Entrevistada por Karen Worcman
Depoimento de Theodora Mariana da Silva Santos
Mutum-Paraná, 26 de junho de 2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MB_HV133
Transcrito por Arianna Sassaroli
Revisado por Lais Martins
P/1 – Dona Theodora? Sabe o que eu queria começar a entrevista perguntando pra senhora?
R – Hum?
P/1 – O lugar e a data do seu nascimento.
R – Data de nascimento... nascimento meu... no dia 20 de abril.
P/1 – De quando?
R – Eu me esqueci...
P/1 – Mas que ano? A senhora lembra?
R – No dia 20 de abril.
P/1 – E o ano?
R – O ano que é ruim (risos).
P/1 – A senhora tinha dito pra mim que era em 1930.
R – É que dia 20 de abril eu completei a casa dos 90 anos. Quanto ele falou?
P/1 – 80.
R – 80 anos. Pois é.
P/1 – A senhora fez 80 anos?
R – Fiz esse ano, em abril.
P/1 – E fez festa?
R – Fiz.
P/1 – Fez?
R – Eu mesmo não fiz, mas meus filhos fez. Fez bastante comida, bastante retrato, tem retrato demais aí que tiraram.
P/1 – Ah é?
R – É. Muito retrato, todos os anos eles fazem.
P/1 – Todo o ano a senhora faz uma festa?
R – Todos os anos, desde que meus filhos fazem, todo ano.
P/1 – Quantos filhos a senhora tem?
R – Eu tive 20.
P/1 – Oi?
R – 20.
P/1 – Nossa mãe, perdi até o ar. 20 filhos?
R – Pois é. Eu tenho uns dez vivos.
P/1 – A senhora lembra o nome deles?
R – A primeira é Josefa... o segundo era Raimundo, Raimundinho, morreu, é enterrado aí, morreu bêbado.
P/1 – Ah, morreu grande já?
R – Morreu grande, com 22 anos.
P/1 – Morreu de quê, dona...
R – Bêbado!
P/1 – É, mas como, porque bebeu demais?
R – Caiu dentro d’água e morreu. Aí depois, veio a Francisquinha, essa morreu...
P/1 – Morreu de quê?
R – Criança assim. Deu aquela doença de criança, né? A senhora sabe o que é doença de criança, não sabe?
P/1 – Não. O que é doença de criança?
R – É o ramo que dá, que chamam hoje em...
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Depoimento de Theodora Mariana da Silva Santos
Mutum-Paraná, 26 de junho de 2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MB_HV133
Transcrito por Arianna Sassaroli
Revisado por Lais Martins
P/1 – Dona Theodora? Sabe o que eu queria começar a entrevista perguntando pra senhora?
R – Hum?
P/1 – O lugar e a data do seu nascimento.
R – Data de nascimento... nascimento meu... no dia 20 de abril.
P/1 – De quando?
R – Eu me esqueci...
P/1 – Mas que ano? A senhora lembra?
R – No dia 20 de abril.
P/1 – E o ano?
R – O ano que é ruim (risos).
P/1 – A senhora tinha dito pra mim que era em 1930.
R – É que dia 20 de abril eu completei a casa dos 90 anos. Quanto ele falou?
P/1 – 80.
R – 80 anos. Pois é.
P/1 – A senhora fez 80 anos?
R – Fiz esse ano, em abril.
P/1 – E fez festa?
R – Fiz.
P/1 – Fez?
R – Eu mesmo não fiz, mas meus filhos fez. Fez bastante comida, bastante retrato, tem retrato demais aí que tiraram.
P/1 – Ah é?
R – É. Muito retrato, todos os anos eles fazem.
P/1 – Todo o ano a senhora faz uma festa?
R – Todos os anos, desde que meus filhos fazem, todo ano.
P/1 – Quantos filhos a senhora tem?
R – Eu tive 20.
P/1 – Oi?
R – 20.
P/1 – Nossa mãe, perdi até o ar. 20 filhos?
R – Pois é. Eu tenho uns dez vivos.
P/1 – A senhora lembra o nome deles?
R – A primeira é Josefa... o segundo era Raimundo, Raimundinho, morreu, é enterrado aí, morreu bêbado.
P/1 – Ah, morreu grande já?
R – Morreu grande, com 22 anos.
P/1 – Morreu de quê, dona...
R – Bêbado!
P/1 – É, mas como, porque bebeu demais?
R – Caiu dentro d’água e morreu. Aí depois, veio a Francisquinha, essa morreu...
P/1 – Morreu de quê?
R – Criança assim. Deu aquela doença de criança, né? A senhora sabe o que é doença de criança, não sabe?
P/1 – Não. O que é doença de criança?
R – É o ramo que dá, que chamam hoje em dia.
P/1 – O que é que dá?
R – Dá o vento, a menina minha... pega o vento assim, fica toda se tremendo. É, matou disso aí. E depois o outro morreu do mesmo jeito.
P/1 – Com quantos anos?
R – Esse aí tinha sete meses. Depois eu saí buchuda, saiu... morreu de novo o outro. Eu sei que tudo é 20 filhos.
P/1 – E só dez que sobreviveram?
R – É.
P/1 – Dona Theodora, a senhora lembra o nome do seu pai e da sua mãe?
R – Minha mãe eu sei que é Francisca Antônia Batista de Souza.
P/1 – E o seu pai, a senhora conheceu?
R – Meu pai não conheci, meu pai morreu eu tinha cinco anos.
P/1 – Então quem criou a senhora foi sua mãe?
R – Ahn?
P/1 – Quem criou a senhora foi sua mãe?
R – Foi.
P/1 – A senhora nasceu aonde? Em Jaci?
R – Nasci em Jaci.
P/1 – Como é que foi que sua mãe criou a senhora? A senhora lembra assim?
R – Minha mãe, quando passou um ano e seis meses, ela se amigou com um seringueiro. Foi criar nós dentro do mato, seringa, né, passando por aqui e pro lado de lá. E meu pai morreu aqui, nesse Mutum, enterrado lá onde eu to dizendo que é hoje em dia o acidente dentro d’água.
P/1 – O seu pai morreu de quê, dona Theodora?
R – Acho que foi pneumonia, que deu uma dor e não passou mais, morreu.
P/1 – Aí sua mãe ficou sozinha e depois amigou-se?
R – Foi.
P/1 – E ela tinha quantos filhos?
R – Mamãe... dez filhos.
P/1 – Vocês foram tudo pro seringal?
R – Não, nesse tempo... no tempo que ela foi pro seringal com nós, eu e minha irmã, só tinha duas filhas, né?
