “Fulana e cicrana, amanhã a perua vai estar indo buscar”. Eu: “Como?”. Ela falou assim: “É!”. Hoje elas me agradecem. Por incrível que pareça. Na época, era na Rua Japuruchitá, na Mooca, já era [Fundação] Casa, já era considerado Casa, não era mais Febem [Fundação Estadual do Bem Estar do Menor], era Casa de Adolescentes. Tinha um significado essa Casa, mas eu não lembro. E elas foram, as duas. Chegou a perua lá de São Paulo. Botaram as duas lá dentro. Mas, olha, foi a melhor coisa, porque eu dominei mesmo o abrigo, entendeu? Aí que eu fui aprender. Aí que eu fui fazer curso de família, porque eu não sabia nada. Eu sabia trabalhar com idoso. Não sabia trabalhar com adolescente, nem com criança, me apaixonei por essa área. Trabalhar com criança foi a minha salvação, quer dizer, ela não me salvou lá atrás, mas quando eu precisei realmente, ela me deu essa força. A gente ia visitar. No começo, elas tinham um ódio mortal, que eu mal cheguei e mandei elas embora para São Paulo, né? Elas ficaram com um ódio mortal de mim. Mas, aí, com o tempo, elas foram indo e quando elas saíram, dois anos depois, saíram dois anos depois, voltaram, elas estavam com 17 anos ainda, estavam com 16, porque elas ficaram quase que aos 18. Foi quando eu comecei a instruir. Uma delas só que ficou funcionária da prefeitura, uma delas prestou concurso, passou como serviços gerais de escola. Uma delas. A outra não. Mas, mesmo assim, ainda encontro lá pela cidade e ela agradece. Fala: “Ah, a senhora, hein? Se não fosse a senhora, onde que eu estava?”. Eu falo: “Ô, imagino. Você estava lá embaixo, como tantos!”. Elas ficam loucas comigo. E assim foi. Assim foi essa parte.
P/1 – Eu tenho umas questões ainda, Regina, em relação à parte de educação. A primeira, eu queria que a senhora contasse como foi a formatura em Serviço Social?
R – Então, o Serviço Social, ali, devido a eu ter ficado muito triste ali, porque eu fiquei em DP em sociologia, depois de se ter pagado a faculdade – que se pagava três anos antes, quando se passava para o terceiro ano, porque era anual a faculdade. Então, você começa a pagar. Então, no meu relacionamento com as meninas, tenho relacionamento até hoje, hoje nós somos amigas, né? A gente sempre se reunia, saía. Isso foi a época da faculdade, muito boa que eu tive, de Serviço Social. Tivemos as festas de família, virou realmente, algumas, né? Vamos dizer umas dez, virou como família, a gente frequentava a casa uma da outra. Eu sempre tive essa facilidade de fazer amizade. Essa facilidade minha de fazer amizade. Aí a gente se formou. Só que eu não participei da formatura. Na época, quem ficasse de DP não podia participar da formatura. Então, as meninas ainda queriam que eu fosse e me vestisse com a beca, para tirar foto junto. Eu falei assim: “Ai, empresta a beca. Não, não, não quero”. Porque eu já tinha quebrado o maior pau com a Erundina, porque ela me deixou de DP.
P/1 – Que história foi essa, Regina?
R – Então, ela me deixou de DP. Nós ficamos de exame. Eu e essa minha amiga Socorro ficamos de exame. Ela precisando de cinco e eu de dois, era dois ou três que eu precisava. E, na cola, foi uma cola, a minha prova foi tomada e a dela não. E aí ela falou assim: “Eu vou te reprovar, porque você passou a cola para ela”. Eu falei assim: “Não”. Mas era aquele choramingo que a gente fala que não. A gente mente, fala que não, que era mentira, mas era verdade, que eu tinha realmente passado a cola. Fomos com esse intuito porque ela não sabia nada e eu fui com esse intuito mesmo de passar a cola para ela. E ela, professora de formação, ela foi muito mais ágil do que eu. Colou, fez rapidinho a cola. E eu não sei por quê... Só que a professora deve ter visto desde o começo e não falou nada. E aí ela chegou, me tomou a prova e falou: “Acabou, né?”. Falei: “Acabei”. Ela falou assim: “Só que você está reprovada porque você passou a cola todinha para sua amiga”. Falei: “Ah, não, mas ela que colou”. Ela falou: “Não, você passou a cola”. Falei: “Tá bom. Tudo bem”. Levantei e fui embora. Então, como eu fiquei de DP, não podia participar. A faculdade não deixou na época. Hoje, não. Todo mundo participa. Aquele horror! Carrega 50 DPs, mas todo mundo participa e faz a maior festa. Mas a gente vivia na época da ditadura, era por isso. Então, eu não participei da formatura.
P/1 – Mas teve alguma comemoração na família?
R – Não, não. Não teve nada. Eu, inclusive, eu não fui no Anhembi, que a formatura foi no Anhembi. Não fui porque eu fiquei muito revoltada mesmo por não ter participado. Mas, aí, depois de muitos anos, fiz uma outra faculdade, fiz uma outra faculdade, foi a minha salvação. De a faculdade ser em cinco anos e eu fiz apenas em três porque eu eliminei várias matérias. Eliminei várias matérias. Estudei na Universidade Farias Brito, lá em Guarulhos. Eliminei várias matérias. Aí foi meu auge de ter participado da formatura, e as minhas colegas do Serviço Social participaram da minha formatura. Elas vieram no baile, na colação de grau. Elas falaram: “Você é louca! Você devia ter feito Pedagogia”. Falei: “Não! Meu sonho é ser psicóloga”. Queria ser psicóloga. E aí eu fui, participei. Minha família toda foi. Teve baile, foi no Círculo Militar. A formatura foi no Anhembi também. Minha família toda participou. Então, essa aí foi. Porque essa foi uma coisa que eu realmente queria. Foi, me formei. Ainda estava trabalhando na Antarctica quando me formei. De novo, pedi emprego na escola, que lá tinha escola. “Ah, nós temos uma psicóloga já. E você também é nova, formou agora.” E eu falei: “Não, mas eu tenho outra formação, que eu carrego e é quase ali”. “Ah, não, não, não.” Então, tudo bem, mais uma frustração. Aí eu falei para minha mãe: “Pois eu vou montar um consultório. Eu tenho dinheiro, eu vou montar um consultório”. Aí eu aluguei uma salinha na Avenida Nova Cantareira, lá em Santana, e uma amiga me falou: “Ah, Regina, a gente podia ficar sócia, né?”. Falei: “É, podia. Legal!”. E, como eu trabalhava o dia inteiro na Antarctica, eu só ia para o consultório à noite. Aí eu tinha conseguido uns clientes. E ela ficava o dia inteiro. E eu que montei o consultório. Com móveis, com tudo. Montei o consultório. E ela ficava de dia e eu à noite, quando saía da Antarctica, ia para lá. Aí não tinha cliente. Não aparecia. [...] Eu falei: “Ué! O que será que está acontecendo?”. Eu cheguei na minha amiga e falei: “O que está acontecendo?”. Ela: “Ah, não sei”. “Poxa, você com tantos pacientes e eu não tenho. Por que você não manda, por que você não divide? Manda um pouquinho para a noite, que eu preciso praticar.” Ela disse assim: “Ah, mas eles não querem. Eles não querem”. Eu falei: “Eles não querem, mas como assim? Eles não querem por quê, não me conhecem, né?”. Aí ela falou: “Olha, eu não estou nem aguentando. Eu acho até que vou dividir com a outra”. Mas meu santo, como é muito forte, tinha uma paciente que chegou para mim e falou assim: “Ela é tua amiga?”. Falei: “Sim!”. Ela falou: “Não, não é. Ela não é tua amiga porque, quando chegam aqui no consultório, eu mesma quando cheguei, falaram assim: ‘essa psicóloga que está aí, à noite, ela é negra – assim mesmo – e, além de tudo, ela é deficiente. E vocês acham que ela vai fazer um bom trabalho’?”. Menina, quando ela falou isso para mim, eu falei: “Não, você está mentindo”. Eu falei: “Espera aí, mas o consultório é meu. A gente só divide o aluguel. Porque até os móveis que estão aqui são meus”. Ela falou: “Pois é! Eu estou te falando isso porque eu gosto muito de você. Para mim, você está sendo uma excelente profissional”. Aí, eu falei assim: “Tá bom. É isso mesmo? Você tem certeza que é isso?”. Ela falou: “É verdade”. Quando chegou no dia seguinte, eu aluguei um carro, tirei todos os móveis do consultório, não fui trabalhar. Tirei todos os móveis do consultório pela manhã, porque ela ia à tarde, tiramos tudo. Mandei trocar o miolo da sala. Fui na imobiliária para rescindir o contrato. “Ah, mas por quê?”. “Não! O que eu tenho que pagar? Fala o que eu tenho que pagar que eu pago. Mas eu não quero mais. Não quero mais!” Aí eu doei pro [Casas] André Luiz todos os móveis. Doei tudo pro André Luiz porque não tinha onde pôr. Doei um sofazinho que tinha. Eu lembro que doei um fogãozinho elétrico que a gente fazia o cafezinho. E falei: “Leva tudo pro André Luiz. Não sei se a perua levou”. Mas eu mandei levar. A perua veio. Que depois a gente sabe das coisas. E aí fui embora para casa. E aí, passado um tempo, ela chegou em casa, chegou lá, batendo. Eu falei: “Não, deixa ela entrar porque vou atender aí embaixo”. Aí desci. Ela: “Ficou maluca? Eu vou na polícia”. Falei: “Vai! Vai dar parte de mim para ver quem está errada. Se sou eu ou é você. Você me sacaneou todo esse tempo, e eu nunca soube”. Ela falou: “Como te sacaneei?”. Eu falei assim: “Olha, eu é que deveria dar parte de você, porque você falou pros clientes para não ir para mim porque, além de eu ser negra, eu era deficiente. Então, você vai procurar uma branquinha bonitinha, que monte um consultório para você trabalhar”. “Mas como que eu vou fazer?” “Se vira!” Aí, quando eu subi, então, que eu falei para você que eu só não rasguei meu diploma porque estava plastificado. E aí foi quando eu abandonei de vez mesmo, não quis saber. E continuei na minha digitação até eu prestar os concursos da vida. Porque são as coisas que acontecem no decorrer. E aí eu me dediquei realmente ao Serviço Social. Fiz um bom trabalho lá. Até hoje, lá em Cubatão. Aí eu passei a amar essa área de criança e adolescente. Faço esse trabalho de adoção. Fiz a minha carreira, a minha passagem. Trabalhei 15 anos lá. Fiz várias adoções. Hoje eu participo dos grupos. A gente viaja muito pelo Brasil afora. Então, hoje eu estou com o grupo lá de Cubatão e de São Paulo, no bairro do Tatuapé, que a gente coordena. Então, assim: psicologia foi um rio que passou em minha vida; nem gosto de falar. É como agora, depois de ter assistido os vídeos aí no Museu, eu falei: “Ah, acho que seria interessante, porque é uma história que ninguém sabe”. Inclusive, eu trabalhei 15 anos lá, e eles sabiam que eu tinha uma outra faculdade. Mas nunca ninguém soube qual era a faculdade. Eu nunca falei qual seria. “Mas nós vamos descobrir.” Nunca ninguém descobriu qual a outra faculdade lá, durante esses 15 anos. E, gozado, teve concurso. Eu fui participar como ajudante. Ajudava quando tinha concurso na cidade e eu falava: “Caramba! Olha, podia ter prestado, né?”. Assim: acertava 70%, 80% das questões. E eu falava: “Podia ter feito!”. Tiveram dois concursos na época que eu trabalhei lá, mas eu nunca prestei. Então, eles também ficavam: “Mas, Regina, se você tem outra faculdade, por que você não presta, não vai?”. “Não porque eu gosto dessa área.” E olha que cada dia está pior, o serviço social na cidade foi piorando. A assistência social lá está uma negação. Inclusive, eu me aposentei lá até por causa disso. Fui até convidada a continuar, mas eu não quis. Então, foi assim: esqueci. Mas eu esqueci mesmo. Por um bom tempo, eu esqueci que eu sou formada nisso.
