Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de José Alves de Mira
Entrevistado por Thiago Majolo e Antônia Domingues
Santa Catarina, 15/09/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista MB_HV051
Transcrito por Edson Osmar Rodrigues Arruda
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 26/01/2009
P1 – Eu vou pedir para o senhor falar o nome, a data do nascimento, por favor.
R – Está bom. Meu nome é José Alves de Mira, eu nasci em outubro de 2024, como é que é? De 24, né? Como é que é?
P1 – Em que cidade o senhor nasceu?
R – Cristina, sul de Minas Gerais.
P1 – Qual era o nome do pai e da mãe do senhor?
R – José Rodrigues Mira e Ebertina Maria de Jesus.
P1 – O que eles faziam?
R – O meu pai era lavrador, e minha mãe, doméstica, dona de casa.
P1 – E ele trabalhava em Cristina?
R – Trabalhava em Cristina.
P1 – E como era o trabalho dele?
R – Meu pai trabalhava na enxada, plantava muito, a gente plantava muito e trabalhava com tropa. Nas colheitas, ele trabalhava com tropas. Baldear as coisas para a cidade era o trabalho dele.
P1 – O que ele levava para a cidade?
R – Ah, levava arroz, feijão, milho, café. Quando vendia porco capado, vendia os capados também na roça, punha no cargueiro e levava para a cidade, para os açougues. Então, era trabalho manual do caipira lá na roça. Lavrador, ia fazer de tudo.
P1 – E era tudo ele que produzia?
R – É, tudo ele que produzia. Então, eu comecei a trabalhar com ele já com sete anos de idade. Comecei a acompanhar ele para a roça, na enxada, na tropa. Naquele tempo, a gente trabalhava em terreno alheio, trabalhava de meia, plantava o trigo e na colheita dividia: metade dele, e metade do patrão, que dava até para trabalhar. Mesma coisa o arroz e o feijão: eram 20% o trabalho dele. Com café, já era com outra pessoa que nós não tínhamos nada a ver com isso. Até que o pai dele comprou esse terreno, e a gente ficou fazendo parte da lavoura, porque daí a gente não pagava o arrendo. E também no café, o café era do meu avô, mas ele tomava conta da lavoura, camarada, essas coisas todas. E eu junto com ele.
P2 – Desde novinho, então?
R – Desde os sete anos de idade. Aí eu cantava. Com sete anos, eu comecei a cantar na Folia de Reis dele, com esse cavaquinho que está aí me acompanhando, que custou dez tostões aqui em São Paulo, porque lá não tinha instrumento para vender. E estou até hoje nessa lida, trabalhando na roça, trabalhando com a música, trabalhando com a cultura popular, que é uma coisa, negócio de folclore. Quando eu vim de Minas Gerais que encontrei essa palavra aqui em São Paulo. Eu não sabia dobrar a língua para falar essa palavra: “folcrore”. Até hoje não falo direito, né? Então, essa senhora que me levou para a Fundação Cultural Cassiano Ricardo, que é a dona Ângela Savastano, agradeço muito ela por ter me posto, ter me procurado, dançador de Moçambique e cantador de Folia de Reis para entrar no grupo do Piraquara, que é o grupo que ela fez em homenagem aos Piraquaras da beira do Rio Paraíba. Aí, estou até hoje nessa vida, 20 anos, cuidando da roça, cuidando da minha família, e me sinto honrado por isso.
P1 – E o senhor lembra quando foi que participou pela primeira vez de uma Folia de Reis?
R – Lembro que foi quando fazia dois dias que eu fazia sete anos que eu fui tocar na Folia de Reis do meu pai, e me ensinaram três posições do cavaquinho para eu “comprar”: primeira, segunda e terceira. E eu cantava na tala, que hoje o nome é diferente, é sustenido, mas na minha época eu cantava na tala, a última voz, lá de trás, bem lá atrás, como eu canto até hoje. Não sei se vocês observaram ontem eu cantando (corpo bandeira?). E daí eu fui naquela voz alta, longa. Então, eu canto até hoje. Faço as minhas brincadeiras que nem na vanguarda. Lá, a gente fez e, então, por causa de eu dar aquela gargalhada bem alta, eu fiquei oito meses no ar, eu entre quatro artistas consagrados, e eu fiquei no ar. Até os outros falaram: “Por que o Zé Mira ficou tanto tempo, e nós passamos de vez em quando?” Então, eles não falavam para mim, falavam para outras pessoas, e as pessoas falavam para mim. Eu falava: “Bom, manda é quem pode, não é quem quer. Quer dizer, me puseram lá, eu fiz, deu certo...” Quem manda é lá a Globo, por deixar no ar a quantia que quiser, né? E, então, assim foi com o livro, porque muita gente falou: “Esse livro do Zé Mira que gasta três, quatro meses para a gente ler, lendo dia e noite. Eu, que sei muito mais coisa, não achei um jornal para fazer esse livro, fazer a minha vida no livro. Agora, ele, um homem da roça, analfabeto, não sabe ler, não sabe escrever, e o jornalista fazer um monstro de um livro desse, contando uma história...” Só que tem que o livro conta a história de um caipira, eu sou o personagem do caipira, do tropeiro. Eu sou o único tropeiro ainda em atividade no Vale do Paraíba que expõe, tenho toda a tralha, não tenho mais burro porque estão acabando com tudo, mas tenho tudo em casa. Se você chegar lá e falar: “Quero uma cangalha.” Feito a 1800, eu tenho. Aquele cabeçote feito com o gancho inteirinho não tem emenda, feito em 1820, da tropa do meu bisavô que eu nem conheci, né? Balaio, eu mando fazer balaio para carregar arroz sem pôr no saco, sem pôr nada. Café, feijão, dobrado que a minha família faz lá em Minas Gerais, balaio dobrado, que é um orgulho eu ter isso, ter a família que ainda faz e trazer para São Paulo. Todo mundo fica louco, né? Eu chego aí, eles querem comprar, quer... Então, a minha vida, que eu gosto das coisas originais. A minha briga em Folia de Reis é a pessoa formar a Folia de Reis com camisa verde, com camisa vermelha, com camisa amarela (risos). Então, não é. Folia de Reis, a camisa é estampada, calça não tem problema, seja de que cor for, mas a camisa é estampada. A Folia do meu pai era a Folia do retalho, as camisas eram tudo feitas com retalhos que sobravam dos panos que as pessoas costuravam. Porque todas as mulheres faziam as roupas dos maridos em casa, as roupas das crianças em casa. Tinha máquina, né? E sobravam aqueles retalhos, então, faziam a camisa do folião nosso com aquele retalho. A camisa tinha pano de toda cor, por isso, chamava camisa de retalho. Porque os três reis, quando foram visitar o menino Jesus, eles foram fantasiados de palhaço, para os capangas do Rei Herodes não descobrirem aonde eles estavam indo. Então, saíram como mendigos, camisa rasgada, aquilo cheio de remendo, e foram andando. Os capangas do Rei Herodes foram seguindo até uma altura e falaram: “Ah, isso aí é mendigo que está andando e tal...” Eles estavam indo levar presente para o menino Jesus, fazer uma visita, né? Essa é a lenda que eu aprendi com os portugueses que trouxeram a Folia de Reis para o Brasil. A roupa não é... É uma roupa especial, que o remendo que é. Hoje não, hoje vocês compram a camisa estampada, bonita, a estampa bonita, e faz a camisa da Folia. Agora, lá não, lá é camisa amarela, é camisa verde. Camisa verde é do Integralismo, que teve uma época que meu tio, quando nós chegamos na cidade, ele com a camisa verde, a polícia pegou ele e fez ele ficar sem camisa na rua, porque, quando acabou aquele negócio do Integralismo, usar camisa verde... Então, estavam pegando todo mundo e tomando camisa para poder pôr no fogo para queimar, porque não podia ter, né? É o que eu falou. Agora, a camisa vermelha é da Folia do Divino, a roupa vermelha é do Divino Espírito Santo. Tem a Folia do Divino. O uniforme tudo é vermelho, a camisa, o quepinho, o distintivo... O bolso da camisa tem uma faixinha azul, o boné é a mesma coisa, que o letreiro da bandeira do Divino. Então, eu gosto das coisas assim, por isso que às vezes eu sou criticado em certas coisas, por querer agir. Aquilo que eu posso agir dentro da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, que eles participam porque eles ganham os panos para fazer as roupas ou ganham a roupa pronta, mas eles dão o dinheiro, não dão a roupa. Se fosse para eu governar esse negócio, aí tinha que comprar a camisa estampada, não aceitava de outra cor. Então, é a mesma coisa. Que nem eu, o dia que eu fui fazer o programa na televisão, cheguei com a camisa cor-de-rosa e o fundo era cor-de-rosa. Então, o diretor da Globo falou: “Tem que trocar a camisa.” Aí eu tive que emprestar uma camisa do funcionário da Globo, para eu trocar, que era uma camisa azul, xadrez azul, para poder aparecer, né? Hoje, quando eu vi que vocês iam fazer esse trabalho, daí eu estava com uma camisa branca, eu falei: “Não sei onde que vai ser, então...” (risos) Que a gente já acostumou, né? Eu fiz a entrevista dos 500 anos do Brasil com o Caco Barcellos. Aquele famoso jornalista esteve na minha casa oito dias, pegando tropa, desarreando tropa, pegando carro de boi, soltando carro de boi, carregando lenha, puxando as coisas, contando todas as peças da cangalha que o burro usa, como é que o burro trabalha, como é que o burro fica pertinente quando tem uma coisa que não agrada ele, no corpo dele. Eu falei: “É a cangalha, tem que ser dele, o cabresto tem que ser dele.” É a mesma coisa, Marcelo, de você pegar uma calça minha e vestir. Você se sente incomodado porque não é sua, está te incomodando, uma camisa... A mesma coisa é o burro. O pessoal fala que o burro é burro. Burro é a gente que põe as coisas erradas no corpo dele porque ele não aceita. Desde a primeira vez que ele for amansado com aquela cangalha, aquilo tem que permanecer até o dia que ir trabalhar, porque, do contrário, ele fica batendo nos outros, fica jogando para lá e para cá. Pode saber que tem qualquer coisa errada, e não é todo tropeiro que tem esse carinho, que tem esse cuidado, porque cada burro que tem a sua cangalha, a fita que fica amarrada na presilha da cangalha é de uma cor. Então, eu tinha dez burros, cada cangalha tinha uma fita de uma cor, o cabresto, a mesma coisa, e as peças: aranha, retranca, capa, suador, tudo aquilo, peitoral... Tudo era marcado para aquele burro. Quer dizer, a gente marcava a cangalhas, as peças estavam tudo grudadas, então, não saía. Marcava só na capa. O cabresto não, o cabresto era pendurado lá, então, tirava o cabresto e olhava: “Esse aqui é do Delicado, esse aqui é do Dourado, esse aqui é do Chibante, esse aqui é do mais lindo, que chamava Conhaque, que o burro de ______, que era mais lindo.” Entendeu? Então, a fita do cabresto dele, da cangalha dele era vermelha, que é o guerreiro, né? Tudo isso o meu pai tinha cuidado, e eu continuei com esse cuidado e veio do meu avô para o meu pai e do meu pai para mim, que eu uso até hoje. Eu acho que não existe uma pessoa que não queira ser melhor do que o outro, que queira... “Não, eu sou isso, eu sou isso.” Só que tem que ele é, mas ele não segue. Ele não segue as coisas que são verdadeiras, da raiz. Nós temos que seguir as coisas da raiz, nós não temos nada que copiar do outro, porque, se a gente for copiar, a gente copia errado, né? As entrevistas que eu dou sobre tropeiro, sobre a minha vida de trabalho, eu faço... Às vezes, faculdade, às vezes, vai lá na Casa de Cultura do Caipira Zé Mira – que eu tenho hoje, graças a Deus, a casa para o povo, que é meu sonho de não ter política dentro, a casa é do povo do Vale do Paraíba e região. Só que tem que eu fiz um comentário do Vale do Paraíba e região, mas eu estou recebendo gente do Brasil quase que inteiro, eu estou recebendo gente da Bahia, gente do Mato Grosso. Não sei se você já ouviu falar em João Mulato e Cassiano, de Brasília, que um é guarda no Congresso e outro é pedreiro, dois artistas consagrados, meus amigos. E, então, eles ficam, falaram para mim lá em Brasília, quando eu estive lá no ano passado: “A única casa que tem no Brasil...”, porque eles já correram o Brasil inteiro, “que é uma casa do povo é a Casa da Cultura do Caipira Zé Mira”. Porque lá, entra, é uma casa de família. Quatro anos inteirou agora que nós estamos nessa casa doada pela Bandeirantes Energia, dos portugueses, e nós não tivemos uma ocorrência ainda de polícia dentro dessa casa. Tem espaço para entrar carro, tem espaço para sentar hoje. Não estamos três anos, ficou embaixo da jabuticabeira, que nem nós estamos aqui, o olheiro cantando lá e a turma tudo embaixo das árvores. Podia estar garoando e ninguém saía, ficava