Nunca pensei que viesse a ser o maior pintor do Brasil, fato que somente se deu no começo da minha maturidade, aos 43 anos, mais ou menos, quando vivia como um príncipe paupérrimo no alto da Serra do Mirantão, em Minas Gerais.
Desde cedo, muito cedo, decidi sem muita consciência ser pintor. Acho. Nos anos 40, 50, era muito rara a imagem impressa, de modo que quando foi lançada, com enorme sucesso, a bala Ruth (uma bala ruim com uma linda figurinha dentro, que colávamos num álbum e ganhávamos prêmios materialmente não muito convincentes) eu me deslumbrei perdidamente, muito particularmente com a página dos Quadros Bíblicos, a mais bela e a que mais reunia figurinhas raras. E assim, um dia, um belo dia, eu abri uma bala e lá estava a minha figurinha rara, uma Ascensão de Tintoretto, belíssima, colorida, e que me definiu de vez o que eu viria a ser, tantos anos depois. E assim se passaram 40 anos de minha vida de pintor.
Uma afirmação de um pintor aos 65 anos: "(…) as cores não existem, o que existe é a arte; e é a arte quem faz a vida, e a vida, as cores. Sem vida não é cor, é tinta".
Mas, o que é ser um pintor? Ou melhor; quem sou eu, Oscar Araripe, artista do Brasil e no mundo reconhecido, e bem. E digo "bem" porque sou verbete na Bibliografia do Grande Dicionário Aurélio, ou seja, figuro entre alguns notáveis construtores da língua portuguesa… inclusão certamente por amizade do grande enciclopedista Aurélio Buarque de Holanda, que me honrou com tal data, numa época em que os artistas independentes e as pessoas de bem e de boa obra estavam cortadas e afastadas da imprensa corrupta e inversora de valores. Imaginem os senhores: um pintor citado na maior enciclopédia da língua portuguesa (o que em verdade desmentia a frase boba de Salvador Dali, ao dizer que todo pintor tinha que ser burro; ou seja, aquilo, eu, o pintor, derretia os relógios sem sentido ou de sentido ultrapassado e fazia crer que os burros seriam bem mais os...
Continuar leitura
Nunca pensei que viesse a ser o maior pintor do Brasil, fato que somente se deu no começo da minha maturidade, aos 43 anos, mais ou menos, quando vivia como um príncipe paupérrimo no alto da Serra do Mirantão, em Minas Gerais.
Desde cedo, muito cedo, decidi sem muita consciência ser pintor. Acho. Nos anos 40, 50, era muito rara a imagem impressa, de modo que quando foi lançada, com enorme sucesso, a bala Ruth (uma bala ruim com uma linda figurinha dentro, que colávamos num álbum e ganhávamos prêmios materialmente não muito convincentes) eu me deslumbrei perdidamente, muito particularmente com a página dos Quadros Bíblicos, a mais bela e a que mais reunia figurinhas raras. E assim, um dia, um belo dia, eu abri uma bala e lá estava a minha figurinha rara, uma Ascensão de Tintoretto, belíssima, colorida, e que me definiu de vez o que eu viria a ser, tantos anos depois. E assim se passaram 40 anos de minha vida de pintor.
Uma afirmação de um pintor aos 65 anos: "(…) as cores não existem, o que existe é a arte; e é a arte quem faz a vida, e a vida, as cores. Sem vida não é cor, é tinta".
Mas, o que é ser um pintor? Ou melhor; quem sou eu, Oscar Araripe, artista do Brasil e no mundo reconhecido, e bem. E digo "bem" porque sou verbete na Bibliografia do Grande Dicionário Aurélio, ou seja, figuro entre alguns notáveis construtores da língua portuguesa… inclusão certamente por amizade do grande enciclopedista Aurélio Buarque de Holanda, que me honrou com tal data, numa época em que os artistas independentes e as pessoas de bem e de boa obra estavam cortadas e afastadas da imprensa corrupta e inversora de valores. Imaginem os senhores: um pintor citado na maior enciclopédia da língua portuguesa (o que em verdade desmentia a frase boba de Salvador Dali, ao dizer que todo pintor tinha que ser burro; ou seja, aquilo, eu, o pintor, derretia os relógios sem sentido ou de sentido ultrapassado e fazia crer que os burros seriam bem mais os escritores, haja visto a grande escritura que podia ser a Pintura, escritura muda e absolutamente silenciosa e que nasce do achatamento das palavras).
Mas, voltemos ao fenômeno da pessoa. E a propósito: como anda o personalismo, o sistema de idéias do universo da pessoa? Onde anda a AP, a ação popular, e não apenas popular e que tinha e tem tão boas e belas idéias. Como um pintor, em plena ditadura dos militares brasileiros e norte-americanos, não deveria participar da Ação Popular? Sim, ali, na AP, eu me confirmei outra vez pintor (e ainda também sem muito o saber), pois não consegui ser da ação direta e da luta armada, aquilo de ter que matar, para mim, era inadmissível. Além disso, eu não tinha treinamento militar e também, já naquela época, eu só podia me sentir bem na ala não-confissional do grupo, já que já não acreditava em Deus.
