Mas não mais que eu. E só não a amei mais porque não pude, pois todos os meus amores terminaram por questões de dinheiro. Fosse eu um homem rico ou pelo menos estabilizado, teria sido um homem de uma só mulher, ou talvez de mulher nenhuma, e não marido de cinco, embora hoje eu seja um homem muito feliz com a minha adorada Cidinha e meus filhos gêmeos, Octávio e Victtoria, e minha filha Anaí. Em verdade fui muito pobre e desamparado. Fosse o contrário e teria sido pintor prodígio, pois desde aquela figurinha difícil da bala Ruth eu teria começado a pintar. Mas eu era pobre, e vivia no Encantado, um subúrbio proletário do Rio de Janeiro. Ali fui um menino que ouvia os ecos rudes da guerra e soltava pipa nos campos de futebol, corria atrás de balão e me escondia no Morro da Água Santa. Socializei-me pelas pipas, compreendi o céu vendo os balões e descobri desde cedo o valor do eremitério, da força da renúncia e da vontade. Áureos tempos da minha meninice. Eu tinha medo de tudo, mas tudo tinha que disfarçar. Fraco, vulnerável, fazia crer ser o mais forte. Desprezado pelas meninas, acreditei ser irresistível e capaz de a todas e todos conquistar. Sucesso, que eu me lembre, só meus olhos faziam. Diziam que eram grandes. Havia também um calombo no lado de trás do crânio e que era objeto de hilaridade e que eu acabei escondendo de vez com uma trança que usei por 35 anos. De notáveis mesmo, parece, hoje vejo, eram só os meus desenhos. Desenhos angustiados de caras pálidas como a minha e que saiam muito de dentro para os cadernos de telefones, nos blocos de anotações... e nada mais. Bom pintor, sem nunca o saber, eu preferia os livros. Caros livros que eu roubava se preciso – e eu sempre precisava – e que pedia emprestado também, que lia conforme me caíam nas mãos, uns atrás dos outros, compulsivamente. Li como um louco, inclusive livros. Lia o céu, a terra, as pessoas, o universo. Não houve nunca um dia em que eu não me...
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Mas não mais que eu. E só não a amei mais porque não pude, pois todos os meus amores terminaram por questões de dinheiro. Fosse eu um homem rico ou pelo menos estabilizado, teria sido um homem de uma só mulher, ou talvez de mulher nenhuma, e não marido de cinco, embora hoje eu seja um homem muito feliz com a minha adorada Cidinha e meus filhos gêmeos, Octávio e Victtoria, e minha filha Anaí. Em verdade fui muito pobre e desamparado. Fosse o contrário e teria sido pintor prodígio, pois desde aquela figurinha difícil da bala Ruth eu teria começado a pintar. Mas eu era pobre, e vivia no Encantado, um subúrbio proletário do Rio de Janeiro. Ali fui um menino que ouvia os ecos rudes da guerra e soltava pipa nos campos de futebol, corria atrás de balão e me escondia no Morro da Água Santa. Socializei-me pelas pipas, compreendi o céu vendo os balões e descobri desde cedo o valor do eremitério, da força da renúncia e da vontade. Áureos tempos da minha meninice. Eu tinha medo de tudo, mas tudo tinha que disfarçar. Fraco, vulnerável, fazia crer ser o mais forte. Desprezado pelas meninas, acreditei ser irresistível e capaz de a todas e todos conquistar. Sucesso, que eu me lembre, só meus olhos faziam. Diziam que eram grandes. Havia também um calombo no lado de trás do crânio e que era objeto de hilaridade e que eu acabei escondendo de vez com uma trança que usei por 35 anos. De notáveis mesmo, parece, hoje vejo, eram só os meus desenhos. Desenhos angustiados de caras pálidas como a minha e que saiam muito de dentro para os cadernos de telefones, nos blocos de anotações... e nada mais. Bom pintor, sem nunca o saber, eu preferia os livros. Caros livros que eu roubava se preciso – e eu sempre precisava – e que pedia emprestado também, que lia conforme me caíam nas mãos, uns atrás dos outros, compulsivamente. Li como um louco, inclusive livros. Lia o céu, a terra, as pessoas, o universo. Não houve nunca um dia em que eu não me questionasse sobre as origens do universo, um assunto que me fascinava e transtornava. Isso: eu queria um brilho extravagante, ser uma estrela, uma extravagância com uma razão para viver que valesse realmente a pena. Pois o mundo era triste. Pena. Escrevi como um louco. Livros, literatura, artigos, críticas, sugestões, idéias, cartas e e-mails em profusão. Mas, era tudo pintura. Fixação da desaparição. Eu via os morros passando e os queria para sempre, vencendo o tempo e me eternizando naqueles campos de futebol suburbanos, campos perigosos, como todos que vivi, em Roma, na China, Bahia e Ceará. É verdade: sou um pintor de Minas Gerais, morei lá quase que sempre, fiz quase toda minha obra lá, lá tenho meus amigos e meus clientes que compram os meus caros quadros. Muitos quadros, pois sou o pintor que hoje, aos 65 anos, mais vende telas em Minas. Mas não sei se o que pinto é pintura ou alegria, vida. Ou um pouco de tudo.
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