tudo ali assistindo e prestigiando e ajudando a gente, porque a gente oferece uma quirerinha com carne de porco, bolinho caipira, cuscuz, caldinho de feijão e arroz doce, doce de abóbora, a bebida que tem que ter também, mas bebida alcoólica não, só cerveja e refrigerante, essas coisas. Então, é uma casa do povo, de todo mundo que vai lá, e a porção, que, fora o caldinho, custa seis, oito reais, lá é três reais, né? Dá para todo mundo comer. Bolinho caipira deste tamanho assim, tradicional, que é o único bolinho que está tendo dentro da região que é feito com a carne crua, a capa temperada, fritada ali na hora. Todo mundo agora vai lá para comer, e o bolinho caipira é o que nos ajuda a manter a casa. Nós não temos patrocínio, porque para eu ter patrocínio tinha que recorrer à política dentro, à prefeitura. Eu apanho de político desde os oito anos de idade, quando foi pedir escola para o prefeito, ele disse que quem estudava era vagabundo. Ele era doutor e tinha a filha dele que era a secretária dele. Então, eu fiz voto de vir para São Paulo para criar os meus filhos na terra de vagabundo, porque ele falou que São Paulo era vagabundo, que o paulista pagava para trabalhar, mas ele não trabalhava. Então, trouxe uma menina com um mês, o primeiro morreu lá porque nasceu, por causa de parteira, aquelas coisas. A segunda estava com um mês, pôs o pé na estrada com 50 mil réis no bolso. Arrumei serviço em Jambeiro, estou lá até hoje, compramos um sítio. Meu pai não ficou sem mim lá em Minas, porque a gente cantava junto por causa da Folia de Reis, cantava modas juntos. E ainda trouxe, tenho ainda quatro irmãos formados aqui que vieram pequenos. Agora, que eu ou um irmão e uma irmã, nós somos, duas irmãs, nós somos analfabetos completos, né? Eu me considero analfabeto, não tenho vergonha de falar em lugar nenhum. Hoje eu faço palestras nas escolas, nas faculdades, então, o pessoal admira. O reitor da faculdade, que é um padre lá em Taubaté, ele falou: “Analfabeto sou eu, analfabeto sou eu porque essas duas horas que nós passamos juntos, eu aprendi muita coisa com você.” Eu falei: “Pois é, padre, a gente, a minha avó dizia, quando eu chorava de humilhação que eu recebia, ela falava: ‘Quem ri por último ri melhor, Deus tira os dentes e abre a garganta. Você vai ser um homem que quem faz a humilhação para você, um dia, eles vão te apertar a mão, vão te dar parabéns.’” É o que eu estou recebendo desse pessoal que ainda existe, mais ou menos da minha idade, e os que existem vêm me dar os parabéns por essa casa que eu tenho para o povo, do povo para o povo, porque eles que ajudam a manter a casa. Eu tenho todo o cuidado, levo criança de escolas lá, brincam, faço o vídeo dos trabalhos que eu faço, porque eu tenho muito trabalho de vídeo, de fotografia. A parede dessa casa lá, que era do Severo Gomes, da Fábrica Tecelagem Parahyba de cobertor, é “encarreada” de fotografias minhas de todo o trabalho meu, da minha mulher e dos meus companheiros de trabalho de Moçambique, Folia de Reis e de fazer casa de pau a pique amarrado, essas coisas. Então, tem tudo. Comecei a compor treze anos atrás, tenho 28 músicas, música e letra minhas, que compunha, e aí eles perguntam para mim: “Como é que você compôs se você não lê e não escreve? Você tinha um o gravador para gravar você gravando e depois decorar?” Não, eu decorava primeiro a letra e depois ia procurar a música na tábua do fogão, porque de madrugada eu ficava na roça sozinho, a família em São José, então, eu tinha muito trabalho. Eu ficava na roça e no fim de semana vinha embora, se precisava vir no fim de semana eu vinha, mas ficava lá olhando para as ripas da casa e sem ter um galo para cantar, só grilo gritando para lá e para cá, sapo lá no brejo: “Pau, pau, pau, João, João, João.” Ficava com aquilo, aí eu pegava, fazia letra e levantava, pegava um violão, e ia para a tábua do fogão. Acendia o fogo, tomando café e procurando a melodia que casava com aquela letra que eu fiz. Então, era o meu trabalho, compus bastante. Deixei de compor quando fui operar um câncer na próstata. Eu tive muito tempo anestesiado porque o médico deu para mim, não sei como que fala. O médico, mandaram ele conversar comigo, a médica, ela falou para mim para eu alembrar as coisas dos sete anos que daí vai voltar. Eu, procurando compor alguma coisa, vai reviver outra vez essa vontade que eu tenho de compor música, porque, se eu não tivesse operado, eu tinha muita letra, porque muita coisa, essa beleza que está aqui, ó, essa araucária, que para nós é pinheiro, esse mundo desse prédio que está aqui, essa vida que nós estamos aqui, a vida que eu tive em Brasília, eu já tinha muita letra pronta. Porque vem na minha cabeça, vem na mente, porque nós temos tudo na mão. Eu que falo: “O cara faz a burrada dele sem perceber onde que ele está, ele está vegetando em cima da terra, ele não tem amor nele próprio.” A melhor coisa que o homem tem é ele amar e ele primeiro, nem que ele não cuide dele, que nem eu, eu não me cuido, mas eu me amo, porque eu, me amando, eu amo tudo que está em volta da gente, essa beleza que Deus deixou para nós que é o nosso semelhante, que nem vocês aí. Porque não tem ninguém mais bonito do que o outro, não tem ninguém mais feio do que o outro. Não tem cura, não tem idade, nós somos tudo uma coisa só. Ele pôs no mundo para nós trabalharmos e vivermos, mas nós amando o seu semelhante, como ele, porque ele não precisava morrer tão cedo como ele morreu, morreu através da nossa vida, para salvar a nossa vida. Quando ele estava apanhando das pessoas que estavam judiando dele, ele não pediu para o pai, quando o pai dele falou: “Filho, pode deixar que eu me trato dele.” Ele falou: “Deixa pai, que um dia ele vai se arrepender e ainda pode se salvar.” Então, é uma lenda, é uma lenda, mas é uma verdade. Eu não li bíblia, eu não li nada, Velho Testamento, não vê nada, mas a minha avó, analfabeta, não lia também, mas tinha tudo na cabeça. Avó caía, escrava, era uma nega alta, bonita, e a gente tinha muito medo dela, mas, quando eu fiquei fã dela e ela fã de mim, a gente fazia fogueira na porta da Igreja São Sebastião, porque todo dia tinha terço: hoje o terço era meu, amanhã era seu, depois de amanhã era dele. Então, era uma novena de nove dias, que rezava terço todo dia na Igreja de São Sebastião. Isso foi anos e anos até que foi acabando a colonização lá de negócio de planta de café, o pessoal foi mudando para a cidade e foi acabando. Daí que foi acabando esse negócio do terço, e ela lá cantando, rodando com a gente e ensinando a gente cantar e tantas coisas... Então, o que eu aprendi – negócio de folclore, essas coisas, cultura popular – eu aprendi com ela, com a sobrinhada dela, com as colegas dela de ex-escravo. Porque ela era escrava, ela morreu com 102 anos, e eu convivi com ela dos oito anos até... Dos sete anos até os 11 anos, quando ela foi morar onde ela morava, porque ela criou os dois filhos e fez casar ______ do meu filho, e, quando eles casaram, as crianças foram crescendo e refugavam ela na casa, por causa dela pitar no pito, por causa de ser preta. O pai chamava ela de Mãe Preta, e eles falavam: “Oh, mãe, o meu pai chama ela de Mãe Preta, mas ele é branco.” Então, foram rejeitando ela e foi morar onde foi, foi, onde ela foi comprada por um patacão, quase perto da fazenda onde ela criou essas duas crianças. Então, a vida. Hoje eu falo assim: a minha vida é um livro aberto porque tem a história desde os sete anos até o dia que terminou, quatro anos de pesquisa para fazer esse livro. A mulher tem um canto lá no quarto dela, um cômodo assim, está até em cima no forro de caixa de fitas que foram gravadas nas nossas viagens, onde eu andei com a tropa. Aí, quando foi para fazer o livro, ela falou: “Qual é o nome do livro?” Eu falei: “A Trilha do Zé Mira”, porque eu andava na trilha, não tinha estrada. Então, era nos meios dos morros, com a trilha, com a tropa. Aí veio o carreador, carro de boi, tinha que abrir uma estrada para caber os dois bois e o carro, que um metro e meio de largura, essas coisas tudo, até que veio o caminhão tirando as tropas da trilha e tirando o carro também da estrada. O carro ainda continuou mais um tempo, mas a tropa foi acabando rapidinho, porque gastavam dez tropas com dez burros para carregar a carga de um caminhão daquele tempo, do Ford, que não era essa carreta, era um caminhão 3/4, né? Então, ele carrega 100 sacos e gastava dez tropas para carregar 100 sacos. Os fazendeiros preferiram mais a roda de borracha do que o casco do burro. Eu falo que foi trocado o pneu do carro pelo casco do burro, porque era mais fácil. Dava trabalho, tinha que abrir estrada para chegar na tulha, em outro lugar, e não tinha máquina, era tudo no enxadão, na picareta, mas tudo isso foi feito para facilitar o negócio do carreto, e a tropa foi acabando. A tropa foi ficando só na fazenda para descer as mercadorias do aberto até o ponto do caminhão, e assim foi a minha vida e, como é até hoje me sinto. Ainda com 82 anos, vou fazer 83 dia 24 de outubro, e 23 agora de setembro, vou fazer 63 anos de casado. Minha mulher vai fazer 82 anos, coitadinha, está lá na cama, deu uma doença, não tem mais aquela mente viva, aquela herói que era, né? Então, não tem, mas ela, ela não falou para eu vir, meus filhos que falaram. Ela falou para a minha filha: “Fala para ele vir porque, quando eu podia andar com ele, onde ele ia, eu estava junto.” Porque ela saía, cantava junto, dançava junto. Então, ela largava a família lá, os filhos com a filha mais velha, para olhar os netos, bisnetos – que a gente tem 11 bisnetos –, e ficava tudo olhando, cada um olhava o seu, olhava a minha casa, e nós saíamos, íamos para Brasília, íamos para Ourinhos. Em Brasília, nós fomos quatro vezes. Fomos a primeira vez cozinhar para a Feira dos Candangos. A segunda vez fomos com a orquestra de viola. A terceira vez fomos com o Moçambique, Grupo Piraquara. A quarta vez eu fui agora, que ela já não pôde ir, eu fui, ela já estava internada. Faz um ano que ela está internada, agora em setembro, dia 15 de setembro, não sei se é hoje, amanhã. Um ano que ela está internada com essa doença, perdeu a mente, não andava. Hoje ela conversa, anda escorada, mas está, está um restinho... Então, o que a gente tem que pensar na vida: eu estou aqui, por quem? Por Deus e por vocês, porque tem que ter incentivo. A coisa mais triste é você passar, eu passar aqui perto de vocês dois e eu nem olhar para a cara de vocês, e vocês olharem na minha. É a coisa mais triste, porque nós somos irmãos, queira ou não queira, nós somos irmãos. Que nem eu fui numa escola, eu falei para as crianças: “Nós somos irmãos.” As crianças, tudo de 11 a 15 anos: “Somos irmãos por quê? Você está velho, já nós somos novos...” Eu falei: “Mas eu fui igual a vocês, quando Deus pôs nós no mundo, ele pôs tudo como irmão, não tem um diferente do outro. Eu estou vendo um cutucar o outro com a caneta: você está cutucando seu irmão e quem que você está ofendendo? Aquele que está lá em cima que pôs você na Terra, que pôs você no mundo.” “Mas nós somos irmão por quem?” Até eu brinco: “Pela Eva e pelo Adão” (risos). Porque foram os dois que fizeram o pecado e começou criar filho. E, então, veio vindo essa geração. Não tem preto, não tem branco, não tem amarelo, não tem nada, tudo é igual. Eu fiz uma entrevista para a Universidade de São José dos Campos, na Praça Afonso Pena, então, perguntaram para mim: “Zé Mira, o que você acha desse mundo, desse mundo de hoje e do tempo que você foi criado?” A diferença é muito grande, só que a diferença de hoje, esses jovens de hoje não amam eles. Eles levam a coisa tudo na brincadeira, mais uma palavra que a avó, a ex-escrava, falava: “Um dia, as meninas com 12 anos vão começar a se prostituir, vão ter filho sem saber de quem é o pai. Eu não vou alcançar, mas vocês vão, procurem estudar e corrigir a sua vida. Ama, ama vocês, sejam orgulhosas as meninas.” Porque tinha meninas à volta da fogueira. “Vocês, meninas, se orgulhem de ser mulher...” Ela falava: “Mulheres, se orgulhem de serem mulheres.” Porque, se não fosse a mulher, não existia homem, se não fosse o homem, não existia a mulher. Então, tudo é um conjunto que está crescendo e vai