Projeto Memórias da Literatura
Depoimento de Jorge Miguel Marinho
Entrevistado por José Santos
São Paulo, 21 de maio de 2008.
Realização Museu da Pessoa
Entrevista número MLIJ_HV008
Revisado por Teresa de Carvalho Magalhães
INÍCIO DE ENTREVISTA
Zé Santos – Lá do início, perguntando seu nome completo, data e local de nascimento.
Jorge – Meu nome é Jorge Miguel Marinho, eu nasci no Rio de Janeiro, no dia oito de julho de 1947, mas minha mãe, por necessidade, porque ela atrasou o meu registro, né? É tudo verdade o que eu vou falar. E ela era uma pessoa prática e sem grana. Então ela mudou a minha data. No meu registro está oito de setembro, mas eu nasci oito de julho, sou canceriano.
Zé Santos – Mas você comemora dois aniversários?
Jorge – Eu faço uma coisa super legal. Eu acabei falando pra Renata agora, não era pra falar. Assim, os meus amigos comemoram no dia oito de julho, né? Mas as pessoas que não sabem, como editores, tal, que vêem lá e mandam presente, eu deixo no dia oito de setembro. E às vezes (então?) eu ganho dois presentes.
Renata – Agora eu sou amiga, não sou editora.
Jorge – É verdade. (risos) Minha amiga editora.
Zé Santos – Jorge, você nasce no Rio, mas parece que você vem cedo pra São Paulo.
Jorge – Foi. Gosto muito do Rio, de ter nascido no Rio, mas eu sou profundamente São Paulo. É (...) um encontro dos mais significativos eu ter vindo pra cá. A singularidade de São Paulo atende demais, assim, às minhas expectativas afetivas, emotivas, o que eu entendo por amigo, né? E gostando, gostando do Rio de Janeiro. E nesse sentindo, eu, sinceramente, me sinto privilegiado, porque eu não nasci em São Paulo, eu sou mais paulista do que vocês porque eu escolhi São Paulo como minha terra. Eu vim aqui, eu aqui, eu falei assim “é aqui” Até esqueço que eu nasci no Rio de Janeiro. A propósito disso, eu lembro tão lindamente da Clarice Lispector, né? A escritora tão...
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Depoimento de Jorge Miguel Marinho
Entrevistado por José Santos
São Paulo, 21 de maio de 2008.
Realização Museu da Pessoa
Entrevista número MLIJ_HV008
Revisado por Teresa de Carvalho Magalhães
INÍCIO DE ENTREVISTA
Zé Santos – Lá do início, perguntando seu nome completo, data e local de nascimento.
Jorge – Meu nome é Jorge Miguel Marinho, eu nasci no Rio de Janeiro, no dia oito de julho de 1947, mas minha mãe, por necessidade, porque ela atrasou o meu registro, né? É tudo verdade o que eu vou falar. E ela era uma pessoa prática e sem grana. Então ela mudou a minha data. No meu registro está oito de setembro, mas eu nasci oito de julho, sou canceriano.
Zé Santos – Mas você comemora dois aniversários?
Jorge – Eu faço uma coisa super legal. Eu acabei falando pra Renata agora, não era pra falar. Assim, os meus amigos comemoram no dia oito de julho, né? Mas as pessoas que não sabem, como editores, tal, que vêem lá e mandam presente, eu deixo no dia oito de setembro. E às vezes (então?) eu ganho dois presentes.
Renata – Agora eu sou amiga, não sou editora.
Jorge – É verdade. (risos) Minha amiga editora.
Zé Santos – Jorge, você nasce no Rio, mas parece que você vem cedo pra São Paulo.
Jorge – Foi. Gosto muito do Rio, de ter nascido no Rio, mas eu sou profundamente São Paulo. É (...) um encontro dos mais significativos eu ter vindo pra cá. A singularidade de São Paulo atende demais, assim, às minhas expectativas afetivas, emotivas, o que eu entendo por amigo, né? E gostando, gostando do Rio de Janeiro. E nesse sentindo, eu, sinceramente, me sinto privilegiado, porque eu não nasci em São Paulo, eu sou mais paulista do que vocês porque eu escolhi São Paulo como minha terra. Eu vim aqui, eu aqui, eu falei assim “é aqui” Até esqueço que eu nasci no Rio de Janeiro. A propósito disso, eu lembro tão lindamente da Clarice Lispector, né? A escritora tão significativa e uma escritora maior, né? Quero dizer também uma coisa muito bonita. Porque ela nasceu na Ucrânia, né? E naquela época política que ela tava saindo de lá, tavam fugindo clandestinos num navio. A mãe parou numa pequena cidade que chama Tchetchelnik, daí a Clarice nasceu e o navio veio ao acaso, não se sabia onde ia chegar, né? E veio pro Brasil. E ela se identificou totalmente com o Brasil. E ela dizia também: "Eu escolhi o meu Brasil. Aqui é a minha enseada".
Zé Santos – E você veio morar em que bairro? Em São Paulo?
Jorge – Então (...) (riso) Então, que bairro que eu vim. (riso) Eu não me lembro bem porque eu acho que eu posso ter vindo pra algum bairro, mas logo logo eu fui pra um bairro que se chama Tucuruvi, que fica lá na Zona Norte, sei lá, quando foi (...) há cinqüenta anos atrás, Tucuruvi era ultraperiferia, era muito distante mesmo, eu me lembro que eu andava dois quilômetros pra pegar um ônibus pra vir pra cidade. E vir pra cidade era pra outra cidade. Vocês conhecem o Tucuruvi, né? Um bairro muito simples, vou dando umas dicas, assim. Naquela época, eu morava numa rua que chamava Rua da Esperança, não tinha ônibus, havia um sentido muito comunitário entre as pessoas. Era super legal. As pessoas se davam muito bem. Mas aí eu já vou contando um pouco a minha história de, de leitura que é o seguinte: na rua em que eu morava tinha apenas uma escola. E era uma escola de madeira, com duas salas. Não havia livros, não havia livros, né? Não havia pátio, era só uma escola no morro. Então eu já começo aí a minha história de leitura que, quando eu entrei na escola, a... eu devo dizer sem fazer apologia da pobreza, eu vim de família extremamente pobre. Muito pobre. Tive um pai legal, uma mãe legal, mas a minha vida mesmo, material, foi muito precária. Meu pai era caminhoneiro, viajava, vinha de três em três meses e minha mãe era uma pessoa viva, comunicativa, mas tinha um problema de asma, de bronquite, naquela época, que era muito sério. Você não tinha nem um remédio pra atenuar um pouco. Então, minha vida foi muito precária. Que que a gente fazia? A gente lutava, a necessidade mais imediata da minha família era ter comida, evidentemente, né? Então, não havia livros na minha casa. Essa realidade eu não conhecia. E dos vizinhos também não. E na escola também não havia livros, né? Era uma precariedade total. E eu começo dizer, já vou entrar no mote, né? Que é o seguinte, a minha história de leitura, ela não é nada excepcional, nada excepcional, mas ela é extremamente singular, porque eu sou escritor, hoje, né? Me considero escritor, sou feliz, sou grato por ser um escritor e a primeira vez que eu toquei num livro, que eu coloquei um livro na mão, eu tinha quinze anos. Antes disso, a realidade física do livro eu só conhecia através da cartilha Sodré, acho que alguém conhece aqui, né? Cartilha Sodré. E caminho suave de pegar num livro, né? Quer que eu conte isso? Essa parte? É legal essa parte aí. Então, como eu dizia, né? Lá no Tucuruvi, naquela época, era tudo muito precário, mas as pessoas tinham uma relação das mais significativas. E como a mamãe ficava, tinha crise de asma, sempre vinha alguém dos visinhos cuidar da casa, fazer as coisas, porque precisava, nós éramos pequenos, né? Até chegar nesses quinze anos. Mas era bem de antes, né? Então uma vez, veio uma menina, uma moça de uns dezoito anos, que se chamava Isolina. E nós chamávamos de Zóla. Zóla, Zóla, só falta parecer o Zolar, né? Então, eu sou escritor, ainda penso assim, que eu sou muito xereta. No melhor sentido. Assim, eu gosto de saber a vida das pessoas e quando eu era criança, eu era tímido, eu viva sempre olhando o que as pessoas faziam. Achava muito legal, né? Então lá, a Zóla ia, fritava um bife, tal, ia pro quarto, atrás do guarda-roupa. E observava que ela estava tendo uma atitude clandestina. Daí arrumava a mesa, tal. Daí voltava pra trás do guarda-roupa, né? Num determinado momento ela saía. É claro que eu fui lá. E tinha um livro. Foi a primeira vez, né? E eu peguei no livro. O livro se chamava Os Padres Também Amam, da Adelaide Carraro. Manja? (risos) Isso significa, que o primeiro livro que eu peguei, né? E daí ela viu e ela falou assim: "Eu te empresto". Eu li, né? É um livro não erótico, não sensual, ele é um livro também não pornográfico. Era um livro de sacanagem mesmo, né? Quem conhece Adelaide Carraro, né? Aquelas histórias super apelativas. E nesse caso era Os Padres também Amam, que era um padre que tinha as suas fiéis, aquilo lá. E ele tinha uma atitude mais generosamente íntima com todas elas, né? (risos) Então, eu li, gostei. Foi a primeira vez, eu gostei. Daí li toda a obra da Adelaide Carraro. (risos) Os Padres também Amam, Eu mataria o Presidente, Falência das Elites, tudo eu li. E agora, na época eu não entendia isso, mas hoje eu já consigo identificar o que significa ler, né? Primeiro, eu gostei, claro, do tema, que atendia as minhas expectativas, é (...) sexuais de adolescente, minha curiosidade e sobretudo, numa situação clandestina, tal, né? Li e gostei. Mas eu registro, já com consciência de linguagem , agora, que o que me entusiasmou mesmo é que dentro de um livro, que eu adoro livro. Capa, né? Dentro de um livro tinha uma história. Tinha uma história dentro dele. Do livro. E tinha uma história clandestina, de uma pessoa que eu não conhecia e eu podia comungar a minha vida com ela, lendo. Então é isso. Tanto é, que a gente pode dizer o seguinte hoje, né? Pode dizer "eu li, gostei e esqueci". Essa história não tinha uma densidade de vida, evidentemente, um texto apelativo, né? Mas ele foi dos mais significativos pra mim. Porque, é aquilo que eu chamo hoje "isca de leitura". Eu acho que você pode começar a ler com tudo. Tudo. Não tem é(...) eu penso, sou educador, né? Gosto de livros, tal, tudo. Não existe um livro específico pra cada leitor, né? Aliás, depois, estudando, uma pessoa que orientou muito, muito, a minha vida de leitor é um bedel que lia muito e eu perguntei assim "que que eu leio?". Ele falou: "Jorge, leia tudo que lhe cair nas mãos". Eu acho isso mesmo, né? Que o ato de ler é uma atitude tão concentrada que às vezes alguns livros funcionam como isca de leitura e daí você não pára mais. Foi isso que aconteceu. Eu comecei com a Adelaide Carraro e terminei com a Clarice Lispector. Então veja, comecei pela sacanagem, pornografia, e terminei com a metafísica, que tá legal. Não sei que você, você gostaria (...) Daí a gente mata esse bloco, como que foi o meu processo de leitura. Quinze anos eu leio um livro pornográfico e depois o que aconteceu? É bom?
Zé Santos – É ótimo.