P/1 – Do seu pai?
R – É, do meu pai. Aí ela foi, se amigou com esse outro, ainda teve mais filhos.
P/1 – E a senhora lembra da vida no seringal quando a senhora era criança?
R – De criança mesmo eu me lembro sim, muito pouco, porque ela foi pro seringal... ela foi... não cortou seringa, cortar seringa era o marido da minha irmã, da minha tia, né? Nós vivia tudo lá na casa dela. Ele cortava seringa. Cortava seringa e pegava peixe, tudinho. Às vezes, a gente tava com a lua clara assim, sentado na beira daquele coisa, né? Do giral, do assoalho, a gente via o peixe bater, ele ia buscar o peixe pra nós comer, ainda de noite.
P/1 – Sério?
R – É.
P/1 – O peixe batia onde, no rio?
R – No rio.
P/1 – Vocês ouviam?
R – É, via e ele ia buscar, assim, bota a rede assim, pegava peixe.
P/1 – Muito peixe, dona...
R – Muito peixe. Menina, depois que eu fiquei velha já, eu andei por tanto seringal, se for contar de seringal... hum. Esse meu marido, pai desse menino não parava em casa nenhuma não.
P/1 – Ah é?
R – Ele não parava não. Quando ele plantava aqui uma roça, quando pensava que estava deste tamanho, já tava levando pra outro canto.
P/1 – Por quê?
R – Porque não parava, não sei o que dava na cabeça dele, parou mais foi aqui. Nós ficamos aqui, aí fomos pra Porto Velho, em Porto Velho ele adoeceu, aí eu vim pra Jaci, de Jaci eu falei assim: “Olhe, eu vou lá pro Mutum”, onde eu morava, né? Aí ele disse: “Como é que nós vamos?”. Eu digo: “Olha, amanhã eu vou pro Mutum”. Aí quando foi de manhã bem cedinho, eu arrumei as bagagens tudinho, aí fui pra beira da estrada. Na beira da estrada aí vinha passar um carro, né. Aí eu dei com a mão e ele disse assim: “O que a senhora quer?”, eu digo: “Eu quero uma passagem pro Mutum”. Aí ele disse assim; “Ó, eu não pego não, porque eu sou empregado de outro lado ali, da coisa, da mineração, sou empregado e não posso parar. Mas vem um atrás e ele pega a senhora”. Aí, eu disse assim: “Tá bom”. Não passou nem cinco minutos, o carro chegou. Aí ele fala: “Pra onde a senhora quer ir?” “Eu quero ir pro Mutum”. Aí ele disse assim: “Cadê a bagagem, tá tudo arrumado?” “Tá sim senhor” “Então dá com a mão pro pessoal vim”. Aí eu dei com a mão, veio os meninos tudo. Nesse tempo eu tinha oito filhos, né? Aí vieram tudinho, nós entramos no carro e viemos embora. Chegamos aqui no Mutum, aí saltamos...
P/1 – Faz quanto tempo isso, dona Theodora?
R – Tá com mais de 20 anos. O meu menino, o maior hoje em dia tem 43 anos... tinha oito anos.
P/1 – Aí chegou aqui em Mutum, o que a senhora fez?
R – Aí nós ficou aqui no Mutum. Aí nós fomos lá pra... ali, não tem ali... a senhora conhece o poção?
P/1 – Hum.
R – Não viu pra lá não, um poção não? Pois é, nós morava lá naquele poção ali.
P/1 – Que era o poção?
R – Poção era o ponto de pescar, de pegar balsa, depois ele adoeceu, nós pegava só balsa. Balsa, sabe o que é balsa?
P/1 – É pra ouro?
R – Hum.
P/1 – Como é que é? Explica pra mim. Vocês vieram pra Mutum pra fazer o quê?
R – Nós viemos pro Mutum pra cortar seringa. Cortamos seringa, pegamos balsa depois que ele adoeceu, que ele sofria do coração, né?
P/1 – Quem é esse, é o pai...
R – O pai dos meus filhos. Sofria do coração, não podia... que a seringa, a gente corta assim. Corta e embute na tigela, de primeiro era assim, agora não, agora espreme tá difícil, tá mais fácil.
P/1 – A senhora sabe cortar seringa?
R – Eu sabia, sabia e ainda sei...
P/1 – Como é que é? Explica pra mim como funciona o seringal?
R – O seringal... pra funcionar o seringal é assim: o seringal começa e a gente faz uma casa, aí faz a fornalha, pra botar o coco dentro pra sair a fumaça pra coisar a seringa. Defumar.
P/1 – Na casa?
R – Na casa, é.
P/1 – Mas essa casa que vocês fazem é pra morar dentro da casa?
R – Não, mora fora. A casa fica lá, assim como aqui. Uma casa acolá e aqui é a casa de morada, né? A gente mora naquela casa. E aí de manhã bem cedinho você acorda, vai cortar a seringa... é cortando assim. Aí quando chega 11 horas, deixa ela escorrer um pedaço e aí 11 horas a gente vai buscar o leite. Bota dentro de um balde, aí bota o leite dentro, aí despeja num saco, aí vem pra casa. E da casa, daqui ali, a gente faz um coisa, mesmo assim, um rolo de pau, pra defumar aquele leite. Taca dentro dessa privada aí. Defumar o leite assim, né? Aí tira daquele rolo de pau, aí bota no outro pau.
P/1 – Esse leite é o leite da seringa?
R – É.
P/1– Então acorda cedo... como a senhora fazia? A senhora morou... o primeiro seringal que a senhora morou, a senhora era criança, né?
R – É.
P/1 – Depois a senhora ficou nesse seringal ou não?
R – Não, eu vim pra Jaci... do lugar que nós morava viemos pra Jaci. Do Jaci viemos pra cá.
P/1 – Mas e aí, a senhora com os filhos... a senhora acordava cedinho...
R – É.
P/1 – E ia...
R – Cortar seringa. O menino não ia não, porque o menino era assim, pequeno.
P/1 – Quem que ficava com os meninos?
R – A minha filha mais velha.
P/1 – Ela ficava olhando os meninos?
R – É.
P/1 – A senhora deixava o de comer pronto?
R – Não, ela fazia.
P/1 – O que é que os meninos comiam?
R – Peixe, pra lá mais era peixe. E carne do mato. Bicho, bicho.
P/1 – Aí a senhora vai cortando assim... corta com o que a seringa?
R – Com a faca que tem... é mesmo assim. Aqui é o cabo, né? E aqui é a cuia da faca pra gente puxar. O golpe fica fininho, fininho assim, ó. Aí derrama o leite naquela tigela.