crescer muito. “Só que, quem não estudar o sábio letrado, vai engolir vocês que nem os barões nos engoliram.” Ela não falava governador e nem nada. A gente pensava: “Quem, quem vai fazer isso?” Ela falou: “Vai ter um que vai querer ser maior do que o outro, tem um que vai querer ganhar mais do que o outro, e aquele que não estudar, vai chegar um tempo que ele não tem onde trabalhar, ele não tem onde trabalhar porque, para ele trabalhar, ele tem que saber ler.” Isso era a Sinharinha que falava para mim, porque ela, a sinhá, ela não foi para a Bahia quando ela foi comprada, ela ficou com a sinhá, para criar o filho que estava dentro da barriga da sinhá. Então, deixou ¬¬______ lá para a Bahia. Ela ficou, ela falava: “Eu vou morrer virgem.” Eu sabia lá o que era esse negócio de virgem (risos). Então, eu sabia do conjunto de moça que tinha que punha aquele véu branco, naquele andor de Maria, tudo de branco. Então, o pessoal falava que aquela era a irmandade das virgens, mas falava “virgem”, para nós não significava nada. Entrava e saía a mesma coisa, né? Então, que ela falava ______, levou ela para a Bahia, porque todas que levavam para a Bahia eram amantes dele, tinham filho dele, como tem algum aí com 90 anos, com 100 anos, aqueles mulatos que ele diz que eram claros do olho verde. Aqueles mulatos do olho verde, que eram filhos dele com a escrava preta, porque ele levava para lá e tinha que... E que o marido não piasse, que ele mandava matar, punha na roda-d’água. Então, a avó contava tudo isso para a gente. A gente não é nada. Então, eu fiz a entrevista, eu falei: “Aqui nesse chão que nós estamos pisando, que Deus deixou para nós pisarmos, para nos criar, aqui, se enterrar o Presidente da República, ou Zé Mira também vai ser enterrado aqui, essas meninas que estão aí vão ser enterradas aqui, que são as prostitutas lá da praça.” Então, falavam assim: “Vai ser enterrado aqui mesmo?” Eu falei: “É claro que vai, não aqui, lá no cemitério, mas era terra.” Porque a terra, quando Deus fez a terra, ele disse: “Você vai ter que criar, vai ter gente pisando em cima de você, andando e tudo, e ela falou: ‘Não aceito, eu não aceito.’” Aí, quando Deus disse: “Você vai criar, vai nascer e vai criar, você vai aguentar tudo isso, e o dia que eu morrer você vai comigo.” Falou: “Então, eu aceito.” Que é a mesma coisa a palavra do porco, quando Deus pôs ele como um porco e falou: “Por que porco?” Falou: “Você vai ser porco.” Falou: “Por quê?” “Porque você entra no bar, quando sai, sacode o pinto e está limpo, porco.” Aí ele disse: “Eu não quero esse nome de porco.” Aí disse que Deus falou para ele: “Você vai ser porco, a mesa que você não estiver não tem festa.” “Ah, então eu quero, então eu quero.” Que é porco, né? Então, isso tudo a minha avó Cândia, espanhola, contava para a gente, história. Era uma lenda, mas uma lenda verdadeira. Hoje não, hoje todo mundo foge comer a carne do porco, a gordura do porco, mas antigamente não. Eu como até hoje toicinho cozido, assado na brasa cheia de cinza. Comer um feijão sozinho bobo, que é feijão sem temperar, sem nada. Eu ponho na gordura quente, deixa ali, pôr um salzinho, mexo com farinha e ponho um toicinho assado lá na brasa, cheio de cinza para eu comer. Graças a Deus, eu tenho esse privilégio. Minha mulher fala: “O dia que você estiver com colesterol, eu quero ver você comer isso.” Porque ela tem, né? Então, em casa não entra gordura de porco, só o óleo, mas o óleo não me sustenta. Levanto quatro horas, se eu levantar quatro horas e comer um virado de feijão com torresmo, eu estou almoçado, que era o meu trabalho de tropeiro, que a gente fazia para poder sair com a tropa, porque saía de madrugada e não sabia que hora que ia fazer almoço. Tinha dia que não fazia almoço, o almoço era um feijão-tropeiro feito na trempe, os dois ferros fincados para pôr aquele ganchinho, para pôr a panela, para pôr o fogo embaixo para ferver, fritar o torresmo. É o que comia. Então, essas coisas hoje estão tudo diferentes. A faculdade foi fazer uma entrevista com a pessoa, a pessoa falou: “O arroz tropeiro, o feijão-tropeiro, o tropeiro comia couve, o tropeiro comia isso...” O tropeiro nunca comeu couve na viagem, comia serralha porque tinha muita serralha, roçava os matos e saía aquela serralha bonita, e a gente comia crua, é amarga, mas é muito bom para a saúde. A gente apanhava um punhado de serralha para a gente levar pra onde ia fazer o almoço, comer com arroz, feijão e torresmo. Mas couve não, couve só comia em casa. Carregar couve de que jeito? Ir na horta dos outros apanhar couve de que jeito? Então, não tinha como. O arroz tropeiro – tropeiro que na época não tinha nada, só a tropa –, ele nunca comeu arroz na viagem, porque não tinha como ele cozinhar o arroz. A gente cozinhava o feijão de noite e punha lá na latinha, mas era só para almoçar no outro dia e jantar, porque, se ficasse para o terceiro dia, já estava azedo. Hoje não. Hoje, você cozinha o feijão segunda-feira e come até sexta-feira, para depois, segunda-feira, você pôr na geladeira de novo, porque está tudo bom, é só tirar um punhado lá, temperar, né? Antigamente, não tinha nada disso. Dificilmente, você encontrava uma água em certos lugares que você andava, para você apanhar uma água para você poder cozinhar o feijão. Você tinha que carrear água no quinto de madeira – que era de carregar pinga, aquele barrilzinho – onde tinha uma água boa lá. Você enchia o quinto, enfiava debaixo do couro das cangalhas e carregava, porque não sabia se pra frente tinha água pra modo de você cozinhar o feijão à noite e fazer o café tropeiro. Então, a vida era essa. É uma vida que muitos tropeiros têm vergonha hoje de chegar e falar para você o que ele foi, o que ele é. Ele acha que está fazendo aquilo e depois, quando sair na televisão, sair no jornal, qualquer coisa, ele vai ser criticado, porque tem gente que critica mesmo, que nem eu. Eles falam: “O que o Zé Mira tem que não sai da televisão, não sai do jornal, tem livro, ele não é mais do que ninguém.” Então, a resposta é essa: eu não vou atrás, eu não vou atrás. É a providência divina que me ilumina, que as pessoas vêm atrás de mim para fazer trabalho, porque hoje é um trabalho educativo. A Univap [Universidade do Vale do Paraíba] é a maior faculdade de São José dos Campos, da rede de ensino do Vale do Paraíba, que tem em vários lugares, São José dos Campos, tem em Jacareí, tem em Taubaté, em Guará. Essa Univap, que é uma rede, de milionário que tem rede de ensino. Hoje, tem um vídeo meu que serve, todo dia de madrugada passa na TV a cabo, todo dia de madrugada passa aquela entrevista que eu fiz na beira do Rio Paraíba, porque foram me buscar na roça para fazer dentro do prédio. Quando eu cheguei lá no prédio, que eu vi cheio de bandeirinha o prédio, tapete, tudo arrumado (risos). Trouxe cangalha lá de casa, rolo de fumo, balaio, aquele mundo de coisa de roça, de caipira, para poder entrar naquele prédio enfeitado daquele jeito, eu falei: “Não, de jeito nenhum, vamos lá para a beira do Rio Paraíba.” Aí o professor falou: “Mas como, Zé Mira? Lá é cheio de carrapato rapaz.” Pois é, é esse mesmo, isso faz parte do caipira. “Vamos embora pra lá.” Peguei um penado, fui lá, rocei um picão, rastelei tudo, eu com o empregado lá da Univap. Pegou o couro de boi que eu trouxe, cindiu o couro porque era um piquenique caipira só com coisa feita em casa: é bolo de fubá, é cuscuz, é o diabo a quatro lá. Tudo feito em casa, um piquenique caipira, dentro de um prédio enfeitado com bandeirinha, com tapete. Eu falei: “Não tem graça.” Aí fomos fazer lá na beira do Rio Paraíba, escolhi uma curva lá, debaixo de umas árvores. Chegamos, pegamos, estendemos aquilo, colocou a mesa. O empregado não achou muita graça, não, demos trabalho para eles baldearem tudo aquilo para lá, mas aí fez, pôs todo aquele bolo, biscoito feito em casa, tudo aquelas coisas feitas em casa, doce de abóbora, doce de leite, arroz-doce feito em casa, doce de batata-doce, tudo coisa feita em casa. Eu falei: “Esse é o piquenique caipira feito.” Porque a pessoa, às vezes sai de casa: “Vamos fazer um piquenique em tal lugar? Tem uma água boa lá.” Pega e sai. Então, o piquenique vai fazer lá fora da cidade, fora do barulho, num lugar lá pra modo de trazer aquilo por lembrança. Agora aqui, dentro deste prédio, não tem sentido. Aí o chefão de lá, dessa faculdade grande, chegou e falou: “Pois ele está certo. Está errado, pois, então, vamos. Ele quer fazer lá na beira do rio, manda o empregado ir lá limpar.” Eu falei: “Não, me dá o penado que eu vou lá roçar, aí só rastela e nós levamos as coisa pra lá. Leva os couros de boi, cangalha, balaio, folha de fumo, essas coisa todas, leva pra lá, né?” Vai tirar leite? Banquinho de sentar de tirar leite, porque foram lá em casa e limparam, encheram a caminhonete grande e trouxeram. Aí fomos. Hoje está servindo de uma rede de educação na Univap. Ficaram de me copiar uma cópia pra eu levar pra minha casa pra passar pras crianças verem até hoje, mas eu estou cobrando, todo dia eu cobro. Toda vez que eu encontro a Fátima, que é uma das chefes lá, eu falo pra ela: “Fátima, e a fita?” Ela fala: “Zé Mira, aguarda que eu esqueci.” O outro lá: “Eu esqueci.” Mas eu dou em cima, eu falei: “Olha, eu quero que vocês arrumem a fita antes que eu arrume filho que é advogado para ir lá espremer vocês na parede, porque é um trabalho meu, e hoje eu tenho uma casa que eu recebo criança, eu vou nas escolas fazer palestra com criança.” Eu vou nas faculdades, que nem eu vim na Faculdade de Mogi das Cruzes, em São Paulo, com 200 alunos, mas eu não sabia que era gente adulta, eu pensei que era criança. Cheguei lá, quando eu vi aquilo, me deu um frio na barriga, eu fiquei. Falei para a Lídia, que fez o livro, porque ela levou o livro pra vender, eu falei: “Lídia, onde que eu vim amarrar a minha égua? Como é que eu faço? O meu trabalho, o que eu estudei pra falar aqui com a criançada, brincar com a criançada, é outra coisa completamente diferente.” Ela falou: “Faz do jeito que o senhor quiser, a hora que o senhor não receber pergunta, daí o senhor vai abrir tudo, você vai falar tudo e pronto. Espera um pouquinho pra me receber lá.” Veio uma Folia do Divino, uns amigos meus de Mogi das Cruzes, pronto. Daí, pronto, fiquei tranquilo, sabe? Aí peguei, eles cantaram, eu cantei junto com eles, daí vieram os reitores da faculdade. E foi, falou: “Mira, são 200 alunos, já falaram pra mim que você pensou que era criança, a mais criança tem 28 anos, a mais velha tem 60 anos, muita mulher, muito...” Eu falei: “Então, está bom.” (risos) E, de fato, olha, eu vou dizer pra você. Aí critiquei os homens lá porque os homens estão muito vagabundos, não querem trabalhar, podiam estar lá estudando e não estão. E tinha aluno de São José estudando lá, né? Aí começaram as perguntas: da minha idade, da quantia de filho que eu tenho, do meu trabalho que eu faço. E o que eu exponho é isso: “Vocês estão diante de uma pessoa analfabeta, então, eu não posso responder coisa que eu não sei porque eu não leio jornal, eu não assisto televisão, eu só assisto o Jornal Nacional, e música caipira com a Inezita Barroso, lá no Jô Onze e Meia, eu gosto muito do programa dele, lá fui umas duas vezes, na de Inezita a sempre vai na roda de jongueiro. Então, na Band Vale hoje, a gente faz uma programação na Band Vale, na Rede Aparecida, hoje com a Rede Vida. Eu já fui convidado pra ir lá umas “par” de vezes. A gente faz esse trabalho e pra gente é muito gratificante a gente fazer um trabalho e chegar lá, a pessoa falar: “Eu quero que você canta duas músicas e conta uma história, pode ser a história que for.” Então, é o que eu faço, eu vou, chego lá, canto duas músicas e depois conto uma história, porque a gente tem história do tempo que a gente viajava, a gente tem história de amigo da gente, que aconteceu com ele. Lá em Aparecida, eu contei a história do caçador de onça. Então, quando eu vim pra Brasília, o pessoal de Mato Grosso que estava lá, o casalzinho de velhos, falou: “Você é aquele homem que foi em Aparecida e contou do caçador de onça?” Eu falei: “Sou eu mesmo.” Aí me pegou, me abraçou e falou: “Nossa, mas eu dou tanta risada daquilo.” (risos)
P1 – Conta para a gente?