Jorge – Daí se eu falo demais vocês cortam, o tempo, tal. Então é assim, eu li o livro da (riso) Adelaide Carraro e adorei, mas minha vida ficou curiosa, não tinha orientação. Meus pais não tinham uma cultura. Elas diziam sempre assim pra mim: "Estuda". Era super legal, assim, "estuda, é bom". Havia um companheirismo muito grande, mas eles não tinham nem idéia da diferença entre clássico e científico. Então, daí eu vim de família pobre, como eu disse, portanto eu trabalhei desde cedo, dez, onze anos. Eu fui, tsc, meu primeiro trabalho era (...) não sei se você tem isso, catador de lata, de ferro-velho, sabe? Às vezes eu cortava um pouco daquele fio elétrico e tinha chumbo e era mais caro em algumas situações. E (riso). Então, eu trabalhei muito cedo. Então, sempre trabalhando. Eu posso dizer que o segundo momento de iniciação e revelação da leitura como um universo maravilhoso, super legal, não tem nada de visão intelectualista minha, nenhuma mesmo, é saber o quanto o livro fez bem na minha vida. Acho que ao longo do depoimento fica mais claro. Mas, as mulheres, eu devo dizer, elas foram muito significativas na minha vida. Ao acaso, podia ser um amigo, tudo, mas foram as mulheres. Eles e (riso) continuam sendo ainda, muito significativas, né? Porque elas são curiosas, né? São dadivosas também, né? Então, aos 18 anos eu ainda tinha lido muito pouco e eu trabalhava numa empresa que chama Companhia Swift do Brasil e tinha uma moça lá que ela ficou sabendo que eu tinha 18 anos, eu tinha lido a Adelaide Carraro praticamente, né? Então ela falou assim: "Nossa, eu vou dar um livro pra você". Então aos 18 anos ela me deu O Pequeno Príncipe, do Saint-Exupéry. Aos 18 anos. Veja que eu não fui um cara retardatário na leitura. Eu fui um retardado. Porque aos 18 anos é que eu fui ler O Pequeno Príncipe, que as crianças lêem com dez, onze anos, né? E daí eu tive a segunda sensação incrível de leitura. Tudo isso eu imagino agora, ao longo. Porque me tornei professor de literatura, de língua. Eu li O pequeno Príncipe. Eu não gostei daquele negócio, assim, "tu te tornas eternamente responsável por aquele que cativas". Porque eu já tinha um sentimento, assim, pô, se você se faz apaixonar por alguém, você está prestando um benefício pra pessoa. Ela fica inquieta, fica gostando, vê a beleza, tal. Mas o texto, em geral, eu gostei muito, muito, muito do Pequeno Príncipe. Primeiro por que? Porque era a primeira vez que eu via a realidade e sobretudo os sentimentos tratados de uma maneira diferente. Não era do jeito que falava, era diferente. Por que era alegórico, poético, né? E tinha aqueles elementos da própria fantasia, do imaginário. Aqueles expedientes que saem da realidade imediata. Os expedientes sobrenaturais. A poesia, a fantasia do livro. Eu gostei muito. Mas lá, eu acho que ler, pra mim, me ensinou a ser, foi o instrumento maior de conhecimento do mundo e de mim mesmo, né?. Então, eu li e eu sei que eu tive uma sensação que depois foi se intensificando. Tsc. É que embora o lido da vida seja o transitório, o efêmero, a possibilidade de mudança da vida. Nós estamos aqui maravilhosamente conversando, né? Ao absoluto. Daqui a pouco vai acabar o tempo, cada um vai embora e essa realidade se dilui. Então esse sentido do transitório da vida, que ela muda, que as coisas não são eternas, me é muito significativo. Mas eu não sou contente com isso o tempo todo, não. E já não era, garoto, né? Eu gostava de coisas absolutas, eternas. Namorada eterna, amigo eterno, tudo eterno. Então, eu sei que eu gostei desse livro pelo poético, mas eu gostei porque era a primeira vez que vi que era um livro bom e eu podia voltar a essa realidade tantas vezes quantas eu quisesse. Se o meu amigo, as minhas aventuras, as minhas namoradas, elas não se repetiam daquela maneira absoluta, o livro me dava essa possibilidade. Toda vez que eu quisesse, eu voltava pro livro. Até eu aprendi um negócio, a partir daí, que eu gostei tanto com o tempo que a Clarice Lispector fala lindamente no Felicidade Clandestina, eu faço uma força, mas quando eu tô lendo um livro e que eu tô gostando mesmo, eu pego o livro assim e fecho e deixo lá. Ele não existe, eu esqueço que o livro existe, querendo ler. Sabe por que? Pra eu lembrar de repente que eu tenho o livro e que eu sou extremamente feliz. Sabe criança, quando você ganha um chocolate, dois? A gente faz sempre isso com irmão, sobretudo quando a gente não gosta dele. Você deixa o cara comer o chocolate, quando ele termina você come o chocolate, né? (risos) Então, essa foi a minha sensação de livro também. Depois essa mesma moça me falou assim: "Poxa, você vai ler Machado de Assis". O terceiro livro mesmo, assim, além de gibi, essas coisas, né? Revistinha de sacanagem, claro que eu lia, né? Então eu fui ler o Dom Casmurro, do Machado de Assim. E daí foi a primeira vez, uff, que eu entendi o que era literatura. Desculpa. É porque eu peguei o livro e eu entendi que o livro, na minha ingenuidade, que ele não se completava só com a história. Que eu não era um leitor passivo. Que recebia aquela linda história. Não. Eu me inquietei profundamente com a vida do Bentinho e com tudo que colocava ali. Então, eu descobri uma característica fundamental da literatura, da boa literatura. É que a história não se completava e não se fazia só por ela mesma. Que eu tinha que interferir na história. Que eu tinha que completar a história, não é? Julgando se Capitu traiu ou não Bentinho, né? Mas a história como estava lá, ela era uma suposta história que o leitor tinha, de alguma forma, que construir essa história, essa narrativa com seus olhos de leitor. Eu gostei muito da vida do Bentinho. Gostei do livro e eu lembro que no final, na Rua da Esperança mesmo, que não tinha carro, eu li o livro e eu ficava profundamente triste e chegava a chorar, por isso que eu dei uma choradinha agora. Que foi o seguinte, assim, esse estilo do Machado de Assis. O ceticismo, assim, forte, mas ao mesmo tempo nas entrelinhas a dor do personagem. Que dizia assim, ele falava qualquer coisa assim: "Tenho trabalhado muito. Vou ao jornal todas as manhãs. Almoço em tal lugar." Aquela narrativa distante e tal. E daí ele coloca: "Soube que Capitu morreu na semana passada". É pú! Um flash, né? Do trágico, tal. Que vinha e tocava, exatamente porque ele dava uma narrativa, assim, natural, tá tudo bem. E (vence?), essa é minha visão de leitor, emotiva. Então, eu falei assim: "Literatura é isso, livro é isso". É uma realidade que você pega, te oferece uma história e ela só existe se você completar essa história com seus olhos de leitor. E em seguida, apareceu a Clarice Lispector pra mim. E a Clarice Lispector, aliás, é uma coincidência. Ela tem um amigo aqui, o Gil. Não sei se você lembra, Gil, você foi o primeiro que me deu um texto legal da Clarice Lispector, há mais de vinte anos atrás. Mas eu já tinha visto alguma coisa antes. E a Clarice Lispector se tornou mesmo a autora da minha vida. Eu gosto muito de ler, eu sou obstinado. Mas eu gosto muito da Clarice Lispector, até por isso que eu escrevi esse livro Lis no Peito - Um Livro que Pede Perdão, que é ficção sim. Eu não sou ensaísta, não sou especialista, nada. Mas eu queria escrever um livro que contasse aos jovens leitores como é legal essa mulher, né? E que ela não é uma autora difícil. Depende de uma certa escolha. Ela é significativa pra mim, por diversos motivos. Um, de tudo, que é a capacidade que essa mulher tem de tirar da realidade mais banal, ordinária, comum, o extraordinário. E é uma literatura que cumpre muito a função da própria literatura. São textos de revelação. Porque uma das características fundamentais da literatura(...) Por que que a gente gosta, por favor, não de tudo, heim? Que tem ainda esse negócio da escola, da crítica, tal. Que a gente lê o Machado de Assis. Ele é consagrado pela crítica, então já obriga a pessoa ir com uma leitura pré-concebida. Acho péssimo isso aí. Agora mesmo, no aniversário do centenário da morte do Machado de Assis, que é um dos autores que eu mais gosto na vida. Pediram pra eu escrever dois ensaios e um deles eu escrevi, o ensaio chama Muito prazer, Machado de Assis. E que eu aviso às pessoas que a crítica, a crítica, essa crítica determinada, que consagra, tal. Ela às vezes aprisiona o leitor. Eu trabalho muito com professores de escola pública, tal, falo assim: "E aí, Machado de Assis?". Ninguém fala que não gostou. Às vezes a leitura foi uma leitura desavisada e às vezes a pessoa nunca leu. Então, por que que eu digo isso? Pra acabar com essa onda que a gente tem que gostar dos livros consagrados. Nada. A relação entre livro e leitor é absolutamente imprevisível. Existem componentes na leitura do texto literário que são determinantes: sua história de vida, seu recorte emocional, o que que você está gostando na hora, se você foi traído por sua (...) É muito comum, né, Renata? (risos) Né? Então, você tem componentes que vão pra lá. Então, eu gosto muito de todos os escritores, mas a Clarice Lispector atende muito essa coisa tão significativa. Cada texto dela é muito revelador. O que é a natureza profunda na literatura, né? Só pra fechar esse bloco (riso), eu gosto de dizer assim "uma das características da literatura é ser uma matéria reveladora". Por que? Porque quando você lê um poema, alguma coisa, vamos pensar, assim, num poema de amor. Você lê "amor é fogo que arde sem se ver. É ferida que dói e não se sente". Se toca, por mais que você tenha tido experiência amorosa, porque encontrou muitos amores ou porque não encontrou, mas você tem uma história amorosa, quando você lê um poema de amor e ele é significativo, é como se vivenciasse o amor pela primeira vez. Então a literatura tem a capacidade de iluminar a realidade, mesmo aquela com a qual você convive sempre. É claro que entre amar e ler um poema de amor, é melhor amar. A literatura é ótima, mas é melhor amar. A literatura não substitui a vida, né? Entre comer uma feijoada e ler um conto significativo sobre a feijoada é melhor comer uma feijoada. (risos) Mas lendo, lendo um poema de amor você ama melhor. Você tem (riso) um perfil, assim, de postura, melhor no amor. Lendo um poema sobre feijoada você come uma feijoada com mais prazer. (risos) Você notou que eu falo muito, né? Então bora me cortar.
Zé Santos – Jorge, antes da gente entrar na literatura propriamente dita, eu queria que você contasse um pouco mais de você menino lá na Rua da Esperança. É que você falou que você teve vários trabalhos e você brincava também? Só trabalhava? O que que era?
Jorge – Eu fui, ainda falo isso para as pessoas elas não acreditam. A não ser as pessoas queridas que são mais íntimas, né? Eu sou um cara, assim, comunicativo, mas sou profundamente introspectivo. Então, assim, (riso) Eu ia falar uma bobagem agora, mas não vou falar, né? Eu sou uma pessoa, assim, que sai à rua, que adora conversar com as pessoas, que gosta de saber da vida das pessoas. Eu sou muito interessado. Mas eu preciso voltar pra minha casa, ficar na minha casa. Sou um cara solitário e agradavelmente solitário. Então, em criança isso era muito determinante na minha vida. Porque tinha uma identificação muito grande com minha mãe. Ela tem uma história de vida, assim, meio atípica como minha história de leitura. Ela nasceu no Norte, no Nordeste, em Alagoas. Vinha de uma família muito pobre. E aos quinze anos, ela saiu e foi pro Rio de Janeiro. Ela deve ter tido, seguramente, uma vida muito tumultuada. Já garota, né? E ela não se importaria, de maneira alguma, que eu estivesse gravando isso agora, porque agora eu virei escritor, tal. Ela fica contente, né? (risos) Então, não é indiscreto, de jeito nenhum, mas minha mãe provavelmente teve uma vida, assim, bastante tumultuada, cheia de aventura. Até pra sobreviver, né? E ela era marcadamente uma desvairida. Uma pessoa que precisava lutar, lutar pra viver. Então, primeiro eu tive uma identificação muito grande com minha mãe. E o meu pai, eu falo tudo (ehe?). Meu pai conheceu a minha mãe, ele era casado, sírio, com quatro ou cinco filhos, tal. Ele se apaixonou por ela e foi morar com ela. E dessa união nasceu primeiro meu irmão, depois eu. Isso eu te falo ou falo pra todos vocês, né? Que eu tinha uma identificação muito grande com a minha mãe. E até uma certa idade, dez, onze anos, era um garoto tímido, bastante introspectivo, inseguro, assim, de corpo. E tinha motivos até, porque meu pai maravilho, legal, todo mundo de casa, tal. Mas tinha uma manifestação diferente, né? O sírio, o árabe, ele é com tudo, é extremado. Ele ama demais, chora demais, tem raiva demais. É tudo, assim, muito grande. Então, eu confesso que eu tinha um pouco de medo do meu pai e do meu irmão também, que era um cara completamente diferente de mim. Ele jogava bola muito bem, eu não sabia jogar, era um perneta. Ele tinha namoradas, eu não encontrava namoradas. E (...) que eu era tímido mesmo, né? Eu lembro até de uma imagem, assim, que é significativa na minha vida, que quando chegava gente em casa eu subia na laje de casa, pra me esconder. Porque eu me sentia muito mal, as pessoas me olhando, né? Mas eu via isso, não era uma projeção da minha cabeça, né? Quando me apresentava, assim, meu pai, tal, ele falava(...) e eu saía, ele gostava ele falava assim "tsc, ele é meio bobinho". Então, isso foi muito marcante. Eu era profundamente introspec... tinha medo. Ah, mas foi legal. Uma vez, assim, de tanto medo, eu lembro que brigando com meu irmão eu dei umas porradas nele e eu saí. Eu resolvi assim: "Não vou fugir da realidade". E eu passei a ficar dentro do medo . Então, a minha vida é bem marcada por uma situação, assim, muito opressora, de contexto mesmo, de vida, muito medo, tal. Mas, de repente, uma saída, assim, pra vida. Você sabe que até que cheguei, eu não jogava futebol. Eu cheguei até ser, ser... como é que se chamava? Capitão de um grupo de garotos. Montei lá. Ganhei uma bola de capotão. Nunca consegui marcar muito legal um gol, tal. E daí, mas eu lembro, assim, que um dia na Rua da Esperança eu dei um chute e a bola foi descendo, foi descendo, eu olhei e eu falei assim: " Eu não quero ficar com essa, com esse treco de bola". Aquilo, aliás, achava que não tinha lógica na época porque, sei lá, vinte e duas pessoas ficavam correndo atrás de uma bola. Por que cada um não tinha sua bola e pronto, né? (risos) Então, é isso, um cara muito tímido e tal, mas aí eu me larguei e eu comecei a trabalhar muito cedo, que acho que foi isso que você perguntou, né? Ah, difícil dizer tudo que eu fiz, né? Eu fui catador de ferro-velho, de lata, fui feirante. Gostava, ainda hoje eu gosto muito de feira. Eu acho que lá estão os maiores comunicadores. É super legal, como o feirante é sedutor, né? Gosto de ir na feira. Me sinto importante. Falam assim "Jorge, você não vem na semana que vem aqui, a semana passada aqui, cara. Venha aqui." "Não, eu tô indo." "Espera aí, ó, tem fruta aqui." "Não, não. Não trouxe dinheiro." "Imagina, você paga semana que vem." "Mas eu não to indo pra casa." "Eu mando entregar em casa." Daí você leva pra casa. Então, eu fui feirante, gostei. Eu fui office boy. Eu fui telefonista. Eu servi café. Ah... vai aí, sei lá. Eu fui... tem umas coisas legais aí. Eu fui contador de vela numa fábrica. Era legal. Por exemplo, quando eu servia café, quer saber dos meus baratos? Eu gosto demais de falar da vida intelectual, gosto da vida prosaica, né? Eu era um garoto bobo, mas em parte, bobo. Porque era muito astuto e eu me defendia às vezes com o imaginário, com a ficção. A ficção foi super importante na minha vida. Eu sempre soube inventar situações que me defendiam. Mas eu lembro, que quando eu era office boy tinha um desgraçado... além de eu trabalhar lá, que era um patrão, assim, italiano, um cara estúpido. E tinha um cara lá que tomava conta do escritório, era um escritório pequeno. Chamava Valter. Então, o patrão chegava e falava assim: "Varteer, vem aqui", ô, Varter, vem aqui". E daí o Valter ia lá, ele ligava pra mim e falava assim: "Traz dois café aqui na sala". Lembro até hoje. Daí eu pegava a bandeja e levava, né? e o cara me azarava, rapaz. Ele mandava eu entregar uma correspondência na Lapa, não me pagava, pra condução, tal. Eu sou meio excessivo, tudo que eu to falando é verdade, né? Eu fiquei com tanta raiva dele e ele me aprontou tanto, que daí vocês vão (riso) conhecer um lado meu, né? o lado do jus(...) sou o justiceiro. Sou o justiceiro. (risos) Tinha uma pastinha, assim, que tinha as datas de pagar as contas. Sabe aquele... não sei se ainda tem, né? Dia um paga isso, dia outro paga... (burburinho da platéia) Daí eu fui lá mais de uma vez. Eu peguei uma duplicata que o (cara?) ________ rasguei a duplicata e o cara se danou porque foi pro pau, né? E eu me senti muitíssimo bem (risos) ah.. e quando eu fui pra fábrica de velas peguei também um cara desgraçado. Foi lá em Santana. Então era o seguinte, eu ficava no escritório e as mine.... era um lugar precário mesmo. Era uma pequena fábrica e as moças, as senhoras ficavam o dia todo fazendo velas, né? Fazendo velas. E à tarde a gente cortava as velas delas. E eu, trouxa (botô?). E eu é que cortava as velas. Então, em todos eles eu marcava um número maior. (riso) Eu já sentia uma coisa legal. Eu acho, assim, eu não sou um cara super politizado como tanta gente que conhece tudo, tal, do ponto de vista de estudo, tal. Mas eu acho que (era?) um mundo imediato, porque minha vida é pequena. Meu universo é muito pequeno, não é grande. Eu sempre fui socialista. Eu sempre roubei dos ricos e dei pros pobres. (risos) Tem até um sentimento de São Francisco de Assis, que eu adoro ele, né? Rouba e... da Santa Isabel, que rouba comida do marido e dá pros pobres. (risos)
Zé Santos – Da fabrica de velas você foi pra Swift?