P/1 – Regina, posso voltar um pouquinho na história? Porque eu lembro que você falou assim: “Ah, eu me lembro muito do nome da minha primeira professora”. Conta pra gente as lembranças desses primeiros anos na escola ou do primeiro dia, se você lembrar?
R – Não! Eu lembro muito bem que a gente morava no Tatuapé, que foi quando a gente saiu...
P/1 – Teve a mudança, né?
R – É, teve a mudança da Vila Maria. Aí, a minha mãe arrumou uma casa que podia pagar o aluguel, para a minha irmã também. A gente morava no Tatuapé. E eu estudava no Grupo Escolar Carlos Escobar. Meu primário foi lá. Quando eu saí da Vila Maria, que eu fui lá pro Tatuapé, eu estudava lá. Era um colégio bem rígido. Era Dona Ester o nome da minha primeira professora de primeiro ano, foi Ester. E a do segundo foi Dona Irene. E a Dona Ester era tão ruim, uma professora tão ruim, ruim mesmo, de ela dar reguada na cabeça, na mão das meninas. Eram aquelas “reguonas” de madeira. E aí o pessoal falava, as outras crianças falava assim... Porque eu nunca, não é que eu era inteligente, eu tinha facilidade de aprender, não que eu era uma criança nota dez, mas tinha facilidade de aprender. Então, ela não tinha muito trabalho comigo. Ela sempre citava: “Ah, por que vocês não são que nem a Regina? Ah, eu não tenho trabalho com ela”. Aí, gozado, que eu não ouvia isso, como meu filho ouviu na escola dele por ser negro. Naquela época a gente não ouvia isso. As crianças não tinham essa discriminação. Podia ter, mas num outro momento. Mas não ali dentro da sala de aula. Por que que eu sabia mais do que eles? Por que que eu não apanhava? Não levava reguada? Eu nunca levei reguada dela. E eu gostava dela. Mas só que eu achava ela muito ruim. Eu chegava e falava para minha avó, para a minha mãe: “A professora é muito ruim. Ela bate nas crianças”. Só que não se podia falar. Hoje, se você fala, é demais. Apesar que hoje também você não pode falar, porque, se falar, você morre, entendeu? Hoje reverteu bem a coisa também, né? E essa professora Ester, eu tenho muita lembrança dela. Gozado que eu sei até os traços dela: magra, alta, branquinha, branquinha, do cabelo preto, curtinho aqui. Eu lembro todinha ela. A Dona Ester eu lembro. E, quando ela aparecia, eu: “Nossa! Como ela é bonita”. Eu achava ela muito bonita. Só que ela é ruim. O que ela tem de bonita, ela era muito ruim. Eu achava ela muito ruim. Então, eu gostava. Não sei se eu estudava, aprendia pra não levar, pra não apanhar. Porque eu não sabia o que era apanhar. Nunca apanhei.
P/1 – Nunca teve nenhuma...
R – Não. Nem da minha mãe.
P/1 – Nem dentro da escola?
R – Dentro da escola não. Nunca, nunca, nunca sofri. Para falar a verdade, não. Vim sofrer depois, no colégio. Sofrer não! Colegas mais negras do que eu, que, hoje, por coincidência, nos encontramos, as pedras se encontraram, numa roda de conversa, a gente falou assim: “A gente se conhece”. Eu via que conhecia o irmão. Eu lembrava, uma vaga lembrança. Estudamos juntos no colégio lá no Tatuapé, depois de grande, quando eu voltei para fazer o colegial, eles estudaram. Só que eles são bem mais negros do que eu. Bem negros mesmo. Então, eu sentia que as pessoas não queriam ficar muito junto. Inclusive, eu tentei, quando a gente estava conversando, quando a gente se descobriu, eu tentei chegar para eles isso. Só que... Hoje não! Acho que hoje eles encaram mais. Inclusive, por causa dos filhos, né? Mas, naquela época, eles não encaravam não. E, quando a gente voltou, se conheceu, vamos dizer, porque a gente não sabia, eu tentei falar: “Vocês lembram lá?”. “Não, não!” Mas houve sim. Aí, era uma rejeição de não ficar junto, porque eles são muito, mas muito negros mesmo. Bem mais negros do que eu. Então, ainda falavam: “Ah, mas você não é preta, você não é preta”. Falei: “Não, não, imagina se eu não sou preta?”. “Ah, mas eles são muito pretos, muito pretos.” Na época, devido à nossa formação genética, nós não temos o cabelo ruim assim. E eles não. Eles têm o cabelo bem carapinha mesmo. Eu não. Eu tinha o cabelo enroladinho, meu cabelo enroladinho. Aí, quando foi crescendo, alisa, fica liso. Por um bom tempo usei muito cabelo liso. Fazia escova ao vento. Hoje não! Hoje ele é só enroladinho. Bem natural. Muita tinta que se põe, deu uma encolhidinha. Então, no meu primário não sofri nada. Aí veio a segunda série, professora Irene, que hoje eu passo lá, eu faço grupo da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], e eu passo para ir para minha casa no Belém, na rua dela, a casa dela é de esquina, da professora Irene, da segunda série. O marido dela era o diretor da escola, o professor Hélio. Então, eu passo. Hoje a casa deles é um estacionamento. É um estacionamento. Quando eu passo com gente, porque às vezes eu dou carona de noite, eu falo: “Sabe aquele estacionamento ali? Era da minha professora do segundo ano”. Eu lembro. Era uma casa de pedra. Uma casa linda. A casa deles era. Casa de pedra, né? Então, eu lembro muito bem. Era passagem porque eu moro depois dela. E hoje eu passo, é um estacionamento. Acho que venderam, né? Então, nunca tive problemas. Depois fui estudar o quarto ano também. Não lembro assim de ter sofrido nada. Muito pelo contrário. Tinha aquele cuidado, devido à minha deficiência. E sempre participei, sempre participei da aula de educação física, fazendo ginástica, dança quadrilha, que sempre teve quadrilha, sempre dancei quadrilha. Depois, cresci, fiquei mocinha, participava de baile. Ia, dançava, namorei.
P/1 – Então, conta pra gente: como foi ficar adolescente?
R – Então, foi assim. Na nossa época, a gente não sabe o que é essa passagem para passar para a adolescência. Você vai indo: 15, 16, 17. E se falava em namorado, e eu achava que eu não ia namorar, que eu não ia arrumar um namorado, que eu não ia arrumar um namorado. Imagina, né? Porque eu tinha esse problema, achava que não iam querer. Ninguém ia me querer. E aí fui crescendo. Já estava no colégio, eu comecei a namorar um rapaz lá do Tatuapé, um branco. Gozado. E a minha mãe não gostava que a gente namorava branco. Ela falava assim: “Olha, vocês, mulheres, não podem namorar rapaz branco”. Porque ela pôs na nossa cabeça que o branco ia maltratar a gente. Então, nós, inclusive, a gente levou isso a sério. Porque nós três, negras, somos casadas com negros. Só os homens que são com brancas, as mulheres brancas. Nós, mulheres, não. Parece que a gente levou isso muito a sério. Mas eu namorei. A minha irmã do meio também namorou muito branco. Mas não casou. Casou com negro. E eu também. Só que eu não casei. Eu tive um filho. Morei com ele, mas eu não casei. E namorei branco, me apaixonei pelo meu professor de matemática do colégio, e ele também. Tivemos, vamos dizer, um affair. Professor de matemática do colégio. Mas só que ele era branco, eu não podia mostrar.