R – Pois é, esse caçador de onça eram dois rapazes que iam pra venda do meu primo, do Ivo, faleceu agora, está fazendo um mês. Chegava lá e ficava contando, bebendo cachaça e contando: “Ô, compadre, e aquela onça lá, que foi preciso a gente pegar ela pelo rabo e meter o facão na cabeça dela.” Eu falei: “É mesmo, compadre, olha...” O pessoal fica todo de olho arregalado (risos). Aí, vai daqui, vai dali, e apareceu o fazendeiro lá, colheu o bicho e soltou o gado na palhada pra aproveitar o pasto. O resto de milho que ficava lá, soltou a bezerrada lá, e a onça agarrou comer bezerro. Passavam dois, três dias, sumia um bezerro daquele, um garrote. Aí foi atrás de caçador. Foi atrás de um caçador de veado, com aquela cachorrada americana, ele falou: “Não, eu não vou lá, não.” Ele falou: “Eu dou um boi pra você fazer um churrasco.” Ele falou: “Um boi seu não vale um cachorro meu que a onça mata.” E falou: “Você vai na venda do Ivo, dia de sábado ou domingo, lá tem dois caçadores de onça. Ia que pega a onça pelo rabo, pega pela cabeça, aqueles dois são fora de série.” “Mas como é que chamam eles?” “Ah, não sei, eles ficam lá tomando cachaça e contando história de caçada de onça.” (risos) Aí ele foi. Chegou lá, viu os dois com chapeuzinho de palha: “Nhé, nhé...” Pede pinga. “Ô, compadre, você lembra daquele dia que a onça ficou na beira da pedra, que daí você foi por trás dela, e ela dando tapa nos nossos cachorros? ‘Ai!’ E mia daqui, dá tapa pra lá, o cachorro gritava, e você foi por trás dela, que daí você levou o facão, pegou no rabo dela, montou a cavalo nela e meteu o facão na cabeça dela e abriu, que daí ela caiu lá, ficou tonta e nós acabamos de matar?” “Ah, compadre, foi mesmo, sabe que eu tinha esquecido daquilo?” “Mas é compadre!” Os outros falavam: “Mas isso é verdade mesmo?” “Verdade verdadeira, está aí o compadre que não me deixa mentir.” (risos) E aí foi. Aí, quando esse homem foi lá, ele falou: “Eu dou um boi pra vocês fazer um churrasco, se vocês matarem a onça que está acabando com a minha garrotada lá na palha.” Ele falou: “E agora, a gente pode ir lá?” Falou: “Não, agora não, tem que ser de madrugada, a hora que o gado levanta da chapada, que vem atravessando a beira do mato pra beber água pra depois pastar, aí a hora que ela pega, porque a onça não pega criação sem ela correr, qualquer coisa que ela vai pegar tem que correr pegar, né?” Vocês decerto vendo filme, ela ataca e sai correndo, correndo, e lá ela pega um. Aí foram, chegou lá, a garrotada foi levantando – estava escuro ainda o dia – a garrotada foi levantando, foi atravessando pra ir no bebedor d’água, que é uma laje de pedra que tem nessa fazenda, chamado Samambaia, para beber água e depois sair pastando, porque levanta com sede, né? Daí eles olharam, olharam, a onça não aparecia. Daí um pouquinho, a onça apareceu atrás da garrotada. “Ô, compadre, olha a bichona lá!” Eles, lá do outro lado da serra, e a onça pro lado de lá. Levaram o trabuco, a espingarda do cano dessa grossura, feito com bolinha de rolimã, de bicicleta. Põe tudo aquilo, ele falou: “Compadre, você atira com o seu cartucho primeiro, com sua espingarda cartucheira, daí, se você errar, eu seguro no trabuco aqui.” Falou: “Não, compadre, olha, cuidado, hein? Porque a onça vem pela fumaça, ela larga de ir atrás do gado pra vir atrás de nós.” “Não, não tem nada, compadre, pode deixar.” Quando chegou numa posição lá, ele meteu fogo na onça, do outro lado. Aí, a onça escutou o baque do tiro, ergueu a cabeça e ficou. “Olha lá, compadre, já está cheirando a fumaça, é não sei o quê.” Vai daqui, vai dali: “Compadre, mete outro cartucho.” Aí, carcou outro tiro. O gado foi adiantando, e ela ficou lá olhando. Quando ele deu outro tiro, ela ficou parada ali e virou pro lado onde... Eles estavam do outro lado porque ela envergava eles lá do outro lado, e eles estavam enxergando ela, ela estava enxergando eles, mas ela ficou assustada com o tiro. Então, ele falou: “Agora é comigo, compadre.” E ele ficou pra trás. “Troca o cartucho aí porque, se eu errar, você está com a espingarda carregada.” Aí ficou pra trás dele, e ele colou a espingarda lá e mirou: “Quero ver agora a danada...” E meteu fogo. Aí, meteu fogo, e ela já deu de sair para o lado lá. Falou: “Olha, compadre...” Olhou para trás. “Cadê o compadre?” (risos) O compadre já tinha inchado pro morro acima de capim-gordura pra virar o morro pra trás lá, né? Aí foi embora, e naquelas valetas que tinha no arar a terra, e fazia aquela valeta, a enxurrada fazia, então, aqueles buracões grandes, a erosão que dava fazia aqueles buracos. E ele foi pra grota em baixo, pulando com a espingarda na costa e o embornal, e caiu dentro de um buraco daquele, e o capim-gordura cobriu ele. Você sabe o que é o capim-gordura, antigamente? Ele dava um florzinha vermelha assim, “liguento”. Aí caiu lá, o capim-gordura cobriu ele, ele ficou quietinho lá. O compadre dele veio pro “trim” dele, dentro do capinzal gordura, e, pam daqui, pam dali: “Compadre, compadre?” Chegou lá, caiu no buraco também, e ele gritava: “Come, onça, mas come um homem de coragem. Ah, meu Deus do céu, e a minha mulher lá com os filhinhos dela, o que ela vai arrumar? Come, onça, mas come um homem de coragem...” Aí, o compadre falou: “Ô, compadre, não é a onça não, é eu.” “É você mesmo, compadre?” “É eu.” Ficou descobrindo a cara dele com o capim-gordura, tirando o capim-gordura de cima, e ele cavado em cima dele ali, dentro do buraco. Aí, ele olhando, falou: “Ô, compadre, aqui, se contar isso pros outros eu te mato, viu?” (risos) Ele foi embora pra casa, desconfiado. Aí, ele: “Compadre, você não vai contar pra ninguém?” Ele falou: “Não, compadre, de jeito nenhum.” “Se você contar pros outros, eu te mato, compadre.” (risos) Falou: “Como é que você me larga sozinho lá, com a espingarda carregada?” Falou: “Que carregada, até eu trocar o cartucho, ela pegava nós, um de nós lá, e já carregava, eu meti a cara e vim embora.” Então, é a história do caçador de onça (risos). Foi um sucesso a história da minha vida em Aparecida com essa história da onça, porque minha filha me acompanha, ela canta comigo. Ela: “Papai, tem a história do violeiro, história da menina que só fazia boneca, essa coisas todas.” Ela falou: “O papai não vai contar essas histórias, não. Vai contar a história da onça porque...” (risos) Ela é muito religiosa, não gosta de falar as coisas assim meia cabeludas. Então, não, eu falei: “Vou contar o caso da onça.” Essa é a vida do caipira Zé Mira, pai de 12 filhos, 63 anos de casado vai fazer dia 23 de setembro, 83 anos vai fazer dia 24 de outubro, se Deus quiser. Espero que a gente vai encontrar muitas vezes com vocês. Parabéns pra vocês, que continuam nessa labuta levantando as nossas bandeiras, porque eu só fiquei feliz da cultura popular não morrer de seis anos pra cá ou oito anos, quando os jovens pegaram, me procuraram, procuraram as pessoas de mais idade pra entrevistar, pra dar os seus detalhes pra levar pra faculdade. Porque eu falava: “Isso aí, a nossa cultura vai levantar quando as escolas se interessarem, os professores se interessarem a pôr esses trabalhos dentro da escola, porque, do contrário, vai ser prostituição, vai ser droga, vai ser tudo, porque os pais não aguentam mais. Aquele negócio de protelar o da criança, que “o pé de pinto, pé de galo não mata”, filho nenhum, de galinha, então, foi o que trouxeram tudo essas coisas, foi a televisão. É uma coisa que expandiu no Brasil. Tem muitos programas que vêm fora de hora, que a criança está ali assistindo e tem muitos pais, como eu tenho um genro que ele recolhe o meu bisneto dentro do quarto dele para assistir. É, ele aluga filme de passando mulher pelada, passando mulher transando, essas coisas todas, e o neto ali junto, meu neto junto. Então, agora a gente cortou tudo isso porque ele não tem capacidade de criar, nem os filhos dele não tiveram, e agora o neto dele, que é meu bisneto, que ele já tem cinco lá na casa dele... Então, eu não aceito, vai lá pra casa... Às vezes, ele entra no quarto, liga a televisão lá num programa, eu vou lá e desligo a televisão. Fala assim: “Zé, deixa eu assistir.” Eu falo: “Você vai assistir nisso aqui, ó, a cinta!” Então, é o que a gente está tentando matar um pouquinho, esse tema da criançada, de só de maldade. Porque a criança, pra aprender uma coisa boa, dá o que fazer, agora pra aprender uma coisa ruim, é rapidinho. É rapidinho, ele guarda na cabeça, porque a maior fase da criança, de sete até 12 anos, eles têm uma memória pra cavar as coisas. Eu falo por mim, eu falo por mim, porque tudo o que eu sei e aprendi, comecei aprender dos sete anos de idade em diante. Porque seis anos eu não lembro de nada, eu só lembro que eu apanhava, porque eu tinha meu irmão, abaixo de mim, porque nós brigávamos, e eu metia a mão na cara dele. Era mais criança do que eu. Aí, minha mãe pegava o cabresto e, ó, vara de marmelo sapecada do fogo, daquele marmelo que dá aquela fruta (risos). Ela arrancava lá do marmelo e sapecava no fogo pra não quebrar, e ficava lá em cima do forninho, do fogão. Fazia qualquer coisa errada, ela pegava a vara e vinha, ó. Nunca me fez mal apanhar, uma coça de cabresto que ela quase me matou. Vida que não acerto, né? Então, agora, hoje é “protelada” criança, “protelada” não sei do que lá, é tanta coisa, não pode. Esse bisneto meu, eu dei uma coça nele, que ele estava ferrando os bezerrinhos novinhos lá no coisa, e a criançada toda dando risada, e o bezerrinho gritando. Ele amassou, laçou ele, amarrou e pegou o ferrão. O bezerrinho berrava e pulava, aquilo para os outros era graça, para os outros bisnetos e sobrinhos que estavam lá. Eu cheguei, que eu tinha que fazer um show em São José, eu cheguei lá meio-dia, e ele estava lá com aquilo, e o pessoal estava almoçando lá dentro. Aí eu cheguei lá e vi aquilo, peguei, desatei o bezerro, peguei ele e meti o couro nele. Arranquei a cinta e meti o couro. Aí ele chorou, ficou bicudo, ficou até seis horas sem comer nada, a minha mulher falando pra mim: “O que você vai fazer?” Eu falei: “O que eu vou fazer?” E a hora que eu deixei de apanhar ele, que eu ia pegar a outra bisneta pra dar nela, porque ela falou assim: “Bobo, dá parte dele, que ele vai pra cadeia.” Tinha seis anos (risos). Aí peguei ela. Pra você ver a mentalidade. Como é que ela sabia que, se desse parte, eu ia pra cadeia? Ela estava com seis anos e ele com oito (risos). Eu dei risada, mas meti o couro nela. Ela é muito clarinha, muito gorda, ficou com as perninhas tudo roxa de apanhar (risos). Ai, ai, ai. Eu falei: “O negócio é assim, né?”
P1 – Senhor Mira, conta um pouco para a gente como o senhor aprendeu a profissão de tropeiro, quando era criança.