P/1 – Aí vai botando uma tigela atrás da outra?
R – É, tigela atrás da outra. Uma vez tem seringueira que dá até de dois a três litros desse... de leite.
P/1 – Aí vai andando assim pra frente, dona Theodora? Vai...
R – É, essa aí pra cima, quando eu cortava tinha cento e poucas madeiras.
P/1 – E a seringa era de quem?
R – A seringa?
P/1 – Quem era o dono do seringal?
R – Era o pessoal por aqui. Hoje em dia não tem ninguém mais... acabaram. O pessoal daqui...
P/1 – Mas como é que funcionava? A senhora cortava, aí voltava com o leite...
R – É.
P/1 – E aí?
R – Ia defumar.
P/1 – E aí depois, com ele defumado fazia o quê?
R – Vendia.
P/1 – Vendia pro dono do seringal?
R – É. Eu to dizendo que no tempo que eu fiquei viúva, era pra gente ter aposentado da borracha, mas eu... ele era meio que... pegava o talão que coisava a seringueira, coisava a seringa, como é, a borracha, que é por peso, né, que eles comprava, aí rasgava tudinho. Não guardava nem um talão nem nada. Quando eu procurei pra mim se aposentar, não tinha nem um coiso, não aparecia nem onde... nem os patrão que era do seringal, que recebia borracha, não apareceu ninguém. Aí eu me aposentei com... da velhice. Mas não tinha idade, minha idade foi aumentada, é por isso que tem esse problema, porque era a idade do meu marido que passou pra mim, a idade minha passou pra ele.
P/1 – Ah é?
R – É, tem três anos mais velha. Que é minha idade mesmo, né?
P/1 – Na verdade a senhora tem 83?
R – É. Três anos mais que...
P/1 – Dona Theodora, então vamos lá. A senhora era do seringal, aí foi tendo os filhos, e esse seu marido, o que aconteceu, ele morreu?
R – Morreu. Tá enterrado em Porto velho.
P/1 – É o pai dos 20 filhos?
R – Aham.
P/1 – Dos 20 é do mesmo marido ou não?
R – Não, tem só duas, um homem e uma mulher. Um homem enterrado aí, né? E a mulher mora em Tocantins. Do meu ex-marido.
P/1 – Não entendi. Fala de novo.
R – Meu primeiro marido, só tem dois filhos. Aí desse segundo, que tem esses 20 filhos.
P/1 – Ah, desse segundo?
R – É.
P/1 – Mas não é desse que eu conheci? Esse aqui não, né?
R – Não, esse aí, coitado, não tem nada. Quando ele casou-se comigo, o segundo filho tinha cinco anos. É. Não tive mais filho com ele não.
P/1 – Chega?
R – Chega, já tava o corte. Por isso que eu digo, a operação minha quem fez foi Deus. Que eu passei na... na beira da morte pro seringal, teve menino que meu marido queria tirar até o pescoço.
P/1 – Como?
R – Porque ele não passava os ombros aqui. E era ele que era o... que pegava, né?
P/1 – Era seu marido que pegava os meninos?
R – É.
P/1 – E a senhora tinha no meio do seringal?
R – No meio do seringal e... Muita, muita coisa pra chegar em Porto Velho, no lugar mais perto, que tinha era Porto Velho.
P/1 – Mas aí nasceu algum morto?
R – Não, morto nasceu... ah sim, nasceu uma menina, a Maria do Rosário. Nasceu não, a parteira matou, que botou a mão assim aqui na minha barriga e aí a menina era grande, né, aí imprensou e de imprensar só o coiso, né, imprensou mesmo na bunda dela assim. A menina nasceu morta.
P/1 – Mas a senhora quem tinha, era a parteira que fazia ou era seu marido que fazia o parto?
R – Não, só de uma que a parteira fez, o resto foi ele que pegou.
P/1 – Ah, ele pegava o nenê assim, já lavava? Ele sabia fazer isso?
R – Sabia. Ele teve o parto de duas, de duas meninas.
P/1 – Como é que era isso?
R – É, duas meninas. Teve uma primeiro, levou cinco minutos, teve a outra. A primeira ele botou pra lá, assim, num pano enrolado, né, ele botou pra lá, aí ele disse assim: “Ainda tem uma”. Aí a outra nasceu, né, e ele se esqueceu da outra. E era numa friagem de só, uma friagem, uma friagem...
P/1 – E aí?
R – Aí quando ele cortou o umbigo da outra, aí se lembrou, e aí a outra estava esperneando assim, nos paninhos, que o umbigo de duas é pequeno, né? Aí tava esperneando, “Ainda tem um aí, a pobrezinha já tá fria”, ele foi cortar o umbigo da outra.
P/1 – E essas daí viveram?
R – Viveram! Tem uma bem aí, foi lá onde foi o Amazonas, tem uma filha minha. Em Porto Velho tem outra. É... (risos). Pois é.
P/1 – E aí, agora me conta sua vida de pescadora. A senhora começou a pescar com quantos anos?
R – Ah, depois de uns anos, já depois que passei pra cá, pro Mutum.
P/1 – Foi aqui?
R – Tinha uns 20 anos, quando cheguei aqui, tinha uns 20 anos.
P/1 – Tinha 20 anos?
R – É.
P/1 – Aí quando a senhora chegou aqui, tinha 20 anos e quantos filhos?
R – Tinha oito.
P/1 – Já oito?
R – É.
P/1 – Aí a senhora resolveu ir pescar?
R – Resolvi e já pescava. Aí depois que nós fomos pro seringal. Logo pra dentro do mato.
P/1 – E como é que foi pescar? A senhora já sabia pescar?
R – Já! Aprendi a pescar... nós passava a noite todinha pescando... como que é?
P/1 – Como é que é? Conta pra mim.
R – Passeando.
P/1 – Como é?
R – Passeando, pegando peixe, matando paca...
P/1 – A noite todinha?
R – Uhum, chegava aqui era cinco horas.
P/1 – Da manhã?
R – Uhum.
P/1 – Era bom?
R – Hã, era bom, que a gente tinha que viver daquilo mesmo, senão morria de fome, né? Chegava aqui, vendia tudinho. Mas nesse tempo, não tinha esse negócio de gelo não. Era matando e tratando e vendendo logo. Não tinha gelo, não.
P/1 – Como que a senhora tratava?
R – Botava água no fogo, tirava o cabelo todinho, abria, tirava o bucho, tirava a cabeça e vendia.
P/1 – Isso o quê, a caça?
R – A caça.