Jorge – ah... eu acho que tem um monte de coisa daí eu chego na Swift. Que eu conheço, aos 18 anos, a Rosa, que foi uma mulher muito importante na minha vida. Não sei onde ela anda, mas eu sou gratíssimo por ela ter chegado na minha vida.
Zé Santos – Bem, então aí ela te dá O Pequeno Príncipe, aí depois você lê Dom Casmurro... E aí, que que acontece?
Jorge – Aí tem um negócio, eu vou até falar um poema agora. Eu gosto muito... é, assim, como você vai falar do Jorge? Do que eu vi na vida e que eu percebi na vida através de linguagem foi literatura. Tudo. Eu não tive, assim , formação filosófica, sabe? Você ler história, geografia, não. Eu vi primeiro, nas palavras, a vida pela literatura. Por isso que eu sou gratíssimo a ela, né? E foi uma maneira privilegiada de um sujeitinho se formar através da literatura, né? Porque ela tem a sua singularidade. Se quiser mais na frente a gente fala da singularidade da literatura, porque que ela é um material privilegiadíssimo na formação de leitores. E até na literatura infanto-juvenil, se é que ela tem uma peculiaridade. Mas tudo na minha vida, é claro que eu vivi, que eu estive com o mundo, né? Eu não sou um cara, um alienígena, não é? Que eu vivia no espaço. Eu vivia no espaço da realidade mesmo, o que me interessa é a realidade. Mas o modo de perceber essa realidade através da linguagem, por essa precariedade de leitura que eu tive, né? Foi, felizmente, graças a Deus, através da literatura. Eu aprendi história pela literatura, filosofia pela literatura, política, psicologia. Cada vez eu fui lendo mais, né? Por que? Porque quando eu descobri que tinham livros, aos quinze anos e depois mais, né? Quando eu descobri que havia livros e dentro dos livros tinha história e tinha poesia, né? Me provocou um agradável sentimento de falta. Que existia uma realidade que era os livros e que eu não conhecia, eu não sabia. E de repente veio aquele presentão que era. Então, isso me provocou um sentimento permanente, que existe até hoje que é uma motivação pra leitura e uma motivação pra eu escrever que é um sentimento de falta, um sentimento de ausência. Sempre falta alguma coisa. E eu acho até que isso é muito significativo pra explicar o próprio processo criativo, né? Os escritores escrevem porque eles pensam na realidade, porque eles incorporam a realidade, né? Porque eles estão permanentemente na realidade, mas o olhar da arte, o olhar da literatura é como se a partir de um texto você, se não modifica essa realidade, você inquieta essa realidade pra mudança. Tô sendo claro pra vocês? Tô? Então, tem um poema do Carlos Drummond de Andrade e que eu leio sempre porque ele explica muito bem essa minha história de leitura. Eu passo a ler e ser um leitor obstinado na minha vida. Eu sempre leio. E eu sou eclético, viu? Eu leio tudo. Quando garoto, eu lia O Pequeno Príncipe e tal, mas eu lia a Revista do Rádio, a Esther taí, não está, Esther? (silêncio) Ela não apresentou. A Esther, minha amiga, está aí. Eu tenho certeza que ela tem uma história, a Revista do Rádio. (risos) Então, eu lia gibi, era meio misturado. Então me tornei assim, um leitor obstinado e sobretudo com essa sensação de que eu li, mas eu perdi muito tempo.(riso) Então eu preciso viver mais, né? É muito legal isso daí. E esse poema do Carlos Drummond de Andrade, que é tão bonito, não só pra explicar minha vida de leitura, mas como a literatura é interessante como memória. É um poema que ele escreveu quando a Ana Cristina César morreu, aquela poetisa linda, né? Que era perfeita, né? Mulher bonita, inteligente e uma das maiores promessas da literatura feminina. E ela, por um motivo dela, que não vou questionar, ela se matou. E quando o Drummond soube disso ele ficou tão indignado com esse sentimento de perda, de falta, que eu sentí, que ele fez um poema assim: “Eu pensei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão aconchegada, apegada nos meus braços, que brinco e rio e canto exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim. Ninguém a rouba mais de mim”. Bonito, né? Esse poema é meu. Só é do Drummond porque ele escreveu antes de mim. Mas ele é meu de tão bonito, né? (risos) Eu acho que às vezes a literatura e certas palavras explicam melhor do que o discurso muito referencial. Eu tenho esse sentimento. De que a arte, ela pode suprir as faltas da realidade. Que a arte é sempre uma promessa de felicidade e uma das coisas mais significativas que eu acho da literatura, eu vejo literatura muito menos do ponto de vista estético do que do ponto de vista humano mesmo. Literatura pra mim é um texto que está a serviço da vida, da realidade, E eu avalio muito a literatura nesse sentido. Uma das características indiscutíveis da literatura é sua força utópica, é a utopia da literatura. Que é o seguinte. Um texto literário, isso é do Mário de Andrade, ele diz assim: "A literatura, como toda arte, por mais pessimista que seja, é sempre uma proposição de felicidade. E a felicidade não pertence a ninguém. É de todos." Se vocês me entendem, eu gosto também da literatura porque ela aposta sempre num mundo melhor. Você pode ler um conto trágico, uma novela terrível, um poema muito triste. Ele denuncia a realidade, ele faz um recorte da realidade precisa, mas pelas próprias características da literatura, porosidade, semântica. Ele sempre aponta que esse mundo pode ser modificado, né? Me ocorre agora um poema, provavelmente um dos mais tristes da literatura, se não o mais triste pra mim, né? Que é o poema do Drummond, Os ombros suportam o mundo. Que ele diz assim, ó: “Chega um tempo em que não se diz mais: ‘Meu Deus’.Tempo de absoluta depuração. Chega um tempo que não se diz mais: ‘Meu amor’. Mulheres baterão à sua porta. Ficastes sozinho. A luz apagou.” E vai por aí, né? Esse poema é muito triste porque o poeta não fica triste só porque as pessoas sofrem. Ele sobretudo fica triste porque as pessoas se habituaram a sofrer, né? O sofrimento é uma norma. Mas mesmo nesse poema que é tão triste. O tempo todo Drummond tá apontado que esse mundo pode ser modificado. Então, a generosidade da literatura enquanto linguagem, me perdoe os outros domínios do conhecimento. Eu não acho que é melhor ou pior, a literatura. Eu acho que toda forma de linguagem é muito significativa, muito importante. Mas a literatura tem essa singularidade. A literatura é sempre uma promessa de felicidade. Vocês não seriam capazes de dizer pra mim de nenhum poema que fala da realidade só como fatalidade. Sabe, como uma coisa, uma realidade dada, é assim e acabou. Sempre existe essa brecha que aponta pra um mundo melhor.
Zé Santos – Jorge, vamos só trocar a fita aqui.
FIM DE CD
INICIO DE CD
Zé Santos – Eu queria pedir ao público que fizesse perguntas ao Jorge também, não deixasse essa bomba só na minha mão.
Jorge – Ah, eu posso fazer, eu mesmo, perguntas pra mim se as pessoas não reagirem.
Participante (1) – Eu tenho uma pergunta pra você, Jorge.
Jorge – Então, eu sei que você vai fazer, adoro, obrigado. Mas eu quero falar pra todo mundo: Tenham a generosidade de me fazer uma pergunta, não é? Ajuda pra ficar bom aqui. Disse que a gravação da Fanny Abramovich foi ótima, eu quero que a minha fique melhor.(risos)
Participante(1) – Jorge, eu vou fazer uma (dízima periódica de?) pergunta. Quando eu te conheci, eu não sabia que você tinha_________, mas eu tinha certeza, aliás, eu fui tendo essa certeza que você tinha se casado com a Clarice Lispector na minha cabeça. Foi por isso que, eu acho, te apresentei um livro. Não foi à toa. E esse livro tá lá comigo com um monte de anotações suas, eu não sei se você sabe.
Jorge – Ah, eu queria que você me desse.
Participante(1) – Quando tiver um memorial Jorge, aquele livro vai estar lá. Certo? Aí eu queria que você falasse um pouco, livremente, como você quiser, se você se casou mesmo com a Clarice Lispector. Que casamento é esse, se ela te inspira, se ela é sua musa, se ela é uma pessoa que é um modelo, o que ela é na sua vida? Que eu acho que ela é muito presente na sua vida mesmo. Se fazendo café você tem alguma coisa com a Clarice Lispector. Isso é uma sensação minha, pode ser boba, mas eu fico imaginando isso. A outra coisa é que eu acho também que você teve um caso amoroso com o Mário de Andrade também. Então, o que eu queria que você falasse é (somente?) isso. Como que é isso. E a outra coisa... mais uma só.
Jorge – Se eu esquecer você me chama atenção pra eu voltar.
Participante (1) – São três coisas, a Clarisse, o Mário e eu acho que tem uma paixão também, que é o teatro. Você é constantemente apaixonado pelo teatro.
Jorge – É verdade.
Participante (1) – E aí eu queria que você falasse um pouco disso e se você pudesse fazer um pedacinho da peça, da ____________.