R – Bom, a profissão de tropeiro eu aprendi porque o meu avô comprou esse sítio em que o meu pai foi morar. Ele, solteiro, ainda ele pegava, colhia as coisas e ia levar para a cidade, mas ele morava sozinho nesse sítio, para tomar conta. Tinha o irmão dele do outro lado, que tinha uma fazendinha, ajudava ele a olhar, porque meu pai era assim: meu pai, tudo pra ele estava bom, morreu tudo pra ele bom, ele não era capaz de falar para você: “Você não presta, você não fez isso para mim, eu não gosto de você.” Nunca. Ele curtia a coisa que falavam para ele calado, até morrer. Já não era igual a minha mãe, que minha mãe dava resposta na ponta da língua. Então, tropeirava. Quando ele passava no terreiro dessa fazenda, que é esse meu avô, que depois ficou sendo meu avô, arrumou pro meu avô, o pai dele comprar esse sítio de um turco. Aí ele passava e tinha um branco que abanava na janela lá um pano branco, que ele até fez um verso desse pano branco que saía na janela. Aí, vai daqui, vai dali, um dia, ele ficou conhecendo, numa festa de São Sebastião, que era no bairro, ele ficou conhecendo minha mãe. Ele gostou dela, e conversaram, tudo e tal, porque os pais não deixavam, mas, como a mão não tinha mãe mais, era só o pai, o pai quase não saía, então ela conversou com ele lá e tudo e tal. E aí ele foi, e ela falou: “Você tem que falar com meu pai.” E naquele tempo não podia, por exemplo, se eu gostasse de você, e nós combinássemos um dia, eu não podia ir pedir o casamento, tinha que mandar outra pessoa para ir pedir o casamento, porque, se eu fosse pedir o casamento, o seu pai não ia aceitar porque eu era um vagabundo, um covarde, desrespeitando a sua imagem. Então, tinha que mandar um outro, por quê? Aquele que foi pedir o casamento pra mim com você, ele era o responsável pelo nosso casamento, então, tudo o que acontecesse entre nós dois, ele estava no meio. Isso aí ele não tinha o que escapar. Se nós brigarmos, se quiser separar, ele tem que ir lá aconselhar você ou eu, ver qual é que estava errado, pra modo de ele ser o responsável. Por isso que existia o pedido de casamento não do noivo, do rapaz que estivesse namorando com a moça. Então, passava, via aquilo. Foi lá pra pedir o casamento com a minha mãe e pegou e casou. Casou e mexendo com tropas. E daí a três anos eu nasci. Nasci, foi crescendo, conhecendo os burros ali, ele arreando e tal, trabalhando, indo pra roça com a enxada, e eu engatinhando. Logo veio o meu irmão, daí a dois anos que nasceu, que era diferença de dois anos, mas, quando nós fomos registrar, nós ficamos com a idade de cinco meses um do outro, por causo do registro. E daí, mais dois anos, veio a irmã. Eu fui crescendo. Quando eu peguei os sete anos, eu já comecei a acompanhar ele, segurar o burro pra ele arrear, puxar o burro pra ir pro monte de milho lá na roça, até a hora que eu podia. Cansava, ficava em casa. Escola não tinha, tinha brincadeira, mas tinha que trabalhar porque minha mãe não deixava eu ficar com a molecada que não tinha o que fazer e ir lá brincar. Tinha que ou socar arroz ou varrer o terreiro, ou ir pro rio ensaboar roupa, pra ela estender na grama, lá no sol, pra modo de esquentar pra depois ficar mais fácil pra limpar ou pôr na panela de ferro pra ferver, pra tirar aquelas manchas mais fortes. Então, meu trabalho era esse, debulhar milho pra pôr no monjolo, pra dar pra galinha, tratar de porco, tratar de galinha, colher ovo. Então, tinha o que fazer. Socar arroz pra fazer comida, socar café pra torrar, socar o pó do café pra fazer o pó. Tudo isso eu fazia pra minha mãe, e tinha que fazer, se não fizesse, apanhava. Ela falava: “Aqui, tem de fazer de tudo, tem que aprender fazer de tudo porque, na hora de casar, se casar com uma vagabunda que não faça, você sabe fazer.” A gente ficou naquela luta, aí aprendi trabalhar de tropeiro. Aprendia as manhas do tropeiro, aprendi as manhas do burro que já falei para vocês, o negócio da cangalha, o negócio do cabresto, essas coisas. Então, simpatizei por aquilo, era o meu sonho, era levantar de madrugada, bater no cocho, batia um palmo no cocho e: “co, co, co.” A burrada rinchava lá e vinha correndo pra comer milho. Eu já ia enchendo o cabresto, o meu pai ia pondo cangalha. Quando meu pai ficou doente, era um negão que ajudava ele, ficou junto comigo, pondo cangalha. Então, eu fiquei nessa lida e estou. Ainda tenho essa lida, considerado o único tropeiro em atividade no Vale do Paraíba, porque eu tenho toda a tralha da tropa do meu bisavô, que passou para o meu avô os cabeçotes de cangalha, que é feito de um gancho só com aquele lugar de pôr a alça do balaio, pôr o gancho pra carregar lenha, essas coisas. Porque é feito inteiriço, hoje é tudo emendado. Eles fazem uma parte, cortou o gancho, faz uma parte, depois pega e põe, de madeira ali. Você pega, três, quatro anos, quando você vê, está abrindo tudo aquilo. Tem dois que eu comprei. Eu tenho quatro originais, de 1800 e não sei quanto lá. Mas eu não uso ela para nada, uso só pra fazer a festa de tropeiro e o meu trabalho lá em casa, mas o cabeçote aqui já está tudo cortado da correia de tanto trabalhar, né? Então, foi a simpatia de mexer com o burro, porque eu falo: “Burros somos nós, porque ele não é.” Eu falo porque nós viemos com uma tropa de toucinho para o Vale do Paraíba, e um senhor lá ensinou um atalho pra nós. Estava armando chuva, para sair de Lorena, para sair para Cachoeira Paulista, onde era o armazém que descarregava, ele ensinou um atalho para nós: “Olha, aqui vocês vão economizar 10 quilômetros.” Eu nem sabia quanto eram 10 quilômetros, quantos metros tinha, nem nada. Ele falou: “Olha, é a trilha de tropeiro, vocês entram aqui e saem.” Só que tem que nós descemos a serra enorme no meio do mato, com a tropa carregada de toucinho, duas tropas, quando chegou lá, chegamos lá no brejo, tinha sinal que os cavaleiros passavam assim por cima. O burro chegou, cheirou aquilo lá – o burro de guia –, cheirou e virou pra trás. Não entrou, que ele pensou: “Aqui não é lugar meu com essa carga de 100 quilos nas costas, me enfiar aqui.” Virou atrás, foi virando a tropa tudo. Eu fui lá, peguei o meu burro de guia, que era valente, puxei ele, o barro veio até aqui no joelho, mas ele não entrou, ele me arrastou pra trás, mas não entrou. O que a gente fez? Teve que pegar o facão, podar aquela taboa no lugar mais estreito, pegar, tirar o couro de cima dos burros, por em cima daquela taboa que nós cortamos, daquela tocaiada, pra modo de a tropa passar em cima do couro. Mas eles passavam assim patinando, patinando devagarinho. E assim mesmo o couro enchia de água por cima ainda, porque era banhado. Atravessamos a tropa pro outro lado, aí eu ainda falei pro outro tropeiro, meu companheiro: “Quem é burro nisso aí, quem é burro nisso aí?” Ele falou: “Somo nós, de aceitar... Você não fala aí que sua avó falou ‘atalho é o caminho do diabo’? Ninguém fala em atalho porque é o caminho do diabo.” Lá dentro, tem o espinho, e onde está limpo, porque os diabos, quando andavam, Deus ensinava o caminho, mas os caminhos deles estavam limpinhos, o caminho de Deus estava tudo sujo, cheio de espinho, aquelas coisas. Então, quem aceitava ir por ali estava no caminho do diabo, quem aceitava lá pelo caminho do espinho, era o caminho de Deus. Então, ele falou: “É isso, você fala isso. Agora, se você peitou, nós fomos por você.” Eu falei: “Não, eu sou criança ainda, vocês são mais velhos, deviam ter me corrigido, falar: ‘Não, vamos por aqui’, e me alembrar disso que eu nem alembrei, armando chuva e com a tropa carregada de toucinho salgado e carne salgada pra trazer pro armazém de Cachoeira Paulista...” Aí, atravessamos e fomos embora. Chegamos em Lorena, dormimos lá, colhemos toda a balaiada, se tinha molhado, mas não tinha molhado, não, porque não tinha chovido ainda. Aí, ficamos, está pra chover, está pra chover. Choveu quinta, sexta, sábado e domingo, e nós presos lá no rancho porque não podia viajar, porque, se entrasse água naquele toucinho com sal, sal com a umidade ele já amolece, derrete. Se chovesse e o toucinho azulasse ou a carne azulasse, aquela carne que azulou, você tinha que pagar, já ia encostando ali de lado, pra descarregar, já ia encostando aquela que arrochou. Aí pesava quantos quilo deu, você pagava não é o patrão a que você pegou. Se eu pegasse a carga na sua fazenda, quando atravessasse a porteira ali, a responsabilidade já era minha, não era mais do dono. Aí era até entregar, onde fosse entregar, se tivesse carne perdendo, eu tinha que pagar e, se eu abusasse, o frete que ganhava não dava para pagar aquela carne que perdeu, você trabalhava de graça. Então, isso tudo passou, foi muito pouco tempo a minha vida de viagem longa, o mais foi feito na região, levando de uma cidade para outra, mas lá na região nossa mesmo, que era tudo perto. Carregava o café pra mata pra limpar, carregava arroz pra limpar, carregava feijão, carregava milho pra canjiqueira, carregava milho pro chiqueiro de porco da cidade, que engordava muito porco também. Era isso, mas tudo isso tinha responsabilidade, tudo que fizesse, saindo da porta da fazenda, você era responsável, até no peso, porque teve uma época que passou a pesar o balaio de milho, 90 quilos cada balaio, 180 cada balaio de milho com a palha, com o sabugo, pra levar pra debulhar lá onde eles compravam. Agora, chegava lá, não dava aquele peso, aí já era descontado. Quando chegava a conta pro patrão: “Por que você não encheu o balaio direito, não fez a pia direito?” Então, tem um macete até hoje feito de ______ de jacarandá, que é você ¬¬______ espiga de milho. Você põe uma com a ponta pra cima, depois enfia outra com a ponta pra baixo, e bate com macete. O balaio faz aquela pia pra não desmanchar no caminho, né? Mas tudo isso pra gente era brincadeira. Saía, atravessando as estradas na beira da fazenda: “Bom dia, Fulano.” Via as meninas lá no terreiro, dava (risos). Então, era coisa, né? Agora, aos poucos, quando as tropas iam chegando nos pousos que tinha, que são as colônias, às vezes tinha a “ranchada”, os pontos de pouso, as meninas já falavam: “Hoje tem função.” Então, falar em “função” hoje ninguém sabe. Lá, tinha um sanfoneiro, ele já ia lá pro rancho, junto com os tropeiros, oito baixos pra tocar, eu no cavaquinho, outro lá no violão cantando, e as meninas ali em volta olhando, e as mães dançando com os pais e dançavam com as filhas, mas ai de você se chegasse pra pegar uma menina daquela pra dançar! Não tinha disso, a gente paquerava no olho e olha lá (risos). Não tinha o gosto de pegar, né? Mas de tudo, tudo aquilo a gente tem saudade. Hoje eu tenho saudade, sofri bastante, mas tenho saudade daquele tempo. Como pode se dizer? É um tempo sem maldade, a maldade era dos pais com as filhas, porque, se pegasse na mão, tinha que casar (risos). Ah, porque não escapava! Eu tenho um primo casado com uma cigana, eu vou te contar a história como é. Ele