P/1 – O que a senhora caçava?
R – Paca. A boca fechada, que não quero ninguém que fala não, aqui não (risos).
P/1 – Por que proibiu?
R – Proibida, aqui... Deus o livre, nós deixamos de pescar e de caçar por causa do negócio de instituição de bicho, pega a gente, o Ibama pega... Cacete e prende a gente, não tem fiança de nada.
P/1 – Nem na pesca?
R – A pesca não, a pesca é diferente.
P/1 – Como é que é a pesca?
R – A pesca, a gente pesca e vende aqui, vende mais é... assim nas caixas, né?
P/1 – Mas o que a senhora pescava? Qual é o peixe?
R – Jatuarana, surubim grandão, maior que a senhora aqui.
P/1 – Ahm!
R – Uhum. Grosso, passa assim, como é, ô meu Deus? Grande, aquele de pescar, como é o nome do peixe, meu Deus? Até lembrar... Passou no jornal hoje... não sei o nome do peixe que... grandão, grandão, grandão mesmo... tratava ele, tirava a cabeça e vendia.
P/1 – A senhora vendia aqui no Mutum mesmo?
R – Vendia. A senhora sabe onde é a linha-de-ferro?
P/1 – Sei.
R – A linha-de-ferro acolá? Era só duas linhas, duas, a linha-de-ferro e outra linha mais pra cá, outra rua, no tempo do trem.
P/1 – Tinha muita gente aqui, dona Theodora?
R – Não tinha muito, porque o lugar era pequeno, né, mas depois cresceu.
P/1 – Aí a senhora levava o peixe lá?
R – É, levava.
P/1 – Era surubim e o que mais?
R – Surubim, jatuarana, tambaqui, japitinga, tudo a gente pegava.
P/1 – E guardava algum pra senhora pra comer, né?
R – É, guardava.
P/1 – Pegava quantos peixes assim em uma noite?
R – Numa noite pegava muito, pegava pouquinho não. Pegava um bocado de peixe. E aqui não tinha esse tanto de gente não. Você não faz tempo que chegaram aqui não?
P/1 – Não. Era menos gente?
R – Ish! Agora tá uma cidade, por isso que eu tenho até dó de sair daqui.
P/1 – Agora a senhora tá gostando daqui?
R – Porque no tempo que ainda era pouquinho, pouquinho, aqui que eles inventaram esse... no tempo que tinha pouca gente. Era difícil até uma carne, uma galinha pra gente comer, não tinha nada, a gente comia era caça do mato, peixe, não tinha nada mesmo de primeiro. E agora que tem tudo, vão acabar.
P/1 – A senhora não ta contente que vai embora, então?
R – Não, não, ish.
P/1 – Explica pra mim o porquê.
R – Porque eu não to... porque quando chegamos aqui, logo que nós viemos pra cá, minha casa era lá embaixo. Aí viemos pra cá, não tinha isso aqui, não tinha nada, nada, era só mato mesmo. Esse terreno que tá bem aqui era nosso, nós vendemos, isso aqui era só um mato mesmo. Tudo era mato, mato, mato, capim e mato. E depois tá tudo grande dando fruta, pra gente comer. Agora, sai daqui, vai pro outro canto, se quiser lavrar, plantar e esperar pra comer é comprado, não to gostando de jeito nenhum. Eu nunca fui vizinha pra esse negócio de reunião. Porque quando eu espio pra cara desse pessoal falando essas mentiras, dá vontade de agarrar assim no pescoço e sacudir, porque eu não me uno, não me uno de jeito nenhum.
P/1 – Mas aí como a senhora vai fazer? A senhora teve que aceitar?
R – Tem, que meu marido é empregado. E veio uma mixaria, não sei como eles fizeram. Uma mixaria de dinheiro que veio. Que coisa! Não paga nem um pé de manga desse, que dá fruta pra gente comer.
P/1 – A senhora já foi na nova Mutum?
R – Fui não. Só vou pra lá quando for despejada pra lá mesmo.
P/1 – E aí, a senhora não se organizou com o pessoal daqui, pra não se mudar, pra...
R – Não adianta, minha irmã, o pessoal daqui não faz nada, eles vem de fora, né? Do tempo que eles tavam fazendo as reuniões, que tava no começo, eles não deram jeito em nada, pensaram que ia pro céu... Pro céu não é qualquer um que vai assim não.
P/1 – O pessoal da reunião, quando o pessoal chegou, o pessoal gostou?
R – Ah, eu toda vez ia pra reunião, pra reunião, e era só um cordão, que dizia: “Tá aqui!”. Chegou a vez. Não foi daqui, mas pode ser que eu saía.
P/1 – E essas árvores aqui foi tudo a senhora que plantou?
R – Essas árvores aqui foi tudo a gente que plantamos e aguamos. E aguamos, aguamos, aguamos tudinho pra poder estar deste tamanho.
P/1 – Quais árvores que a senhora tem aqui?
R – Isso daqui tudinho fomos nós que plantamos. Daqui até lá fora. Coqueiro e tudo. Coqueiro, vinha nascendo e nós plantamos. E agora eles fizeram isso aqui e vieram espiar por aqui, nem um pé de manga desse cobraram direito.
P/1 – E aqui dá muita manga?
R – Dá isso aqui alastrado. E é daquela manga rosa.
P/1 – Nossa, que delícia.
R – É. O pé, quando ela tá carregada, o galho chega e arrasta assim. Agora que foi cortado um monte de galho dela. Mas a gente tirava com a mão assim a manga, quando começou dar a primeira vez. Escolhendo as maduras.
P/1 – Ô dona Theodora, até que idade a senhora pescou?
R – Até com uns 40 anos.
P/1 – Faz tempo então que a senhora parou?
R – Faz. Faz tempo, tempo mesmo. Há muito tempo. Logo que o meu marido morreu e esse daí, o negócio dele era o garimpo.
P/1 – Quando o seu marido, pai dos seus filhos morreu, o que a senhora fez pra criar as crianças?
R – Eu fiquei trabalhando. Eu fiquei viúva até com um ano e seis meses, né? Com um ano e seis meses eu me juntei com esse aí. Aí...
P/1 – Com esse daqui agora ou não, com outro?
R – Esse daqui. Aí me juntei com ele, aí nós fomos pro garimpo. Aí do garimpo fomos vivendo pra aqui, pra acolá, os meninos foram crescendo, né? E quando me ajuntei com ele, já tinha filho que trabalhava pra ele mesmo, já tinha mulher, tinha tudo...
P/1 – E o garimpo, a senhora foi trabalhar no garimpo?