Jorge – Tá legal. Então tenho que dizer é claro que tive algumas relações afetivas na vida, algumas intensas, mas eu sou casado e sempre fui casado com a América, minha mulher. (risos) Verdade, é uma questão de encontro também. Nossa, de alguma forma eu fiz a América existir e ela me fez existir. Eu sou casado com ela, pode ter até uma (brigadinha?) de tempo, mas eu sou casado com ela. Com a Clarice Lispector, aí eu não sou casado, querida, e, adoro você, quero que você fique cem anos sem mim, tá certo? Porque ela pode ficar (tentada?) e pode fazer uma surpresa (risos). Eu quero ficar vivo e fazer alguns livros. Mas eu acredito muito numa coisa, tenho uma visão um pouco romântica. Eu acredito que pra todo mundo existe um amor e um livro, tudo, por Deus, existe um amor e um livro. Às vezes, você se distrai e não encontra. Eu tenho sempre a visão, assim, por imagem, então eu tenho a impressão assim: uma pessoa vai pra um lugar, depois de labutar muito e não encontrou a pessoa amada, vai pra um lugar, é sempre no centro. Vai e daí vem toda a sua vida, a pessoa da sua vida. Mas acontece alguma coisa, cai uma moeda e o amor passa, meu Deus. É trágico isso aí, a pessoa tava ali, ela encontra aquele amor, eu acredito muito nesse encontro. Então tem que ficar aguçado. Assim, como eu acredito que existe um livro que foi escrito e atende às suas expectativas ou a uma parcela das pessoas, sem dúvida nenhuma. Por isso que eu tenho essa visão que a literatura é sempre muito significativa, todo mundo gosta de ler literatura, mesmo as pessoas que não leram. Mas precisa ter esse encontro e às vezes a escola, a educação peca muito, muito, muito. Ela interdita esse prazer que você tem. E no caso da Clarice Lispector, eu fiz essa introdução pra dizer isso: o livro que eu li da Clarice Lispector, embora eu já gostasse de ler, foi o livro que estava destinado a mim. E eu comecei a ler, já li alguma coisa, li um livro forte que foi Paixão Segundo G.H. . Mas porque eu gosto de tudo? Eu gosto muito de clima também. Eu gosta da literatura factual, eu leio tudo, suspense e tal. Mas me agrada muito esse tipo de literatura que não é factual. Que você pega um fato, um fato qualquer, que a gente pode falar de um conto qualquer dela, ela fisga o fato, são personagens banais, a realidade é banal. Ela começa num momento também, banal que eu falo é ordinário, que não tem nada extraordinário. E a partir disso ela vai tirar um extraordinário, porque se você pensar bem a vida é ordinária, né? Não somos seres extraordinários o tempo todo. Portanto, a matéria fundamental da vida é esse mundo comum, imediato, prosaico e tudo mais. Então, pra mim eu sempre gostei muito da literatura da Clarice Lispector porque no fato tem sobretudo a descrição do que esse fato provoca no intimismo do personagem. É muito mais texto de clima do que texto de ação. E a partir daí os temas que muito me agradam, por exemplo, o tema da generosidade não é a generosidade babaca, a generosidade religiosa imposta, mas é a generosidade natural do ser humano, acho que ela fala melhor do que eu dizendo a frase: "Dar a mão a alguém é tudo o que se espera da alegria". Acho que a literatura dela é esta. Gosto também porque a literatura dela é uma literatura que se oferece por partes e respeita profundamente o leitor, ela conversa com o leitor, ela vai dando pequenas porções de vida e a partir dessas pequenas porções de vida a gente vai revendo a vida. Ela tem um texto muito significativo que explica muito, muito, muito a vida dela, porque ela não separou vida e obra, o que eu acho ótimo, tem um pouco a frescura de escritor: a minha vida é minha vida, a minha obra é minha obra. Imagina! Tudo o que você escreve é você, tudo é biografia. De que maneira? Eu escrevo às vezes da perspectiva de mulher, eu tenho a impressão que eu não sou mulher, mas por que eu escrevo isso? Porque eu tenho uma sintonia com aquele mundo, aquele mundo passa a ser meu. Portanto, tudo é relativamente biográfico. Então ela não separava a vida e a obra. Tem um texto muito significativo, uma frase dela muito significativa, que explica a vertente maior da literatura da Clarice Lispector: "Na vida você não é pelo que você fez". E que é uma atitude normal das pessoas. _________ Você chega num lugar e fala: "Eu sou professor. Eu venho de família pobre, eu sou casado, eu tenho problema de bronquite asmática o tempo todo, eu já escrevi muitos livros". Você conta muito a realidade feita, você nunca se apresenta por aquilo que você não é. E que é uma motivação dentro de você. Ninguém faz. Eu sou o cara que quer ter um bordel um dia, já pensei muito em ter um bordel, tinha vontade de ter um bordel (risos). Eu sou o cara que quero mesmo ter um bordel. Então nesse texto que eu falo pra vocês o bonito é aquilo que você não viveu, aquilo que você não sabe, aquilo que você desconhece. O desconhecido é o que te motiva na vida, é o que te faz na vida. Então, o texto dela é assim: "Eu sei pouco de mim, mas tenho a meu favor tudo o que não sei e por ser um campo virgem está livre de preconceitos. Tudo o que não sei minha parte melhora minha verdade. Tudo o que não sei é o que constitui a minha largueza e é com ela que compreenderei tudo". Não é bonito? Não é? Você sabe, assim, o que faz essa história é o que vem depois disto aqui e que a gente está sem nenhuma bobagem messiânica, não gosto disso. Não tem sentido. É que é da natureza da vida mesmo, captar isso. Então eu gosto dela por isso. Eu vou só falar rapidinho do Mário de Andrade. Minha identificação com o Mário de Andrade é (...) as pessoas acham que eu gosto demais da literatura dele. Eu gosto da literatura dele muito, mas a minha relação é diferente. Eu gosto do Mário de Andrade sobretudo pela figura humana que ele foi, de artista intelectual. Porque se existe no Brasil uma figura que casou tão bem estudo e obra é o Mário de Andrade. O professor Antônio Cândido, que é uma das pessoas que eu mais gosto, de ensaísta. Que ele fala, assim, é meio (lenta?) mesmo, nem questiono muito. Ele fala, assim, a palavra dele, portanto, merece todo o respeito: "Quem não experimentou o sentimento da generosidade não entende a obra do Mário de Andrade". (É sim?). Ele era um cara profundamente generoso. Eu dou um traço só. Porque eu gostei tanto dele e fiquei tanto tempo, fiz filme dele como ator, um média metragem, escrevi livro e tal, porque eu lia as cartas dele. É meio simples, assim, eu tinha que fazer tese, ganhei uma bolsa, aquela época, assim, eu tinha feito mestrado e você pensa muito que vai dar aula muito tempo e tal, mas a ficção já era muito grande, maior respeito pela academia. Eu acho que me tornei escritor por ter feito letras, mestrado e tal, mas eu nunca fui um ensaísta. Escrevo ensaios e tal, mas eu sou ficcionista mesmo. É o que eu gosto de fazer, literatura. Então, eu acho que esse apelo interior, essa vocação, já tava muito grande. Mas eu ia fazer uma tese sobre o teatro dos primeiros modernistas, que é pouco conhecido ainda, né? A gente fala muito em poesia, em prosa, romance e conto, mas os primeiros modernistas fizeram teatro também. E o Mário de Andrade, pra não faltar mais essa faceta, ele fez teatro. Então eu lembro, meus filhos ainda eram relativamente pequenos, eu tava estudando, então eu ia anotando pra fazer a tese. E eu anotava do outro lado, ah! eu vou escrever um conto sobre ele, eu vou escrever isso, eu posso colocar isso. Quando eu olhei um dia o material da tese tava assim e as notas que eu escrevia para um conto era isso aqui. Daí eu falei assim: “Não tem nada que ver, Jorge.” Com todo respeito pela (...) Eu sou um ficcionista. Daí eu fui ler e eu li as cartas que aconteceram de vocês lerem, as cartas do Mário de Andrade. Que ele foi um correspondente contumaz. E isso começa como uma questão emocional. Quando ele era garoto, sabe? Deve ter gente que faz literatura, gente aqui que gosta, que é escritor. O quanto a gente precisa da leitura do outro, o quanto a gente precisa se ver sendo visto pelo outro. Ele mandou pro Vicente de Carvalho e ele nunca deu a resposta. Daí ele prometeu que a vida toda dele ele não deixaria uma carta sem resposta. Então ele se correspondia com Carlos Drummond de Andrade, com Manuel Bandeira, Anita Malfatti e tal. Mas ele se correspondia com poeta anônimo lá do Acre, a generosidade dele, escrevia e analisava tudo. Então eu gostei muito, muito, muito desse lado humano dele e daí eu comecei a(...) aliás, só as cartas, você não precisa ler nada sobre o Mário de Andrade, as cartas dele, através das cartas eu escrevi uma biografia fantasiosa. É uma bio-fantasia que eu escrevi, é a vida da perspectiva de um personagem dele que saiu de um livro, que é o Frederico Paciência. Então essa é a minha ligação com ele, mas que depois que eu fiz o filme eu acho que já tava bom, eu vampirizei também muito, né? Escrevi livro, fiz roteiro pra filme, daí eu fiz(...) porque eu sou meio parecido, uma versão melhorada, heim? Mário de Andrade era muito feio. Mas eu sou parecido com ele, então eu fiz o filme também. Que que você falou do último? Ah! Teatro! Eu não gosto de fazer teatro muito tempo, porque o lugar, o teatro, me apaixona demais. Eu gosto muito de teatro. Sobretudo por um caráter irreversível de teatro. Adoro desafio. De tão medroso que eu sou eu adoro desafio. Então acho legal você entrar num palco e você não pode volta atrás. Eu sempre sou um ator que é medroso, eu não sou o cara que domina. Aliás, o ator que domina normalmente fica canastrão. O medo de interpretar é que te faz interpretar bem. Então eu acho legal você entrar no espaço e você não pode voltar atrás, ele é irreversível, você tem que dar conta. E por isso eu gosto tanto de teatro. Acho que você queria fazer uma pergunta, depois eu faço.
Participante (2) – Pois é Jorge, eu queria saber se o seu ______ vai ter limite de idade
Jorge – Ah! Não. Assim, por exemplo, eu acho que nunca tive muito limite de idade. É verdade, nunca. Eu sempre convivi com pessoas mais velhas do que eu, as minhas primeiras namoradas eram mais velhas do que eu. Tinha até um caso, assim, de uma mulher ou outra que era casada, que era legal. To lembrando de um caso agora, quando eu era garoto conheci uma, lá em Tucuruvi, uma mulher super legal, bonita, tal, mas o marido dela não era muito legal com ela. E era alcoólatra, ela bebia. Mas era uma alcoólatra legal, sabe? Ela falava muito da vida, tal, tudo. E, nossa, ela foi tão legal, ela contava tanto da vida dela e que a gente se apaixonou de alguma maneira. Portanto, eu sempre gostei de gente mais velha, mas vou te confessar: na minha idade agora, querida, não dá mais pra você privilegiar pessoas que não sejam de idade senão eu vou estar fora o tempo todo. (risos)
Participante (2) – Que ótimo! Bom, mas eu queria dizer também, Jorge, uma coisa, parafraseando alguém aí, acho que(...) não lembro direito quem, mas que falava da psicanálise como uma literatura ao invés de uma ciência. E falava de uma terapeuta e diz que na verdade nós somos um poema encarnado. E quando você tá falando eu vejo exatamente isso, você é um poema encarnado, Jorge. (Que?) maravilha.
Jorge – Tá gravando isso, né? (risos) Tá? (risos)
Zé Santos – Tá gravando.
(risos)
Jorge – Porque quando ficar pronto vou mostrar pra minha mulher, a América. Pra ela me respeitar mais. (risos) Pros meus filhos também. Eu mostro assim: “Ó! ó! ó! ó! Sou eu, seu pai!” (risos)
Renata – Jorge, eu queria que você falasse um pouco sobre o seu encontro com o leitor dentro do processo criativo. Quem é esse leitor? Se ele existe, se ele está presente.
Jorge – Maravilha!
Renata – E quando (...) depois que você publica como é o retorno do seu leitor ___ (no meio de?) tantas obras publicadas?