não pegou na mão dela, ele só conversou com ela. Ele ia atravessando com a tropa, e a ciganinha saía para fora da casa e olhava. Aí, ele vinha descendo do aberto, tinha um cacho de banana em cima da cangalha, maduro, que ele trouxe do bananal onde ele passou e vinha vindo. Daí um ciganinho correu lá e pediu banana pra ele. Ele tirou o cacho de banana de lá. Daí veio essa ciganinha. Daí a um pouquinho, veio mais uma, chamava Alice ela, muito bonita. Chegou e conversou com ele. Ele foi e falou pra ela assim: “Escuta uma coisa, você é tão bonita, que idade você tem?” Ela falou: “Eu tenho 17 anos.” Ele falou: “Eu tenho 18. Se fosse pra você casar com uma pessoa a não ser cigano, você casava?” Ela falou: “Por que não?” A irmã dela chegou e contou pro pai dela e pra mãe que ela falou isso. Aí, bom, ficou o dia trabalhando, passa pra cá, passa pra lá. Foi um dia, quando ele chegou lá, o cigano... Tinha um pé de pitanga, ela foi lá e pediu pra ele pagar pitanga pra ela. Ele mandou o companheiro dele pegar pitanga. Ele já estava arando a terra, barraca lá embaixo, ele arando a terra daqui pra lá, o pé de pitanga. Encheu as vasilhas dela de pitanga, foram embora. Quando foi no outro dia cedo, ele já viu um homem lá no pé da pitanga. Ele pegou os bois, pôs na canga, falou: “Vem cá.” Aí ele foi. “Escuta cá, que conversa é aquela de você perguntar pra minha filha que, se fosse pra ela casar com uma pessoa que não fosse cigano, ela casava?” “Olha, ela falou ‘por que não’?” “Porque não, não! Eu que vou falar por que não. Então, pode soltar a boiada e vamos lá pra dentro.” Falou: “Mas por quê?” Falou: “Vamos lá conversar junto com a minha mulher e ela.” Chegou lá, pôs ele na parede. Falou: “Hoje, você não vai trabalhar.” “Mas por que eu não vou trabalhar? Eu tenho que trabalhar, tenho que dar conta da terra arada pro meu patrão.” “Tem nada, hoje não tem patrão. Eu vou lá na casa do teu patrão falar que você hoje não vai trabalhar.” Aí pegou e falou: “Nós vamos pra cidade. Cigano não faz casamento no civil, só faz aqui, e você hoje vai casar porque você desonrou minha filha.” Só de ele conversar com ela e fazer essa pergunta pra ela, ela já perdeu a honra, então, tinha que casar com ele. E ela já tinha um casamento marcado com um menino que nasceu junto com ela, porque lá é assim, nascem dois juntos, já marcam o casamento para aqueles dois, seja feio, seja bonito, um ou outro, tem que casar, né? Aí ele falou: “Não, o que eu sei, que minha mãe fala é que, quando nascem dois ciganos assim, já marca o casamento.” Ele falou: “Ah, já tem o casamento marcado, mas não tem problema, porque o outro agora não vai casar com ela.” Chegou na cidade, o escrivão: “Não vai casar. Que jeito? Que jeito que vai casar?” Esse safado que fez a nossa, bêbado. Aí foram lá: “Não, vai casar, vai ter que fazer o casamento, porque eu não aceito.” O velho fez esse casamento, pagou e foi embora pra casa. Chegou lá, a mãe dele: “Meu filho, mas o que é isso? Você levou essa ciganinha pro mato?” “Não, mãe, de jeito nenhum!” Falou: “Mas, filho, como é que eu vou viver com uma nora cigana aqui dentro da casa?” (risos) “Mãe, ela não vai viver com a senhora, eu vim aqui me despedir da senhora que eu vou entrar (da barra?) e não vou sair mais. Se eu sair, ele me mata.” Aí acompanhou. Ele está com 92 anos. Ela, eu não sei se está viva ainda. Ele, eu sei que está vivo, 92 anos, tem família. Ele tentou quebrar o tabu desse negócio de cigano casar com cigano. Então, ele tem quatro filhos, duas meninas e dois meninos, já tudo moço. Não sei se é casado ou não, porque isso o rapaz não soube me dar a notícia. Vivente, falou: “O cigano morreu, hoje ele é dono da metade da fazenda dele.” Ele tem uma fazenda numa cidade vizinha, é daqui do Vale do Paraíba mesmo, porque ele casou lá em Minas, na viagem dele, ele morava lá, mas a fazenda deles é aqui em Natividade da Serra, não sei se você já ouviu falar, caminho que vai pra Taubaté. Tem um fazendão lá, mas eles fazem a colheita, aguardam a colheita e juntam as barracas, as famílias, e saem andando. Uma vez, pro sul de Minas, outra vez pro norte de Minas, outra vez pro Rio de Janeiro, outra vez pra São Paulo. Cada ano, eles têm um lugar pra ir, fazer a caminhada deles, fazer barganha de cavalo, comprar galinha, vender galinha, eles topam qualquer coisa, né? Pegam um cavalo cego e largam pros outros lá (risos). Então, a vida é essa, e a minha vida de tropeiro foi essa vida que eu já contei para vocês, que sou fanático até hoje. Tenho a minha tralha guardada com muito carinho, é uma relíquia. Ainda falo para os meus filhos: “Quando eu morrer, algum que quiser guardar como relíquia guarda. Agora, quem não quiser guardar, pôr num terreiro aí, mete fogo, né?” Fala: “Não, papai, pode deixar que...” Agora, o mais interessado é esse bisneto meu, ele adora, ele chega lá, fica olhando no balaio: “Zezé, mas que beleza de balaio, quem é que faz isso aqui? Ninguém faz.” O burrinho, hoje eu tenho o jegue, porque meu sítio é pequeno. Então, eu arrumei jegue porque é mais fácil você manter ele, é mais fácil você trabalhar com ele, mas trabalha só em casa e, quando tem a festa do tropeiro, que eu vou fazer a festa do tropeiro, eu levo a tropinha de jegue, mas tudo arreadinho, tudo arrumadinho, peitoral, tudo, né? Mas esse negócio do esposo das meninas, quando a tropa chegava batendo aquele “bleng, bleng” pra aqueles tocos de mato, pra aquelas grotas, as meninas já falavam: “Vai ter função hoje.” “Função” era dançar, pagode, que hoje mudou o pagode. Antigamente, não era pagode, era função. A linguagem indígena e dos africanos, tudo falava função. Tinha um velhinho lá, ele levantava cedo no sábado, ele ficava olhando, olhando, aí falava: “Toninho” – ele chamava Sebastião – “Toninho, hoje tem função lá na Cachoeirinha, lá no Zequinha Mira, na tulha do Zequinha Mira.” (risos) Ele falava: “Mas o que você está cheirando?” Ele falava: “Olha, o cheiro da função vem de lá.” (risos) A gente dava risada dele. Aí, saía procurando onde é que tinha. Mas tinha todo sábado, num lugar tinha, num lugar, dois, três. Naquelas fazendas de café, chegava sábado à noite, o pessoal juntava e ia fazer a brincadeira lá, dançar, cantar. Então, era uma vida sem maldade. Ai daquele que fizesse qualquer coisa errada, tanto faz a menina como o rapaz.
P1 – ______?
R – Ah, não aceitava. A menina que, por exemplo, que soubessem qualquer coisa que ela saiu com o rapaz, transou com aquele rapaz, ela era tocada de casa. O pai não aceitava, a mãe chorava, porque mãe é mãe, mãe é mãe. Eu falo: “A mulher tem que se orgulhar dela, do corpo que ela tem porque ela é mãe.” Tudo que acontece de mal numa casa com o filho, ele vai com a mãe primeiro, ele não vai falar pro pai, porque, se ele for falar pro pai, vem chumbo grosso, né? Aí, a mãe é que tem que trabalhar com a cabeça pra conversar com o marido pra explicar tudo o que aconteceu, o que está acontecendo. Assim mesmo, ele explode, porque tem muita gente que não aceita, até hoje. Quer ser o machão que não é, a gente tem que entender. Eu entro muito nessa parte aí, sabe? Tem o amigo meu que vem tocar viola junto, ele tocou a filha de casa, grávida de dois meses, que ele ficou sabendo. Mas a Zilda, coitadinha, ela não sabia como que ela conversava com ele, da filha grávida, não sabia. Mas, quando conversou com ele, ele falou: “Dessa soleira pra dentro, você não entra mais, daqui pra fora.” Daí ela foi pra casa da avó dela, lá que nasceu a criança, ele não aceitou. Eu fui e falei pra ele: “Geraldinho, a hora que ela mais precisa de você é agora. Eu só quero saber uma coisa de você: o que você fez pra casar com a Zilda?” Ele falou: “Não, mas isso aí é outra história.” “Outra história não, é a mesma dela, Geraldinho, o que a gente planta, a gente colhe. Você não fugiu com a Zilda pra casar porque o pai dela não queria casamento com você? Por causa de você ser violeiro? Ele não falou pra você que corda de viola não trata de mulher?” (risos) Ele falou: “Ele falou.” “E o que você fez?” “Ué, convidei ela, fugimos, aí depois de a gente estar fugido lá, uns três meses, ele aceitou o casamento. Voltei, casei, foi um grande amigo meu.” “Pois é, você plantou, não plantou?” “Ah, para com essa conversas, o que é isso?” Eu falei: “Agora, você pega e põe sua filha fora de casa com a semente que você plantou e você está colhendo?” Eu falei pra ele: “Ó, Geraldinho, tudo que a gente faz a gente paga, eu não sei se existe inferno porque eu não acredito muito, porque o inferno...” Eu sou católico, mas não acredito muito no tal do inferno, porque o inferno eu acredito que seja aqui, que seja aqui, porque tudo que a gente faz de mal a gente paga, não tem esse e não tem aquele – nesses 82 anos, 83 anos que eu vou fazer – que eu já não vi pagar o que ele fez. Algum se arrepende, outros não se arrependem, que nem o Geraldinho. O Geraldinho morreu sem se arrepender, morreu de acidente, ele e a mulher numa batida de carro lá no aniversário de uma neta dele em São José dos Campos. O cara bebeu lá no aniversário, quando foi atravessar a pista da Tamoios, que vai pra Caraguatatuba, veio um carro, bateu nele. Ela morreu no lugar, ele morreu daí seis dias. Ficaram quatro pessoas, braço quebrado, perna quebrada e coluna quebrada, filho dele, neto dele e nora dele. Hoje estão tudo assim mais ou menos, né? Então, é coisa que você não pode falar do outro sem saber o que você está falando. Você tem que pensar em você primeiro, que você vê uma pessoa sofrendo, você fala: “Está sofrendo porque ele quer.” Não é porque ele quer, é porque aconteceu. Aconteceu de ele sofrer aquilo, por qualquer coisa que ele está sofrendo, é qualquer coisa que ele fez no passado, porque o sofrimento de nós termina na quinta geração. A quinta geração ainda paga ainda alguma coisa que seu tataravô, “zataravô”, sei lá, fez, e às vezes cai em você, que é a quinta geração daquela família. Então, não tem pra onde escapar, é um mistério de Deus, é um mistério da natureza, que você não tem pra onde fugir. Eu tenho uma pessoa que está sofrendo hoje, o pai dele foi muito meu amigo. Então, ele fala, ele está sofrendo o que o bisavô dele fez. Não caiu na primeira família, na segunda família, não caiu na terceira família e veio cair na dele agora, que é a quarta, porque ele está com três filhos na cadeia. É o que o bisavô dele fez com uma família, que cismou que a família tinha roubado na fazenda e jogou eles na cadeia. Ele que está pagando essa história. Ele reconheceu que ele está pagando o que o tataravô, sei lá dele, fez. Então, a minha avó, essa ex-escrava, a avó Cândia, espanhola, ela falava que o sofrimento pra pessoa vem até a quinta geração. Ali, acaba, se fizer coisa errada.
P2 – Eu vou fazer uma pergunta só pra entender um pouco. O senhor, hoje em dia, é um mestre griô?
R – Sou.
P2 – E como foi esse convite, como surgiu essa proposta?
R – Do quê?
P2 – De ser mestre? Alguém foi lá, te chamou?