P/1 – Mas como era esse namoro de professor e aluna?
R – Pois é! De ônibus. A gente ia de ônibus, namorava. Ele morava na Penha e eu morava um pouquinho mais para frente, eu morava em Engenheiro Goulart. Marcos. E ele, hoje, uma pessoa super bem-sucedida, ele é reitor da universidade. Marcos Duque Gadelho. Não esqueço jamais. Não esqueço. Não sei se ele vai lembrar. Mas eu lembro dele muito bem. Eu, inclusive, queria ir na faculdade para ver, sabe? Mas eu falei: “Meu Deus! Não, eu sou louca. Não tem que fazer isso. Não posso fazer isso”. Mas foi uma paixão muito louca. No colégio. Ele era professor de matemática.
P/1 – E como era esse namoro?
R – Sei lá. Namorava. Não sei. Namorava no ônibus, a gente ia juntinho no ônibus.
P/1- Mas era uma coisa escondida? As pessoas podiam ver?
R – Não, não! Ninguém sabia. Só eu e ele que sabíamos. A gente pegava o ônibus junto. Ele esperava. A gente pegava o ônibus junto. Ele sentava. E aí, todo mundo: “Ei, Marcos, senta aqui”. Ele: “Não, vou sentar aqui com a Regina, não sei o quê”. Era uma coisa meia louca. Aí eu falei para ele assim... Porque eu era mais velha. Ele já era formado, ele tinha 22 e eu tinha 18, porque eu estava fazendo o colégio. Eu tinha idade. Então, eu falava para ele que eu não podia levar ele na minha casa porque ele era branco e a minha mãe não queria que a gente namorasse moço branco. Ele falou: “Não! Mas é impossível isso!”. Falei: “Mas você gosta de mim, você tem certeza? Porque eu tenho esse problema”. Eu só falo problema, né? “Isso não tem nada a ver!” E aí ficamos. Foi uma paixão muito louca. Aí passou, eu saí. Teve a formatura do colégio, ele saiu. A gente não se viu mais. Eu comecei a namorar um outro rapaz. Branco também, lá do Tatuapé. Era quase que vizinho da gente. Aí quem não queria eram meus irmãos, meu irmão. “Não, porque ele é malandro, ele não trabalha.” E ele tinha um problema: ele era banguela.
P/1 – De tudo?
R – Dois, da frente. Lindo! Um loiro lindo. Lindo, lindo, lindo. A Regina aqui, namorando com ele. Mas eles sabiam que eu namorava com ele. Eles sabiam. A gente ia para cinema. A mãe dele, as irmãs dele, tudo sabiam que a gente namorava. Mas só que não podia ir na minha casa, porque era branco. A minha mãe: “Todo mundo está falando que ele não trabalha!”. Com 19 anos, nunca tinha trabalhado. Ele era de uma família de irmãs. Cinco mulheres. Cinco? Acho que eram cinco. E tinham ele e o menorzinho. E era uma família problemática porque a mãe, naquela época, a mãe dele traiu o pai. E teve esse irmãozinho. Inclusive, todo mundo era loiro, dos olhos verdes, azuis, uma família muito bonita. Tudo começa com “i”: Ivone, Iara, Ivete, Ivana, tudo assim. E ele, Milton, e o menininho, Marcel. O pequenininho. Gozado. E a gente namorava. E foi com ele... Só que de repente o meu irmão faleceu. Teve esse problema lá em casa e a gente precisou se mudar dali, do Tatuapé. Aí formos morar no Centro. E a gente deu uma separada. Mas, mesmo assim, a gente continuou. Só que ele, não sei, a vida dele, o que aconteceu lá, a gente se via muito pouco. Aí, de repente, a irmã dele chegou para mim e falou assim: “Ah, o Milton vai casar com uma prostituta”. Eu falei: “Como assim? Como? Ele não falou nada para mim!”. “Mas, Regina, vocês estão namorando ainda?” “Eu acho que estamos, né? Que, de vez em quando, ele vem aqui na porta.” Eu morava num prédio. “Ele vai casar tal dia, tal hora, na Penha.” Eu falei: “Pois eu vou estar lá! Eu vou”. E fui. Eu assisti o casamento dele no civil. Naquela época casava no mesmo dia, no civil e na igreja. Pois eu fui. Quando eu cheguei lá, no civil, que eu vi, na Penha, na subidinha da Penha, uma mulherona assim, gordona, negra também. Eu falei: “Meu Deus! Como que pode ele ter me trocado por aquela mulher e ainda prostituta?”. Era prostituta mesmo, que conheceu lá em Santos. Tipo assim: três, quatro meses, ela já veio, casaram. Mais velha do que ele. Ela era mais velha do que ele. E aí, eu cheguei no cartório. A família dele toda. Eu cheguei. Aí ele, branco, ficou vermelho. Ele falou: “Quem te falou?”. Falei: “Foi ela, foi a Ivete”. Aí a mulher perguntou: “Quem é ela?”. Falaram: “Ela é amiga da família. Amiga da família”. Não falei nada. Virei as costas e fui embora. E, à tarde, eu fui na Igreja da Penha. À tarde, eu fui também no casamento.
P/1 – Ele viu também você no casamento?
R – Viu, ele viu. Aí, ele estava lá, ele estava lá no altar. E eu estava no primeiro banco da Igreja da Penha Velha. Na Igreja da Penha. Aí ele me viu lá sentada, fez assim, falou: “O que você está fazendo aqui?”. Ele desceu e falou assim para mim: “Você quer que eu... Vamos embora?”. Eu falei: “Não, mas você já está casado. Agora não adianta mais. Você vai lá casar que eu vou assistir”. Ele já estava casado, o que eu podia fazer?
P/1 – Que louco!
R – Ele tinha que ter feito isso lá no civil, não era? Também fui lá. Casou. Cumprimentei, até logo. Nunca mais!
P/1 – Ele chegou a te procurar depois disso?
R – Procurou, muitos anos depois ele me procurou. Aí, eu comecei a aparecer em mídia, essas coisas todas, me envolver, comecei a me envolver no meio político. E ele estava trabalhando para Edir Sales, que era lá do Belém, eu estava na dela. A gente estava no Anhembi, a gente estava carregando as faixas. Aí eu o vi. Aquilo me deu um frio na barriga, sabe aquela coisa? Porque ele foi praticamente o meu primeiro namorado. Eu falei: “Não, mas eu vou ter que ser forte”. E fui. A gente estava lá no Anhembi, ele estava carregando as faixas dela. Quando nós fomos para a sala do coquetel, ele falou com uma pessoa e a pessoa falou assim: “Aquele rapaz lá está te chamando”. Eu falei: “Que rapaz?”. Eu olhei assim, era ele. Aí, eu falei assim: “Ah, eu não conheço. Não gosto de... Não conheço”. Ela falou: “Não, mas ele falou se pode vir falar com você”. Eu peguei e falei assim: “Não! Fala que não, porque estou aqui e eu não posso”. Nossa, ele ficou muito cabreiro da vida com aquilo, porque eu fiz isso. Conversa vem, conversa vai. E, nisso, a vereadora veio pro meu lado. Ela chegou para mim e falou assim: “Regina, você conhece o Milton?”. Eu falei: “Que Milton?”. Ela falou: “Da família Lippi”. Eu falei: “Nunca ouvi falar. Não conheço”. Ela virou para mim e falou assim: “Eu te entendo. Eu te entendo. Está certo”. Ela pegou e saiu. Depois, quando ela voltou, ela falou assim: “Ó, tranquilo, Regina, pode ficar sossegada que ele foi embora, que ele gostaria de conversar com você”. E eu falei: “Mas eu não conheço, já falei para você que não conheço”. Aí foi. Acho que ele contou a história pra ela. Ele contou a história pra ela. E, realmente, estava lá. Ele era um carregador, era carregador e trabalhava para a vereadora. E, como o meu caminho é Penha, Tatuapé, vou, participo dos cartórios, tudo. E outro dia eu vi, ele estava bem acabado, alcoolizado. Sim, continuou, acho, sei lá, nem vi mais, mas ele é muito bonito. E guardo recordação. E eu sinto, porque naquela época a gente não tinha uma pessoa que chegava: “Não, vai fundo! Vai firme! Vai fundo!”. Muito pelo contrário. A minha família era tudo contra. Era tudo contra. Não que ele tinha maus hábitos. Ele não era isso. Só que ele não trabalhava porque ele tinha um monte de irmã que trabalhava, a mãe. Ele na época era o único filho. O pai também. Uma família bem-sucedida no Tatuapé. Então, ele também aproveitava esse ganho. E não estudava. Ele só tinha o primário. E eu falava: “Não, precisa estudar, trabalhar”. Eu queria que ele estudasse. E não sei o que aconteceu que ele foi para Santos e conheceu essa pessoa. E aí eu não procurei mais. Hoje eu procurei no Face, só tem uma irmã dele. Mas ela não toca no assunto. Não pergunta nada. Inclusive, só elogia. “Nossa, você tem um filho muito bonito”. Ela também tem duas filhas. Só isso. Mas não nos falamos, não se toca no passado das nossas vidas. Pior que eu tenho vontade de querer saber, entendeu? Tenho vontade de querer saber, mas, já que ela não falou, não vou falar, né? Então, é isso. Depois eu conheci, aos 30 anos, eu conheci o pai do meu filho e a gente namorou. E eu falava a mesma coisa. Então, ele era um negro muito bonito também. Hiperpaquerado por mulherada. E foi uma aposta que eu fiz com duas colegas, que aquele seria o pai do meu filho. E as meninas: “Imagina, você é louca. Felipe é o maior safado, o maior não sei o quê, mulherengo, tal”. Não, mas você sabe, sei lá. “Eu acho que é, vai ser ele”. E todo metido, ele era metidão mesmo porque muito bonito, negro muito bonito, paquerado por um monte de mulherada. Saía com um monte. A gente participava dos mesmos lugares. Tinha o Aristocrata Clube, que era um clube específico para negros. Tinha um outro naquela Rua Nestor Pestana, mas não é Nestor, uma travessa, que os pais dele eram os donos desse clube, participavam. E a minha irmã entrou para a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, e justamente o pai dele era um dos diretores lá da Igreja. Coincidência ou não, né? Então, começamos a nos ver mais frequente. Até que, um dia, ele veio. Ele mesmo que chegou em mim. Eu só paquerava ele. Mas acho que nem podia imaginar. Ele chegou em mim: “Ai, a gente podia se conhecer”. Eu falei: “Não quero!”. Mentira. Queria.