Jorge – Legal! Eu acho assim que uma característica minha, verdade mesmo, sou um cara(...) claro que a gente sempre mente, porque a mentira, às vezes até no inconsciente você cria coisas. Mas é engraçado, acho que minha qualidade(...) sou muito verdadeiro. Eu não tenho muito uma visão muito ampla de leitores. Sabe esses escritores que escrevem prum monte de gente? A minha visão, o meu mundo é muito pequeno. Eu tava falando (já pra você?) que São Paulo já é grande pra mim. Pinheiro me basta e de sobra. É claro que vivendo intensamente eu posso ter uma visão maior do mundo. Os leitores são importantíssimos na minha vida não só por lerem a minha obra. É porque os leitores nas suas opiniões, eles me fazem ver o que eu escrevo. Honestamente, eu nunca escrevo um texto e fico desesperado que publique. A Renata sabe disso, né Renata? Eu até esqueço que escrevi. Mas a palavra que uma pessoa pode me dar do que eu escrevo é inestimável. Eu sou tão grato, porque eu aprendo muito. E aí não tem nem humildade, é uma questão até de inteligência de escritor. Você escreve, tá feito. O que vier de palavras agora são as leituras que veio. Aliás, o Carlos Drummond, to falando bastante nele, dizia uma coisa tão legal: "Quem tem a coragem de escrever”, porque você tem que ter coragem de escrever, “e sobretudo a ousadia de colocar em um público se cala pra sempre". Se o leitor é bom, sorte sua. Se o leitor é burro, azar seu. Então, eu falo porque tem gente assim: ela diminui e vem com uma crítica e não sustenta. Então, é muito importante. Eu, normalmente, quando alguém fala, vai falar, eu não atrapalho a pessoa. Acho que isso foi um traço bom da minha formação de escritor porque desde sempre quando eu escrevi, eu escrevi e dava para as pessoas. E ficava esperando alguma coisa, mas não insistia. E quando as pessoas falavam eu nunca interrompia. Aliás eu aconselho mesmo pra quem quer escrever: você pega o texto e dá pra alguém e depois deixa a pessoa falar, você não tem que justificar o que você escreveu. Se seu livro não acontecer é porque tem seus limites. Agora, gostoso também você deixar a pessoa morrer dentro do seu próprio discurso. Porque ela fala, mostra coisas significativas que te iluminam. Então é muitíssimo legal o meu contato que eu tenho com o leitor e é uma situação inestimável, porque eu não escrevo por hobby, de jeito nenhum. Eu não escrevo por diletantismo, eu não escrevo pra mim de jeito nenhum. Eu escrevo pro mundo porque eu acho que o escritor, ele tem necessidade de partilhar, dividir, comungar, socializar a sua pequena história de vida com o mundo. Isso não é o escritor, é todo mundo. A gente não se basta sozinho. Você precisa demais do outro por carência afetiva, por perspectiva de entendimento melhor pro mundo em que você vive. Então eu preciso fundamentalmente escrever e ser lido. E se quer saber mesmo, eu escrevo pra mostrar essa minha experiência pessoal com o mundo, mas eu escrevo muito para as pessoas gostarem de mim, eu não tenho nenhum problema com isso. Eu nunca penso em um público grande, minha visão é ser muito pequena, mas eu gosto muito que as pessoas gostem do que eu escrevo. Aliás é claro que tem isso. Às vezes quando eu escrevo alguma coisa e as pessoas não gostam ou falam de alguma coisa, eu falo sempre assim: “(Tá!?) Legal! Não, imagina. Claro!” Essa teoria que eu to falando aqui, mas quando você escreve, a relação entre livro e leitor é imprevisível, (cada um pensa?) Mas eu fico muito bravo! Eu queria que gostasse mesmo de tudo o que eu escrevo. Então, a minha relação com os leitores é super legal porque eu estimo muito isso. É um presente. Aliás, você não consegue escrever, eu tenho mesmo isso em pensamento. Que na literatura(...), porque acho que eu(...) duas coisas que dá pra você pensar um pouco bem a natureza da literatura. Eu sou formado em Literatura Brasileira, fiz Teoria Literária. Portanto, eu tenho uma visão também objetiva através dos instrumentos teóricos. Mas, sobretudo, eu sou escritor também. Então dá pra ver como crítico e como o cara que cria. Às vezes, ________ a teoria deixa a desejar, o objeto literário, a arte, ela sempre vai além do instrumento intelectual. E eu digo com certeza pra vocês que quando você escreve você não domina inteiramente o que você escreve. Não é aquela coisa que o texto se escreve sozinho. Até acredito que você possa ser possuído. Não é. É que a linguagem literária, a linguagem sugestiva, ela naturalmente faz emergir em você certas situações que ela estava meio nubladas. E o texto, ele vai ganhando corpo e tem um momento que ele um pouco te dá o caminho.Não é que ele se escreve, mas ele te dá o caminho. Então, nesse sentido, eu tenho revelações muito grandes através da leitura que as pessoas fazem. Eu já aprendi tanta coisa, tanta coisa, que eu não tinha um conhecimento. Acho que o primeiro que eu tive, pra completar sua pergunta, Renata, isso que eu respondi pra você (não é?), é ser xereta. Eu lembro que o primeiro livro que eu escrevi de sucesso, que foi Escarcéu dos Corpos, e que (...) ah! teve um rebú muito grande, assim, grande de crítica. Nem esperava. Porque eu escrevo literatura através da dimensão do realismo fantástico também. Então, fizeram críticas excelentes, legal, aprendi muito. Eu aprendi muito com José Paulo Paz. Que infelizmente me deixou. Que me ajudou tanto na vida. Leitor precioso. Mas eu acho que um aprendizado grande que eu tive foi uma vez logo no começo quando eu fui fazer uma palestra no curso supletivo Santa Inês e daí, eu manjo muito, sabe? É que está apagado, senão eu estaria vendo todo mundo aí. Então tinha uma mulher assim e ela(..) (depoimento e pergunta?) das pessoas, ela ficou o tempo todo assim pra mim, olha. Daí ela fez uma pergunta super legal. Ela falou: "Queria te fazer uma pergunta. Por que você escreve essas coisas, heim?" (risos). Foi super legal. Eu falei assim: “Que...é _______”. Ela fez assim. Daí eu gostei daquilo demais, porque meu livro inquietava a vida dela e o que você quer na literatura é isso. Para o bem, para o mal, que as pessoas não fiquem indiferentes ao que você escreveu. Tá claro?
Participante (3) – Jorge, só pegando o gancho e voltando para sua trajetória de vida, então, em que momento acontece esse ___________ vou escrever, estou lendo, mas também quero escrever?
Jorge – humm, você vai ver só. Legal isso daí, Quando eu falo legal é porque não é que é excepcional, mas que explica muito bem. Sabe lá na Swift, onde eu trabalhava? Já estava com uns 19 aí, porque eu trabalhei uns dois anos lá, essa mesma moça que me deu o Dom Casmurro, sabe tem aquelas confrarias, claro, em toda empresa, ia ser lançado um jornalzinho dos funcionários e ela me convidou pra eu escrever um texto sobre o Dia das Mães. Eu ainda era um leitor bastante ingênuo, não que eu ache que eu era menor, mas um leitor ingênuo. E daí eu fui pra casa, mas a minha mãe já tinha morrido. Ela morreu quando eu tinha uns 16 anos, já tava bem conformado, legal, sentia a falta dela, mas não ter mãe era uma realidade que estava integrada a meu mundo. Nós morávamos eu, meu pai e meu irmão. E sinceramente, três homens numa casa, três homens é uma (cabeceada?). Impressionante como mulher faz(...) sempre vou elogiar vocês. Sinceramente. A gente tem outros componentes tão interessantes quanto. Mas é impressionante, não é? A falta de uma mulher em casa, você não gruda, você dá muita cabeçada, tal. Então sozinho eu fui escrever o texto pro Dia das Mães. E quando escrever era difícil pra mim. Porque eu não tinha mais mãe, já fazia um tempo e era difícil fazer aquelas exclamações de costume: "Mãe, a rainha do lar!". Que era o que eu ia escrever, era: "O ser maior!". Não conseguia fazer aquilo. Então eu escrevi o texto de um cara que queria escrever sobre o Dia das Mães, mas não tinha mãe, portando não tinha assunto. E o título eu não lembro, infelizmente eu perdi. Difícil crônica pra alguém que não se vê. E era um cara que queria escrever sobre a mãe, mas a mãe tinha morrido. O bom veio depois. Eu dei o texto pra moça ler, normal, né? Quero que ela goste.Eu sempre captei isso, comportamento no mundo da leitura que as pessoas têm em relação a mim. Então ela veio e fez assim, parece que eu to vendo a Rosa, falou assim: "Jorge, Jorge, eu não sabia que você não tinha mãe." Sabe? (risos) "Não sabia." ______Ela adulterou minha vida, ela achou. "Eu não sabia, nunca te pediria isso." (Nada?) E eu fiquei olhando num frenesi, sabe? Uma coisa, assim, alegre. Ela tava inquieta (como no texto?). Daí ela foi embora e eu fiquei uma semana sofrendo, porque eu imaginava que ela pudesse não colocar o texto pra não me magoar mais e eu queria que o texto saísse de qualquer maneira. Daí o texto saiu. Daí quando o texto saiu e as pessoas leram, eu aprendi também um componente que eu trouxe muito para a literatura. As pessoas em geral, elas não convivem legal com o sofrimento dos outros. Não é por egoísmo não. Porque na nossa cultura é muito condenável a pessoa que sofre. Você pode ser excelente na vida, você trabalha bem. Se você é triste por natureza, você tem que ter bom humor na sociedade capitalista, sabe? Produzir e tal, tudo. Então, as pessoas viram, leram o texto, Ah! Foi maravilhoso. Todo mundo passava (riso) e tinha dó de mim, tinha dó de mim. (risos) E eu lembro que tinha um cara mais corajoso que chegou assim e falou: "Jorge" Pegou na minha mão e fez assim (silêncio): "Vai passar, você vai superar, tá?" (risos) Acho que naquele dia mesmo eu saí e falei assim: “Meu deus!” Porque eu não sabia o que eu ia fazer na vida. Eu sei usar as palavras e as palavras inquietam as pessoas. As pessoas ficam mais próximas de mim. E eu não tinha nem idéia do que eu podia fazer. Daí eu falei assim: “Eu vou ser jornalista.” Pra você escrever bem você faz faculdade de jornalismo. Tem a menor idéia, eu fiz técnico de contabilidade. Sabe? Técnico de contabilidade. Por isso que é tudo defasado na minha vida. Quando eu entrei no curso de letras eu não sabia nem direito que que era marxismo, era um cara super alienado. Então daí eu fui num cursinho, tipo, eu cheguei na porta lá, _________ responder quando decidi ser escritor com esse texto. Daí eu falei assim: “Ó meu, quero ser escritor, quero escrever bem, que curso que eu faço? Pensei em jornalismo.” Ele falou: "Jornalismo é legal, olha, tem de manhã à tarde na Usp". E eu não podia, porque eu trabalhava. Daí eu falei: “Que que você acha mais próximo?” Ele falou: "Letras." (riso) Ele deu uma aula sobre Letras, de análise de texto. Eu fui lá, daí eu encontrei a Ligia Chiappini, era professora.______ (na cara?) da Usp, que era ótima. A Ligia Chiappini Moraes Leite tava de manhã, eu tive aula com ela e eu não sabia escrever direito, gente. É... não dá pra explicar. Não to falando que é talento, nada. É um traço assim. Eu já comecei a viver com a literatura, eu sabia, eu escrevia errado, mas eu sabia falar de literatura. Foi por isso que eu me tornei escritor. Mas muito, muito, porque eu li muito na faculdade. Fiquei tão inflacionado de leitura e de gente que precisava sair por algum canal. E daí foi para a literatura.
Participante (4) – E aí qual o primeiro livro?
Jorge – Primeiro livro? Livro mesmo? É legal demais. Tudo eu acho legal porque é ordinário, é pobre, é marreta, é picareta (risos). Então, o primeiro livro? Sei lá, eu tava envolvido com Literatura Portuguesa, aquela coisa surrealista, tal, tudo. Não tinha muita noção do que estava escrevendo. Mas escrevia uns poemas muito herméticos e que tinha um jogo de palavras legal. E tem um amigo, que é um amigo nosso, que é o Edison Gabriel Garcia, que é um escritor. Ele já tinha publicado um livro, daí eu mostrei, ele falou assim. Que é publicado na...vou falar aqui, mas é que pode ficar gravado. Na Loyola.Então ele tinha publicado um livro pra jovem. Nem tinha idéia de escrever pra jovem, criança... nunca tive. Então eu tinha escrito uns poemas. Daí ele falou assim: "Vamos levar lá pro Padre". Daí o Padre olhou, mas ele não leu legal. Ele viu, "ah, legal, tá, tudo.” Daí publicou o livro de poemas que chama O Talho. Isso foi em mil nove..sei lá, vinte e cinco, trinta anos. Ele fez uma edição de dois mil livros. O Talho – Poemas. Se você procurar, você encontra (ainda?) os livros, porque não vendeu até hoje essa edição de dois mil livros. Foi o meu primeiro livro. Ele foi legal porque eu vi o livro assim, na mão. Mas ele não teve repercussão nenhuma. Mas logo depois eu publiquei um livro de contos que chama Escarcéu dos Corpos, pela coleção antiga da Brasiliense, Cantadas Literárias. Vocês lembram disso? Na minha idade eu fico sempre perguntando: "Vocês lembram disso?, vocês lembram disso?". E daí ele foi muitíssimo bem.
Participante (5) – Como é que é pra você escrever para o leitor criança e o leitor adulto?