R – Não, fui ser cozinheira dele.
P/1 – Como era a vida no garimpo?
R – No garimpo, é levantar cedo, cuidar, cavar terra, pra dar no minério lá embaixo.
P/1 – E dava muito... era busca de ouro ou de quê?
R – De ouro.
P/1 – E aí? Como é que era? Levantava que hora?
R – Levantava cinco horas. Quando fosse seis horas, botava ela dentro d’água, cavando o buraco.
P/1 – Mas não tinha mulher no garimpo?
R – Não.... tinha! Tinha! Tinha mulher, mas era pouco.
P/1 – Aí catava o coiso, e aí?
R – Passava numa peneira, aí sacudia assim, aí pega o fagulho de ouro. Aí esquenta, aí bota no abaté, aí vai indo. Fazia aquelas bolinhas. Já conheceu ouro? A senhora conhece ouro? Sabe o que é?
P/1 – E aí, ele catou muito ouro?
R – Catou um pouco.
P/1 – E o que vocês fizeram com esse ouro?
R – Vendia pra...
P/1 – Pra comer.
R – Pra comprar o rango.
P/1 – E a senhora ficava cozinhando?
R – Uhum.
P/1 – E aí, quando é que foi que terminou o garimpo, dona Theodora?
R – Não terminou o garimpo aqui não.
P/1 – Não?
R – Não. O garimpo do Madeira é todo tempo.
P/1 – Por que vocês pararam de ir pro garimpo então?
R – Porque ele achou melhor sair, porque vinha pegando malária. Tinha muita malária nesse coisa aí, no garimpo.
P/1 – Como é que pega malária?
R – Ah, cuidado pra senhora não pegar (risos).
P/1 – Como é que é?
R – Oh, meu Deus! A malária é coisa ruim. A malária o corpo da gente começa com dor-de-cabeça, pega aquela febre, aí vai no posto, fura o dedo, aí acusa malária. Aí sai tomar umas pilulinhas gostosas, que é amarga...
P/1 – E fica de cama?
R – Fica! A senhora já teve... como é aquela doença agora do derradeiro? Que a gente faltava morrer? Você não tava aqui não.
P/1 – Febre amarela?
R – Não, é aquela outra... não... como é o nome? To lembrando de uma com coco, nós saímos daqui, menina, fomos fazer exame lá na Vila Nova, né? Nós chegamos lá, aí fizemos exame. A menina gritava forte, a minha não tava assim, a dele tava... Eu digo que nunca vi morrer gente, velho, né? Criança assim já tinha visto, mas eu pensava que chegava lá e ele já ia, porque era tão ruim, ruim, ruim. Meu Deus, quando chegamos lá furamos o dedo, falamos que era pra malária e pra essa outra doença... como é o nome dela? Aí deu mais foi a outra. Não deu malária não. Deu nele, deu em mim, aí ele foi lá pro hospital, lá ficou internado, aí... faltou luz o dia todinho, que fracasso, né, minha irmã?
P/1 – (risos).
R – A luz... por todo canto faltou essa luz... ah, esperando o dia pra morrer, aí o exame não saía. Aí eu tava melhor e digo: “Eu vou-me embora, eu vou pra minha casa, que lá na minha casa me deito na minha cama velha e fico deitada”. Ai ele disse: “Vai, quando eu for levo os exames”. Aí eu fui. Quando cheguei aqui, me deitei, fiquei... sabe que horas que a luz foi chegar?
P/1 – Hum?
R – Três horas da tarde. Lá pra fazer os exames.
P/1 – Deus me livre.
R – Aí ele pegou esses exames e veio embora.
P/1 – Não ficou mais?
R – Ficou não. Aí passaram o remédio e passaram água-de-coco, laranja, não sei o que mais pra tomar. Mas essa doença era ruim, pior que malária. Dói tudo o corpo da gente...
P/1 – Dengue!
R – Ah, tá de dengue mesmo. Ô, minha irmã. É essa mesmo. Essa daí acho que não foi Deus que mandou (risos). Que doença nenhuma é Deus que manda, não acha? Que Deus vai mandar ruim nada pra gente?
P/1 – É.
R – Nem do tempo mesmo, né?
P/1 – É.
R – Você pode ser qualquer... Deus manda uma coisa dessa daí, não sei. Ruim, ruim, hãm!
P/1 – Ô dona Theodora, eu posso voltar com senhora lá pra sua infância?
R – Ô, meu...
P/1 – Eu queria que a senhora tentasse me dizer assim o que a senhora lembra da sua mãe, como é que ela era, o que ela lhe ensinou... se ela lhe ensinou alguma coisa, a senhora lembra?
R – Eu não me lembro nada da minha mãe! Me lembro da minha mãe que ela era do mesmo jeitinho de mim, gordona... Quando ela morreu, eu não tava nem aí, tava lá no seringal, quando eu soube da carta, peguei a carta dela.
P/1 – E ela batia em vocês, ela era brava?
R – Ah, brava ela era, hum! Ela vivia de fogo na gente. (risos) Era brava, minha mãe era brava. Ela... sabe quando... a surra que ela me deu? A derradeira surra que ela me deu, que eu fiquei de cama. Tu conhece aquele cipó-ambé?
P/1 – Hum.
R – Conhece?
P/1 – Conheço.
R – Aquele cheio de espinho? Eu tinha uns cinco anos, era pra ser um palito, não sei como eu engordei desse jeito, tanto remédio, né? Aí eu cheguei lá, mamãe tava pescando no mês de agosto. Dava peixe, jatuarana, essas coisas, tava pescando. Aí eu cheguei lá: “Mãe?” “Que é, menina?” “A senhora pegou jatuarana?”, ela disse: “Não, minha filha, eu peguei a jatuaraninha, mas to fazendo isca”. Aí eu tinha ficado com minha tia em casa, que gostava da companhia dela. Aí eu digo: “Vou já dar notícia pra titia que a mãe pegou a jatuarana”. Aí, cheguei lá, a minha tia perguntou: “Que tal, Theodora?”. Era um negócio de umas onze horas, né? “Tua mãe já pegou peixe?” “Já, tia! Já pegou peixe” “Que peixe é?” “É jatuarana, bem grandona, ela disse que é pra senhora amolar a faca e levar a panela maior que tiver pra botar o peixe dentro”. Aí ela pegou a faca e “tchec, tchec, tchec, tchec” na pedra amolando, aí, nisso: “Vamos embora?” “Vamos embora”. Descemos barranco assim, “Tum-tum-tum”, chegamos lá, a titia perguntou assim, eu fiquei atrás da titia. Ela perguntou assim: “Cadê a Antônia?” “Que peixe que tu pegou”, a mamãe disse: “Que peixe?”. Ela tava enfezada, no sol quente, né? “Que peixe que eu peguei, não peguei peixe nada”. “Sei lá, ela disse que tu pegou um peixe grande, a jatuarana e eu quero o peixe pra tratar, que o fulano tá pra chegar da estrada”. “Eu não peguei peixe não, é mentira dessa sem-vergonha!” e pulou em terra e eu subi, só de calcinha. Cheguei lá e ela pegou, foi e jogou na minha calça assim, “tchuc”! Aí pegou minha calça e puxou pra trás. Nisso que puxou pra trás, eu caí. E pulou bem em cima de onde eles faziam paneiros pra pegar tracajá, né, sabe o que é tracajá?