P/1 – Jura?
R – “Que é isso? Você é safado. O maior pilantra.” Falei um monte assim para ele. Ele falou assim: “Tenho certeza que, para você, eu não vou ser”. Aquilo já me... Dei um pulinho para trás e falei: “Ô, legal, né? Vamos nessa?”. Foi quando eu aceitei. Aí foi.
P/1 – E para onde vocês foram no primeiro encontro?
R – Nós fomos para o viaduto ali na Galvão Bueno. Nosso primeiro encontro foi ali. Não! Antes, a gente se viu numa festa. “Ó, vai ter uma festa aqui, não é na Mourato Coelho, é na Fradique Coutinho. Vai ter uma festa lá.” A gente fazia muito encontro de jovens. Já tinha mais idade. “Vai ter um baile lá, vamos lá? Você vai estar lá?” Falei: “Vou”. E eu tinha um fusquinha branco na época, ele tinha uma Brasília branca. Nós fomos. Chegando lá, dança e conversa, já era de madrugada. Ele falou assim: “Vamos sair fora daqui? Onde que você mora?”. Eu falei assim: “Eu moro ali no Edifício Guarani, na Praça da Sé”. Ele falou: “Você mora lá?”. Eu falei: “Moro, moro lá”. Então, ele falou: “Onde que a gente podia se ver, na Praça da Sé?”. Eu falei: “Na Praça da Sé não. Vamos na Galvão Bueno”. Fomos na Galvão Bueno. Olha só! Não sei por quê. Porque eu achava, porque ele nunca tinha visto, prestado atenção no meu problema. Você entendeu? Eu achava isso. Porque não é possível. Imagina, um cara que só estava com a mulherada, como é que agora ele chegou em mim? Eu que queria, que estava apaixonada, sei lá, foi uma aposta que nós fizemos. E, de repente, quando eu vi que ele estava assim para o meu lado, eu me sentia... Ele falou: “Na Galvão Bueno? Por que na Galvão Bueno?”. Falei: “No viaduto, vamos lá!”. Aí nós fomos mesmo. Saímos de Pinheiros e fomos. Subimos a Consolação, descemos. E chegou ali, entrei, estacionei meu carro, ele estacionou atrás e ele veio, sentou do lado do meu carro. Aí começamos a conversar. Falei: “Você me conhece? Você já me viu?”. Eu falei para ele assim: “Você sabe que eu tenho um problema?”. Ele falou: “Você tem um problema? Que problema?”. Falei: “Ah, eu tenho um problema na perna”. Ele falou: “Imagina! Como? Nunca vi”. E eu já tinha dançado com ele, no outro espaço lá. E aí ele falou: “Ah, então, sai do carro”. Eu peguei, saí. Ele ficou encostado na marquise do viaduto, por baixo. Aí ele falou: “Mas isso para mim não é problema”. Eu falei: “Não?”. Ele começou a perguntar: “Mas você disse que já namorou?”. Eu disse: “Sim, já fui apaixonada”. Contei tudo. “Então, para mim também não é.” Então, a gente começou. Ninguém se conformava, e foi do nada. Mas, mesmo estando comigo, eu acho que ele tinha os seus pulos. Nossa! Minha família adorava ele.
P/1 – Como foi levar ele para sua família conhecer?
R – Cheguei lá, todo mundo adorou. A minha mãe, ele tratava minha mãe assim... Só que a mãe dele não gostava de mim, não. A mãe dele não gostava de mim, não, porque eu trouxe ele para a família, sabe? Ele veio. Ele era o único filho. Então, a mãe dele ela não ia muito com a minha cara, não. Aí eu não estava mais querendo ele, que eu já estava conhecendo outro cara, já estava gostando do outro, já não queria mais ele. Eu comecei a querer sair fora. Só que ele não. Não queria sair. A gente já morando juntos. Aí eu falei que não queria mais. Eu comecei já a ver outras coisas nele. Só que minha família não podia saber que ele estava mexendo já com droga, bebida. Só que, quando ele chegava, lá não sabia de nada. Eu comecei a ficar com medo. “Ai, Meu Deus, meus irmãos polícia. Meu Deus, se souberem, vão prender, nossa!” Eu cheguei a falar para ele. “Não, eu vou largar, eu vou largar.” Eu falei: “Você não larga! Só que eu vou te largar, eu vou te deixar”. Não deixei. Eu fiquei grávida, e a coisa começou a piorar. Aí a mãe dele faleceu. A mãe dele faleceu em 90, o nosso filho já tinha dois anos. E a coisa começou a piorar. Só que ninguém sabia. Eu ali, sofrendo. Ninguém sabia. Falei: “Meu Deus, o que é que eu faço?”. Aí eu conheci uma advogada, e ela falou: “Regina, cai fora!”. E eu falei: “Mas como?”. “Não, eu te ajudo!” Eu falei: “Mas de que forma?” “Você faz a mala do seu filho, com as roupas dele, suas roupas, e do resto a gente cuida.” Falei: “Tá legal”. Aí eu peguei, fui, fiz isso, e sumi da vida dele durante três meses. Ele me procurando, tudo. Aí eu sumi. Depois a advogada foi. Teve um episódio muito grave porque, morando com ele, eu registrei o menino só no meu nome. Porque ele queria um nome, e eu queria outro. Então, ficou a briga. Falei: “Ah, mas eu não sou casada com você. Como que vai pôr o seu nome no menino?”. Eu não aceitava isso. Eu registrei o menino só no meu nome. Naquela época podia. Então, acho que foi aí que começou essa confusão terrível. E ela me ajudou. Eu separei dele, a mãe dele faleceu. Piorou, em 90. O menino estava com dois anos. Eu fiquei mais um pouquinho com ele. Aí meu filho já estava entendendo. Sempre contei a verdade para ele: “Ó, seu pai é doente. Ele usa isso, bebe muito”. Então, virou uma doença. Eu sempre usei como uma doença. E é uma doença. Então, meu filho sempre entendeu. Ele vinha buscar, eu deixei todo o direito dele. De o avô ir buscar, sai. A advogada sempre instruiu isso. Eu vou querer nada, porque a gente não sabe o que vai acontecer. E o avô sempre ajudou a gente na educação. Porque eu sempre falava: “Olha, vocês não se intrometam. A educação quem dá sou eu. Mas vocês podem vir buscar”. Saía com ele. O menino cresceu com ele ali, saindo. Aí casou. Ele casou. Teve duas filhas. Ele voltava, vinha me procurar. Eu falava: “Ai, Felipe, você vai ter filho, ai, problema”. Com dez anos mais novo do que a gente. Ela tinha 29, na época, nós já tínhamos 40, quando ele se casou. E mesmo assim, a menina sabia de tudo. Vendeu um apartamento, gastaram tudo em droga, sabe? Mesmo assim, foi crescendo ali, ele conhecendo as irmãs. Indo com o avô. Eu só exigia que o avô estivesse presente. Sempre exigi isso: o avô presente, porque, nesse ínterim, ele foi piorando, piorando. Morou em rua. O pai internava, gastava o maior dinheiro com clínica. Mas não adiantava. Até que ele faleceu, com 47 anos. Ele faleceu. Meu filho estava com 15 anos. E as meninas dele, uma estava com nove, outra com sete. E a mãe das meninas veio e disse que nós é que tínhamos que criar. Eu peguei e falei: “Filha, cada um com seus problemas. Você casou com ele. Eu não cheguei a casar. Você casou. Eu nunca cheguei, pedi nada, nada para ele, enquanto ele estava casado com você. Então, cada um com seus problemas. Você cria suas filhas que eu continuo criando o meu. Não quero nem saber”. Ainda fui atrás, para ver se conseguia aposentadoria. Mas ela conseguiu muito mais fácil do que eu. Hoje eles estão aí brigando por um bem na Vila Mariana. Mas meu filho também não quer nem saber das irmãs. Depois que o pai dele morreu, ele falou: “Mãe, vamos encerrar por aqui. Nós realmente levamos nossa vida, e elas levam a delas”. São meninas que já são mães, novinhas. A gente é um pouco, eu sou um pouco conservadora. Crio o meu filho, todo mundo fala, graças a Deus, ele tem uma boa educação. Ele segue muitos princípios. Todos nós. Nós, da família, nós criamos nossos filhos assim, porque a gente é um pouco conservador. Então, acho que a gente passa. Quem não está passando agora são os filhos para os filhos deles, porque são umas crianças. Mas a segunda geração foi até... Meu filho hoje está com 30 anos. É um menino trabalhador, tudo. Sem problemas nenhum.