Jorge – Legal. Legal, assim, porque eu vi um tema dessa série que vocês estão fazendo das mais significativas pra mim porque você fala, assim, espontâneo, né? E não fala para especialistas, acho legal e tal, né? E que a gente identifica também a literatura infanto-juvenil como uma produção específica, né? Então eu vou te dizer. Assim, existem algumas características da literatura, algumas eu falei... da utopia, né? Eu acho que outro traço da literatura geral que é muito significativa é a literatura humanizadora. Ela é forte porque ela é humanizadora, ela só se importa, a literatura, seu único tema é a condições humana. Tá? Se você botar essa cadeira aqui e fizer um poema sobre essa cadeira ou pintar, que é característica da arte, essa cadeira, e a representação for a cadeira, por mais linda que seja, né? Com seu espaldar, a madeira, tal... ela não é arte. Agora se nessa cadeira vazia você supuser, né? Você sentir que existe falta de gente, portanto, ela indica um tema maior, que é a solidão, nós estamos no mundo da literatura. Portanto, ela é humanizadora, né? É utópica, né? Ela é reveladora, como eu já falei, né? E essas características são também para a literatura infanto-juvenil. Então, em princípio, eu coloco tudo numa mesma dimensão. Escrevendo pro leitor criança, jovem ou adulto, a postura é a mesma, desde que ela seja literatura, né? Ela tem esses componentes e muitos outros, né? E eu acho que essa divisão, né? Essa compartimentação de criança, jovem e tal, ela é muito de uma perspectiva editorial. Eu não tenho dúvida disso, né? É claro que a gente respeita alguns limites. Você não vai dar "Memórias Póstumas de Brás Cubas" pra um menino de 11 anos, né? Só por um motivo, né? Não porque ele não lê legal, porque ele não tem experiência de vida, né? Não tem história de vida pra saber se envolver com uma literatura, um texto tão filosófico, né? Tão verticalizado, né? Mais eu acredito ainda que encontro de livro e de leitor é imprevisível. Nesse sentido você escrever pra uma parcela muito significativa da população e os componentes são os mesmo. Quando eu escrevo pra adulto é o mesmo jeito que eu escrevo pra jovem. To atento pra aquela dimensão literária. Mas é preciso dizer, é preciso dizer que tem uma característica muito específica da literatura infanto-juvenil e eu acho assim, se um "hall" maior de escritores se levasse muito em consideração, ela ficaria melhor. Quando você escreve, eu completo o que a Renata me perguntou, né? Você tem um leitor virtual. Eu não escrevo pra mim só. Eu tenho sim leitores, né? É claro que eu tenho a liberdade de criação. Na literatura infanto-juvenil, ou pra criança ou pra jovem, a presença desse leitor virtual, a presença desse (natá?) específico, ela é mais presente, ela é mais forte. E ela determina mais o seu processo criativo. Então, com a criança eu converso mais. Eu converso mais. Digamos assim, a natureza da literatura como matéria coletiva, né? Quê que é a literatura? Você quer tornar a sua experiência individual, até sem autoria, que ela seja do mundo, né? Na literatura pra jovem ou pra criança ela é mais determinada. né? Então, esse destinatário específico, em muito ele define a categoria estética. Sabe? Com qualidade objeto artístico. Ele é muito determinante, né? E eu acho que na literatura infanto-juvenil, tsc, ah... eu diria mesmo pra todo mundo que escreve, né? Eu acho que o grande problema da literatura infanto-juvenil é essa, sem dúvida nenhuma, é essa dimensão didática, né? Que já vem incorporada na sua própria história, né? Fazendo instrumento literário, né? ah.. um veiculador de valores, né? A literatura não quer isso. A literatura quer falar de pequenas porções da realidade e colocar uma inquietação agradável e tal, ela quer se multiplicar como formas de leitura, né? A literatura, sobretudo, mais do que conhecimento, ela pretende inventar formas de leitura, cada vez você vê o livro de uma maneira, né? Mas na literatura infanto-juvenil tem um problema muito grande, né? A voz do narrador é muito distanciada da voz da criança ou do jovem. Existe pouco ressonância ali, né? Impressionante, você uma pessoa falando com outra, né? Então, na boa literatura infanto-juvenil existe uma ação maior em unir as vozes do narrador com a voz da criança ou do jovem. Fui Claro? Provocar o encontro mesmo desse mundo, né? Não é que você olha o mundo e faz muitas concessões. De jeito nenhum. Você tem um jeito mais econômico de escrever e você fala direto com eles, né? Mas o mundo que você leva, o temas são universais, são os mesmos, né? Que que você vai falar com as crianças? De amor, de solidariedade, de ódio, de morte, de frustração, de violência. Os temas são os mesmos, né? Existe um jeito de você falar, né? E portanto, essa preocupação eu acho legal. Com esse leitor virtual que você precisa chegar a ele, mas da forma mais legal, mais familiar.
Participante (6) – Outro dia eu vi que a literatura infanto-juvenil é uma reinvenção da infância, uma eterna reinvenção da infância, né? Você assim... o escritor dialogando com a própria infância. Como é que você vê isso?
Jorge – humm... É... assim... Vamos falar, é... ah, é verdade, você é editora, né? Eu posso falar assim... A produção da literatura infanto-juvenil é grande, né? É enorme, né? Mas se pegar legal mesmo, você vai pegar, sei lá, com generosidade, que eu tô tão legal, bonzinho, hoje. Porque a gente já fez uma entrevista legal e tal. Tô feliz, né? Então, assim, você vai pegar trinta por cento de literatura boa e ótima, porque seguramente no Brasil, seguramente, você tem os escritores mais significativos de literatura infanto-juvenil do mundo. Né? Você pode ter lá pessoas equivalentes, mas é impressionante como nós temos bons escritores, né? O "hall" é signi... começa com a Clarice Lispector, né? Que é uma das escritoras mais significativas pra criança, né? E conversa, dialoga com criança, tal. O tempo todo, né? Então... aliás, você tinha perguntado o que, querida? (risos)
Participante (6) – O que você acha dessa idéias de escrever ....
Jorge – Ah! Legal!
Participante (6) – ___ uma reinvenção da infância...
Jorge – É simples. É simples. Vou ser ligeiroso e econômico, né? Eu acho que na literatura você sempre conversa com sua infância, você sempre conversa com os temas, né? Você sempre traz os temas permanentes da natureza humana através de diferentes perspectivas: políticas, existencial, filosófica, tal, né? Eu acho meio bobo isso que foi dito, né? Porque mais uma vez você estabelece que escrever para criança é estar muito no universo da infância quando a criança quer se ver como um ser que tem uma determinada idade, mas com um olhar mais amplo praquilo, né? Então, eu diria assim, a grande questão ainda ver a criança como um ser debilizado, né? Você, que viveu um tempo determinado e portanto, ele percebe menos a realidade, né? Então, eu acho que deve ser, a não ser que tivesse.. que a pessoa explique melhor, né? Aquele eterno retorno, essa questão de mito, né? Que eu gosto disso aí, né? Mas fica muito essa conversa, o mito da infância perdida. Eu to sofrendo até agora, né? Com o mito da minha infância perdida. Então essa é a motivação pra tudo, né? ah, eu acho mau mesmo isso, tratar a criança com concessão. Não dar a ela o que ela pede, né? E quando eu dizia isso, que não tem muito essa demarcação assim, né? Livros pra crianças com tantos, tal, né? É claro que você vai fazer literatura lúdica, mas identificada com a criança, né? Muito... tem um livro que eu tenho publicado na Peirópolis, né? Que é o "Boi Cor de Rosa". Ele já tinha uma historinha, né? Você sabe quantos anos eu fui na editora, na Faap? Sei lá, uns cinco anos eu ia, todo semestre. Era um trabalho na aula de cenografia, os alunos faziam cenário em cima do... então, portanto, eu vejo muito assim, ó. O livro é uma questão de encontro, né? Esse livro Lis no tempo, jovem acha muito legal, lê bem, tal. Mas adulto lê. Não é? Vocês não lêem textos destinados às crianças com prazer, né? Com o sentimento de graça? Então eu vejo assim.
Participante (7) – Ô, Jorge, todo autor que vem aqui a gente vai perguntar a história de um livro. Desde da criação do livro, passando pela negociação da edição até a chegada ao leitor. Que livro que você escolhe pra eu perguntar essa história?
Jorge – Aí você queria mais o que? De coisa peculiar, de que?
Participante (7) – De um de seus livros, você contar a histórinha dele. Desde que você teve a idéia até ele ficar pronto.
Jorge – Eu acho legal, assim, de dar algumas imagens, assim, é... Sabe qual é o meu tema mesmo? (Tema-mente?), o que me motiva? Eu tenho vontade de escrever. Às vezes eu não tenho tema nenhum, assunto nenhum. Então a história, a vontade, o cara que quer escrever, né? Aí não é histeria, nada. É porque escrever é um componente fundamental da minha vida como falar com as pessoas, né? Então, isso acontece das mais diferentes situações, né? E normalmente acontece uma coisa eu sempre escrevo, anoto, né? Eu lembro que eu escrevi um conto que chama hum... ô meu Deus, esqueci... (risos) A mulher Azul. Que é uma velha, de setenta e nove anos e que ela dorme e durante a noite ela vai ficando azul, ela vai passando pelos diversos tons de azul e no outro dia ela é azul e a família não sabe como administrar isso, os vizinhos, tudo mais, né? Sabe como eu escrevi isso? Eu tava no ônibus e eu vi uma criança com o olho azul. Era tão azul. Eu tenho esse negócio de imagem que... Daí eu fui escrever uma coisa sobre o azul. Saiu o conto. Então vai assim, né? Um poema que eu escrevi, eu lembro, já convivia com minha mulher, né? Quero dizer, morava numa casa e ela em outra, né? Então eu tava dor... dormia assim, acordei assim mzíí, meio mal e tal . E ela fez uma fez uma coisa que nunca que ninguém tinha feito pra mim, né? Perdeu a oportunidade. Ela me trouxe uma bandeja com café, né? E eu fiquei tão grato e eu escrevi um poema, né? E o poema que eu escrevi, assim, ela foi super legal comigo. "A mulher que me acorda nessa hora não se casou comigo por acaso nem vive comigo, não sei que, é... mas me inunda de café por distração. Do quarto para a sala foi um pulo, né? E nessas travessias de xícaras de café fizemos as mágoas da nossa relação. Poema pesado, sabe? De casamento, de mulher que te incomoda, tal, tudo. Então é assim. Outras vezes, por exemplo, O Boi Cor de Rosa, isso é bem legal. Sabe o que aconteceu? Eu sonhei, rapaz, a história todinha do... a história todinha. Eu sonhei, no outro dia eu levantei e escrevi. Tá? Então, há situações, assim, muito, diferentes uma das outra, né? Agora eu sei que às vezes eu escolho um tema, estudo bastante, leio bastante, né? Às vezes o final é absolutamente imprevisível, eu imaginei escrever uma história de uma determinada maneira, né? Agora, eu acho que te respon...
Participante (7) – _____ Lis no Peito, como é que ele aconteceu?
Jorge – Lis no Peito? Ah, eu tive o convite, aí foi meio determinado, né? Ah... Eles estavam escrevendo muitos livros, né? Que nem (entrou?) numa coleção, nada. É... sobre escritores muito significativos, Bandeira, Drummond, tal. Mas ficção, né? E você.. o objetivo era trazer um pouco os leitores pra aí, pro escritor. E eu escolhi o livro da obra da Clarice Lispector, né? Mas eu comecei com ficção mesmo, não é. E esse livro é legal, assim, eu não fiz muito plano não, ah... eu fui escrevendo. Então eu comecei a escrever o livro, a dificuldade que o escritor tem em escrever uma situação que foi contada em ficção por um amigo, né? Porque, assim, esse livro é a história de um cara na escola, no colégio, né? Que ele tem uma violência muito grande, né? A gente falou, aqui, uma violência muito grande, né? Ele, assim, espontaneamente, involuntariamente, ele mata um pássaro, esmaga o pássaro, né? Por uma forte decepção emotiva, né? Um sentimento de não pertencer a nada, ser rejeitado e tudo, né? Então eu vi um pouco essa situação, assim, a obra... Então ele convida, ele tem um amigo que é escritor, ele convida pro cara escrever o livro ____ pra ele ver se ele entende o que ele fez, né? E pra colocar esse livro, a público e ele ser julgado, né? Por esse crime que ele mesmo considera, né? Então a idéia foi muito assim. Eu fui escrevendo como se eu fosse o escritor mesmo, o personagem, né? E eu fui pedindo o tempo todo ao leitor que lesse e perdoasse. Eu defendo. Então foi isso. Foi interessante você ter perguntado isso. Isso não tinha uma história muito, ela ia acontecendo e a Clarice Lispector conversava comigo todos os dias que eu converso com os escritores.
(silêncio)
Zé Santos – Silêncio no... estamos chegando também na nossa hora...
Jorge – Alguém quer fazer alguma pergunta sobre o que eu gosto de comer e tal? (risos) Quantas vezes eu vou ao banheiro?
Participante (9) – Você já teve, defrontou alguma situação de ter que ler alguma obra? Que você não gostasse da obra ou não gostasse do autor? E por alguma sacada sua essa leitura lhe potenciasse no desenvolvimento, na sua obra de escritor?
Jorge – Você sabe, ó! Você falou uma coisa que... que me interessa muito. Eu tava falando agora. Aconteceram algumas vezes isso, né? Mas eu sou também um leitor meio atípico. Eu gosto de ler coisa ruim, as vezes. Eu sou um leitor muito promíscuo. Eu leio tudo, né? Então, eu gosto de ler e eu tenho, claro, algumas misérias emotivas, né? Algumas mesquinharias interiores, né? Então, as vezes, eu gosto de ler um texto ruim, bem ruim, porque eu falo assim: "Olha como eu to legal. Eu não escrevo uma literatura tão ruim assim, né?" (risos) As vezes eu torço por um melhor, mas as vezes ã... adoro teatro, né? Eu quero tudo pelo teatro, pelas dificuldades, né? Mas as vezes eu gosto de assistir peça ruim, já que é ruim, né? Pra não fazer aquilo, né? Mas aconteceram ao acaso algumas situações. Uma delas foi que eu peguei um conto do Cortáza, Carta a uma Senhorita em Paris, que eu não tinha idéia do realismo fantástico, né? E como era aquela carta. Adorei. É seguramente um dos textos primeiros da minha vida. Aliás, eu to fazendo já, de muito tempo, eu to fazendo uma peça, eu tava falando pro Zé, pra Renata. Eu to super contente. Ter o trabalho de ator é esporádico, né? Eu fico pra literatura de dois e dois anos, três, eu faço alguma coisa. E agora eu to fazendo esse conto, é um monólogo e que muito me agrada pelo sentimento de revelação que eu tive. É um tema que eu gosto muito. Muito. Impressionante como todo mundo... não foi um mérito meu, né? Um privilégio só meu gostar desse conto. Todo mundo gosta muito do tema tratado pelo Cortáza, né? Que é o seguinte, são vários, né? Mas todo mundo tem um aleijão dentro dele, né? Um aleijão espiritual, físico, né? Emocional. Alguma coisa que a sociedade condena, né? E você vive do olhar da sociedade e você guarda muito tempo. Ele é clandestino. Mas, às vezes, esse suposto defeito, esse suposto aleijão que você tem é tão grande, tão grande, que ele fica maior do que sua vontade de administrar, né? E esse defeito que foi condenado o tempo todo aos olhos da sociedade é sua parte melhor. Então trata tanto da carência afetiva de você se guardar, né? De você se censurar, porque o mundo te censura, isso é comum, todo mundo tem. Eu já.. é... a metáfora é você vomitar coelhinhos, né? Que o texto fala, né? Você tem muitos coelhinhos e chega uma época... você esconde, você vomita um, escondido, você vomita outro. Todo mundo tem um coelhinho escondido. Eu tenho um monte, um monte, já me liberei de muitos, muitos, muitos, né? Mas sempre você tem. Vocês entenderam a metáfora do coelhinho, né, camarão? Tá? Às vezes você... é uma paixão clandestina que você tem. Você é uma pessoa que você não podia amar. A mulher do seu amigo, anos e anos. Chega um momento que é tão grande, tão grande, que isso vem. (Alumia?), na realidade, né? E isso que você censurou tanto tempo é a sua porção melhor.