P/1 – É um... bicho, né?
R – É. Aí parei, mesmo assim sendo cipó-ambé. E tinha aqueles pedaços assim que ela cortava pra fazer os paneiros, né? Ela pegou eu pelo braço e eu já tava sem calça, sem nada. Pegou pelo braço e tome peia, tome peia, tome peia. Eu puxava assim, o sangue descia, puxava assim, o sangue descia. Aí a titia vinha subindo, eu tava toda lavada de sangue. A titia: “Deixa essa menina, tá matando a tua filha, deixa essa menina aí”. Aí pegou, levou pra trás, foi dar banho, tirar a terra, né? E levou pra casa.
P/1 – A sua tia?
R – Minha tia. Aí nisso não, eu passei uns seis meses enrolada na folha de banana. Virou pereba pra todo lado.
P/1 – Sério?
R – É. Porque, antes de puxar, o bichinho entrava nela. Puxava de novo, batia de novo. Virou tudo pereba. Aí o titio foi e telefonou pra Jaci, aí chegou lá, o meu padrinho era delegado, né? Andou a dizer o estrago que a mamãe tinha feito. Aí ele escreveu: “não vou prender ela, que é minha comadre. Vou mandar remédio pra passar na menina”. Aí mandou pomada, essas coisas pra passar... Passei três meses na folha da banana. Toda mapeada.
P/1 – Nossa mãe, que surra!
R – Quase me matava. E pra dar peia ela não ia ter... escolhia não. Tá no pescoço, botava a bunda pra cima e venha cá. Hoje em dia se você dá uma surra assim num filho, vai preso, né? Mas nunca bateu muito não, senão ia aquele fulano na delegacia contar, né, e buscar.
P/1 – Mas a senhora lembra se ficou com raiva dela?
R – Não, não tinha raiva da minha mãe. A minha mãe, não. Era a minha mãe mesmo, nunca tive raiva dela não. Tem filho que não pode a mãe triscar que fica logo com raiva, né? Não pode ficar com raiva da mãe da gente, foi quem botou a gente no mundo, né?
P/1 – Mas e aí depois sua mãe levava a senhora na igreja, alguma coisa assim, não?
R – Não, eu fiquei... mamãe era assim dessa que nem era católica e nem era crente. Era assim uma coisa do mundo, não sei como é que ela era, né? Mas depois eu fiquei em Porto Velho, eu ia pra igreja, todo o tempo.
P/1 – Por que a senhora foi pra Porto Velho?
R – Porque, falar da vida da minha mãe eu to falando até demais. Porque...
P/1 – Mas me explica. Vai.
R – Aí ela fez assim: se amigou com esse marido dela, aí casou com ele e nós era pequena e ficamos com ela, né? Daí ela teve primeiro o menino, com ele, aí teve o segundo, aí nós fomos pra Porto Velho. Chegamos lá, ela deixou nós. Tinha 13 anos quando ela deixou nós lá, pra estudar.
P/1 – Deixou com quem?
R – Com minha tia. Aí nós ficamos pra estudar lá e eu fiquei pra estudar, mas como a gente estudava e trabalhava, né?
P/1 – Em que a senhora trabalhava?
R – Nas cozinhas dos outros. Cozinhando. Aí eu disse pra minha tia: “Minha tia, ou um serviço ou outro; ou estudar ou trabalhar, que não pode”. Eu estudava de noite e de dia ia trabalhar.
P/1 – Dormia de noite?
R – Eu queria... de noite dormia 11 horas, né? Que depois que acabasse de estudar, né? E de dia eu ia trabalhar no dia arriscada de cortar até o dedo ou o pescoço cochilando (risos).
P/1 – Na casa de alguém?
R – Na casa de alguém. Aí eu preferi trabalhar, deixar estudo, porque estudo foi só minha irmã.
P/1 – Aí a sua tia falou: “Pode escolher”?
R – É, “Escolha o que você quiser”, eu vou trabalhar, que eu não... Nesse tempo, tudo era pobrezinho, né, minha irmã? Tu acredita que minha mãe... a minha irmã depois que se formou, aí a patroa dela levou ela lá pra Manaus, né? Que eles tinham brigado, o marido dela ficou em Porto Velho e ela tinha brigado e foi pra casa da mãe dela, pra Manaus. Aí quando chegou lá, passou um mês, aí nos dois ela telefonou pra ela que podia vir, que ele queria ela de novo, né? Aí ela veio. Ela foi pra lá... veio pra cá. Aí deixou minha irmã, falou que mandava buscar. Nesse buscamento dela, ela ficou pra lá. Aí ela telefonou, nesse tempo não era telefone, mandava uma carta pra alguém, né, aí mandou uma carta pra mamãe dizendo que a mamãe mandasse o registro dela. Mandasse o registro dela, que ela queria vir, sem o registro ela não vinha, que ela era menor. Aí mamãe falou com o meu tio que era cabo, aí foi procurar o cartório pra tirar o registro, né? Que ele era cabo, todo metido da polícia, né? Podia ser mais fácil. Ele foi perguntar quanto era o registro, aí disse que é cinco reais... Nesse tempo não era real, era outro dinheiro que tinha nesse tempo, né? Aí, “Ah, cunhada, não posso tirar não, com esse preço não posso tirar não”. E disso aí ficou.
P/1 – Aí sua irmã ficou lá?
R – Ficou. Ainda hoje mora lá.
P/1 – Ficou trabalhando na casa de alguém?
R – Ficou... ela foi e ficou moçona, já se casou, que ela é casada hoje em dia, né? Ela tem quatro filhos.
P/1 – A senhora nunca mais viu ela?
R – Nunca mais!
P/1 – Nunca mais?