R – Ah, eu fui mestre de Moçambique e Folia de Reis no Grupo Piraquara, que está fazendo 20 anos nessa semana. Que eu fiz a primeira festa do tropeiro em Jambeiro. Eu tinha um grupo de Moçambique de 40 crianças. Aí, eu estava tocando Moçambique lá, cantei a Folia de Reis na hora do almoço com o meu grupo e pus o Moçambique pra dançar. Eu era o capitão do Moçambique, que tomava conta e encenava. Aí, tinha um casal de gente encostada na parede do rancho e cantando junto comigo. Comeram seu prato feijão-tropeiro junto com torresmo, tudo aquilo e cantando. Eu achei bonito aquele casal muito bem vestido, cantando junto com a gente. Bom, aí passou. Ela foi embora, é de São José dos Campos, dona da Cerâmica Weiss de Louça, de São José, Sérgio e Helena. Aí, chegou lá essa Ângela Savastano, mulher do Doutor Rubens Savastano, que eu já conhecia o Doutor Rubens, ela não. Ela falou: “Ângela, você precisa ver, você estava atrás de um Moçambique, de um moçambiqueiro, você precisa ver a festa de tropeiro de Jambeiro que eu convidei você e você não quis ir. Tinha um Moçambique lá, um senhor com 40 crianças dançando lá. Eu tive dó porque tinha um calçado, outro sem calçado, mas tudo de branquinho com as fitas vermelhas, azuis, dançando, a criançada cantando. Mas dança, Ângela, você precisa ver.” Ela falou: “Mas por que você não perguntou pra ele onde ele mora, de onde ele é? Você está vendo que estou atrás de um moçambiqueiro e cantador de Folia de Reis, Helena.” Ela falou: “Ah, Ângela, até passou por sentido, eu fiquei tão empolgada cantando com ele ali que eu esqueci.” Ela falou: “Pois eu vou procurar saber.” Daí passaram uns três dias, o neto dela caiu do muro e quebrou o braço, foi pra Santa Casa. Chegou lá, a minha filha é enfermeira lá, atendeu ela. Minha filha, pra lidar com doente, é um ouro, não é por ser minha filha, não. É o que ela mais gosta, quis estudar Enfermagem pra modo de cuidar de idoso e de gente, né? Porque eu era enfermeiro da roça, aplicar injeção, essas coisas. Então, o doutor me ensinou aplicar injeção quando deu a febre amarela, fez o teste em mim, a febre não pegava. Isso eu estava com nove anos. Aí me deu o estojo pra esterilizar a seringa. Chegava na casa da pessoa, pedia água, fervia ali, esterilizava, aplicava injeção em você, punha lá no fogo de novo, fervia de novo pra aplicar injeção em você. Porque, na casa dele, tinham quatro, cinco doentes, né? Aí ela atendeu ela, ela falou: “Maria Inês, onde você mora?” Ela falou: “Ângela, hoje eu moro no Jardim Paulista, meu pai alugou uma casa aí e nós estamos lá, ele nos trouxe pra trabalhar, estamos eu, a mamãe e meus oito irmãos, e mais a minha avó com dois filhos dela.” Que meu tio... Daí ela falou assim: “Mas eu nasci em Minas Gerais, meu pai me trouxe pra cá com um mês e morei em Jambeiro, fui criada em Jambeiro, estudei Enfermagem no Hospital Santa Catarina, em São Paulo, Doutor Dilon arrumou pro meu pai me levar pra lá.” Ela falou: “Então, você caiu do céu pra mim, filha. Teve uma festa de tropeiro lá semana passada, né?” Falou: “Teve.” Ela falou: “Estou precisando de um moçambiqueiro, de um cantador de Folia de Reis, eu queria saber de você onde que mora esse moçambiqueiro. Você viu, foi na festa?” Falou: “Fui, eu fui na festa, estive lá até meio-dia, depois tive que fazer, entrar uma hora aqui na Santa Casa. Aí vim embora, não assisti o resto.” E falou: “Mas o moçambiqueiro que está lá é meu pai, o cantador de Folia de Reis é meu pai, que cantou na missa.” Ela falou: “Mas onde que eu encontro com ele?” Falou: “Ângela, ele acabou de chegar lá em casa, Dona Ângela. Veio trazer frango, queijo, leite e verdura pra nós, porque nós estamos numa vida muito difícil, alugando casa sem ter dinheiro, lá em casa está tudo desempregado, só eu trabalhando.” Ela falou: “E ele está lá na sua casa? Eu posso ir lá?” Ela falou: “Pode.” “Pronto, eu vou lá em casa levar meu neto, mas eu quero gratificar você!” Falou: “Não tem nada de gratificar, minha função é essa, eu já recebo por isso.” “Eu vou lá em casa pegar o rádio, o gravador e vou lá. Será que ele me aceita lá gravar com ele?” Falou: “Aceita, papai é muito bom, ainda mais que você vai gravar a Folia de Reis, Moçambique, essas coisas.” E daí pra ir pra Campos do Jordão, receber o pessoa do exterior no governo do Quércia, que vinha do exterior, Bulgária, Austrália e França. Fazia um temporal em Campos do Jordão, e o governo do Quércia foi responsável pra arrumar um grupo pra ir receber eles lá. E o Toninho, que já trabalhava em São Paulo com a cultura, era conhecido, mandou ele arrumar. Ele falou: “Eu vou arrumar o grupo em São José.” Mas, olha, estava vendo que o pessoal chegava, mas não arrumava. Aí fui pra lá, gravou tudo, mandou pra ele em São Paulo. Ele telefonou pra Ângela: “Fala pra ele arrumar pra ir no ensaio da igreja.” Porque eles ensaiavam na igreja, Igreja de São Benedito, onde tinha espaço. Aí eu vim de lá, vim de casa, pus as coisas lá e fui pra igreja. Minha mulher também foi pra assistir, porque ela esteve lá em casa, convidou. Aí fomos. A primeira coisa que eu cantei com ele, que era o chefe, o diretor do Piraquara nessa época, foi a Folia de Reis. Eu cantei a Folia de Reis minha. Eu falei: “Eu tenho outra folia que eu vou pôr no Piraquara, vamos cantar a outra pra ver se dá certo.” Cantamos, ensaiou o Moçambique, pôs a fita lá pra tocar: “Quem está tocando Moçambique ali?” “É eu.” Falou: “Então, arruma a trouxa para ir para Campos de Jordão depois de amanhã.” Arruma uma trouxa com o Toninho. “Eu estou vendo que tudo aqui é por ordem alfabética, eu sou analfabeto.” Falou: “Mas tudo que vai cantar é seu, Mira, tudo que vai cantar. Eu estou conhecendo você hoje, mas desculpa a minha liberdade com você, faz de conta que a gente já se conhece há muitos anos. Tudo que vai cantar é você lá, você vai tocar o violão que nem você tocou lá pra gravar e você não conhece ______?” Eu falei: “Conheço.” “Então, vai começar ______ da entrada que você, Moçambique, até o encerramento do Moçambique e depois Folia de Reis. Daí por nome, você vai, porque aí começam número um, número dois, número três, número quatro, até terminar, porque eram oito partes.” Aí peguei e fui pra Campos do Jordão com ele. Levamos o sanfoneiro, achamos um sanfoneiro muito bom que está com a gente e fomos pra Campos do Jordão. Chegou lá, o grupo chegou, a gente foi receber eles com a Folia de Reis. Aí, já ficaram encantados. Viola, cavaquinho, violão e acordeom e uma caixa. Ficaram encantados com aquilo, todo mundo ficou ali, fizeram uma roda na praça, do prédio do governo onde vai ficar, em Campos do Jordão, que vão ficar. Aí, nós íamos fazer a entrada, a chegada deles, o resto era com eles. Só que tem que nós tivemos que fazer nos quatro dias entrada e encerramento, porque um levou um disco, Austrália levou um disco do trabalho deles, os outros não levaram nada, levou um instrumentinho bundudinho assim, com quatro cordas, igual ao cavaquinho, parece que é “banje” que chama. E aquele homem tocava aquele “banje” lá pra eles fazerem aquele tipo de dança deles, de lá, né? E nós, quando fizemos a nossa dança, porque daí, terminado tudo lá no prédio, começava no forró, sanfoneiro tocando forró, eu cantando. Bom, daí chegaram aquelas da Bulgária, aquelas coisas, queriam aprender a dança que a nossa turma estava dançando. Daí, eu tive que largar do cavaquinho, largar de cantar pra ensinar. Eu com uma dama, e a mulher com a outra, ensinando elas a dançar aquela dança (risos). Então, a gente ficou todo dia. À noite, a gente tinha que fazer aquilo ali pra ensinar elas a dançar. Aquela que aprendeu mais fácil já ficava de lado, ela já pegava e ia ensinar a outra ou, quando não, entrar com uma brasileira. E eu, então, tinha que pegar uma, a mulher pegava outra, pegava o rapaz, e ficamos lá. E nessa leva, que eu fui pra ficar só esses quatro dias, faz 20 anos, está fazendo nessa semana que eu estou trabalhando. E daí a televisão já em cima, né? Fiz o Globo Rural na minha casa, lá na roça, ficou muito bonito. E tem 23 anos de jornalista da Ana, da Globo, vocês devem conhecer ela da televisão ou pessoalmente. Nós sentamos no cabeçalho de um carro de boi, eu com a viola, cantei, ela perguntando, e a turma filmando. Aí, as cangalhas tudo na beira do rancho penduradas, pra falar de tropeiro, ela foi e perguntou pra mim: “Mestre, quando que você pensou em parar de cantar, de trabalhar com a tropa, de fazer o trabalho que você faz com esse Moçambique lindo que dançou aqui no terreiro, com a sua Folia de Reis linda, você já pensou nisso?” Eu falei: “Pensei, já pensei, e peço a Deus todo dia, enquanto Deus me der, Ana, esse gogó pra eu cantar, esse braço pra eu manejar a viola, manejar a vara de ferrão no carro de boi, o arrocho pra eu arrochar, a tropa pra puxar lenha, pra puxar a madeira e colocar o balaio em cima e me der perna pra eu andar, eu estou dançando Moçambique, Catira, cantando Folia de Reis e Moçambique e trabalhando na enxada que nem você viu aí. Foi filmado tudo, meu trabalho, enquanto eu tiver isso, eu estou firme, se Deus quiser, vai me ajudar.” Ela baixou a cabeça, não perguntou mais nada, saiu. Encontrou com o Caco Barcellos, abraçou ele, aí ele veio e falou: “Zé Mira, 23 anos de jornalismo, eu nunca vi essa mulher chorar.” Ela não falou mais nada, foi pra cozinha, abraçou minha mulher, meu filho, que estavam tudo lá, e falou: “Nunca, nunca fiz uma reportagem igual a essa de tocar no meu coração e fazer eu chorar.” Falou pra Nair. Falou: “Dona Nair, Deus vai ter muito dó de vocês, muito dó dele, porque a vontade que ele tem de viver e de trabalhar com tudo que é tipo de coisa que falou pra nós aí...” Então, aquele Globo Rural foi sucesso no Brasil inteiro. Eu recebia telefonema do Caco Barcellos, ele foi lá pra aquele negócio da guerra, ele tem um sítio em São Francisco Xavier. Há poucos dias, ele telefonou pra mim, mas fez aquilo, dos 28 tropeiros que ele entrevistou. Ele falou: “Deixa vir uma resposta, sim ou não, do primeiro que contar a história do Brasil.” Quando foi um dia, eu cheguei da roça, minha neta caçula da Marina, que eram quatro, ela falou: “Papai, o Caco Barcellos ligou porque queria conversar com o senhor. Eu falei pra ele telefonar meia-noite porque o senhor chega aqui e vai pra Fundação Cultural ensaiar. Aí eu falei pra ele telefonar meia-noite, que o senhor chega onze e meia, meia-noite o senhor chega aqui.” Bom, tomei banho, deitei na cama, e ela não foi pra casa dela, ficou lá. Ela falou: “Papai, dorme, aí toca o telefone, papai está dormindo, está cansado. Eu vou atender o telefone, ele vai telefonar.” Ela ficou no sofá, fazendo as tarefas dela de escola. Aí, de fato, se ela não está lá, o telefone ia tocar, eu ia acordar, porque eu tenho o sono muito leve. Daí, pegou o telefone, tocou, era ele. Eu vi a hora que ela falou: “Não, ele já está aqui, já está deitado, mas eu vou chamar ele.” Chamou, eu vim. Nós tivemos uma hora no telefone, ele ficou fazendo roda, sabe? É que nem a pessoa que tem alguma coisa pra falar pra você e tem medo de falar, então, ele fica. Ele ficou. Quando foi no fim, eu falei: “Ó, eu já estou ansioso, rapaz, pra saber o que você quer falar.” (risos) Falou: “Zé Mira, eu estou com meu coração abaixo de zero.” Eu falei: “Por quê?” “Zé Mira, esses oito dias que eu estive na sua casa, pra mim, foi um sucesso, foi um alívio.” E eu falei: “Esses oito dias que você esteve, quando você saiu, aqui virou um velório, porque era cheio de gente, mas tinha que avisar lá embaixo que não podia conversar na gravação. A “angolaida” começava a cantar, tinha que tocar pro mato (risos). A rota de avião passa por cima de casa, o avião apontava lá no morro, tinha que parar, né? Então, custou muito pra fazer essa filmagem) lá.” Eu falei: “Lá parecia um velório, rapaz.” Ele falou: “Ó, Zé Mira, eu estou, olha aqui, rapaz, eu estou até com dó de falar pra você, você não foi o primeiro que falou a história do tropeiro no Brasil.” E falei: “Mas o que tem com isso, rapaz? O prazer meu é estar conversando com você ainda! Saudade de você, saudade da Ana, saudade do Chico, da Benedita.” Que é o grupo dele, fizeram a reportagem de 500 anos do Brasil. Bom, daí fui: “Não tem nada, rapaz, eu queria que você estivesse aqui junto com a gente, a Ana, a Benedita, a turma tudo sua que esteve lá na roça.” Ele falou: “Pois é, mas um dia a gente vai se encontrar de novo, se Deus quiser, Zé Mira.” Quando ele falou alto assim, eu falei: “Vem chumbo aí.” (risos) “Zé Mira, você foi o primeiro tropeiro que disse a história da abertura do Brasil com as tropas. Então, tudo aquilo que você falou lá que fazia e ia pra lá aonde está...” Como é que fala quando guarda as coisas antigas? A história do Brasil, quando abriu, então, tem um negócio lá que está arquivado aquilo tudo desde que começou, desde a