Cecília – Eu posso fazer uma última pergunta?
Jorge – Pode
Cecília – Eu queria saber, daonde você acha que vem o medo de escrever, de se expressar e como você enfrenta isso? Da onde vem a coragem sua pra escrever?
Jorge – É Cecília que tá falando?
Cecília – É
Jorge – Eu não sabia que você tava aqui. Então... é assim... pra mim, o componente medo sempre foi presente. Eu sempre tive medo. Da realidade e tive medo de outras realidades, né? Então, escrever é uma necessidade muito grande, mas ela também é motivada por medo, até motivada por medo porque você vai jogando palavras como iscas, né? Pra pegar a realidade. Você não, as vezes você não pega. Agora, é muito simples de responder, assim, tudo o que eu tenho medo é porque tem uma significação muito grande pra mim, muito grande. Então, eu nunca fico fora do medo, não sei até quando vai ser isso daí. Pra mim é melhor tá dentro do medo do que ficar assistindo o medo, né? Por exemplo, entre abrir aquela porta e ter medo de que apareça uma realidade muito estranha é tão difícil pra isso. Sou xereta, eu prefiro abrir a porta e ficar dentro do medo, né? Então, eu acho que eu enfrento esse medo porque o prazer é muito maior do que o medo, né? Com a minha necessidade de ser visto pelas pessoas, de querer entender melhor a vida dos outros. Eu me considero sempre muito precário, muito incompleto, né? Literatura faz isso, né? Então, é escrever e jogar no mundo, né? Eu acho que eu resolvo isso...até quando eu to escrevendo eu preciso muito ah... de alguém, né? Então quando to escrevendo, eu preparo a cabeça de quem está perto, de amigo que vem lá em casa. "Você quer ver? Eu to escrevendo um texto tão significativo". A gente tem medo, né? De que a pessoa não goste. Então, "Eu to escrevendo, rapaz". Sou sedutor, um pouco. "Você não... eu gosto demais disso aqui, quer ver? É por isso, isso, isso e isso isso". Você joga, mas eu não diria que você tem medo nessa hora. A tem cagaço mesmo, né? (risos) Eu não sou tão seguro assim.
Romero- Ô, Jorge, é a primeira vez que eu te ouço. É o Romero que está falando aqui.
Jorge – Oi Romero.
Romero – E você, a mim dá a impressão, assim, de uma aura de autoconhecimento, porque tudo que você diz a gente encontra uma certa identificação. Então eu queria perguntar pra você o seguinte, você concorda com a idéia de que literatura é uma fome famélica, é uma fome que sempre gera fome. Aliás, eu já sei que você concorda porque você já disse isso aÍ. E outra coisa, o bom livro é aquele que lê o leitor. Concorda com essas idéias?
Jorge – Concordo. Porque to indo, to entrando no seu sentido metafórico, né? E o sentido metafórico, às vezes, é melhor pra, pra definir alguma coisa, assim. Aqui também eu tenho uma visão um pouco ampla, né? Eu acho que a literatura é uma manifestação intensificada da vida, né? Ela é densa, é profunda. Aliás, diferentemente dos outros domínios do conhecimento e vai aí mais uma particularidade, você pega um livro de história, ele querendo resolver o problema de pedagogia, resolver o problema da alfabetização, né? Todo estudo, ele se propõe um pouco a resolver uma realidade, não é assim? ___________ Mas sempre dá conta, as teses da vida, né? A literatura, ela é tão humilde. A arte, Romero, de tudo, né? Ela é tão na dela. Ela pega um uma porção da realidade, só. Essa porção da realidade pode ser uma xícara, que a batida da xícara no poema indica a monotonia da vida, né? E pode ser um personagem qualquer, né? Um operário que morre na música do Chico Buarque, né? Operário, em "Construção", né? Então, morre... mas aquilo não é só aquele operário, ele é uma porção da realidade. Mas a profundidade da literatura vai mostrar que ele não era só operário, ele é própria dimensão da luta social, né? Ele é a própria dimensão da força do trabalho universal, sem pátria, sem lugar, né? Então, por ser assim, por essa característica de ser intensificada, eu acho que todo livro, toda literatura ela, ela provoca. Você se alimenta, mas ela provoca uma fome permanente de ver novos livros, de escrever novos livros, de ir sempre, sempre além, né? Agora eu gosto particularmente dessa idéia sua de que não só os livros lêem os leitores, mas eu acho que os livros, seguramente, escolhem os leitores. Você escolhe o livro, mas o livro te escolhe. Dá pra entender? Não é papo maluco, não. Quando você lê ele vai te escolhendo. Porque a relação que você tem com os livros não é assim ó: "To escrevendo tantas palavras, que tem tanta referencialidade e pra todo mundo é assim". Não é. Cada leitor tem uma convivência muito particularizada, muito íntima, né? Se nos outros domínios do conhecimento isso não acontece, na literatura acontece, os professores tinham que entender mais isso. Que a primeira relação com o texto é de caráter emocional, gente! É uma burrice não entender isso. Essas idéias muito épicas, né? Ler distanciado, (tema?), nada. Você lê primeiro e se toca ou não. Você tá com fome e falou em comida, é bom aquilo ali, né? Ou o personagem que tem mais fome, você se identifica, né? É uma metáfora, tal, né? Então, nesse sentido eu acho legal isso que você falou, viu? Eu acho que os livros nos lêem e os livros nos escolhem sim. Você entende que no processo da leitura você vai se encaixando com as palavras, você vai construindo uma história que está ali, mas é muito que você inventa.
Participante (10) – Como é que você se relaciona com a sua obra já escrita, você, independente dessa resposta do leitor? Porque depois anos também, os livros... como o leitor, você muda sua relação ao longo dos anos. E como escritor? Você é benevolente com você mesmo?
Jorge – Como?
Participante (10) – Você é benevolente? Você disse sobre ler um livro _____
Jorge – É uma coisa diferente. Acho que eu sou benevolente quando to escrevendo, falo: "(nhé, fá?), Calma Jorge, você pode", tal, né?. Mas, no geral, eu sou mais assim, o cara que (riso) não leva a sério muito o que já escreveu e tem as vezes, até um cer... se não descaso um esquecimento. Você viu que eu não lembrava o nome de um conto? Eu não lembro o nome dos... quando eu escrevi, lá na frente eu vou ler, mas é, é pro mundo. Eu não... não levo com história. Não sei direito. Não é humildade, nada. É um traço de uma pessoa. É... Sabe?
Participante (10) – É um desapego. Uma...
Jorge – É..Como se eu tivesse dentro de uma, de uma movimentação da criação literária, assim. Eu escrevo, sabe por que? Eu não corrijo o que eu escrevo. E daí não é por... primeiro porque eu não tenho mais vontade de mexer mais naquilo, né? Depois, cada livro, sinceramente, eu dou tanto de mim que se ele não estiver bom é o meu limite mesmo, não tem que gostar daquilo. Eu dei o melhor que eu podia. Então, é uma realidade dada. Eu não lembro do que eu escrevi. Agora, certamente existe uma coisa, cada texto, pra mim nunca é acabado. Nunca. Eu fiz assim "acabou, que maravilha". Não tem isso aqui. Em alguns momentos eu falo: "Conseguiu, Jorge, a imagem que você queria". Fico contente, metido a besta, mas é super, super... rápido isso daí, né? Cada livro pra mim, cada texto é promessa do outro texto que eu vou escrever. Tenho a menor dúvida, assim. Eu escrevi, que bom, sou grato a mim, sobretudo, né? às pessoas que estavam... eh.. às coisas de natureza esotérica. Que eu não sei se acredito em Deus ou tenho religião, mas que eu tenho a necessidade de uma sensibilidade religiosa, sem dúvida nenhuma, né? Então, tá feito, mas é promessa pelo outro que vem. Teve uma época, assim, rapidinho, né? Que eu achava que eu não gostava da vida. Sabe? Sabe uma época (ó?) eu falei assim: "você não gosta da vida". Porque eu ficava escrevendo, aquele extenuante, sabe? Falava "que bom, vou terminar" né? Daí quando eu termino um livro, que eu acho gostoso. É você aqui em Pinheiros e na Teodoro Sampaio, sabe? Comer pastel, sabe? Conversar, comprar uma camiseta, eu gosto de uma roupinha, tal, gosto, uma camiseta. Tomar um banho, sabe? Adoro isso aqui. É o mundo que eu mais gosto, né? E, ir na praça conversar com meu querido amigo, que deve tá aí, o Antônio, não tá? (silêncio). Deve tá. Então, se o Antônio não estiver, a mulher dele tá aí. Então, eu gosto, gosto muito de fazer isso. Mas nessa época, assim, eu escrevi daí falei "vou pra a Teodoro". Na Teodoro eu tive uma outra idéia de livro, daí, é... Nossa, é extenuante quando vem uma idéia. Você não consegue largar. Daí eu falei: " Cara, você não gosta de viver."Porque eu fico na ficção, quando eu vou pra realidade volto pra ficção novamente, né? Mas não é. Era uma pura motivação mesmo.
Participante (11) – deixa a gente só trocar de fita.
Participante (12) – ___de que livro?