R – Nunca mais, não sei nem se ela morreu, porque fica aqui com um e com outro, né? Que em Porto Velho ela conhece tudo, né? Quando ela saiu daqui, já tava grande e conhece tudo, conhece... a minha irmã conhece todo mundo e ela nunca mais mandou notícias... Tá pra lá.
R – Pois é, eu tive outra assim, de manhã cedo me levantei, fiz as coisas, aí eu tinha um menino pequeno assim, que dava de mamar. Aí me deitei, dei de mamar pro menino, aí quando tava deitada, pronto, morri. O menino acordou e foi embora andar por aí e eu fiquei deitada na rede. Meu marido chegou e disse assim: “Cadê tua mãe?” “A mamãe tá dormindo” “Dormindo?” “Sim”. Menino pequeno, não sabe o que ia fazer, né? Aí ele foi espiar: “Que dormindo nada, tua mãe tá é morta”, bem assim.
P/1 – Sério?
R – Uhum. Aí pegou e levou pra debaixo do mosqueteiro, né?
P/1 – E a senhora não lembra de nada?
R – Nada, quem contava era os meus filhos, o mais velho que contava. Aí, fiquei lá debaixo do mosqueteiro, ele foi colher, quando chegou eu tava do mesmo jeito. Ele acabou de defumar, às cinco horas acaba de defumar, aí mandou lá na casa do vizinho. O vizinho com uma hora de viagem, o menino foi na carreira pra lá, chegou lá, “O papai disse pro senhor ir lá” “Fazer o quê, menino?” “A mamãe tá morta” “Morta?” “Sim”. Aí chegou lá, “Cadê a dona Theodora?” “Tá morta”. Mas era só o coração, nem suspirar, suspirava. Aí disse assim: “Seu Raimundo, o senhor tem uma colher de açúcar?”, de açúcar, esse açúcar, né? De primeiro era daquela à granel, tinha aquele granel velho, de saco, né? Agora tudo tá mais fácil. Aí, ele disse assim: “Bota pra queimar. E quando acabar de queimar, o senhor pega um copo d’água e bota esse açúcar fervendo dentro do copo d’água. Aí o senhor pega esse açúcar, aquela água de açúcar e leva pra ela tomar. Se ela não tornar com essa água de açúcar, não tem outro remédio, não”. Assim ele fez. Aí botou aquele açúcar queimado dentro daquela água, deu pra mim tomar, chegou lá, tava meio assim. Agora com a colher pra mim tomar. Eu tomei os três goles de água assim e fui melhorando, fui melhorando, até que eu tornei. Sabe que hora era?
P/1 – Que hora?
R – Sete horas. Sete horas da noite.
P/1 – Que loucura!
R – É.
P/1 – Aí a senhora voltou?
R – Aí eu voltei ao normal. Não sei o que deu em mim não.
P/1 – A senhora lembra o que a senhora viu quando tava morta, ou não?
R – Não. Eu sei que a cabeça rodou, né? Assim quando a gente tá meio tonta, a cabeça da gente não roda? Aí rodou e eu fiquei lá dentro, não podia me levantar, fiquei lá e saía, quase que ela me levava, a morte. Muito coisa.
P/1 – E esse seu marido é que morreu?
R – Ele que morreu. Morreu de ataque... morreu do coração.
P/1 – Ele morreu de quê?
R – Do coração. Tinha duas veias de coração entupidas.
P/1 – O primeiro morreu de quê?
R – O primeiro? O primeiro eu deixei ele.
P/1 – Ah, deixou?
R – É.
P/1 – E deixou por conta do quê?
R – Por nada. Só tinha dois filhos, só tinha aqueles dois.
P/1 – Mas por quê? Ele bebia?
R – Sempre bebia um pouco. Agora esse outro bebia também, mas era pouco. Esse morreu do coração. Eu não tava nem... eu botei pra lá e ficou pra casa da irmã dele, eu ficava aqui no Mutum. Tomava conta de balsa.
P/1– Ele?
R – Ele tomava conta de balsa. Ele adoeceu, quem tomou conta fui eu. Sempre poucas balsas.
P/1– Ah, ele era tomador de conta e a senhora acabou tomando conta das balsas?
R – Das balsas.
P/1 – Como é que é que a senhora tomava conta das balsas? Quem era o dono das balsas?
R – Era o pessoal do rio. Que eles trabalhavam no verão e no inverno eles entregavam pra gente, que não podia, que era balsa mesmo, né? Hoje em dia tem as coisas, né?
P/1 – Por quê? No inverno não podia usar as balsas?
R – Podia não, que era mergulhador e ficava lá em cima o rio, muito dentro, ficava alto demais pra mergulhar lá embaixo. Aí...
P/1 – Mas eles davam pra senhora tomar conta e pagavam pra senhora tomar conta?
R – Uhum. Pagava logo quando deixava e pagava quando recebia... as balsas. Aí eu deixei ele lá e vim pra cá tomar conta de balsa.
P/1 – E nessa época que a senhora ficou tomando conta de balsa, a senhora pescava também?
R – É... pescava pra comer.
P/1 – Porque com o dinheiro das balsas não dava pra comprar comida não?
R – Dava. Dava pra comprar, mas a gente tinha que comer, vestir, tudo, né? Que tinha os meninos todinhos que eu... ficou comigo tudo meio criança...
P/1 – A senhora chegou a passar fome alguma vez?
R – Graças a Deus que não.
P/1 – Sempre arrumava o que comer?
R – É, sempre arrumava... pra comer.
P/1 – Qual foi a fase mais difícil da sua vida?
R – A fase mais difícil da minha vida foi trabalhar em seringa, na seringa.
P/1 – Foi mais difícil?
R – Foi, porque tinha que acordar bem cedo e a seringa é trabalhadeira, traz um trabalho doido. Essa coisa... pensa que não? A gente corta cento e poucas assim, não é muito trabalho? E quantos quilômetros não dá? A senhora... comparação... aqui é uma perna, aí a senhora vai assim por acolá, faz outra perna de seringa, aí sai acolá no mesmo canto que a senhora entrou.
P/1 – E tem que carregar?
R – Tem que carregar. Aí veio o coco pra botar na seringa, o coco no pau. A gente cortava sem tirar o cavaco. Dá um trabalho doido a seringa. Hoje em dia, meu Deus, a seringa ta é fácil. Aí começaram com esse, acabou a seringa por aqui, por todos cantos bendizer acabou, né? A senhora não conhece macaco preto, não?
P/1 – Macaco preto?
R – Sim.
P/1 – Não.