P/1 – Qual o nome dele?
R – Rafael.
P/1 – Por que Rafael?
R – Rafael. Por que Rafael? Porque, na Antarctica, tinha um rapaz muito inteligente. Ele que mudava os programas e eu ficava muito louca. E ele falava para eu estudar matemática para eu poder seguir carreira ali na computação. Eu falei: “Não, não, eu quero ser assistente social, eu não vou seguir”. Então, ele que fazia a mudança dos programas, ele mexia nos computadores quando dava crepe. Era ele, era o Rafael. E eu falava: “Ah, quando eu tiver um filho, Rafael, ele vai se chamar Rafael”. Ele falava assim: “Sério?”. Eu falava: “Vai, vai se chamar Rafael e não é com ‘ph’. É Rafael mesmo”. E, quando meu filho nasceu, ele veio, que queria que ele chamasse Carlos Felipe, que é o nome do pai, Carlos Felipe. E eu falei: “Não, não vai chamar Carlos Felipe porque nós não somos casados. Não vai ter o seu nome. Vai ser Rafael”. Ele falou assim: “Mas por que Rafael?”. Eu falei: “Não! Porque eu acho bonito Rafael. É Rafael”. Mas eu não pensava em outro nome. E se fosse menina ia ser Marina. Marina, por causa da música Marina morena. E, se fosse menino, ia ser Rafael. A gente ficou nessa briga, e ficou Rafael. Inclusive, eu trabalhava na Antarctica quando ele nasceu, e o menino também trabalhava. E ficou como Rafael, mas por amizade mesmo. É só Rafael. Rafael Salles de Andrade ficou. E aos dez anos que o Felipe quis registrar, que ele veio para querer registrar. “Ah, eu acho legal você registrar porque agora o menino está com dez anos, entende?” E eu sempre contei a história para ele, porque ele queria um nome e eu outro. “Ainda bem que você que escolheu o nome, né, mãe? Você não quis.” É que eu não quis Carlos Felipe. Aí eu falei: “Ó, até eu mudaria o nome se fosse Ryan Carlos, aí eu queria. Ryan”. E ele falou: “Que Ryan, que é isso? Um negão vai ter nome de Ryan?”. Eu falei: “Então, é Rafael. Se você não quer Ryan, vai ser Rafael”. Ele queria Carlos Felipe. Só que ele foi burro, porque ele que tinha que ir ao cartório registrar, né?
P/1 – Sim!
R – Só que eu fui primeiro que ele, porque ficou naquela briga, vai, não vai. Aí eu falei: “Sabe de uma coisa? Eu vou ao cartório!”. Inclusive, ele nasceu lá no Alvorada, na Avenida Indianópolis, o cartório, elas não queriam registrar. “Mas ele tem pai?” Eu falei: “Só que ele tem pai, mas o pai está aqui? O pai veio? Não, né? Então, veio a mãe. Eu preciso do registro do menino”. Ele estava com 15 dias. “Eu preciso do registro.” “É, realmente!” Mas eu não falei que a gente morava junto. Porque, se eu tivesse falado, era pior. Eu falei: “Não, ele não veio. Eu telefonei para ele, e ele falou que vinha. Eu dei o prazo do horário”. Lá no cartório eu menti. Só que ele falou que não ia. Eu falei: “Felipe, vamos ao cartório, vamos registrar?”. “Não, não, enquanto você não decidir o nome, nós não vamos.” Quando eu cheguei, quando eu cheguei em casa com o registro, ele picou o registro. Só que ele perdeu porque em 24 horas ele conseguia. Só que ele foi dois dias depois no cartório. Chegou lá no cartório, falaram: “Agora só com advogado”. Então, ele ficou com raiva, não quis, entendeu? “Aí, então fica, o filho é só seu mesmo!” E ele ficou só como Rafael Salles de Andrade durante dez anos. Entrou na escola. Eu falei, eu falava lá na escola: “Olha, ele tem pai, ele tem avô, ele tem tudo”. Eu sempre briguei por isso. Só que, como ele é alcoolizado, então eu falei: “Quem vai representar o pai dele aqui na escola é o avô, é o avô, porque o pai dele é doente. Então, quem vem, se tiver que chamar, é o avô que vem”. Porque ele mesmo que falava: “Mãe!”. “Não, ele não vai, você pode ficar sossegado”. E realmente ele nunca apareceu. Aí, depois, quando ele fez dez anos, ele ligou e falou assim: “Ô, Regina, você não vai?” – ele já estava casado e tudo – “Regina, você não vai querer registrar o menino com o meu nome?”. “Não, não! Sabe que agora é bom?” Depois, você está ali, estudando, mais informada, eu achava que realmente era importante, né? Eu falei: “Não, não, vamos pôr sim. Vamos pôr”. Numa boa também. Fomos ao cartório, como foi de livre e espontânea vontade, ele foi, mesmo casado. Ele estava casado. Precisou levar a certidão de casamento, tudo. Mas normal. A confusão foi quando ele morreu. Quando o menino apareceu na certidão de óbito, a mulher ficou cabreira.
P/1 – Ela não sabia?
R – Ela sabia. Eu falei: “Você sempre soube que ele teve um filho”. Só que ela não queria que constasse na certidão de óbito. Falei: “Menina, é pai dele!”. “É, mas você nunca quis que ele registrasse”. Falei: “Mas registrou. Azar dele, ele que quis. Não fui eu. E é o pai ele”. Não pode, hoje em dia, não podem as crianças não ter o nome do pai no registro. Mas meu filho nunca teve problema nenhum com isso. Normal. Mas ela encrespou. Na hora da certidão de óbito, ela teve um problema, ela encrespou. Mas não tem nada. A gente não se vê mais. Nunca mais vimos, nos vimos na missa dele de sétimo dia. Depois nunca mais. Aí nos vimos no velório do ano passado, do avô que morreu, no ano passado, nos vimos no velório. Também, como duas estranhas. Ninguém fala com ninguém. Sem problema nenhum.
P/1 – E, Regina, como foi ser mãe?
R – Para mim, foi uma surpresa ser mãe. Porque também não achava que eu tinha capacidade funcional de ser mãe, que a gente ouvia falar muita coisa, que deficiência, que não podia ser mãe. A nossa preocupação já foi eu menstruar quase aos 19 anos. E, depois, também, quando eu comecei a namorar, já tinha essa meia restrição. E ser mãe, você ir ao médico, tudo, eles falaram assim: “Não, você é uma pessoa normal. Talvez não tenha capacidade de ter um parto normal, porque sua bacia é estreita. Mas existe a cesárea”. Mas eu não pensava. Eu fui resolver ser mãe quando eu já não queria mais ficar com ele. Falei: “Acho que eu vou arrumar um problema para você”. Mas, você vê, eu não fazia uso de pílulas, eu nunca fiz nada. Então, quando eu resolvi ser mãe, veio mesmo espontâneo. E, quando eu soube que estava grávida, fazia três meses, já estava de três meses quando eu vim saber que estava grávida. Um mês vinha, outro mês não vinha, um mês vinha. Falei: “Não, alguma coisa está errada. Preciso ir ao médico”. E aí, quando eu fui consultar, ele falou assim: “Vamos fazer exame, mas você está grávida”. Falei: “Não, o que é isso, Doutor Luís?”. Ele falou: “Você está grávida, sim”. Aí eu fiquei: “Ai, Meu Deus!”. Ao mesmo tempo, eu fiquei contente e, ao mesmo tempo, preocupada. E aí fui. Curti muito bem. Trabalhei até a sexta-feira. Meu filho nasceu numa terça. Trabalhei os nove meses. Trabalhava na Antarctica, aquela preocupação, que eu estava com um cargo, de perder o cargo. “Ai, Meu Deus, depois eu vou ter que ficar aqueles 84 dias” – não eram 120, eram 84, que todas as mães contavam os dias que iam ficar. Então, eram 84 dias fora. E fiquei contente. Continuei fazendo tudo o que eu fazia. Gozado, naquela época não tinha aquela preocupação de você beber. Eu fumava, na época, eu adorava beber, bebia. E meu filho, quando nasceu, nasceu com dois quilos. Não nasceu prematuro, não. Nasceu com 2,950 quilos e 47 centímetros.
P/1 – Bom, retomando, a gente estava falando do nascimento do Rafael.