Deus, ao lado do café e de todas as drogas, foi o mais difícil para parar de crer e deixar. Deixar Deus, o café…Fui vegetariano absolutista e esclarecido por 30 anos, e só não consegui deixar o café e a superstição. Hoje, recentemente, finalmente deixei Deus. Nem mesmo na Justiça divina eu acredito mais. Pois… Confesso que aos 65 anos ainda costumava, com freqüência, diante das vicissitudes da vida e dos simples desejos, invocar aquele ser mágico e que tudo podia, e que a gota d’água foi um reencontro com o pensamento, ou melhor, com o movimento dos neo-evolucionistas, e em particular com os textos de Richard Dawkins que, aliás, conheci pessoalmente a bordo do navio Warrior Rainbow, do Greenpeace, atracado na Marina do Flamengo, no Rio, durante a Conferência das Nações Unidas - ECO-92, onde expus ao ar-livre imensas pinturas atinentes intituladas Extinção Nunca Mais, uma lembrança e uma homenagem ao movimento Tortura Nunca Mais - exposição vista por um público estimado de 2 milhões de pessoas. Um prodígio.
Richard Dawkins naquela época ainda não era o grande pensador bright (o melhor pensamento que apareceu na cultura desde os anos 60), ou já era e não sabíamos, mas…muito especialmente ele se parecia com um homem vindo de Vênus, ainda que eu nunca tenha visto antes um homem de Vênus. Tinha uma cara muito limpa, muito pacífica, transoxfordiana (um guerreiro maravilhoso) e estava ali em pé junto com outros que também nos recebiam com as boas vindas, e perdi o meu olhar, tal o magnetismo daquele homem interplanetário, muito simpático e tranqüilo e que segurava em suas mãos muito leves um copo de suco de laranja. Uma bela evolução.
Idéias. Idéias são pinturas e pinturas são frases caladas que gritam silêncios que todos entendem. Eis aí o verdadeiro dinheiro: a Pintura. Um dia, em Londres, eu, vivendo uma vida de jornalista iniciante, num jantar com o meu amigo David, aleijado, banqueiro, judeu, pai de bebê, um homem muito vibrante e que mesmo vitimado pela poliomielite dirigia seu próprio Bentley, especialmente adaptado (ele era amigo de Antônio Olinto, nosso Adido Cultural, que estava presente ao jantar, junto com Marcia, minha segunda mulher). Pois bem, lá pelas tantas perguntei de chofre para ele: David, um homem rico, rico mesmo, quando foge, o que ele leva? Ele de pronto respondeu, gesticulando: uma bolsinha com uns diamantes e uma telas enroladas.
Grande verdade: o verdadeiro dinheiro é a pintura. Deus houvesse, teria sido muito bom comigo, muito mais do que eu merecia, em me fazer pintor, pois o que mais um homem poderia ser? Um jardineiro, um poeta? Sim. Jamais pensei em ser pintor. Como ser e, depois, quem ensinava aquilo? … Só tive uma aula de pintura, e foi quando vi aquela figurinha com a imagem de Tintoretto. Tal como Marx, aquele Tintoretto me foi um grande alumbramento. Manoel Bandeira, meu poeta preferido ao lado de Cecília Meirelles, disse que seu primeiro alumbramento foi ter visto uma mulher nuínha. Pois bem, eu vi várias aos cinco anos, todas coloridas, nuas e voando naquela telinha de Tintoretto, que anos depois vi na verdade ser enorme, no Museu do Vaticano, quando morava em Roma, davanti ao Pantheon.
Roma. Nunca a vi mais bela. Londres – eu voava de Caravele de Roma a Londres para namorar Georgiana, uma menina de 14 anos, interna num colégio de freiras. Digo Londres, mas era em Surrey, aonde eu chegava num trem às duas e voltava pra Londres às quatro, pontuamente. Roma. Eu amava aquelas pedras, aquela mulher que se insinuava e que surgia naquelas ruelas barrocas, oitocentescas, medievais, imperiais, etruscas, e aquela Via Apia antiga, que num fascínio me levava à Via Veneto. Ah Como me esqueço de tudo. Tudo era mesmo muito esquecido. Havia a Piazza Navona ao lado, a minha tratoria do Massimo e Mimo, na Piazza del Pasquino, a minha bicicleta que por um ano me fazia passear vagabundamente por aquela cidade tão bela, nos tempos da Contestação. João XXIII. Eu que nem gosto de papas e prefiro os banqueiros e os príncipes (os que compram minhas pinturas) gostava muito de João XXIII, ainda que meu amor, mesmo, era por ela: Melina.
Recolher