R – Aí, não tinha o que fazer, botava até macaco preto dentro da seringa, dentro daquela borracha e defumava, assim, fazia aquela borrrachona, deste tamanho. E acabava, acredita? Aqui nem em Porto Velho tinha faca de borracha.
P/1 – Tinha o quê?
R – A faca de borracha. Pra tirar aquelas capas todinhas e fazer outro negócio, né? To deixando o cabinho só... corta a borracha, quando cortaram a borracha, tava aquele macaco preto fedido dentro da borracha. E botava barro, e botava areia, e botava tudo dentro da borracha pra pesar.
P/1 – Pra ficar mais pesado?
R – É.
P/1 – Ah, porque vendia por quilo, né?
R – Vendia por quilo.
P/1 – A senhora botava essas coisas também?
R – Não, nunca gostei de botar isso não. Ou uma coisa ou outra, né, minha irmã? Ou vender puro ou vender sem nada, não vender nada, porque isso tudo vai da parte da coisa, né? Que Deus não abençoa a gente fazer isso.
P/1 – Mas o pessoal todo fazia?
R – Fazia essa arrumação. E é que é vida, meu Deus do céu! Pois em Porto Velho fazia... descia aí de cima, caía de borracha. Empurrando uma vara de um lado, a vara do outro, a vara de um lado, a vara do outro, empurrou até chegar aqui. Isso que eu fico pensando, minha irmã, no tempo que não tinha nada, tinha esse sacrifício, esse pessoal não inventou essa arrumação de tirar esse Mutum daqui, depois de estar tudo fácil, tudo feito, que arrumação de coisa! Me diga uma coisa: que essa luz nem pra nós não é, é pra fora, pros estrangeiros, isso que eu fico mais com raiva, porque nós aqui paga um absurdo a luz e pra fora, luz, tirada daqui pra lá. Não dá uma raiva? Porque se fizesse essa luz pra cá e a gente não pagasse, mas tudo a gente tem que pagar. Por isso que esse novo Mutum que a gente vai tem que pagar até o... acho que até fazer o coco assim, deixar ele em cima da terra, tem que pagar, né?
P/1– É.
R – E aqui não tinha nada. Eu durmo e acordo, mas não entra na minha cabeça de jeito nenhum.
P/1– Só tá chateada?
R – To chateada mesmo, já tive ruim, fui pra casa da minha irmã. Por causa desse negócio logo que começou. Ish!
P/1– A senhora nunca achou que ia ser bom?
R – Nunca, nunca, nunca, nunca! Nunca achei, não achei e não acho nunca, não. Pense lá, nós vamos pra lá, é um lugar bendizer que tem as casas. Mas não tem um pé de árvore, que dizer assim, de baixa acolá.
P/1– Não tem, né?
R – Tem uns pés de árvore sim, que já ta feito lá mesmo, os pé de tucumã, pé de parreira, tucumã, conhece tucumã? Não conhece? Pois é. Lá em cima, se cai na cabeça entra tudo que é espinho (risos). É chatice, é chatice mesmo, eu não acho nada de acerto. E teve umas 20 reuniões aqui, eu nunca fui. Não vou, não. Logo no começo, o pessoal daqui ia, que tão fazendo essa panelada, assado e bife, aquelas coisas, ia mais pra comer, não era nem pra reunião. Ficava lá comendo e bebendo, quando era tardezinha, hora dessa, terminava, era tudo bucho cheio, né? E foram concordando, concordando e o negócio pegando lá da gente.
P/1 – Quando viu já tava tudo comprado?
R – É, tudo comprado. Veja a destruição de casas que esse pessoal fez depois andou por aí assim. Não tem muita casa feita? Casinha pra ter os pombinhos?
P/1 – Pra que fizeram essas casas?
R – Pra ganhar as coisas! Ganhar dinheiro com casa. Mas disse que não vai ter isso daí, não vai ganhar nada não.
P/1 – Pra indenizar?
R – É. Não vão ganhar nada.
P/1 – Dona Maria, agora então agora mesmo a senhora não querendo vai ter que mudar?
R – É.
P/1 – A senhora já tá com 80 anos. Qual que é o seu sonho? O que a senhora queria que acontecesse agora na vida?
R – Minha irmã, se fosse por mim mesma, eu ia morar em Porto Velho. Porque diz que lá é casa de ladrão e é ladrão mesmo, mas que não é todo mundo que eles roubam não. Que minha irmã tá com muitos anos que mora lá, nunca roubaram ela.
P/1 – A senhora quer ir pra lá?
R – É, o gosto meu era ir pra lá.
P/1 – Por que a senhora não vende a casa e vai pra lá?
R – Como? A casa que a gente vendia... a indenização que veio não dá nem pra... acho que dá pra comprar lá mesmo, no Mutum. Porque é muito pouco, minha irmã. Dá uns 50, 40 reais. 90 reais que a gente compra uma casa em Porto Velho e aqui não dá pra comprar nada disso aqui. Dá não. É uma mixaria. Mixaria mesmo. Eles pagaram só mesmo a casa, isso aqui não coisaram nada. Não saiu nada disso aqui. E o homem vai pra lá, que o homem é... trabalha, da prefeitura. E eu tenho de ir, só vou deixar ele por morte, né, porque deixar uma pessoa assim, sem ver, eu digo, pra quê? Pra ir pra outro canto? Não pode, né? É, a gente tem que deixar só por morte mesmo. Se Deus mandar a morte, aí...
P/1 – Agora esse só com a morte?
R – É.
P/1 – E esse aí, a senhora gosta desse marido aí?
R – É, ele não é marido, é filho.
P/1 – Ah.
R – Que nem meus filhos fazem o que ele faz.
P/1 – Como, não entendi.
R – Porque meus filhos, tudo é filho, né? Mas não vive comigo.
P/1 – E ele que fica aqui?
R – É ele que vive comigo, que faz as coisas...
P/1 – Ele toma conta da senhora?
R – Toma. Toma conta. E Deus ajuda o que é para sempre, né? Porque do jeito que eu sou, doente, não sou boa, não. Eu tenho uma tonteira... não sei nem pra onde vai. Osteoporose nas pernas, dói tudo o corpo, já tive internada lá no hospital, ali no hospital de base, fui internada três vezes lá. Nós paga plano de saúde, aí pronto, aí o negócio é o Novo Mutum mesmo.
P/1 – Vamos ver no que dá, né, dona...
R – É vê o que dá. Vê se Deus abençoa mais uns dias, né?
P/1 – Tá bom, dona Theodora. Muito obrigada pela entrevista...
R – Obrigada, prazer vocês, não se esquece do retrato.
P/1 – Não me esqueço do retrato.
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