R – Então, ele nasceu com 2,950 quilos, 47 centímetros, porque não tinha instrução, né? De fumar. O médico falava: “Diminui!”. E eu, na gravidez dele toda, eu tomava muita água tônica, eu tomava muita água tônica com limão, e comia muita batatinha com queijo ralado. Era isso. Peguei um horror de hambúrguer até hoje, não como hambúrguer de jeito nenhum. E o tal do “pão de Cristo”. Não posso nem sentir o “pão de Cristo”, que é um fermento que se passava assim, para as pessoas. É o cheiro do pão assado de padaria. Quando eu passo em padaria, me embrulha até o estômago, porque eu não posso sentir aquele cheiro daquele pão assado. Então, durante a minha gravidez todinha foi isso. Mas assim: normal. A gente saía com a turma da Antarctica, que era uma família também. Eu comecei a engordar muito. Engordei 30 quilos. Eu era magra, engordei 30 quilos. De 70, eu fui para 110 quilos. Então, eu fiquei muito gorda e ninguém percebia que eu estava grávida. Não parecia que eu estava grávida. Parecia que eu estava gorda mesmo. E, normal, a gente saía, encontrava, passeava. E, no departamento pessoal, que você tinha que sair 30 dias antes dos nove meses, e eu fui protelando, protelando, protelando. E, quando chegou, que eu fui ao ginecologista, eu já estava com médico no Alvorada – a gente tinha um bom convênio –, o Doutor Luís falou: “Você tem que escolher três datas, três datas para essa criança nascer lá no Alvorada. Se passar dessas três datas, você me procura no Hospital São Paulo”. Então, eu falei: “Me dá aí as três datas”. Então, as três datas foram: 28 de abril, 3 de maio e 5 de maio para ele nascer no Alvorada; 28 de abril eu não queria porque foi o dia de falecimento do meu irmão, 5 de maio é aniversário dessa minha colega psicóloga que me passou para trás. Então, sobrou 3 de maio, que eu queria que ele nascesse no Alvorada. Então, na terça-feira não tinha nada. Trabalhei até sexta-feira, e tinha essa consulta na terça-feira, 3 de maio. Fui dirigindo. E eu fui com a minha cunhada. A minha cunhada falou: “Mas, Regina, e se ficar?”. Eu falei: “Não, não vai ficar porque eu não estou sentindo nada. Ele falou, se eu sentisse alguma coisa, eu não senti nada. Acho que vai mais para frente ainda”. Aí, quando chegou lá, no hospital, no Alvorada: “Ah, vim procurar o Doutor Luís”. “Ah, o Doutor Luís não está. Está o assistente dele, que é um boliviano, o médico.” Aí ele chegou, começou a falar enrolado comigo. Falei: “Não, não, quero o Doutor Luís”. “Não, Doutor Luís não vem hoje, só vem dia 5.” Eu: “Dia 5? Meu Deus! Dia 5 não. Vou embora”. “Não, mas deixa eu te dar uma examinada.” Esse boliviano. Eu não devia ter deixado ele me examinar. Ele me examinou e falou que já estava para nascer, a criança estava no tempo de nascer. Ele falou: “Não, vou fazer uma cesárea”. Falou que era estreito, que não ia arriscar nascer, mas ele já estava no ponto de nascer mesmo de parto normal. Porque eu não estava sentindo nada, nove meses, eu vim dirigindo meu fusquinha. Era um fusquinha branco, estava no estacionamento. E eu lembro que eu estava com um camisão branco, comprido. E, quando ele me examinou lá, sujou tudo. Gente, o transtorno. Gente! E o meu carro na época era adaptado para eu dirigir. E eu tinha que desmontar o pedal para poder, porque o marido dessa minha cunhada, que é meu irmão, que sabia mexer lá. Outras pessoas não iam entender como era mexer no carro. Eu falei: “Meu Deus, em que estado que estou agora? Você sujou tudo!”. Ainda xingando o médico, ele falou que eu precisava ser internada, que a criança ia nascer. Falei: “Não, então, vocês me arrumam uma roupa, que eu vou ter que ir lá no estacionamento desmontar”. “Não, como que você vai?” “Não, vou, senão, como que vocês vão dirigir o carro?” “Não, então vamos chamar o teu irmão. Regina, deixa de ser louca. Vamos chamar ele. Ele sabe. Ele vê.” Falei: “Não, não, não, não”. Olha, eu sei que foi uma confusão danada. Danada. Eu sei que eles conseguiram deixar o carro lá. E eu não precisei. Aí já me arrumaram, eu já subi. Até que foi uma bela hora. Isso eram umas 11 horas da manhã, que começou essa confusão toda. Já subiu lá pro quarto, já estava tudo certinho onde ia ser o quarto, tudo. E aí, às 3h25, e eu tenho horror a hospital. Ainda falei para o Doutor Luís. Era a primeira vez que eu ia fazer uma outra cirurgia. Fui chorando, quando eles fizeram a limpeza em mim. Fui chorando para a sala. A anestesia não pega em mim. Eles tentaram e nada. Eu, olhando lá para cima, aplicaram a peridural e eu olhando lá. “Deita!” Eu deitei. “Está sentindo alguma coisa?” “Não!” Mentira, estava sentindo tudo. “Não, mas teu pé está mexendo.” “Mas pode ir.” Eles me cortaram a sangue frio.
P/1 – Como assim?
R – Porque não pegava anestesia. Não podia mais aplicar anestesia. Nisso, o Doutor Luís chegou. Ele falou: “Gente, ela está sem anestesia”. “É, ela mandou continuar.” “Vocês estão malucos.” Lá na sala, e eu vendo tudo lá, eles cortando. E aquela dor insuportável. E eu suportando aquilo, suportando. Aí o Doutor Luís pegou na minha mão e falou: “Regina, como você está?”. E eu falei: “Não, eu estou bem, pode continuar”. Aí, quando eles tiraram o bebê, ele mesmo falou que era menina. Eu estava supercontente. Menina, eu falava, eu queria uma menina. Mas só que o ultrassom deu menino. Ele falou: “É, está em dúvida aqui entre uma menina e um menino, no ultrassom. Mas é menino”. Eu falei: “É menino! Minha convicção é que é menino”. E eles falaram que era menina. Não, para mim era menino. Aí, quando ele tirou, que a criança começou a chorar, o Doutor Luís falou: “Falei para você que era menina, Mariana”. Não, mentira que eu vi. É menino. Ele falou: “É verdade. É menino, você acertou”. Aí, tiraram, era menino. Quando ele chegou, falei: “Nossa, que petitico”. Bem pequenininho, ele veio bem pequeno mesmo. Hoje você vê que é de fumar, tudo. Eu só larguei de fumar... Porque ele é uma criança que veio com tudo. Ele é alérgico a remédio, tem rinite, não pode tomar qualquer tipo de remédio. E a gente fumando, tudo. Tirou carpete do apartamento. Precisou tirar tudo porque ele era muito alérgico. Aí eu parei de fumar, mas sem problema nenhum. Aos 34 anos, depois que ele nasceu. Ele nasceu em maio. Acho que, antes de eu voltar a trabalhar, já não estava mais fumando. Em agosto, que eu voltei a trabalhar, já não fumava mais. Terrível aquilo nele. Então, a gente já não fumava mais dentro de casa. Mas é uma criança bem forte, um negão forte. Mas foi uma gravidez tranquila, só peguei aversão a isso durante essa gravidez minha. Mas também não quis mais ter filho. Até me arrependo de ter tido só um. Mas só que não quis mais, de medo mesmo. Era medo de ir para o hospital, até hoje. Eu quebrei esse dedo, e ele ficou assim porque tinha que fazer cirurgia. “Eu não vou. Eu não vou pro hospital.” Eu morro de medo quando começam a fechar as portas. Aquilo me dá uma coisa terrível. Então, o meu dedinho ficou assim, há pouco tempo, meses. Ele ficou assim porque eu caí, foi uma tentativa de assalto, o menino da bicicleta me atropelou, e eu não sabia que estava quebrado mesmo. Tirou raio-X no hospital, falaram que não estava. Só depois, começou a inchar, inchar, inchar, voltei. Só que já tinha descalcificado. Só que tinha que quebrar para fazer cirurgia. Eu falei: “Não, que fique assim. Não vou”. Aí está assim, como que um reumatismozinho. Deixa ele quietinho.
P/1 – E, Regina, conta pra gente, quais são as suas atividades hoje? Como é sua rotina?