Jorge – É... Três Asas do Meu Vôo Mundo Afora. É um livro de poemas, eu escrevo mais narrativa mesmo, né? Mas, acho que dá pra ver que pelo menos se pelo menos não tiver um grande valor, eu trato os jovens como pessoas que sabe tanto, igual, as vezes mais do que eu, né? "Quase, quase": "Virou primavera nesse inverno nosso, meu e seu. A sua mão terna e trêmula no meu seio ainda virgem, até a próxima estação. Tempo? Tem dia, tem hora, não sei. Pena que o ponteiro da paixão não sabe apontar o tempo de roçar emoção com emoção. Eu espero você, você espera por mim. De verão a verão. A minha mão na sua mão, sua mão na minha mão, dentro de nós é quase quase outono. Sonhando fazer amor nas quatro estações". (aplausos) Mas é ___________________ (aplausos) Eu gosto, eu gosto de falar um pouco de sexo, assim. (risos) Às vezes eu gosto um pouco demais. Gosto de falar de comida. Deixa eu ver assim.. O primeiro que tem aqui. "Acordo. Debaixo do cobertor, escondido no lençol, toco uma ponta da cama sem você. Escuto a manhã que me sopra e assopra um dia inteiro com você. O sono ou o sonho sempre me acorda. E eu desperto sempre longe, tão longe, perto de você." É isso, acho que eu li um pedacinho do, do "Lis no Peito". Se eu soubesse, né? Tinha escolhido uma parte assim, legal. (risos) Deixa eu ver. (Pausa. Folheia livro) Deixa eu ver rápido. Ah! Não sei. Vou (aceso?) assim, ó. (Pausa. Folheia livro) Não serve. (risos) É porque, é porque são pedaços que estão... acho que eu vou ler o começo, tá bom? Acho que o começo dá legal. Tem história, tá gente? Começa igual um romance da Clarice Lispector A Paixão Segundo G.H., que é pontilhado, né? Aliás, eu faço permanentemente isso, né? Se começa a história dizendo já que isso aqui é um pedaço da realidade. Tem muita história antes e vai ter muita história depois que não tem um final, né? Então tem um ponto que diz assim: "Estou procurando, procurando, procurando. Procuro como Clarice procurava quando eu precisava urgentemente escrever e atirava palavras na vida como quem atira iscas no anzol para agarrar o que ainda não se entende. Isso já deve ter acontecido com você e acontece agora comigo, porque não sei como começar essa história. A gente vai rabiscando a página, jogando nomes ao acaso, iscando, ciscando a vida para pegar o que está dentro das palavras: as emoções. Às vezes, ou quase sempre, é um tormento fazer as palavras combinarem com as idéias, os pensamentos, as emoções que chocam dentro de nós como blocos de gelo navegando em água turva. Farpas imantadas e boiando tontas no mar estranho. Tudo é da mesma matéria. Mas a palavra, mas a palavra, tud...desculpe. Tudo é da mesma matéria, mas a palavra briga com a vida. Você sabe. Estou vivendo agora esse drama que é não saber como começar essa história, que pode resultar numa alegria boa. Porque não? É que prometi escrever a história de Marcos César, o meu amigo. E posso salvar ou condenar esse rapaz. Ele é meu amigo, é isso. A coisa se torna muito mais séria. Cometeu um crime. Me pediu que escrevesse esse livro achando que as palavras podem salvá-lo ou condená-lo com o próprio perdão. Marco César sabe que um perdão pode condenar muito mais uma pessoa, porque não se varre a culpa com um castigo. E o crime fica solto e pesado como dor sem ressalva. Delito da nossa própria conta. Pena e até mesmo danação involuntária. Mas quero o perdão pra ele. Marco César também. Se você me perguntar se ele é culpado ou inocente, não sei responder ainda. Só sei que esse livro se tornou uma missão. A vontade de salvar um amigo não se explica. É compromisso sem razão. Mas não quero piedade, nem eu nem ele. A piedade nos faz mal, a nós dois e pode ser um crime muito pior. Só peço que você leia essa história com uma (tenção?) meio distraída. Sem armas, num gesto de entrega antes de julgar, qualquer coisa como pisar um território pela primeira vez e ir descobrindo a textura da terra com a planta dos pés. Tsc. Marcos César tem dezessete anos ou mais. É difícil precisar. Ele é tão jovem no corpo e quase velho nos acidentes do coração. Com aquela porção de maldade que todos nós temos quando o amor é ferido, chegou a magoar vivos e mortos. Foi isso que ele fez. Porém é meu amigo. E peço para ele um perdão. Se ele merece ser perdoado também não posso afirmar. Vou saber aos poucos, numa investigação árdua e provavelmente muito penosa. Posso achar, de repente, que o tamanho do crime dele faz desse meu amigo um criminoso sem trégua. E mesmo sem argumento estarei clamando pelo seu perdão. O que conta é que ele se arrependeu. Me confessou tudo e me implorou pra escrever a sua história num ato de desdobramento e extrema coragem. Não se pode negar ou esquecer isso. Nem eu nem você. Ele quer pôr tudo em pratos limpos. Quer que todo mundo aqui conheça sua vida por dentro. Leia a história e julgue se ele é inocente ou não. Marco César chegou a dizer que espera ser perdoado. E esse perdão pode acontecer como um aleluia. Foi isso mesmo, uma aleluia ele disse. E eu entendi. Quem sabe no final você cante essa aleluia, aleluia que Clarice Lispector esperava que alguém cantasse para ela depois de ler uma história sua e dar a mão a ela como se esse gesto fosse tudo que se espera da alegria. Uma aleluia. Uma aleluia que varresse as próprias palavras do livro e deixasse a vida muito limpa. Uma aleluia que no fundo dissesse: 'Eu entendo, isso que você escreveu sou eu. E por isso eu te perdôo, eu te perdôo tanto.' " Veio daí a idéia do livro e eu aceitei. (aplausos)
Participante (13) – Jorge, to pretendendo aqui, deixar que você dissesse aí o que que você achou de contar aí a sua história do projeto Menores na Literatura, né?
Jorge – Vou falar.
Participante (13) – Juvenil.
Jorge – Vou fazer aquele trechinho lá do. Quer que faça?
Participante (13) – Faça.
Jorge – Eu queria convidar vocês a ir, não é, por Deus do céu eu não ganho dinheiro, mas adoraria que vocês fossem assistir a minha peça, que é Carta a uma Senhorita em Paris, a... tá lá na, em Osasco, né? No Unifiel. Depois eu posso dizer pra vocês, né? Um teatro grande. Mas vem pra cá. Vai ser apresentado aqui na Livraria da Vila, em junho agora. É um texto pequeno. O tema é esse que eu disse a vocês, né? E... que a gente vai fazer aqui que dura uns quarenta e cinco minutos, sempre havia um crítico do Realismo Fantástico que fala de vida, de amor, de desamor, não precisa é... esses "papos cabeça", né? E a gente vai discutir. Então vou fazer o comecinho, tem maquiagem, tem um monte de coisa, tal. Agora, claro que eu vou fazer o texto pra vocês. Considere. Eu não to no melhor dos meus momentos, né? To falando a duas horas, né? (risos) Eu sou bem melhor do que o que vocês vão ver agora, do que vocês vão assistir.(risos) Tá certo? Então, tenho uma ornamentação toda, mas é assim. To escrevendo, tá? ã... Eu preciso escrever uma carta. Tsc. Como é que eu posso iniciar essa carta? É tão difícil iniciar uma carta. A primeira palavra é tão difícil, meu Deus. Mas é ela que, é ela que nos dá coragem. Acho melhor que a carta aconteça por ela mesma. Como se a própria carta fosse ditando as suas próprias palavras. É isso. Eu vou fazer isso. Andrée, você não pode saber o que tem sido a minha vi, vida. Vida. Eu tenho que ser mais incisivo, direto. Andrée, decididamente resolvi confessar, confessar a você o meu segredo. Andrée, eu não queria viver no seu apartamento da Calle Suipacha. Não tanto pelos coelhinhos. Não. Eles não me incomodam tanto assim. Mas é que, é que me desagrada entrar numa ordem fechada. Construída até nas mais finas malhas do ar, essas que em sua casa preservam a música da lavanda, o adejar de um cisne com pós, o dueto de violino e viola no quarteto de Rará. Para mim, ô Andrée, é duro entrar num ambiente onde alguém, como você, que vive confortavelmente e dispôs tudo como uma reiteração da sua alma. Aqui os livros. De um lado em espanhol, do outro em francês, inglês. Lá, eternamente os almofadões verdes olhando pra mim. O telefone é a meio metro da cabideira de couro velho, sempre ao alcance da mão. E nesse exato lugar da mesinha, um cinzeiro de cristal que mais parece uma bolha de sabão. e... e... e... e sempre um perfume, da... um som. Um crescer de plantas. A fotografia de um amigo morto, na parede. Ritual de bandejas, com pinça e chás. ah... Andrée. Como é difícil aceitar a minuciosa ordem que uma mulher instaura em sua casa. Como é condenável mexer numa tacinha de metal, pegar essa tacinha de metal e colocar no outro extremo da mesa. Deixar essa tacinha ali por um motivo qualquer. Mexer nessa tacinha é... é como... é como manchar de, de vermelho uma toalha de linho alvíssima. É como, é como se todas as cordas de todos os contrabaixos rebentassem num momento mais suave de uma, de uma sinfonia de Mozart. É isso. E depois eu não posso. Eu não posso aproximar os dedos de um livro, ajustar de leve o cone de luz do lampião, abrir a caixa de música, sem que um sentimento de ultraje e desafio me passe pelos olhos como um bando de pardais. Você sabe por que vim a sua casa. Na sua tranqüila sala festejada de sol. Você foi pra Paris a trabalho e eu fiquei aqui, cuidando do apartamento da Rua Suipacha. Nós fizemos um simples e comum acordo pros dois. Até que setembro viesse e trouxesse você de novo a Buenos Aires e me atirasse numa outra casa onde, onde, onde... Mas não é por isso que eu to te escrevendo. Tsc. Não é. Eu te escrevo por causa dos coelhinhos. Eu acho justo informar, acho que você tem o direito de saber e escrevo essa carta, (riso), porque eu gosto de escrever cartas, e porque chove talvez. Eu me mudei na quinta-feira passada, exatamente às cinco horas da tarde. Havia tédio e névoa. Ah, Andrée! Eu fechei tantas malas na minha vida, eu passei tantas horas arrumando bagagens que não me levavam a parte alguma, que na terça-feira, quinta-feira foi mais um dia de trevas. Mas fiz a mala, fiz. Avisei sua empregada Sara que viria, peguei o metrô, o ônibus, cheguei ao apartamento da Calle Suipacha. Subi de elevador. Entre o primeiro e o segundo andar, eu soube que ela tava ali. Entre o primeiro e o segundo andar eu senti que ia vomitar um coelhinho. (risos) Entre o primeiro e o segundo andar eu senti que ia vomitar um coelhinho. É isso, Andrée, um coelhinho.Vomitar um coelhinho. Nunca te contei isso antes, não acredite que tenha sido hipocrisia. Mas, meu Deus! A gente não vai sair por aí dizendo a todo mundo que de vez em quando vomita um coelhinho. Você diz? Que você vomita um coelhinho? Como isso sempre me aconteceu estando só, eu escondia. Os detalhes, os fatos, como se escondem tantas coisas que acontecem na nossa mais completa intimidade. Talvez todos sejam assim. Todos sejam assim. Por isso, Andrée, não me censure. Andrée, não me censure. De quando em quando me ocorre vomitar um coelhinho! Não é razão pra não se viver em qualquer casa. Não é razão pra se envergonhar e viver calado, e viver se escondendo, se protegendo, olhando de viés. Quando eu sinto que vou vomitar um coelhinho, eu coloco os dois dedos na boca como uma pinça aberta. E espero sentir na garganta a penugem morna que sobe como uma efervescência de sal de frutas. É tudo é rápido e instantâneo. Transcorre num brevíssimo instante. Eu tiro os dedos da boca e trago presos pela orelha um coelhinho branco. Branco. É um coelhinho normal e perfeito. Mas pequeno, pequeno, pequeno, pequeno como um coelhinho de chocolate. E branco, branco, branco, meu deus, inteiramente um coelhinho. Eu coloco o coelhinho na palma da mão, levanto a penugem com uma carícia de dedos, o coelhinho parece contente de haver nascido, tá satisfeito e roça, roça a patinha em mim, esfrega o fucinho na minha nuca, suspira, ahahá, suspira e eu sinto, eu sinto cócega nas mãos. Sempre foi assim, na minha casa de campo. Mas não foi isso que aconteceu. Entre o primeiro e o segundo andar, como um aviso do que seria a minha vida em sua casa, eu soube que ia vomitar um coelhinho. Eu tive medo. Ou era surpresa. Ou medo da surpresa. Porque antes de sair da minha casa, exatamente dois dias antes, eu tinha vomitado um coelhinho. E tava livre! Livre por um mês, cinco semanas, com um pouco de sorte, seis. Veja você, Andrée. Veja você. Mais uma vez eu tinha resolvido inteiramente o problema do coelhinho. Eu vomitava um único coelhinho uma vez por mês. Cinco semanas. Com um pouco de sorte, seis. Isso foi (duro?) de falar. Não há nenhum problema nisso. Eu vomitava um coelhinho e a vida continuava. Não há nenhum mistério nisso. Eu plantava trevo na varanda da minha casa. Colocava o coelhino no trevo e ao fim de um mês, quando eu sentia que o outro coelhinho ia nascer eu pegava o coelho já crescido e dava a minha vizinha, a senhora de Molina, que pensava num segredo meu e se calava. Já num outro vaso, vinha crescendo um trevo novo e apropriado. E eu esperava. Sem a menor preocupação o dia em que a cosquinha da penugem subindo a minha garganta trazia um novo coelhinho. E o coelhinho desde aquela hora vivia a vida e os costumes de todos os coelhinhos. Não era tão difícil nem terrível vomitar coelhinhos. Eu vomitava um coelhinho uma única vez por mês. To vendo você, _____. To vendo sua cara, aí, ó. Você estará se perguntando pra mim mas porque todo esse trabalho, Jorge? Porque todo esse trevo e a senhora de Molina? Seria preferível matar o coelhinho logo ao nascer. Aaaaah, Andrée. Ah, Andrée. Você teria que vomitar um coelhinho pelo menos uma vez na vida. Pegar o coelhinho e colocar na palma da sua mão, coelhinho ali, grudado, aderido, colado a você pelo simples fato de nascer, de você. Pronto. (aplausos)
Eu vou falar aqui no final que eu to... brigadíssimo pela generosidade de me ouvir, tá certo? Foi bom pra mim, eu lembrei de um monte de coisa. Tô extramamente feliz mesmo, estado de graça. Quero dizer que eu gosto demais do projeto de vocês, não é? Do Museu da Pessoa. Eu já conhecia a parte de gravação pra rádio, de áudio. Já tinha feito. Entre diversas características e traços de _____ que eu podia identificar, o que eu acho mesmo e depois eu faço rápido, porque, um contraponto com educação, né? É porque o clima é absolutamente informal, é lúdico, é espontâneo. E é claro que a gente acaba perguntando, dizendo coisas significativas, mas isso tem um traço bastante expressivo, pra mim, porque faz o que eu espero que a educação faça, né? Unir prazer e conhecimento. A visão que a gente tem de escola é uma coisa muito cristã, né? Que __________________ Imagina! Você aprende ____ né? Através do sentimento lúdico mesmo, né? E acho que nesse sentido também, esse tipo de programa, ele agrada muito a literatura. A literatura fica muitíssimo feliz com isso. Porque outro traço da literatura, muito singular, é que ela, como ninguém, une prazer e conhecimento. Tá certo? Realidade e fantasia. E ela se oferece com um (material?) (acho que?) privilegiado, segundo o professor Antônio Cândido pra formação do indivíduo, sociedade, pra formação dos leitores e pra formar, fazer, criar gente legal, como nós, né? Tá bom? (aplausos)
FIM DE ENTREVISTA
FIM DE CD
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