abertura, tudo. “Você foi o único dos 28 tropeiros.” Porque todos falaram, mas falaram assim: “Ah, eu pego a tropa, eu vou lá no alto, trago o feijão aqui, eu trago o café daquele cafezal, eu trago a mandioca lá do mandiocal e o milho, lá daquela grota e tal, tal, não sei o quê.” “Então, o tropeiro, que nem você falou: tropeiro doméstico, não é tropeiro de jornada.” Tropeiro de jornada é aquele que carregou o ouro... Que nem ele perguntou pra mim: “Você carregou ouro no Brasil, na tropa?” Eu falei: “Não, eu carreguei o café quando o café era considerado como ouro do Brasil, esse eu carreguei, mas ouro não.” Ele entrevistou um homem que, em Cunha, foi o que tinha a tropa e carregava o ouro de Minas Gerais para ir para o Rio de Janeiro, só que tem que ele carregava até Silveiras, porque tem a Casa do Tropeiro até hoje lá, tem a Festa do Tropeiro, que foi a semana passada. E de lá punha na tropa do Rio e levava. Continuava com o ouro, pra levar que tinha os compradores e o fiscal dos compradores de ouro, seguia a tropa até chegar a Silveiras. Chegava lá em Silveiras, ele continuava para o Rio de Janeiro de medo de roubar. Então, cada tropa tinha um fiscal dos compradores de ouro, que eram os portugueses que compravam pra poder comprar pro Rio, pra ir embora pra Portugal. Então, eu falei: “Mas eu dei, porque a tropa” – quando foi descoberto o Brasil, e os portugueses que vieram na frente, que fizeram a abertura, que descobriram o Brasil, que veio o frei lá, não sei como é que chama, que lá na Bahia montou, fez a cuia do pau-brasil e agarrou trabalhar com os índios – “então, a tropa eram os índios, que faziam a plantação, faziam o balaio de cipó, punham aquele cinto na cabeça, carregam o balaio ali, e carregavam pra eles lá, era o tropeiro.” Quando foi expandindo, eles sentiram falta da tropa que eles tinham pra lá, aí trouxeram as mulas de lá pra cá, só que tem que trouxeram as mulas, os burros pra trabalhar, mas não trouxeram a égua e o jumento pra fazer a cruza aqui no Brasil. E aqueles burros vão ficando velhos, vinham, mas ficavam velhos. Aí, depois que trouxeram as éguas e o jumento, pega em espanhol, pra modo de fazer a cruza aqui e criar burro, porque havia necessidade de ter uma criação de burro, né? Porque o cavalo selvagem do Brasil ainda existe até hoje. Nessa época, os índios encontravam com ele para os matos lá, mas vão pegar quem, vão amansar aquilo como? Então foi criado assim. Trazia as éguas e o jumento pra fazer as cruzas pra criar a tropa, e foi criando tropa. Carro não tinha, avião não tinha, trem não tinha. Depois que foram amontando, mas a tropa em primeiro lugar, porque você punha uma carga de toucinho salgado no trem. Quando tinha lugar pra embarcar pra viagem pra São Paulo, ah, a carga ia sumindo no caminho, porque não tinha quem olhasse. Então, os empregados de lá iam carregando carne, carregando toucinho. Aí, ficou só na tropa mesmo, a tropa é que “canjava” tudo, a tropa é que carregava bilhete, a tropa que carregava carta. O telefone não existia, que nem eu quando saía, meus companheiros, quando saíam, você ia viajar hoje, a sua casa vivia cheia de mulher chegando da colônia pra entregar bilhete pro filho, pra levar recado, pra levar carta, pra levar recado, compra de remédio pra trazer. Quando era na cidade, quando era fora, então, era carta pra levar pra família e tal. Comigo, aconteceu uma história, que um amigo nosso morreu debaixo do carro, carregando madeira pra serrar, e a cavadeira rolou e matou ele. Chamava Seu João. Aí, a filha dele mandou levar uma carta pro irmão dela, que morava na Serra do Piquete. Ela falou pra mim: “Zezé, você vai descer a Serra do Piquete na trilha da tropa, tem um buraco na terra, tem uma água muito bonita, umas bananeiras de lado, é onde mora o Dito, meu irmão. Então, eu vou dar uma carta pra você levar pra ele. Fala pra ele que não deu tempo, que a tora de pau esmagou tanto o papai, que não deu tempo pra avisar ele, que não tinha quem fosse pra lá pra levar o recado pra ele vir no enterro. Você leva essa carta pra mim e entrega pra ele.” Bom, aí vem eu com meu companheiro, procurando aquele buraco onde tinha as bananeiras, olhando. “Mas de que lado fica?” “Do lado direito e vem embora.” Aí chega, descemos a serra e não achamos. Fomos em Guará, descarregamos a tropa, que era pra descarregar em Guará, e carregamos com o material que ia voltar pra trás: querosene, creolina, uísque, vinho, essas coisas. Daí não achamos. Quando voltamos, nós achamos o buraco, fui entregar a carta lá depois de três dias. Cheguei na casa dele, entreguei, foi aquela choradeira. Esperei a mulher dele, a Dona Dita, escrever uma carta pra levar pra ela. Voltei, falei pro meu companheiro: “Vai tocando a tropa que eu alcanço você.” Alcancei ele e falei: “Oh, Zé, aquela mulher é canhota, porque não é possível, nós olhamos, olhamos, olhamos e não achamos, rapaz. Quando nós viemos, nós achamos tão fácil.” (risos) Aí eu falei: “Chegando lá, nós vamos perguntar pra ela.” Chegou lá, eu falei: “Dona Maria, escuta uma coisa, a senhora é canhota?” Falou: “Por quê?” “Eu estou perguntando se a senhora é canhota.” “Ah, Zezé, eu como com essa mão, costuro com essa mão, corto o pano pra fazer a...” (risos) Aí, eu caí a rir. Eu falei: “Dona Maria, nós fomos com a carta pra Guará, lá pra São Paulo, não achamos o buraco que a senhora falou, quando nós viemos que nós achamos.” Eu falei: “A Dona Maria é canhota!” (risos) Ela escrevia canhota, cortava as coisas canhota, tudo canhoto. Aí ela deu risada, né? Eu falei pro irmão dela: “A sua irmã é canhota.” Ele falou: “Ah, Seu Zé, isso aí eu não sei.” Então, foi uma história que aconteceu e ficou marcado, de entregar as coisas. Mas vinha retalho assim, falava: “Fala pra fulana mandar um retalho, 20 centímetros desse metro, que não deu pra fazer o vestido da Joana.” “Manda trazer 40 centímetros desse riscado aqui” – da fábrica de Itajubá, da fábrica de riscado – “que não deu pra fazer a camisa do Chico e você traz um retrós igualzinho”. E linha de 20, não sei como é que fala lá, e tudo aquilo. Agulha de costurar na máquina, dedal pra pôr no dedo pra costurar, pra pontilhar, tudo aquilo a gente pegava, não tinha quem fizesse, era tropeiro. Então, a vida do tropeiro era essa vida. Ele era um telefone, ele era um carteiro, ele era um “levador” de recado (risos). Tinha que fazer tudo com as viagens dele e, mesmo na cidade, se fosse pra uma cidade aqui, a dez quilômetros aqui, o tropeiro saía e levava aquele monte de encomenda: óleo de rícino, “onça de maná” pra dar a criança recém-nascida, o chá de marcelinha, pra quem tem dor de barriga. Então, quando eu levava leite, que eu era criança, não trabalhava com tropa ainda, mas ele encomendavam isso pra mim. Era tropeiro também de carregar leite, né? Aí, aquela “onça de maná” era feita com rosa branca, aquele cheiro que aquilo... Coisa maluca. As bichas juntavam na garganta, eu comia metade. Chegava lá, eu falava pra dona: “Ó, dona, tinha só uma meia onça.” (risos) Chegava em casa, minha mãe: “Você comeu a ‘onça de maná’ de algum aí, porque está cheirando.” Porque eles vendiam, hoje não existe mais. Então, tinha essas coisa, anis-estrelado, e a gente tinha que levar na cabeça. A minha cabeça era um computador, como é até hoje. Tinha que levar aquilo tudo na cabeça. Às vezes, chegava lá e pensava: “Ó, gente, tem um negócio que eu estou esquecendo.” Falava: “Ah, já sei, anis-estrelado.” Chegava lá, falava pro farmacêutico, pegava, arrumava remédio de homeopatia. Então, tudo essas coisas era o trabalho da gente. Bom, gente, eu estou à disposição, eu estou precisando ir lá em cima.
P2 – Ótimo, deixa eu fazer uma pergunta, então, só para encerrar.
R – Isto.
P2 – O que o senhor acha de estar dando a entrevista para a gente? O senhor gostou de ter falado com a gente?
R – Demais! Demais! Peço a Deus que abençoe o trabalho de vocês, e que lute por aquilo que você gosta. Eu luto por que eu gosto e faço por que eu gosto, porque, se eu não gostasse, eu estaria junto com a minha família, com a mulher doente, com o filho doente, que foi operado do câncer também, mas está “bão”, graças a Deus, é advogado. Então, a luta por aquilo que a gente quer, o desejo que a gente tem, mas sempre pensando que a gente tem um protetor, sempre a gente carrega um anjo da guarda junto com a gente, pra gente fazer o pedido pra ele, pra ele levar lá em cima. Eu tenho São Benedito como meu protetor. Fui paralisado com a perna um ano e pouco, e através dele que hoje eu danço Moçambique, que eu danço Catira, que eu faço tudo. Nós pedimos pra ele me arrumar um médico. Primeira consulta dele foi comigo, ele falou: “Tem um remédio que cura isso, só tem no Rio de Janeiro.” Porque ele estudou lá, estudou com lanche e guaraná, pai dele milionário não quis pagar pra ele estudar pra médico, e, trabalhando pra médico, que sabia que ele ia formar médico e ia trabalhar de graça pro povo de Caçapava, que ele era demais, se tornou médico da nossa família. Faz 18 anos que ele faleceu, mas, graças a Deus, me curou. A primeira consulta que ele fez comigo, eu peguei em Cruzeiro e vim até São Paulo, desenganado de todos os médicos, meu nervo ciático enrolado e inflamado, eu gritava de dor. Eu andava assim de gatinho, acabei com tudo quanto tinha, com a casa cheia de filho e mais uma criança pra nascer, mas São Benedito, na Festa de São Benedito, em Aparecida, eu deitei em cima da tulha de café e chorava. Eu não ficava embaixo para as crianças não chorarem comigo. Chorava e pedia pra ele: “São Benedito, leve uma mensagem ao pai, Nossa Senhora da Aparecida, leve essa mensagem ao pai. Pede pra ele me arrumar uma pessoa pra me curar porque eu não posso ficar desse jeito com essa casa cheia de família. Tenho que trabalhar, estou passando apertado, pelo amor de Deus, me ajuda.” Na outra semana, apareceu esse médico. Primeira consulta, e eu hoje estou aqui. A injeção custou cinco, cinco contos de réis, e eu não tinha um tostão pra dar pra ele. Esse Dito Ferraz, dono do posto de gasolina, que me levou, também estava montando o consultório dele. Falou: “Manda vir a injeção que eu pago.” Ele falou: “Ó, tem uma coisa, essa de cinco mil é composta, butazona composta, e tem a outra, butazona simples, só que a outra butazona, ele vai ter que tomar dez ampolas, e essa composta, ele vai ter que tomar cinco, mas garanto que ele vai ser curado.” Tomei quatro ampolas, nas três ampolas, eu já estava com o machado na mão, cortando pau pra plantar café, e, graças a Deus, eu estou aqui junto com vocês, um orgulho pra mim de ver vocês nessa luta. E luta, pede proteção naquela religião que vocês têm, pede proteção, porque a gente é finito. É o que eu falo: “O filho, se sente errado, vai com a mãe, pra depois ir com o pai. O pai é bom pra fazer, mas, pra cuidar, é a mãe, né?” Então, nós temos um protetor e nós temos que pedir a ele, se nós estamos aqui é por ele, mas tem gente que não acredita, não acredita. Eu tenho uma vizinha que ela não acredita que existe Deus, não acredita que existe santo. Ela fala: “Santo de barro pra quê?” Eu falei: “Você não tem fotografia do teu pai, japonês, aí na parede, que você lida com todo carinho, e sua mãe?” A mesma coisa é o santo, que nem o Frei Galvão, agora que foi levantado lá em Guará, o bispo veio, santificou por quê? Eu fui cantar lá na inauguração da Casa de Frei Galvão três vezes já. Fui antes de ter a reforma e agora na reforma. Então, é uma coisa que você tem que acreditar. Você não leva muito aquilo fanático, é uma coisa que não presta. Esses crentes que ficam cercando a gente na rua, que a gente entra na igreja dele fazer o que ele quer... Eu não concordo com isso porque cada um sabe o que faz. Por que não tem ninguém, por que ele não vai lá na cadeia, pegar um bandido daquele, e fazer ele sair daquilo? Ele não vai, ele vai cercar você ali na rua. Então, não adianta. O padre vai lá celebrar a missa no presídio, vai lá celebrar a missa dele. O crente vai lá, reza suas orações junto com os presos, com cela, não adianta nada chegar lá pra falar, pra aquele que está no inferno. Aí, mais pro inferno, ele vai. Mais pro inferno, ele vai, porque aí ele fica pensando: “Eu já estou no inferno mesmo, o pastor falou que eu estou no inferno, então, quando eu sair daqui, eu vou fazer pior ainda pra mim, né?” Então, não adianta, cadeia não resolve ninguém. É que nem uma letra que eu fiz...
P1 – Está acabando a fita.
P2 – Só para retomar, para finalizar, obrigado pela entrevista, Zé. Obrigadão, muito obrigado.
R – Então, eu que agradeço essa oportunidade, espero que nós nos encontramos mais vezes, sabendo o resultado dessa época, a entrevista nossa, que pra mim é um orgulho ver vocês lutando com essa vida e que Deus nos proteja, está bom? (risos)
P2 – Obrigado, obrigado, Zé!
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