R – Então, minha rotina hoje. Eu vim para São Paulo quando me aposentei. Em 2015, me aposentei de Cubatão, vim para São Paulo procurar minhas amigas. Cheguei aqui, não tinha ninguém. Tudo cuidando de neto, de filho, minhas irmãs cuidando de neto. Meu Deus, e agora? Sem amizade? E a tecnologia da vida, comecei a procurar no Face, grupo de trabalhar com idoso, aí eu comecei a ver mais de 50, circuito da melhor idade. “Olha, que legal, vamos ver!” E o primeiro grupo que eu encontrei foi esse circuito da melhor idade. Tem quatro núcleos. Na Vila Mariana, em Taipas, na Vila Carrão e no Butantã. Quatro núcleos. Aí eu falei: “Vila Carrão, pertinho, né?”. Eu moro no Belém, pertinho. E na Vila Mariana. Aí eu frequentei. Fui conhecer esses quatro grupos. Os mais pertos eram Vila Mariana e Carrão. Aí, até preconceito meu. Tinha muita pessoa de idade. Elas mesmas. “Não! Você é novinha”. “Novinha não, eu tenho 60, já fiz 60 anos.” “Não parece.” A coordenadora de lá, a Paula, na época, falou assim: “Ah, vamos fazer o seguinte, Regina. Começa a frequentar aqui, aí você começa a nos ajudar, então. Quer ser voluntária?”. Falei: “É, pode ser!”. Aí eu fiquei lá uns dois, três meses. Mas eu falei: “Não, não é isso não que eu quero. Vou procurar o da Vila Mariana”. Aí fui lá, na Vila Mariana. Cheguei lá, acho que minha sina era essa. Cheguei lá na Vila Mariana, também bastante idosos. E lá tinha muita gente. Na época que eu fui, tinham umas 60. Hoje que o número está menor. E aí eu gostei. Conheci a coordenadora, Andréa, e ela falou: “Nossa, mas você tem 60 anos?”. “Tenho 60 anos.” “Ah, não parece.” Eu falei: “Mas dá para eu frequentar?”. “Dá, preenche aqui a ficha.” Preenchi e comecei a frequentar lá. E eu gostei. Porque lá as atividades eram quase as mesmas, que eram os mesmos oficineiros. Mas era um pessoal diferente. As idosas lá eram mais expansivas, como são mais expansivas, e eu comecei a frequentar. E essa coordenadora começou a ficar doente. Aí ela me nomeou para eu ir ajudá-la. “Ah, Regina, será que você podia me ajudar?” “Ajudo!” Também porque eu tinha, as idosas lá não tinham muita interação com computador, e eu tinha e fiquei. E fiquei. E a coordenadora foi piorando, ficando doente, e veio o desabamento da parceria da ONG [Organização Não Governamental] que cuidava. Houve esse monte de confusão, e eu segurei as pontas do grupo. E o coordenador dessa ONG veio e falou assim para mim: “Ah, eu tenho uma pessoa para colocar aqui”. Eu falei assim: “Tudo bem”. Mas assim, crente de que eu ia ficar com o grupo porque eu estava ali já, né? Ele colocou uma lá, a Sílvia. Nossa, o povo detonou. A mulher saiu de lá chorando, porque eles detonaram ela. “Deixa a Regina mesmo, deixa a Regina.” Isso ninguém conta, viu, Inara? Aí eu fiquei, continuei, que tinha a menininha lá, a Bia. Eu fazia todo o trabalho de presença, de ausência para ela. Aí fizemos um trabalho com o professor. Foi maravilhoso. Passou na TV Cultura. Nós dançamos. Foi maravilhoso. Aí veio de novo o coordenador. “Ai, Regina, tem uma outra pessoa que eu vou pôr aqui.” Eu falei: “Tudo bem. Quem é?”. Miriam. Aí trouxe ela. O pessoal também não gostava muito dela, sempre assim. Não gostava muito. Aí teve uma reunião lá, e a Miriam sabia que o pessoal não gostava dela. “Ai, Regina, por que será?" E eu: “Não, imagina, impressão sua”. Mas hoje você vê que eles falam. Aí, teve uma reunião geral lá na Bela Cintra e, para minha surpresa, ele falou para mim: “Olha, Regina, estamos dispensando os seus trabalhos, e quem vai ficar vai ser a Miriam”. Eu falei: “Nossa, eu achei que você, me convidando para vir aqui nessa reunião de coordenadores, vocês iam passar o grupo pra mim”. Aí ele falou: “Não! Vai ser a Miriam”. Mas não precisou porque quem botou ela fora foram os próprios componentes do grupo. Porque entrou, não vou entrar no demérito, terminou um grupo da Prevent Senior, e entraram uns rapazes que queriam tomar conta do grupo. Como eu não tinha mais nada, já tinha sido mandada embora praticamente. Isso aí ninguém sabe lá, porque isso aí foi resolvido lá na Bela Cintra. Eu vi a participação deles, eu falei: “Olha, gente, cuidado!”. Eles trouxeram um cara lá que queria tomar conta mesmo do grupo. Porque eles terminaram com o grupo da Prevent, eles queriam pegar aquele que já estava formado. Falei: “Cuidado, não entra numa dessa, porque é perigoso”. Do lado de fora. Eu só como participante do grupo. Mas eles conseguiram. “Você quer?” “Não, não quero. Quero continuar como participante.” Porque eu me frustrei, realmente me frustrei. Achava que quem ia ficar com a coordenação do grupo seria eu porque eu sempre segurei as pontas no semestre. E deixei rolar, como até hoje lá rola tudo. Então, eu deixei e me dediquei mais ao grupo de adoção. Eu sou coordenadora do grupo de adoção de Cubatão, que eu fundei o grupo. E, como agora eu estou aqui em São Paulo, me convidaram o ano passado para coordenar também o grupo do Tatuapé. Da OAB junto com a Comarca de Tatuapé, o Fórum, me convidaram para coordenar também esse grupo aí no Tatuapé, que eu também coordeno o grupo de apoio à adoção de crianças e adolescentes. E sou participante do grupo. Eu sou só participante do grupo. Eram quatro homens que entraram para o grupo e fizeram a cabeça de fundar uma associação. E eu falei, eu sempre ali atrás: “Olha, cuidado. Entrar é fácil. Agora, para sair é difícil”. Então, está em formação uma associação informal, onde tem o presidente, é nomeado presidente, tem tudo. Só que não pode ir além. Ir além daquilo. Só entre eles. Então, a gente paga uma mensalidade por mês. Tem o presidente que não faz nada, quem faz é uma outra pessoa, mas elas aceitam. Legal! Porque o grupo não cai. Agora, está numa corda bamba, porque lá na Cinemateca uma outra ONG que está tomando conta. Tomou conta, quer dizer, está tirando aos poucos, que está perdendo espaço. E vai perder. Você pode ter certeza de que vai perder espaço. A menos que essa ONG que está lá, essa Oscip [Organização da Sociedade Civil de Interesse Público] que está lá agora, tiver a ideia de puxar o grupo. Eles vão ter que fazer isso, se quiser manter. Ou eles montam um outro grupo, se tiver mesmo intenção. Eu não sei. Não sei o que eles conversaram. Hoje eu sou só mesmo participante do grupo. Só participo. Eu acho que isso deveria ter sido bem mais conversado, se essa Oscip quer manter o grupo, quer o afastamento. Talvez por ter esse nome, “associação”, talvez por isso que eles não queiram, mas não são formalizados, eles são informais, porque ninguém quer dar o seu nominho lá para poder se ferrar mais tarde – e vão, se fizer, porque tem que ser uma coisa bem certinha no papel. Porque agora a gente está lá, eu participo desse grupo, dessa associação de circuito da melhor idade. Ainda continuou, só acrescentaram o “a” na frente, Associação Circuito da Melhor Idade. De quarta-feira e sexta-feira, a gente tem ioga, tem a participação da Nori, que faz um trabalho maravilhoso, que, desde que ela entrou, o grupo melhorou muito, cresceu e se desenvolveu muito. De quarta-feira. E a Nori também conquistou um horário lá que não tinha. Conquistou um horário de duas horas a mais, lá dentro da cinemateca. De sexta-feira, tem, de manhã, tai chi, às nove horas começa. Depois, às dez horas, tem uma professora de dança. E, agora, desde o ano passado, começou o coral. Então, essas são as minhas atividades. E outra atividade que eu frequento de quarta-feira à tarde é um outro grupo dos funcionários públicos da associação. Então, eu estou lá. Como eu sou uma pessoa muito falante, e uma pessoa dada, sou uma pessoa dada, também eu frequento lá desde 2015, e eles doidos para que eu entre para a diretoria. Chama Grupo da Amizade. Eu: “Não, não! Eu sou só participante”. Mas eu dou os meus pitacos, e eles gostam. E, nessa formação, nesse conhecimento dessas pessoas, eu formei um grupo no Whatsapp. “Ah, você quer entrar no meu grupo, quer entrar no meu grupo?” Que eu vou para teatro, cinema e viajo, que eu sou louca para viagens. Então, são todas pessoas que a gente não se conhecia e passou a se conhecer, eu fui puxando uma daqui, outra dali, chamo gente desse grupo, que eu faço muitos passeios. Então, eu chamo: “Você quer ir ao teatro, quer ir?”. Só que o que eu estou sentindo agora? Que nesse grupo que eu formei, nesse grupo de Whatsapp, que é “Amigos Mais de 50 de São Paulo”, estão tendo subgrupos. Por quê? Tem muitas que gostam de dançar. Outras não. Então, começou assim: “Ah, vamos dançar”. Porque eu comemoro os aniversários do mês. Nós comemoramos, a gente viaja, vamos na casa de uma, ou em algum barzinho, sempre invento alguma coisa. Então, começaram a se formar vários grupos. Para não falar em ciumeira, alguma coisa assim, começou a ver que estava dando certo esse negócio de viagens. Aí já tem um outro de viagem. Mas são as mesmas pessoas. São os mesmos que vão na minha viagem, vão na sua também. E aí começou isso!
P/1 – Fala um pouco onde são essas viagens. Como você organiza?
R – Eu organizo. As viagens, eu faço as viagens turísticas em São Paulo. Fiz até uma internacional, começou no ano passado, fomos em seis pessoas. É que depositam confiança e credibilidade naquilo que você vai fazer. Então, eu fiz para a França. Nós fomos para Paris, Barcelona, Madri, Porto e Lisboa. Nós fizemos esses cinco países. Eu aqui: telefone, agência, hotéis. Deu tudo maravilha. Seis pessoas adoraram. Dessa ideia internacional, surgiu um outro grupo que, no ano passado, eles começaram a cobrar. Eu não fiz a cobrança antes. Eu fiz a cobrança depois, eu assumi a responsabilidade. Eu acreditei nas pessoas, e as pessoas em mim. Nós fomos viajar e pagamos depois. Só as passagens que tivemos que pagar antes. Mas os hotéis e tudo eu joguei no meu cartão, elas depositaram para mim, oito parcelas, direitinho, sem problema nenhum. Aí surgiu esse grupo para a Itália, eu falei: “Tudo bem, eu sonho também em conhecer a Itália, vamos que vamos”. Aí eles formaram, formaram dez pessoas. Vai ser agora, o embarque vai ser dia 23 de junho para a Itália. São pessoas também que pegaram ali dentro do grupo e eu também não conhecia, algumas me conhecem, e embarcamos nessa. E já fui em excursão em Itu, Piracicaba, Campos do Jordão, Poços de Caldas, fizemos as cidades do circuito das malhas, Lindoia, Monte Sião, Serra Negra. Fizemos bastante esse circuito. Eu levo. Vamos que vamos. Só que agora esse outro grupo, que faz? Ela faz uma excursão. Ela fez uma excursão no mês de março, só que ela já amarrou abril, maio e junho. Ela já amarrou essas pessoas desse grupo. Então, quando ela faz a excursão, ela pega e já passa, ela segura para a excursão daqui a dois, três meses. Que nem um exemplo: eu fechei uma excursão para Poços de Caldas em agosto, porque eu só vou voltar em julho. Eu fechei em agosto. Só que eu não sabia que ela já tinha fechado. Ela lá em agosto. Quando eu joguei no grupo “excursão para Poços de Caldas” justamente era no mesmo dia que ela. Só que o pessoal já estava amarrado. Falei: “Sem problema nenhum. Vocês vão aonde vocês quiserem”. Os delas fazem excursão porque elas vivem, estão vivendo disso. Porque elas viram que o negócio é rendoso. Eu não. Eu faço por prazer, para levar as pessoas passearem juntas. A excursão delas vai custar 450 reais. A minha vai custar, no mesmo local, não é no mesmo hotel, é num hotel melhor que o delas, o meu é melhor, que é o Rex, na praça, 380 reais. “Regina, mas é mais barato.” Eu falei: “Está na mão de vocês. Vocês fazem o que vocês quiserem. Se quiserem ir lá, vocês vão lá. Se quiserem ir aqui, vocês vão aqui”. Então, fica difícil. E a festa junina, que vai ser agora, dia 10 de junho, vai ser em Jacareí, que é num sítio lá, Recanto Rural, Bonanza Rural Center. Vai ter um monte de brincadeira. Então, todo mundo adorou. Eu fiz rapidinho. E aí ela perdeu o outro grupo porque ela vai fazer em Piracicaba, e só dia 17, a minha é dia 10. Mas já está fechado lá faz tempo. Só que alguns saíram de lá para vir nesse. Só Poços, aí acharam: “Ah, não, já fizemos uma vez, fica chato fazer de novo”. Eu adoro viajar.
P/1 – Regina, a gente está precisando encerrar, tem mais duas perguntas. Então, a primeira pergunta é: como foi contar hoje a sua história para a gente?
R – Foi muito legal, uma coisa que, para mim, está escrito. Eu escrevi a minha história, que eu escrevo também há oito anos, que eu escrevo a minha história. O que eu faço a cada seis meses. Eu escrevo em papel. Eu escrevo. E para ele o que vai acontecer comigo nos próximos seis meses. Tudo. Eu deixo tudo para ele, o que eu tenho em banco, seguro, essas coisas todas, deixo escrito. E, quando a Nori colocou isso, então, a minha ideia era já contar essa minha história, não assim, dessa forma. Mas para minha família, o ano que vem, que eu vou fazer 65 anos, eu pretendo fazer festa para eles e contar como estamos aqui. Até esse momento dos meus 65 anos. Então, quando a Nori veio com essa proposta de trabalho com a gente, primeiro ela mandou a gente escrever. Nós escrevemos se a nossa vida daria uma obra de arte. Ela mandou a gente escrever, e todos escreveram, foi no semestre passado, no ano passado. Entregamos para ela. Quando foi nesse ano, que ela veio, falando que fomos convidados para contar essa história. Eu falei: “Ô, que legal, Nori. Eu quero”. E fui a primeira a querer contar realmente a minha história porque eu já tinha escrito a minha história lá no começo, que eu contei. A minha vida dá mesmo porque, criança, passei em hospital. Mas hoje eu não sabia que ia minuciar tanto assim. Então, foi muito legal, inclusive, foi emocionante, para mim, poder falar desde o começo mesmo, contar minha vida, essa passagem lá no hospital. E acho que foi legal ter participado aqui dessa contagem, porque agora o pessoal vai saber da minha história. E eu me sinto uma pessoa privilegiada, porque eu consegui me formar, levei em frente a minha deficiência, de poder estudar, consegui estudar, consegui trabalhar. Não gosto, não sou coitadinha. Como minhas colegas hoje mesmo falam no grupo, todo mundo fala: “Imagina, a gente nem sabe”. Mas eu consegui estudar, eu consegui comprar meu apartamento, criei filho. A única coisa que ele não é formado, universitário. Eu cobro ele direto disso. Só é um professor de educação física. Ele fez Educação Física. Mas não terminou o bacharel. Então, isso me deixa um pouquinho frustrada, sim. Porque eu queria que ele se formasse. Mas ele: “Não, mãe, ainda tem tempo. Ainda tem tempo”. Já várias faculdades, ele já fez Ciências Contábeis, Administração, mas ainda não chegou naquilo que ele quer. Então, deixo rolar. Mas adoro meu filho. Meu filho é um supercompanheiro meu. A gente sai muito. Inclusive, as minhas amigas de grupo, me sinto muito bem que elas elogiam de me ver com ele nos locais em datas especiais. A gente festeja muito, a gente viaja, gosta de viajar muito juntos. Ele tem os amigos dele. Ele namora. Ultimamente, não está namorando, mas ele gosta de sair. Eu sinto que ele tem prazer realmente de sair comigo. Ele fala: “Mãe, vamos aonde?”. Fez uma surpresa maravilhosa para mim no Dia das Mães, domingo, fomos ao Terraço Itália, que era um sonho nosso. E um sonho nosso é passar um réveillon lá, e ele falou que ainda vamos passar. No Terraço Itália. Então, ele falou: “Não foi um réveillon, mas vai ser um almoço de Dia das Mães”. Nossa, me senti maravilhosa, foi muito bom de a gente ter almoçado lá. Só nós dois. Foi um momento muito bom mesmo de a gente ter ido almoçar lá no Terraço Itália. Foi o nosso penúltimo, não vamos falar o último, passeio nosso. Então, os elogios que o pessoal pôs, que postou na rede que a gente... E ele é realmente uma pessoa maravilhosa. Todo mundo fala: “Ah, conheço o seu filho. Seu filho é demais. Uma gentileza”. E tem gente que fala: “Nem parece ser seu filho”. Eu meio que sou estouradona. E ele não. Ele, uma calmaria. Eu fico até meio assim. Falo: “Meu Deus! Como é que uma pessoa pode ser desse jeito?”. Sabe, ele é bem calmo. Legal isso.
P/1 – E, para encerrar, quais são seus sonhos?
R – Bom, o meu sonho é continuar nessa minha cavalgada de estar participando dos grupos, fazendo o bem para muitas famílias, de adoção de crianças. E também de viagens, que nem eu falei: viajando para a Itália, agora, que eu queria conhecer a Itália, como eu queria conhecer também a França, que, quando eu cheguei lá e vi aquela torre, desabei. Era um sonho que eu nunca podia imaginar que a Torre Eiffel era daquele jeito. Imaginava assim, torrezinha, mas não do jeito que ela é. E, outra vez, voltar lá no ano que vem, porque não conheci a noite. Paris, à noite, não saí. Não saí à noite devido a um rapaz que foi com a gente, menino, 19 anos, que foi com a gente, ele tinha muito medo de sair à noite. Então, a gente não pôde conhecer Paris à noite. Mas, como ela é muito minha amiga e nós ficamos juntas, falei: “Não, não vou! Não esquenta a cabeça, a gente faz uma nova viagem”. Ela também quer vir. “Aí, vem só a gente, não vamos trazer ninguém.” Então, o ano que vem nós vamos. Só isso. Eu tenho um filho maravilhoso. Tenho, graças a Deus, a minha casa que, desde criança, era ter um imóvel próprio, meu sonho era esse. Tenho meu carro, graças a Deus, tenho a oportunidade de estar trocando um carro a cada dois anos. Um carro zero. Hoje eu dirijo um carro automático. Era um sonho também ter um carro automático. Achava que eu nunca ia poder. Depois eu descobri que isso era tão fácil. Então, desde acho que 2014, 2012 que eu troco um carro automático a cada dois anos. Eu não vou dizer que sou realizada completa, mas já tenho algumas realizações que eu sonhei quando era criança. O sonho de ter um telefone, nossa! E, de repente, eu comecei a trabalhar e botei o telefone dentro de casa, da minha mãe. Um celular. Eu tenho celular desde 1994. Os primeiros celulares. Dormi na fila da Telesp [Telecomunicações de São Paulo], consegui um celular. O primeiro, nossa! Eu fui a primeira a ter celular. No hall das minhas amizades, na Antarctica, quando eu levava aquele tijolão, o povo ficava doido.
P/1 – Para quem que foi a primeira ligação?
R - Aí, você vai me pegar. Não lembro. Eu sei que eu fiquei doida, porque eu via nos filmes. Falei: “Meu Deus, existe isso, né?”. Quando chegou no Brasil, a gente tinha que fazer inscrição na Telefônica. Eu dormi na fila, na Cásper Líbero. Um frio! A gente dormiu para poder conseguir o telefone. E eu consegui. Consegui dois. Consegui dois telefones. Um era para minha mãe. E a minha mãe: “Não, não quero isso!”. Tinha uma aversãozinha. Mas depois a gente vendeu, que tinha um lucro maravilhoso. Foi quando eu comecei a comprar os carros, mais atuais. Graças a Deus, o telefone celular para mim foi uma maravilha. Então, era o meu sonho ter um telefone. Primeiro, a casa, mas eu consegui bem anos despois. Foi em 80. O telefone consegui bem antes. Foi a primeira coisa que eu consegui foi comprar um telefone no meu nome. Foi o telefone, depois foi o carro, depois a casa, depois um filho maravilhoso, e agora as viagens que a gente faz aí pela vida. Não vou dizer que sou completamente realizada, mas 99,9% eu sou realizada, sim, não tenho do que me queixar. Dá para eu levar a minha vida como estou levando.
P/1 – Então, Regina, em nome do Museu da Pessoa, a gente agradece demais esse dia, essa manhã, de você ter compartilhado essa história com a gente. Obrigada mesmo!
R – Obrigada, eu é que agradeço por ter essa oportunidade também.
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